Solidariedade pandêmica: respostas da sociedade diante da insuficiência estatal

Priscila Cardia Petra Flávia Thedim Costa Bueno Claudia Lopes Rodrigues Chagas Leandro dos Reis Lage Marisa Palácios Sobre os autores

Resumo

A pandemia de COVID-19 chegou ao Brasil em um contexto de crises política e econômica que aprofundaram desigualdades e vulnerabilidades já existentes. Ações de apoio ao outro foram empreendidas por pessoas e organizações no sentido de mitigar os efeitos da pandemia. Foram realizadas 34 entrevistas entre outubro e novembro de 2020 com a finalidade de identificar as ações de apoio efetivadas para ajudar o outro, analisando-as em termos de solidariedade (pandêmica). Solidariedade e individualismo apareceram com frequência nas entrevistas como qualificadores das ações. Além disso, foram identificados três núcleos em que essas ações foram operadas: a família, o condomínio e a comunidade. A família foi citada como forma de suporte mútuo fundamentado pelo parentesco. Já as ações do condomínio se subdividiram entre as ações para dentro dos muros (de suporte mútuo entre semelhantes) e para fora dos muros (que revelam a diferenciação entre o condomínio e locais mais pobres). A comunidade se mostra como uma forma mais potente de ação, com experiências de autogestão, apoio mútuo e vulnerabilidade compartilhada. Nesse sentido, os resultados nos animam a compreender a solidariedade como método transformador da sociedade, independentemente da presença do Estado.

Palavras-chave:
Solidariedade; Pandemias; COVID-19; Autogestão

Introdução

O primeiro caso de COVID-19 registrado no Brasil ocorreu em 26 de fevereiro de 2020¹. Desde então, o aumento da transmissibilidade do vírus foi acompanhado por atritos e falta de coordenação entre as esferas do poder, encarnando um cenário de crise sanitária e política e com o aprofundamento das desigualdades sociais22 Bueno FTC, Souto EP, Matta GC. Notas sobre a trajetória da COVID-19 no Brasil. Os impactos sociais da COVID-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. In: Matta GC, Rego S, Souto EP, Segata J, organizadores. Os impactos sociais da COVID-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. p. 27-39. [acessado 2022 abr 26]. Disponível em: https://books.scielo.org/id/r3hc2/pdf/matta-9786557080320-03.pdf. Enquanto o governo federal defendeu a campanha “O Brasil não pode parar”, incentivando o fim das medidas preventivas contra a COVID-1933 CNN Brasil. Governo lança campanha 'Brasil Não Pode Parar' contra medidas de isolamento [Internet]. 2020 mar 27. [acessado 2022 abr 26]. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/governo-lanca-campanha-brasil-nao-pode-parar-contra-medidas-de-isolamento/
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, estados e municípios adotaram ações díspares, às vezes alinhando-se com diretrizes científicas, outras com isolamento vertical e/ou imunidade de rebanho por contágio44 Brasil. Senado Federal. Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia. Relatório Final. [Internet]. 2020. [acessado 2022 abr 26]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2021/10/26/relatorio_final-26102021-12h40-1.pdf
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. Nesse cenário, a população brasileira experienciou a ausência de informações oficiais e de políticas públicas para a COVID-19 enquanto aguardava as vacinas, sem previsão de data e quantidades.

A partir dessa conjuntura, este artigo objetiva caracterizar e compreender as ações de solidariedade de brasileiras e brasileiros de diversas regiões e classes de renda familiar no contexto da COVID-19 no Brasil. Trata-se de um estudo qualitativo exploratório que promoveu 34 entrevistas semiestruturadas e pretende inovar associando os relatos coletados ao contexto social e político do país e à produção sobre solidariedade de Bárbara Prainsack, Alena Buix e Jodi Dean.

A solidariedade é definida por Prainsack e Buyx55 Prainsack B, Buyx A. Solidarity: reflections on an emerging concept in bioethics. London: NcoB; 2011. como “uma prática que expressa a vontade de apoiar outras pessoas com quem reconhecemos semelhança em um contexto relevante” (tradução livre). Já Jodi Dean66 Dean J. Reflective solidarity. Constellations 1995; 2(1):114-140. reflete sobre como o apelo à solidariedade pode ser significativo quando os valores tradicionais perderam sua força integradora. Por isso, propõe uma solidariedade com ideal inclusivo e com validade contemporânea, a que denomina de solidariedade reflexiva. Em ambas as perspectivas, a pandemia de COVID-19 é uma conjunção conveniente para a identificação de semelhanças e para catalisar ações solidárias.

Nesse cenário, e a partir dessas compreensões, buscou-se abordar as opiniões e relatos sobre vulnerabilidade compartilhada, egoísmo e caridade dos entrevistados. Além disso, foram analisadas as ações de apoio citadas para mitigar limitações diversas trazidas pela pandemia. Essas ações foram localizadas em inúmeras organizações sociais e, por meio da lente da solidariedade, observou-se a existência de três núcleos: a família, o condomínio e a comunidade, que serão explorados a seguir.

Materiais e métodos

Este artigo faz parte de um consórcio latino-americano de pesquisadores de 13 países em colaboração com a Universidade de Viena, que acordaram linhas de trabalho comuns para estudar a solidariedade em tempos de pandemia. Para isso, a equipe Brasil realizou 34 entrevistas semiestruturadas por meio de plataformas online, entre outubro e novembro de 2020. As entrevistas seguiram um roteiro com perguntas orientadoras e um questionário sociodemográfico77 Consortium S. Categorías demográficas "Solidaridad en tiempos de una pandemia (Solpan+ América Latina)" (Demographic Categories "Solidarity in Times of a Pandemic (Solpan+ Latin America)") [Internet]. papers.ssrn.com 2021. [cited 2022 abr 29]. Available from: https://ssrn.com/abstract=3786920
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. Por meio de uma abordagem indutiva baseada no método Grounded Theory ou Teoria Fundamentada88 Charmaz, K. Constructing Grounded Theory: a practical guide through qualitative analysis. London, Thousand Oaks, New Delhi: Sage Publications; 2006., ou seja, por meio do que emergiu das entrevistas, foi elaborado um livro de códigos para o consórcio99 Consortium S. Libro de códigos "Solidaridad en tiempos de una pandemia (Solpan+ América Latina)" / (Codebook "solidarity in Times of a Pandemic (Solpan+ Latin America)") [Internet]. papers.ssrn.com 2021. [cited 2022 abr 29]. Available from: https://ssrn.com/abstract=3786925
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. As entrevistas foram processadas no software Atlas-ti.

O recrutamento dos entrevistados foi efetuado em três etapas: amostragem de conveniência, baseada nas redes de contato do grupo de pesquisa, seguida de técnicas de bola de neve e cota, procurando cobrir possíveis lacunas sociodemográficas1010 Bryman A. Social research methods. Oxford: Oxford University Press; 2016. (p. 418). Oito estados, Alagoas, Maranhão, Minas Gerais. Pernambuco, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, foram escolhidos, de forma a obter respostas de diferentes contextos da pandemia - sem esboçar um quadro representativo da solidariedade dos brasileiros, mas para acessar diversas possibilidades de compreensão e de ações frente à pandemia.

Foram analisadas as respostas referentes às ações de apoio que as pessoas descrevem fazer em seu entorno, incluindo a família - relacionadas à ajuda, à colaboração, compatíveis com a solidariedade, ou, na direção oposta, de não apoio, associadas ao individualismo e à não colaboração. O instrumento de coleta de dados sociodemográficos abrangeu aspectos da população do estudo, como: idade; sexo; raça/cor; educação; profissão/ocupação; renda familiar total [salário-mínimo (SM) de R$1.000,00 (mil reais)] (Tabela 1).Todos os entrevistados assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e a aprovação ética foi obtida do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (36569120.0.0000.5240).

Tabela 1
Características socioeconômicas e demográficas da população estudada, 2021.

Resultados e discussão

Contexto: “E daí? Lamento! Quer que eu faça o quê?”

Para compreender o cenário da pandemia no Brasil, precisamos falar sobre a desigualdade social, a falta de coordenação entre os entes federativos e, particularmente, o posicionamento do governo federal. O vírus se espalhou primeiro entre a população de renda média e alta1111 Fleury S, Menezes P. Pandemia nas favelas: entre carências e potencias. Saude Debate 2020; 44(4):267-280., porém, uma das primeiras vítimas fatais foi a trabalhadora doméstica Cleonice Gonçalves (Miguel Pereira/RJ), infectada pela “patroa” recém retornada da Itália1212 Melo ML. Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da patroa no Leblon. UOL Notícias 2020; 19 mar. [acessado 2022 abr 26]. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa.htm
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.

[...] o vírus não foi trazido por uma doméstica que viajou pros Estados Unidos. Foi pelo patrão dela. Então, eu tenho muitos amigos que a mãe foi contaminada porque era diarista, o pai era o caseiro e pegou de pessoas que tinham grana e que tinham viajado pra fora do país, entendeu?! (M, 26, B, ExtBaixa, Paraisópolis, São Paulo/SP).

A história dessa trabalhadora anunciou o que se passaria no Brasil: o vírus afeta a todos, mas de formas distintas.

[...] eu acho que as pessoas mais pobres sofrem mais. Estão mais expostas, têm menos oportunidades de fazer teletrabalho [...]. Ou os patrões pedem ou requisitam suas presenças e as pessoas com maior renda estão mais seguras. [...] estamos na mesma tempestade só que em diferentes barcos, né (F, 29, PP, Alta, Menino Deus, Porto Alegre/RS).

Em março de 2020, o governo federal defendeu a não suspensão das atividades econômicas33 CNN Brasil. Governo lança campanha 'Brasil Não Pode Parar' contra medidas de isolamento [Internet]. 2020 mar 27. [acessado 2022 abr 26]. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/governo-lanca-campanha-brasil-nao-pode-parar-contra-medidas-de-isolamento/
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, conflitando com as medidas que alguns estados e municípios vinham adotando1313 Agência Senado. Decisão do STF sobre isolamento de estados e municípios repercute no Senado [Internet]. 2020 abr 16. [acessado 2022 jul 5]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/ 2020/04/16/decisao-do-stf-sobre-isolamento-de-estados-e-municipios-repercute-no-senado
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. Em abril, quando o Brasil contava 5.017 mortes, o presidente da República, Jair Bolsonaro, disse sobre o avanço da pandemia no país: “E daí? Lamento! Quer que eu faça o quê?”1414 Garcia G, Gomes PH, Viana H. 'E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?', diz Bolsonaro sobre mortes por coronavírus; 'Sou Messias, mas não faço milagre'. G1 2020; 28 abr. [acessado 2022 abr 26]. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/28/e-dai-lamento-quer-que-eu-faca-o-que-diz-bolsonaro-sobre-mortes-por-coronavirus-no-brasil.ghtml
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. Nesse momento, membros do Congresso Nacional15 se articularam para aprovar o auxílio emergencial1616 Brasil. Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020. Diário Oficial da União 2020; 2 abr., no intuito de mitigar impactos econômicos causados pela pandemia1717 Albani VVL, Albani R, Bobko N, Massad E, Zubelli JP. On the role of financial support programs in mitigating the SARS-COV-2 spread in Brazil. EuropePMC 2021; preprint. DOI: 10.1101/2021.11.30.21267063.
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O que veio a seguir foi típico: as pessoas mais expostas à COVID-19 pertenciam ao conjunto de pessoas cujas mortes pareciam não ter importância1818 Santos H, Maciel F, Martins P, Santos A, Prado N. A voz da comunidade no enfrentamento da COVID-19: proposições para redução das iniquidades em saúde. Saude Debate 2021; 45(130):763-777.. A mortalidade das pessoas negras foi maior (e inicialmente foram menos vacinadas)1919 Leão AL, Dantas D, Martins E, Branco L. Abismo social COVID-19 deixa mais mortos na periferia. O Globo 2020; 3 maio . [acessado 2022 abr 27]. Disponível em: http://www.fsp.usp.br/site/wp-content/uploads/2020/01/G2T4I5P2M.1.screen-1-1.pdf
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,2020 Muniz B, Fonseca B, Fernandes L, Pina R. Brasil registra duas vezes mais pessoas brancas vacinadas que negras. Agencia Pública 2021; 15 mar. [acessado 2022 abr 26]. Disponível em: https://apublica.org/2021/03/brasil-registra-duas-vezes-mais-pessoas-brancas-vacinadas-que-negras/
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, o isolamento foi possível apenas pelos que podiam trabalhar remotamente2121 Monitor Mercantil. Nas classes A/B, 52% adotaram home office; nas D/E, 26%. [Internet]. 2020 ago 21. [acessado 2022 abr 26]. Disponível em: https://monitormercantil.com.br/nas-classes-a-b-52-adotaram-home-office-nas-d-e-26/
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e a insuficiência de políticas de prevenção expôs os mais vulnerabilizados aos transportes públicos2222 Romeiro DL, Cardoso FL, Schechtman R, Brizon LC, Figueiredo Z M. Transporte público e a COVID-19: o abandono do setor durante a pandemia [Internet]. Rio de Janeiro: FGV CERI; 2021. [acessado 2022 abr 26]. Disponível em: https://ceri.fgv.br/sites/default/files/publicacoes/2021-06/tpc_covid19.pdf e às moradias2323 Natalino M. Nota técnica estimativa da população em situação de rua no Brasil (setembro de 2012 a março de 2020) [internet]. 2020. [acessado 2022 abr 26]. Disponível em: htps://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/pdfs/nota_tecnica/200612_nt_disoc_n_73.pdf
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sem condições de distanciamento, resultando em milhares de mortes evitáveis44 Brasil. Senado Federal. Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia. Relatório Final. [Internet]. 2020. [acessado 2022 abr 26]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2021/10/26/relatorio_final-26102021-12h40-1.pdf
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,2424 Ventura D, Aith F, Reis R. Crimes against humanity in Brazil's COVID-19 response - a lesson to us all. BMJ 2021; 375:n2625.. Por isso, aqui se considera a atuação do Estado brasileiro como “necrobiopoder”2525 Bento B. Necrobiopoder: quem pode habitar o estado-nação? Cad Pagu 2018; 53:e185305.:

[...] um conjunto de técnicas de promoção da vida e da morte a partir de atributos que qualificam e distribuem os corpos em uma hierarquia que retira deles a possibilidade de reconhecimento como humano e que, portanto, devem ser eliminados e outros que devem viver2525 Bento B. Necrobiopoder: quem pode habitar o estado-nação? Cad Pagu 2018; 53:e185305..

O Estado não apenas “ausentou-se” no desenvolvimento de políticas públicas, mas agiu deliberadamente2424 Ventura D, Aith F, Reis R. Crimes against humanity in Brazil's COVID-19 response - a lesson to us all. BMJ 2021; 375:n2625. na promoção da morte de parcela da população, gerando sentimento de abandono por parte desta entrevistada: Então tudo fechado [...] e as pessoas ficaram ao Deus dará. [...] (F, 41, PP, ExtBaixa, Benedito Bentes, Maceió/AL).

Essa condução contraditória das políticas governamentais motivou o agir da sociedade civil e dos movimentos sociais na construção de estratégias1818 Santos H, Maciel F, Martins P, Santos A, Prado N. A voz da comunidade no enfrentamento da COVID-19: proposições para redução das iniquidades em saúde. Saude Debate 2021; 45(130):763-777. para o período de calamidade pública, mostrando ações de apoio que podem ser relacionadas à solidariedade.

Solidariedade apesar de…

Quando mencionada pelos entrevistados, a solidariedade foi percebida como uma ação de cuidado com o outro:

Eu vi, muita gente de onde eu não esperava solidariedade demonstrou isso, doando alimentos, ajudando populações de regiões mais carentes [...] no início [...] você via gente cantando na janela, você via mais casos de solidariedade, você achava assim, “não, o povo vai cuidar um do outro” (M, 34, PP, Média, Praia da Armação, Florianópolis/SC).

Ao refletir sobre o tema, Jodi Dean (p. 40)2626 Dean J. Solidarity of strangers: feminism after identity politics. Berkeley: University of California Press; 1996. defende a existência de distintos estágios da solidariedade: afetiva, convencional e reflexiva. A afetiva seria constituída por fortes laços de amor e amizade referentes a um círculo restrito de pessoas. A convencional alude ao apoio mútuo de um conjunto de pessoas que se identificam com determinados valores e objetivos. Embora esta seja mais inclusiva do que aquela, ainda permanece a ênfase nas semelhanças internas do grupo em oposição às diferenças dos outros. Já na solidariedade reflexiva “reconhecemos o outro de uma forma que não é imediata nem restritivamente mediata. Nós o reconhecemos em sua diferença, mas entendemos a diferença como parte da base do que significa ser um de nós” (tradução livre)66 Dean J. Reflective solidarity. Constellations 1995; 2(1):114-140.. Enquanto Dean considera tipos distintos de solidariedade, Prainsack e Buyx55 Prainsack B, Buyx A. Solidarity: reflections on an emerging concept in bioethics. London: NcoB; 2011. distinguem a solidariedade em níveis: o interpessoal, o de grupo e a relacionada às instituições e normas. A interpessoal ocorre de pessoa para pessoa; a de grupo se dá quando as ações de apoio mútuo são normalizadas; a relacionada às instituições e normas ocorre quando as duas primeiras se consolidam como estruturais55 Prainsack B, Buyx A. Solidarity: reflections on an emerging concept in bioethics. London: NcoB; 2011..

Dean2626 Dean J. Solidarity of strangers: feminism after identity politics. Berkeley: University of California Press; 1996. afirma que a solidariedade deve ser o resultado de uma luta ativa de construção com base nas diferenças. Sua proposta concebe “todos nós” como “membros solidários de uma comunidade de comunicação ideal”, os quais buscam “o reconhecimento de nossa interdependência e vulnerabilidade compartilhada [...]” (tradução livre) (p. 46)2626 Dean J. Solidarity of strangers: feminism after identity politics. Berkeley: University of California Press; 1996.. Nas entrevistas, a ideia da vulnerabilidade compartilhada foi mencionada a partir da percepção de que a enfermidade atinge a todos:

Eu vejo um pouco mais de solidariedade, eu acho que o fato de ter [...] um mal que assola todo mundo [...] coloca a gente num lugar mais próximo (M, 32, B, Média, Santa Helena, Juiz de Fora/MG).

A vulnerabilidade compartilhada foi observada quando alguns entrevistados perceberam que pessoas próximas, de renda familiar similar, estavam com dificuldades. Percebem a anormalidade da situação do outro “igual”, passando a considerar a maior possibilidade de encontrar a si mesmo em vulnerabilidade.

[...] pessoas que nunca se imaginaram nessa situação de pedir uma quentinha, de depender, de esperar, de já dormir esperando a quentinha, pessoas que se achavam classe média. E isso já no segundo dia de isolamento porque a quantidade de pessoas trabalhando de forma precarizada é muito grande (M, 34, PP, Média, Praia da Armação, Florianópolis/ SC).

Todo mundo conhece alguém, todo mundo tem um parente que está vendo aquela situação e diz: vou ajudar. [...] como foi algo coletivo, algo que poderíamos sermos nós os afetados, acho que isso foi algo meio que tocou no coração dessas pessoas [...] (M, 26, B, Média, Campo Limpo, São Paulo/SP).

Por outro lado, colocar-se no lugar do outro foi razão de ascensão do senso de responsabilidade para alguns entrevistados que narraram não passar “necessidades”:

[...] teve uma série de outras mudanças nas relações [...] com os alunos, de repente eu me vi na necessidade, por exemplo, de estar dando um suporte bem maior de acolhimento [...] me sentia quase que no dever mesmo de também me fazer presente [...], de tentar estar próximo de alguma forma assim, emocionalmente, afetivamente [...] (F, 33, B, Alta, Madalena, Recife/PE).

[...] por mais que o momento seja difícil pra mim [...] eu não estou passando necessidade, mas o outro está. Eu não conheço pessoas, de fato, que estão diretamente sem alimentos, sem luz, sem qualquer tipo de acesso a algum item básico por causa da pandemia, então isso para mim é importante não só socialmente, mas como dever social de todos [...] (F, 25, B, Alta, São Pedro, Juiz de Fora/MG).

Nas entrevistas também foram encontrados relatos sobre egoísmo e individualismo, indicados como a atitude daquele que pensa em si em detrimento da coletividade.

[...] por mais que a gente veja alguns casos de solidariedade, são muito inferiores aos casos de [...] egoísmo [...] uma sociedade que se demonstrou muito egoísta num momento chave no país, no momento em que milhares de pessoas estavam morrendo, você soma isso a uma crise econômica que é bizarra, que já estamos vivendo e que deve se aprofundar [...] (M, 34, PP, Média, Praia da Armação, Florianópolis/SC).

[...] acho que a gente tem uma divisão. [...] eu tô pensando na ótica do individualismo de alguns nos quais eles pensaram primeiro em si. Então, é vou me fechar, eu vou cuidar de mim e o que tá ao redor não importa tanto (M, 34, PP, Alta, Centro, Juiz de Fora/MG).

Pensar a solidariedade, portanto, transcende falar sobre meras ações de apoio ao outro. Trata-se de pensar formas distintas de existências que valorizam a cooperação entre os seres e ações coletivistas, visando o bem-estar para além do individualismo. Com esse enfoque, identificaram-se núcleos de ação a partir dos quais os entrevistados se organizaram: a família, o condomínio e a comunidade, apresentados do mais restrito ao mais abrangente. Abordaremos esses núcleos e a potencialidade da solidariedade neles encontrada sob o referencial teórico já referenciado.

Existe solidariedade na família?

No Brasil, a Constituição da República de 1988 prevê, no seu artigo 226, que a família é a base da sociedade, com especial proteção pelo Estado. O texto constitucional trouxe adaptações legislativas à realidade brasileira da época (proteção à união estável), enquanto outras adequações ocorreram posteriormente (reconhecimento do casamento LGBTQIA+ pelo Supremo Tribunal Federal - STF). Logo, as normas e suas interpretações se modificaram a partir da variabilidade das relações de parentesco e a forma pela qual o sistema familiar é construído socialmente. Portanto, a família deve ser compreendida em um dado contexto histórico (p. 35)2727 Engels F. A origem da família, do Estado e da propriedade privada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1975..

Considerando o núcleo familiar, seus membros se destacaram como suporte nos casos de infecção durante a pandemia, como unidade a ser protegida e como fundamento pelo qual se deve seguir medidas de isolamento social:

[...] se a gente aqui em casa tivesse, viesse a ter COVID efetivamente, talvez a gente conseguisse um apoio, acho que dos nossos amigos mais próximos, tanto meus quanto da minha mãe e da minha família. [...] Tá precisando de alguma coisa? Tá precisando de um médico, de um remédio, tá precisando de uma comida? (M, 34, PP, Alta, Centro, Juiz de Fora/MG).

Isso, a minha irmã fazia comida e trazia pra gente nos primeiros cinco dias que a gente ficou muito cansado, o meu marido ficou com muita tosse, uma tosse muito forte, então a gente até dormia separado (F, 27, B, Média, Paraisópolis, São Paulo/SP).

A família também foi percebida como um núcleo de cuidado mútuo, em especial dos mais idosos, considerados grupo de risco. Nesse sentido, há relatos sobre o fortalecimento de laços familiares, a limitação de convivência e a realização de pequenos serviços:

E surgiu de certa forma um grande elo de proteção da família [...] “Não, pai, nós não vamos à sua casa porque vocês são grupo de risco” (M, 67, B, ExtAlta, Vila Leopoldina, São Paulo/SP).

Uma outra coisa que me surpreendeu [...] foi o cuidado com os mais idosos. [...] Por exemplo, a minha vó, né, tem 80-85 anos e há oito meses eu não a vejo. Outro dia ela tentou fugir de casa e os vizinhos colocaram ela pra dentro (M, 34, PP, Alta, Centro, Juiz de Fora/MG).

Aí dia 18 fechou, vim pra casa, só mora eu e meu marido [...]. As filhas trouxeram álcool e aquela coisa “mãe, não sai pra rua, deixa que a gente compra”, tem uns primos meus mais novos… “ah, o que tu quer que compre no mercado”, aí eles traziam [...] (F, 64, B, Média, Jardim São Pedro, Porto Alegre/RS).

O destaque da família como núcleo de cuidado nesse contexto histórico não deve ser visto de forma “natural”; pelo contrário, deve ser compreendido a partir do cenário de cortes em investimentos sociais decorrentes de políticas neoliberais, resultando em novos protagonistas para gerir a questão social, como explica Pinheiro e Tomarozzi (p. 265)2828 Pinheiro JMB, Tamarozzi GA. Família e Estado no capitalismo: atribuições correlatas na proteção dos indivíduos. Humanid Inov 2019; 6(18):257-267.:

[...] a sociedade civil, com argumento na solidariedade, passa a intervir nas manifestações da desigualdade social, mas sobretudo, é sobre a família que recai a maior responsabilidade de proteção dos seus membros. Mesmo diante da incapacidade material e subjetiva que muitas das famílias pobres possuem, estas ainda são responsabilizadas pelo cuidado como dever moral.

Por conta dos laços familiares que naturalizam ações de apoio, há divergências acerca da possibilidade de nomeá-las solidariedade. Por um lado, Prainsack e Buyx (p. 153)55 Prainsack B, Buyx A. Solidarity: reflections on an emerging concept in bioethics. London: NcoB; 2011. acreditam que os laços familiares são muito mais fortes que a solidariedade, pois essas ações se baseiam no amor e em outras emoções, por isso não devem ser assim qualificadas. Dean2626 Dean J. Solidarity of strangers: feminism after identity politics. Berkeley: University of California Press; 1996., entretanto, afirma que essas ações podem ser compreendidas como solidariedade afetiva. Evidente é que, por serem ações baseadas em laços de amor e amizade, englobam um círculo muito restrito de pessoas.

Condomínios: a solidariedade em cidades fragmentadas

Os condomínios são propriedades que se intensificaram a partir do século XX no Brasil2929 Taschner SP, Bógus LMM. São Paulo o caleidoscópio urbano. São Paulo Perspec 2001; 15(1):31-44.. Em geral, são espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho (p. 211)3030 Caldeira TPR. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp; 2000., onde há o sentimento pacificador de ordem e segurança3131 Dunker CIL. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo; 2015.. Nesse sentido, são considerados “uma forma de vida na qual a precariedade, o risco e a indeterminação teriam sido abolidos” (l. 934-937)3131 Dunker CIL. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo; 2015., permitindo a convivência e o sentido de comunidade entre iguais.

O avanço dos condomínios nas diversas cidades brasileiras pode ter formas distintas: por vezes, aproximam grupos sociais distintos e simultaneamente os separam por meio de muros e aparelhos de segurança, em outros casos os condomínios se expandem para bairros populares e são utilizados para moradia das camadas médias e populares metropolitanas (p. 169-170)3232 D'Ottaviano MCL. Condomínios fechados na Região Metropolitana de São Paulo: fim do modelo rico versus periferia pobre? São Paulo: Universidade de São Paulo; 2008.. Em comum, os condomínios demonstram destaque sobre o seu entorno e é essa estrutura que se mostrou determinante no estabelecimento de relações e planejamento de ações pelos entrevistados.

Na análise das ações de apoio, percebeu-se que alguns entrevistados diferenciaram as ações que recebiam ou realizavam entre seus vizinhos condôminos e as ações de apoio que realizavam para fora. As primeiras se caracterizam pelo estabelecimento de relações, a ajuda mútua e a utilização da estrutura condominial no controle da pandemia. As ações de apoio envolveram o diálogo ou o consenso estabelecido a partir das regras condominiais:

[...] eu vejo aqui no grupo do nosso condomínio, quando acontecem casos de contaminação [...] pessoal sempre se solidariza, “ah, se precisar de alguma coisa”, ou às vezes faz um bolo e leva para a pessoa, depois a pessoa posta a foto “ah, recebi um bolinho da vizinha, obrigada” [...] (F, 39, O, Baixa, Jardim do Salso, Porto Alegre/RS).

Percebe-se que os condomínios dos entrevistados, independentemente da região e da renda, buscaram preencher o espaço do Estado brasileiro ao prover condições para o isolamento social.

Agora meus vizinhos aqui, eles iriam reagir normalmente, nós temos a obrigação de notificar, foi uma coisa que a gente decidiu aqui para que haja uma ajuda, para que o condomínio possa ajudar. O condomínio aqui inclusive ajudava da seguinte forma, a administração sabia que tinha um caso notificado, eles faziam supermercado, eles faziam tudo e traziam na porta. E todas as medidas de limpeza também foram reforçadas (F, 52, PP, ExtAlta, Ponta D’Areia, São Luis/MA).

Outro fator relevante é a menção de que até mesmo pessoas com renda familiar presumida mais alta (como médicos e engenheiros), fizeram trabalhos que usualmente são serviços de pessoal com baixa qualificação, no intuito de apoiar seus vizinhos.

[...] eu precisava de alguém para arrumar aqui esse painel [...]. Aí postei no grupo, [...] “vizinhas, alguém conhece um tio, um primo, um marido de aluguel que possa vir aqui para fazer uns trabalhos, coisa e tal?” Menina, surgiu assim uns quatro daqui do condomínio, inclusive o marido de uma que é [...] [médico com uma posição importante em um hospital], que pessoas [...] estão descendo do salto e estão fazendo de tudo. Engenheiro que está pintando dentro dos apartamentos [...] (F, 69, B, MuiAlta, Jardim do Salso, Porto Alegre/RS).

A percepção de similitude, no entanto, não ocorre quando a ação se dá para fora dos muros. Nesse caso, há relatos das diferenças percebidas entre os entrevistados e populações próximas localizadas fora do condomínio por supostamente serem pessoas pobres e residentes em áreas com criminalidade. Dessa forma, a ação de apoio parece não ser fundamentada na vulnerabilidade compartilhada:

[...] aqui no nosso condomínio mesmo tem grupos que se formaram para ajudar porque logo aqui perto do condomínio que eu moro tem umas favelas e tem vilas com casas bem decentes, gente pobre mas gente decente, gente que trabalha e tem também o que seria, não sei como chamaria aí no Rio... onde é a Rocinha lá, no Morro dos Macacos, não sei, onde tem os bandidos, esqueci o nome… que é chamado Bom Jesus aqui, que é uma favela, tiro, a gente ouve direto tiro aqui assim. Então o pessoal daqui arrecadou, se tem arrecadado alimentos que é para distribuir para eles, brinquedos para as crianças, [...] brechó, roupa [...] (F, 69, B, MuiAlta, Jardim do Salso, Porto Alegre/RS).

[...] tem uma moça aqui do grupo do meu condomínio, ela tem uma ONG, [...] logo no começo ela pediu auxílio pra gente pra ela confeccionar máscaras e distribuir para as pessoas que estão em situação vulnerável. Então nós contribuímos [...] esse é um caso específico que eu conheço aqui do condomínio [...] (F, 52, PP, ExtAlta, Ponta D´Areia, São Luís/MA).

A solidariedade no interior dos condomínios pode ser considerada tanto afetiva quanto convencional; tanto interpessoal como de grupo, a depender do relacionamento construído entre os condôminos55 Prainsack B, Buyx A. Solidarity: reflections on an emerging concept in bioethics. London: NcoB; 2011.,2626 Dean J. Solidarity of strangers: feminism after identity politics. Berkeley: University of California Press; 1996.. O que sobressai nos relatos é o reconhecimento das semelhanças, fundamental para a solidariedade definida por Prainsack e Buyx55 Prainsack B, Buyx A. Solidarity: reflections on an emerging concept in bioethics. London: NcoB; 2011., entre os moradores e a construção de relacionamentos que fundamentam e consolidam a ação de apoio. Mesmo que a estrutura do condomínio seja controlada e projetada para uma comunidade entre iguais3131 Dunker CIL. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo; 2015., a solidariedade aqui encontrada se mostra mais ampla que a familiar. Na direção oposta, extramuro, observa-se uma posição de distinção, com ações que podem ser caracterizadas como caridade, motivadas por um dever moral ou até de autoproteção por parte dos mais ricos direcionadas aos pobres. Nesse caso, a assimetria se dá não apenas na diferença socioeconômica, mas também pelo fato de os mais vulneráveis não participarem da construção da demanda ou da solução para suas próprias questões.

Comunidades e suas redes de solidariedade

Para quem vive nas comunidades, a ideia não foi de um “mero” abandono do Estado, e sim de uma ação governamental que buscou liquidar os mais pobres (dialogando com o necrobiopoder2525 Bento B. Necrobiopoder: quem pode habitar o estado-nação? Cad Pagu 2018; 53:e185305.). Um entrevistado menciona o esquecimento dos mais pobres como forma de eliminá-los:

Acho que o governo podia ter tido um olhar mais carinhoso pra, pra periferia, né?! Porque a impressão que passa pra gente é que eles queriam cometer um genocídio. Tipo na pandemia o povo está morrendo, quem é afetado? [...] O povo da periferia! [...] Então, a impressão que fica [...] é que o pobre ficou esquecido e foi uma forma, meu, acho que de liquidar mesmo (M, 26, B, ExtBaixa, Paraisópolis, São Paulo/SP).

A ação do Estado brasileiro não impediu ações de autogestão, como iniciativas gerenciadas pelos moradores e por organizações não governamentais, tais como a Central Única das Favelas (CUFA). Os grupos se organizaram para impedir que os moradores, à espera do auxílio governamental, não morressem de fome1111 Fleury S, Menezes P. Pandemia nas favelas: entre carências e potencias. Saude Debate 2020; 44(4):267-280.:

[...] mas aqui em Paraisópolis os próprios moradores se uniram, né, os moradores e eles alugaram ambulância, fizeram parceria com empresas privadas, [...] pra atender o pessoal da comunidade. Então, o enfrentamento aqui foi da comunidade pra comunidade. É, aí teve dois hospitais que montaram hospitais de campanha em parceria com o governo do estado, mas foi depois que foram lá pressionar eles. Porque não teve nenhuma ação do governo do estado, do governo federal e da prefeitura com as periferias (M, 26, B, Extbaixa, Paraisópolis, São Paulo/SP).

[...] mas a CUFA foi uma que eu vi muito lá na região onde eu moro, a CUFA fez muita coisa lá na região [...] (F, 37, B, Média, Lins de Vasconcelos, Rio de Janeiro/RJ).

A fome foi pauta fundamental da organização comunitária, demonstrando que a vivência de seus moradores enunciou o que posteriormente foi aferido por pesquisas: a pandemia agravou a fome no Brasil. De acordo com a Rede Penssan (2021)3333 Rede PENSSAN. VIGISAN. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil [Internet]. 2021. [acessado 2022 abr 29]. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf
http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inse...
, 55,2% dos lares brasileiros vivenciam um cenário de insegurança alimentar, enquanto em 2018 esse percentual era de 36,7%.

[...] o que me surpreendeu foi em questão de alimento para as favelas, para as pessoas carentes, muitas quadras ou muitas escolas de samba que faz mutirão para arrecadação de alimentos. [...] Paraisópolis é a maior daqui, tanto o Angela, Belenzinho, esses lugares estão conseguindo uma assistência legal [...] (M, 22, PP, Média, Jardim Santa Edwiges, São Paulo/SP).

[...] a gente conseguiu arrecadar 750 cestas básicas e doamos para a população [...] (F, 41, PP, ExtBaixa, Benedito Bentes, Maceió/AL)

Esses relatos condizem com outras iniciativas de organizações lideradas pelas comunidades que envolvem processos constantes de rastreamento da realidade, identificação de problemas urgentes e apresentação de soluções (p. 7)3434 United Nations (UN). United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAIDS). Holding the line: communities as first responders to COVID-19 and emerging health threats. Geneva: UN; 2021.. As ações de apoio relatadas têm enfoque na construção conjunta da demanda e na vulnerabilidade compartilhada. Por isso, mesmo com a escassez, divide-se o pouco que tem:

O povo brasileiro se mostrou muito unido e muito preocupado com os seus, né? Aqui em Paraisópolis eu vi muito disso, né? Do pessoal ir atrás de até cesta básica, [...] eu ganhei duas cestas básicas, eu vou ajudar o meu vizinho que não ganhou nenhuma. (M, 26, B, ExtBaixa, Paraisópolis, São Paulo/SP).

Minha família mesmo! Minha esposa tem costurado máscara pra vender e doar [...] Eu mesmo ajudei comprando uns quilos de mantimento pro vizinho meu que perdeu o emprego. Agora ela tá com o pessoal da Paróquia, sabe? Tipo... sendo ajudado [...] (M, 45, B, Média, Terreirão, Rio de Janeiro/RJ).

Como vimos, nas comunidades as ações parecem alcançar um conjunto maior de indivíduos e marcam uma capacidade de ação para além do necrobiopoder2626 Dean J. Solidarity of strangers: feminism after identity politics. Berkeley: University of California Press; 1996., evidenciando que a solidariedade é um caminho de construção coletiva e prática.

Considerações finais

Refletindo a partir dos estágios de solidariedade de Jodi Dean2727 Engels F. A origem da família, do Estado e da propriedade privada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1975., observa-se que os relatos associados ao núcleo familiar demonstram relacionamentos com base em sentimentos mútuos de cuidado, descritos como solidariedade afetiva. Por isso, as ações solidárias empregadas pelos entrevistados, principalmente de cuidado com os mais velhos, aparecem limitadas a um grupo particular, vinculadas à afetividade. No condomínio ocorreu a diferenciação entre as ações direcionadas aos vizinhos e as ações voltadas para fora do seu espaço. No primeiro caso, os interesses e as preocupações comuns que unem um grupo ou comunidade, características da solidariedade convencional de Dean, mostraram-se mais evidentes. No segundo, porém, evidenciam-se ações de apoio fundadas nas diferenças, socioeconômica e de território, sem comunicabilidade entre os grupos, adequando-se mais ao que Prainsack55 Prainsack B, Buyx A. Solidarity: reflections on an emerging concept in bioethics. London: NcoB; 2011.,3535 Prainsak B. Solidarity in times of pandemics. Democr Theory 2020; 7(2):124-133. define como caridade, uma vez que a característica que motivou os moradores dos condomínios a agir foi, além da vontade de apoiar o outro, a discrepância nas circunstâncias de suas vidas (p. 54)3636 Prainsak B, Buyx A. Solidarity in biomedicine and beyond. Cambrigde, New York: Cambrigde University Press; 2017.. Apesar das diferenças, Dean sinaliza que tanto a solidariedade afetiva quanto a convencional possuem limites que impedem sua extensão para além de determinados grupos (p. 20)2626 Dean J. Solidarity of strangers: feminism after identity politics. Berkeley: University of California Press; 1996..

Os relatos do núcleo da comunidade trouxeram a percepção de que o Estado brasileiro agiu na promoção da morte dos mais pobres, considerando que as “medidas de enfrentamento difundidas pelas autoridades sanitárias dirigiram-se às camadas mais ricas da população”1111 Fleury S, Menezes P. Pandemia nas favelas: entre carências e potencias. Saude Debate 2020; 44(4):267-280.. A comunidade se mostrou como o núcleo de ação mais potente e abrangente, aquele com ações que mais se aproximam do ideal da solidariedade reflexiva. Para Dean66 Dean J. Reflective solidarity. Constellations 1995; 2(1):114-140.,2626 Dean J. Solidarity of strangers: feminism after identity politics. Berkeley: University of California Press; 1996., a solidariedade não pode ser pensada como um conceito ético pré-existente, e sim como um processo contínuo que nos provoca a nos comunicarmos com o objetivo de engajamento e reconhecimento mútuos. Assim, a solidariedade como prática, como um caminho a trilhar, construída a partir do estabelecimento de relações, nos aproxima das experiências de auto-organização, da percepção da vulnerabilidade compartilhada e do reconhecimento da interdependência encontrados na comunidade55 Prainsack B, Buyx A. Solidarity: reflections on an emerging concept in bioethics. London: NcoB; 2011..

As citações das ações de solidariedade nas comunidades mostram o poder da sociedade para identificar suas necessidades, organizar e implementar ações, mesmo em um cenário desfavorável1111 Fleury S, Menezes P. Pandemia nas favelas: entre carências e potencias. Saude Debate 2020; 44(4):267-280.. Isso reforça a ideia de que organizações lideradas pelas comunidades se mostram parte essencial da infraestrutura de saúde pública3434 United Nations (UN). United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAIDS). Holding the line: communities as first responders to COVID-19 and emerging health threats. Geneva: UN; 2021.. Essa conclusão diverge do pensamento de Prainsack, que vincula a solidariedade institucional (advinda do Estado) às solidariedades interpessoais ou de grupo55 Prainsack B, Buyx A. Solidarity: reflections on an emerging concept in bioethics. London: NcoB; 2011.,3535 Prainsak B. Solidarity in times of pandemics. Democr Theory 2020; 7(2):124-133.,3636 Prainsak B, Buyx A. Solidarity in biomedicine and beyond. Cambrigde, New York: Cambrigde University Press; 2017., já que as entrevistas demonstram uma população solidária independentemente do Estado, e por vezes apesar dele. Consequentemente, os pontos de vista das comunidades devem ser considerados essenciais para o desenvolvimento de políticas3434 United Nations (UN). United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAIDS). Holding the line: communities as first responders to COVID-19 and emerging health threats. Geneva: UN; 2021., de forma a consolidá-las com base em conhecimentos empíricos, populares e acessíveis.

Há que se ressaltar que as ações de apoio descritas em todos os núcleos são formas de particularizar políticas que deveriam, em um cenário de pandemia, ser públicas e irrestritas, não sendo capazes de substituir o papel constitucional do governo, assim como não apagam as críticas até aqui formuladas1111 Fleury S, Menezes P. Pandemia nas favelas: entre carências e potencias. Saude Debate 2020; 44(4):267-280.. Por fim, este trabalho se desenvolveu como uma escuta atenta às falas dos participantes, que trouxeram reflexões sobre o quanto a solidariedade se coloca como um elemento essencial no cotidiano da população. Os resultados nos animam a compreender a capacidade transformadora da sociedade quando diante das adversidades. A solidariedade, nesse contexto, constrói pontes e se mostra um importante instrumento de transformação da realidade, sem a qual certamente teríamos mais vitimados pela COVID-19 no Brasil.

Agradecimentos

Aos pesquisadores que contribuíram para a condução das entrevistas: Alexandre da Silva Costa, Fernanda Gomes Lopes, Sergio Rego e Suely Marinho. Ao software Atlas.ti, que cedeu licenças ao consórcio.

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  • Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2022
  • Aceito
    12 Jul 2022
  • Publicado
    14 Jul 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br