Pessoas com Deficiência e COVID-19 no estado do Espírito Santo, Brasil: entre a invisibilidade e a falta de Políticas Públicas

Douglas Christian Ferrari de Melo Priscila Carminati Siqueira Ethel Leonor Noia Maciel Jessica Cristina Silva Delcarro Igor Martins Medeiros Robaina Pablo Medeiros Jabor Etereldes Goncalves Junior Eliana Zandonade Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar o perfil das pessoas com deficiência dentre os casos notificados pelo painel COVID-19 do Espírito Santo e possíveis associações com o resultado positivo do teste COVID-19. Estudo Transversal descritivo entre as pessoas com deficiência com testes positivos e negativos para o diagnóstico de COVID-19. Foram realizadas associações das variáveis epidemiológicas e clínicas, utilizando o teste qui-quadrado e modelos de regressão logística para se estimar o odds ratio. A letalidade por COVID-19 foi de 4,9% (175 casos) no grupo das pessoas com deficiência, e 3% (3.016) no grupo sem deficiência. Pessoas com deficiência do sexo masculino (OR=1,34; IC95% 1,22-1,47), raça/cor preta (OR=1,55; IC95% 1,09-2,20), e as que ficaram internadas (OR=2,27; IC95% 1,71-3,02) apresentaram associação com testes positivos para COVID-19. A pandemia enfatiza a necessidade de criar mecanismos legais de cuidados específicos e políticas públicas focalizadas para essa população.

Palavras-chave:
Estudo transversal; Pessoas com deficiência; Saúde; COVID-19

Introdução

Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou como pandemia, a COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus11 Huang C, Wang Y, Li X, Ren L, Zhao J, Hu Y, Zhang L, Fan G, Xu J, Gu X, Cheng Z, Yu T, Xia J, Wei Y, Wu W, Xie X, Yin W, Li H, Liu M, Xiao Y, Gao H, Guo L, Xie J, Wang G, Jiang R, Gao Z, Jin Q, Wang J, Cao B. Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. Lancet 2020; 395(10223):497-506.. O Brasil é o segundo país das Américas, em relação ao número de infectados testados e número de óbitos22 World Health Organization (WHO). WHO Coronavirus Disease (COVID-19) Dashboard [Internet]. [cited 2020 nov 11]. Available from: https://covid19.who.int/.
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e desde o início da pandemia, diversas ações e estratégias sanitárias com objetivo de barrar o avanço da COVID-19, foram adotadas pelos governos estaduais e municipais. Dentre elas, a quarentena e o distanciamento social, com a redução ao mínimo necessário das atividades econômicas até a interrupção total de atividades sociais e culturais (eventos, práticas religiosas, atividades esportivas) que envolvessem algum tipo de aglomeração33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Boletim Epidemiológico Coronavírus 05[Internet]. [acessado 2020 set 11]. Disponível em: http://maismedicos.gov.br/images/PDF/2020_03_13_Boletim-Epidemiologico-05.pdf.
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À medida que os estudos foram sendo publicados, contribuíram para identificação de fatores associados à maior chance de adoecimento e óbito (como os idosos, as gestantes, população em vulnerabilidade social e as pessoas com deficiência). Em especial, destacam-se as pessoas com deficiência (PcDs) que apresentam situações de vulnerabilidade específicas, por conta das condições de saúde, de moradia, de mobilidade, educação, ausência de acessibilidade aos transportes, entre outras44 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Considerações sobre pessoas com deficiência durante o surto de COVID-19 [Internet]. [acessado 2021 nov 30]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/documents/disability-considerations-during-covid-19-outbreak.
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5 Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Incidence of SARS-CoV-2 Infection, Emergency Department Visits, and Hospitalizations Because of COVID-19 Among Persons Aged =12 Years, by COVID-19 Vaccination Status [Internet]. [cited 2021 out 29]. Available from: https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/70/wr/mm7046a4.htm.
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-66 Pan American Health Organization (PAHO). Pan American Health Organization Response to COVID-19 [Internet]. [cited 2021 nov 15]. Available from: https://iris.paho.org/handle/10665.2/55124.
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A situação das PcDs no Brasil até a primeira metade do século XX era de invisibilidade, marcada por uma fase inicial de eliminação e exclusão. Na segunda metade do século XX, ocorreu um período de integração parcial através do atendimento especializado em clínicas e hospitais. A questão da deficiência deixou de ser responsabilidade única da família e passou a ser compartilhada com o Estado77 Lobo LR. Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina; 2008.,88 Emílio F. Caminhando em Silêncio: Uma introdução à trajetória da pessoa com deficiência na história do Brasil. São Paulo: Giz Editorial; 2008.. Durante a pandemia da COVID-19, não foram incluídas, nos dados oficiais, as informações relativas a pessoas com deficiência que foram infectadas, ou foram a óbito pela COVID-19. Essa ausência de informações e diagnósticos específicos dificulta consideravelmente a realização de pesquisas e análise de dados; além da elaboração de políticas públicas direcionadas.

Em dezessete de março de 2020, a ONU publicou um alerta mundial sobre o abandono e o risco de contaminação desse grupo. Por conta da pandemia, muitos não puderam contar com cuidadores para realização de suas atividades diárias. Medidas de contenção como distanciamento social e isolamento podem não ser possíveis para quem precisa de apoio para se alimentar, se vestir ou realizar cuidados básicos99 Organização das Nações Unidas (ONU). COVID-19: Who is protecting the people with disabilities? - UN rights expert [Internet]. [cited 2020 nov 20]. Available from: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.asp x?NewsID=25725.
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No Brasil, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), a Lei 13.1461010 Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul., no art. 10º garante que em situação de risco ou calamidade pública, a pessoa com deficiência será considerada pessoa vulnerável, devendo o poder público adotar medidas para sua proteção. A mesma lei, em seu §2º do art. 9º, quando se refere ao atendimento prioritário, indica que nos serviços de emergência, a prioridade conferida por esta Lei é condicionada aos protocolos de atendimento médico99 Organização das Nações Unidas (ONU). COVID-19: Who is protecting the people with disabilities? - UN rights expert [Internet]. [cited 2020 nov 20]. Available from: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.asp x?NewsID=25725.
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. Nesse contexto, o estado do Espírito Santo se destaca com a Lei 11.130/20201111 Espírito Santo. Lei nº 11.130, de 27 de maio de 2020. Inclui no grupo prioritário de atendimento, em razão da pandemia do COVID-19 (Coronavírus), as pessoas com deficiências, em cumprimento à Lei Brasileira de Inclusão - Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Diário Oficial do Espírito Santo 2020; 27 maio., que inclui os capixabas com deficiência no grupo de risco, o que possibilitou a inclusão dessa variável no painel público da COVID-19 (banco de dados com os casos notificados de COVID-19 no estado do Espírito Santo, disponibilizado no sítio eletrônico: https://coronavirus.es.gov.br/painel-covid-19-es)1111 Espírito Santo. Lei nº 11.130, de 27 de maio de 2020. Inclui no grupo prioritário de atendimento, em razão da pandemia do COVID-19 (Coronavírus), as pessoas com deficiências, em cumprimento à Lei Brasileira de Inclusão - Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Diário Oficial do Espírito Santo 2020; 27 maio..

O Espírito Santo (ES) está localizado na região Sudeste do Brasil, composto por 78 municípios, correspondendo a uma área territorial de 46.074,447 km². De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o estado possui 3.514.952 habitantes, sendo que 23,45% de sua população apresenta pelo menos uma deficiência1212 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico 2010 [Internet]. [acessado 2020 abr 03]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/.
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Nesse sentido, o presente estudo teve por objetivo analisar o perfil das PcDs dentre os casos notificados pelo painel COVID-19 do Espírito Santo e as possíveis associações com o resultado positivo do teste COVID-19.

Métodos

Tipo de estudo

Foi realizado um estudo transversal descritivo exploratório entre as PcDs com diagnóstico confirmado e descartado para a COVID-19 do banco de dados do Painel COVID-19, disponibilizado no sítio eletrônico: https://coronavirus.es.gov.br/painel-covid-19-es, da Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo (SESA)1313 Espírito Santo. Painel coronavírus [Internet]. [acessado 2020 nov 11]. Disponível em: https://coronavirus.es.gov.br/painelcovid-19-es.
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População de estudo

Foram analisados todos os dados de pessoas suspeitas de COVID-19, do painel, totalizando 340.145 registros, no período de 17 de fevereiro até 02 de setembro de 2020. O total de pessoas com deficiência foi de 9.408 pessoas, representando 2,8% do total geral.

A Lei Federal nº 13.146, de junho de 2016, artigo nº 2, considera pessoa com deficiência “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”1010 Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul..

Em 28 de maio de 2020, o governo do estado do Espírito Santo publicou a Lei nº 11.130 que inclui no grupo prioritário de atendimento, em razão da pandemia do COVID-19 (coronavírus), as pessoas com deficiências, em cumprimento à Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146)1111 Espírito Santo. Lei nº 11.130, de 27 de maio de 2020. Inclui no grupo prioritário de atendimento, em razão da pandemia do COVID-19 (Coronavírus), as pessoas com deficiências, em cumprimento à Lei Brasileira de Inclusão - Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Diário Oficial do Espírito Santo 2020; 27 maio..

Os dados referentes às pessoas com deficiência não foram disponibilizados desde o início no painel, mas somente a partir do dia 22 agosto de 2020, após diversas solicitações dos cientistas, políticos e dos movimentos sociais no estado.

Variáveis

As variáveis estudadas foram agrupadas em:

Variáveis de confirmação da doença e evolução: classificação (confirmados e descartados), evolução (cura ou óbito por COVID-19) e critério de confirmação (clínico, clínico epidemiológico e laboratorial).

Variáveis epidemiológicas: município de residência, faixa etária, sexo (masculino, feminino), raça/cor (amarela, branca, indígena, parda, preta e ignorado), escolaridade (analfabeto, 1ª a 4ª série incompleta do EF, 4ª série completa do EF, 5ª a 8ª série incompleta do EF, ensino fundamental completo, ensino médio incompleto, ensino médio completo, educação superior incompleta, educação superior completa, não se aplica e ignorado).

Variáveis de sintomas, com respostas positivo ou negativo: febre, dificuldade respiratória, tosse, coriza, dor de garganta, diarreia e cefaleia.

Variáveis de comorbidades, com respostas positivo ou negativo: comorbidade pulmonar, comorbidade cardiovascular, comorbidade renal, diabete, obesidade.

Outras variáveis: outras variáveis foram analisadas, a partir das seguintes perguntas: “Nos últimos 14 dias, viajou para município do território brasileiro com transmissão local do COVID-19?”, com respostas positivo ou negativo; “Nos últimos 14 dias, ficou internado?/Está Internado?”, com respostas positivo ou negativo.

Análises estatísticas

O aplicativo Microsoft Excel foi usado para organizar o banco de dados do painel COVID. Utilizou-se o modelo de regressão logística para quantificar as associações entre os resultados do teste para COVID-19 e as outras variáveis incluídas no estudo. Estas associações foram descritas por odds ratio (OR) e seus correspondentes intervalos de confiança 95% (IC95%), considerando cada variável separadamente.

As taxas de prevalência de COVID-19 nos municípios do Espírito Santo foram descritas através do georreferenciamento com a malha digital do estado incluída no programa ArcGis 10.1, com a elaboração de um mapa temático. Os dados populacionais utilizados para o cálculo e as informações geográficas encontram-se disponíveis no sítio eletrônico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1212 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico 2010 [Internet]. [acessado 2020 abr 03]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/.
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Considerações éticas

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo (CEP/CCS/UFES) e aprovado sob o parecer nº 3.908.434 de 20/05/2020.

Resultados

Foram avaliadas 340.145 notificações de casos suspeitos para COVID-19 no período do estudo, conforme a Figura 1, sendo que 10,8% (36.843) dos casos foram excluídos, uma vez que não apresentavam a informações pessoas com deficiência.

Figura 1
Fluxograma dos registros do painel COVID-19 para pessoas com deficiência, segundo a classificação e evolução dos casos. Espírito Santo, 2020.

Foram utilizados para a análise dos dados os casos que apresentavam alguma deficiência com diagnóstico confirmado ou descartado para COVID-19. Os casos suspeitos foram excluídos das análises, representando 24,5% (2.305) das notificações. Dessa forma, a amostra final foi constituída por 7.103 (75,5%) casos notificados de pessoas com deficiência. Quanto à classificação diagnóstica do agravo, ocorreram 38,2% de casos positivos e 37,3% negativos (Figura 1).

Observa-se a letalidade por COVID-19 de 4,9% (175 casos) no grupo das pessoas com deficiência, e 3% (3.016) no grupo sem deficiência. Os óbitos por outras causas também são maiores nos grupos de pessoas com deficiência, em comparação com o grupo sem deficiência (Figura 1).

O perfil sociodemográfico encontrado nas pessoas com deficiência é mais frequentemente representado por: indivíduos do sexo feminino (56,90%), faixa etária entre 30 e 39 anos (19,8%), raça/cor branca (82,40%), escolaridade com ensino médico completo (30,10%), moram no interior do estado (61,30%), não apresentaram histórico de viagem para outros municípios no Brasil (90%) e ausência de histórico de internação nos últimos 14 dias que antecederam aos sintomas gripais (94,20%) (Tabela 1).

Tabela 1
Perfil sociodemográfico dos pacientes com deficiência segundo o resultado dos testes de COVID-19, Espírito Santo, 2020.

Pessoas com deficiência do sexo masculino (OR=1,34; IC95% 1,22-1,47), raça/cor preta (OR=1,55; IC95% 1,09-2,20), e as que ficaram internadas (OR=2,27; IC95% 1,71-3,02) apresentaram associação com testes positivos para COVID-19 (Tabela 1).

A Figura 2 apresenta os sintomas relatados pelos indivíduos do estudo nos grupos positivo e negativo, para a COVID-19. As PcDs com resultado positivo para SARS-CoV-2 apresentaram maior percentual de tosse (p=0,001; OR=1,20; IC95% 1,10-1,32) e febre (p=0,001; OR=1,65; IC95% 1,50-1,82). As PcDs com resultados negativos relataram com maior frequência coriza (p=0,006; OR=0,87; IC95% 0,79-0,96) e dor de garganta (p=0,001; OR=0,82; IC95% 0,73-0,91).

Figura 2
Sintomas relatados pelos pacientes com deficiência de acordo com o resultado dos testes de COVID-19 no estado do Espírito Santo, 2020.

Na Figura 3, observa-se que, através do georreferenciamento, sete municípios de residência de PcDs apresentaram maior prevalência de infecção por coronavírus (maior que 20% por 10.000 mil habitantes) sendo que todos estão localizados no interior do estado: São Gabriel da Palha, Ibiraçu, São José do Calçado, Apiacá, Vargem Alta, Iconha e Alfredo Chaves.

Figura 3
Prevalências de COVID-19 nos municípios de residência do ES para pessoas com deficiência, 2020.

A confirmação diagnóstica ocorreu através de exames laboratoriais em 90,7% dos casos confirmados (positivos) e em 91,4% dos casos descartados (negativos). Os demais ocorreram por confirmação clínica e clínica epidemiológica. Do total de confirmados, 175 (4,9%) vieram a óbito por COVID-19 e dois (0,1%) por outras causas, enquanto no grupo dos descartados ocorreram 74 óbitos por outras causas (2,1% da amostra). Dos confirmados, 3.358 casos foram curados (Figura 1).

O perfil das PcDs que evoluíram a óbito por coronavírus conformou-se por pessoas do gênero masculino (57,1%), na faixa etária de 60 a 79 anos (51,4%), raça/cor branca (80,4%), analfabetos (21,4%) e moradores da Grande Vitória (56,6%). Apresentaram internação hospitalar 59,4% dos casos. A comorbidade mais frequente foi a cardiovascular (63,8%). Os três sintomas principais relatados foram: dificuldade respiratória (63,2%), tosse (56,6%) e febre (56,4%) (Tabela 2).

Tabela 2
Perfil epidemiológico dos pacientes com deficiência que evoluíram a óbito por COVID-19 no estado do Espírito Santo, 2020.

O risco de evoluir a óbito por COVID-19 nas pessoas com deficiência é maior nas categorias de gênero masculino (OR=1,58; IC95% 1,16-2,15); raça /cor parda (OR=1,38; IC95% 0,47-4,10) e preta (OR=1,34; IC95% 0,35-5,19); faixas etárias de 70 a 79 anos (OR=5,89; IC95% 1,38-25,10), 80 a 89 anos (OR=9,94; IC95% 2,30-43,01) e 90 anos ou mais (OR=26,73; IC95% 5,78-123,67); e analfabeto (OR=2,00; IC95% 1,04-3,87). Os óbitos também foram mais frequentes entre as PcDs que apresentaram sintomas de febre (OR=1,47; IC95% 1,08-2,00), dificuldade respiratória (OR=6,89; IC95% 5,00-9,49); comorbidades pulmonares (OR=2,55; IC95% 1,50-4,34), cardiovasculares (OR=6,08; IC95% 4,41-8,37), renais (OR=6,26; IC95% 2,78-14,08) e diabetes (OR=5,93; IC95% 4,24-8,29) (Tabela 2).

Discussão

O presente estudo sugere que as PcDs possuem maior taxa de letalidade em comparação com aquelas que não apresentam deficiência. As PcDs que evoluíram a óbito por COVID-19 apresentaram pelo menos uma comorbidade registrada, sendo mais frequente as doenças cardiovasculares (63,8%).

Não foram encontrados na literatura nacional e internacional dados referentes à morbimortalidade por COVID-19 entre as pessoas com deficiência. A taxa de letalidade por COVID-19 entre as pessoas com deficiência no presente estudo correspondeu a 4,9%. As pessoas com deficiência estão especialmente expostas à infecção pelo coronavírus, possuem um risco aumentado de contrair o vírus devido as comorbidades existentes e enfrentam barreiras adicionais aos cuidados em saúde durante a pandemia, uma vez que, nem sempre podem manter as medidas de distanciamento físico, especialmente se precisarem de assistência para se alimentar e locomover1414 Sakellariou D, Malfitano APS, Rotarou ES. Disability inclusiveness of government responses to COVID-19 in South America: a framework analysis study. Int J Equity Health 2020; 19(1):1-10.,1515 Armitage R, Nellums LB. The COVID-19 response must be disability inclusive. Lancet Public Health 2020; 5(5):e257.. Entre outras barreiras que as PcDs enfrentam quando buscam acesso à saúde, estão os longos tempos de espera para consultas ou terapias de reabilitação, discriminação, altos custos e problemas de transporte1515 Armitage R, Nellums LB. The COVID-19 response must be disability inclusive. Lancet Public Health 2020; 5(5):e257..

As pessoas com deficiência pertencem a uma população com maior prevalência de múltiplas condições crônicas1616 Reed NS, Meeks LM, Swenor BK. Disability and COVID-19: who counts depends on who is counted. Lancet Public Health 2020; 5(8):e423., o que contribui para o agravamento do quadro do paciente acometido por COVID-19 e aumenta o risco de óbito.

Devido às especificidades de algumas deficiências, essas pessoas podem apresentar dificuldade em realizar algumas medidas de prevenção diárias, tornando-se mais vulneráveis em relação à população geral. Ações cotidianas de prevenção, como a realização de higienização básica e a realização do distanciamento social, são obstáculos enfrentados por pessoas com deficiência que necessitam de apoio e cuidados de terceiros1717 Turk MA, McDermott S. The COVID-19 pandemic and people with disability. Disabil Health J 2020; 13(3):100944.. Mais de 75% dos pacientes com deficiência com COVID-19 que evoluíram a óbito não possuíam o ensino médio completo. Este dado evidencia a urgência em promover a acessibilidade de conteúdo e de acesso às informações sobre transmissão, prevenção e possível tratamento no período de pandemia. Tais informações devem contemplar as diversidades e praticidades das deficiências. Boyle et al.1818 Boyle CA, Fox MH, Havercamp SM. The public health response to the COVID19 pandemic for people with disabilities. Disabil Health J 2020; 13(3):100943. reforçam em seu estudo a importância de as pessoas com deficiência terem informações acessíveis sobre o vírus para que possam se proteger. Toda comunicação deve ser divulgada em linguagem simples e em formatos acessíveis e as estratégias de comunicação pessoal devem ser seguras e acessíveis garantindo, por exemplo, intérpretes de linguagem de sinais e uso de máscaras transparentes por profissionais de saúde para permitir a leitura labial1515 Armitage R, Nellums LB. The COVID-19 response must be disability inclusive. Lancet Public Health 2020; 5(5):e257..

Assim sendo, é necessário a criação de campanhas, entrevistas e pronunciamentos com orientações gerais e específicas, com intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (Libras), descrição de imagens, ampliação e contraste na produção de folhetins informativos.

Sabemos que a deficiência é uma experiência de vida singular, uma condição humana1919 Böck GLK, Gomes DM, Beche RCE. A experiência da deficiência em tempos de pandemia: acessibilidade e ética do cuidado. Criar Educ 2020; 9(2):122-142. e, dentro deste cenário, as pessoas com deficiência recebem um impacto significativo diante da ausência de articulações nacionais e de políticas públicas que mitiguem as perdas e as desigualdades vividas por elas. A ausência de articulação do governo federal para lidar com os desafios da pandemia, diante do contexto de isolamento social, organização das ações da saúde e da suspensão das aulas2020 The Lancet. COVID-19 in Brazil: "So what?" [Editorial]. Lancet 2020; 395(10235):1461., além de ações específicas nacionais destinadas a orientações, suporte e apoio à população com deficiência para o enfrentamento da pandemia, comprova a invisibilidade dessa parcela da população2121 Werneck GL, Carvalho MS. A pandemia de COVID-19 no Brasil: crônica de uma crise sanitária anunciada. Cad Saude Publica 2020; 36(5):e00068820..

Existe a necessidade de considerar a deficiência enquanto um marcador nas discussões sobre as desigualdades sociais e políticas públicas brasileiras de acesso a serviços de saúde, especialmente no contexto de expansão da pandemia e anomia dos entes federais responsáveis por sua mitigação2222 Almeida LAD, Fontes-Dutra M. Children and adolescentes with disabilities in Brazil: effects of the COVID-19 pandemic. Disabil Stud Q 2021; 41(3):doi.org/10.18061/dsq.v41i3.8417.
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Um estudo realizado em Bangladesh revelou que a maioria das pessoas com deficiência estavam trabalhando em empregos informais, como consequência da pandemia por COVID-19, a maioria perdeu o emprego, reduziu a renda ou trabalhava sem salário durante a pandemia. A extrema incerteza de renda resultou em insegurança alimentar consistente, levando à fome doméstica2323 Das AS, Bonny FA, Mohosin AB, Rashid SF, Hasan MT. Co-exploring the effects of CO VID-19 pandemic on the livelihood of persons with disabilities in Bangladesh. Disabil Stud Q 2021; 41(3):doi.org/10.18061/dsq.v41i3.8377.
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Embora o estudo revele achados importantes para a vigilância epidemiológica em pessoas com deficiência, ele apresenta uma limitação que reside, justamente, em não ter disponível na ficha de notificação de COVID-19 a referência sobre qual é a deficiência que a pessoa apresenta, não ocorrendo a disponibilidade desse dado em nenhuma das três instâncias governamentais, desde a municipal até o nível federal. Evidencia-se, assim, a ausência de dados sobre essa parcela da sociedade em relação à pandemia.

O impacto da pandemia por COVID-19 foi maior para as PcDs, devido ao encerramento dos serviços de saúde de rotina, o que fez com que muitas PcDs ficassem sem acesso aos serviços de reabilitação essenciais para sua recuperação e para a prevenção de complicações (consulta de medicina de reabilitação, fisioterapia, terapia ocupacional e fornecimento de órteses), sendo que o acesso a medicamentos essenciais para essa parcela da população também foi interrompido. Isso resultou no agravamento da incapacidade, mobilidade reduzida, e no desenvolvimento de muitas complicações evitáveis que culminaram na deterioração da qualidade de vida das PcDs. E tudo isso pois, durante a pandemia, a necessidade de manter serviços essenciais de reabilitação não foi reconhecida como serviço essencial de saúde2424 Rathore FA, Qureshi AZ. Impact of COVID-19 Pandemic on Disability Care and Persons with Disability in Pakistan. J Coll Physicians Surg Pak 2021; 31(12):1391-1393..

A partir dos dados analisados, observa-se a necessidade de melhorar a coleta de dados sobre as PcDs, incluindo variáveis relevantes para monitorar esse grupo de alto risco para adoecer por COVID-19. Esse tipo de inclusão permitirá uma coleta seletiva de dados, que contribua para identificar melhor o perfil das PcDs e adotar medidas de prevenção específicas, com ações de políticas públicas que possam garantir, por exemplo, a construção de protocolos, planos e manuais acessíveis, a viabilização de condições sanitárias seguras e o pagamento de um valor emergencial às famílias de baixa renda que têm como membro uma pessoa com deficiência. Ainda, se possível, a garantia do trabalho remoto das PcDs durante a pandemia.

Diante dos resultados do presente estudo, é importante salientar o impacto das desigualdades em saúde na população com deficiência, considerando que se trata de um setor que apresenta mais dificuldades tanto para a realização do autocuidado quanto para o acesso aos serviços de saúde e ações educativas devendo esses serviços serem considerados como atividades essenciais. A pandemia enfatiza a necessidade de contar com mecanismos que garantam a efetivação dos direitos das PcDs principalmente, nos cenários de crises sanitárias.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2021
  • Aceito
    22 Jun 2022
  • Publicado
    24 Jun 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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