Resumo
O Guia Alimentar para a População Brasileira (GAPB) é um documento oficial que aborda princípios e recomendações de uma alimentação adequada e saudável e se configura como um instrumento de apoio às ações de educação alimentar e nutricional (EAN). O objetivo deste artigo é analisar o conteúdo do guia, que é um dos principais instrumentos das políticas públicas relacionadas à alimentação no Brasil, à luz de conceitos da teoria social, em especial teorias da modernidade, da identidade e dos riscos. Na análise minuciosa do conteúdo do guia, foi constatado que o texto considerou a diversidade alimentar cultural e biológica das regiões brasileiras. Teve base de referência os alimentos e não os nutrientes, tornando a compreensão das recomendações ilustrativas fáceis de serem assimiladas pelo público. Preocupou-se em evitar os riscos alimentares, levando em consideração a questão da aquisição de alimentos adequados e saudáveis. Entretanto, identificou-se dois riscos não abordados: o problema dos alimentos processados e ultraprocessados (UP); e a omissão de alerta referente aos alimentos transgênicos (OGMs). Embora construído de forma inovadora, estimulando tempo, atenção e companhia à mesa, o GAPB necessita uma revisão.
Palavras-chave:
Guia Alimentar; Medição de Risco; Construção da Identidade Social; Sociologia da Saúde; Segurança Alimentar e Nutricional
Introdução
O ato de se alimentar tem função estruturante na organização de um grupo humano, por isso a alimentação não deve ser entendida somente como a consequência de fenômenos biológicos ou ecológicos, mas como uma prática associada a diversas representações sociais. Estas permitem compreender os diferentes grupos sociais, suas vontades e crenças, as quais são, cada vez mais influenciadas pela modernização e pela globalização11 Poulain JP. Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. 2ª ed. Florianópolis: UFSC; 2013.. Ao mesmo tempo, as questões simbólicas e identitárias e as práticas alimentares cotidianas da população podem influenciar normativas governamentais oficiais e a criação de políticas públicas. Assim, sugere-se que o parecer técnico contido em um guia alimentar pode ser considerado um facilitador das escolhas alimentares cotidianas e do reconhecimento das identidades culturais da população brasileira.
A realidade brasileira é marcada por um padrão de ampla diversidade alimentar, que, ao mesmo tempo, é afetada pela grande desigualdade social de acessibilidade aos recursos e à falta de equidade entre a população. Nesse cenário, o GAPB22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2ª ed. Brasília: MS; 2014. se apresenta como um instrumento que contém recomendações voltadas à população em geral, que foi elaborado tendo como base o comportamento dos agentes, seus hábitos culturais e regionais no país. Destaca-se que a escolha da dieta alimentar não está fundamentada apenas em recomendações nutricionais institucionalizadas, uma vez que perpassa outras instâncias da vida, sendo que suas decisões são influenciadas por uma miríade de opções, que dependem do ambiente e de fatores estruturais que foram dimensionados historicamente.
Modernidade é um fenômeno utilizado como objeto de estudo da sociologia. O desenvolvimento das instituições sociais modernas e sua difusão em escala mundial criaram maiores oportunidades para os seres humanos gozarem de uma existência mais segura e gratificante, do que qualquer tipo de sistema pré-moderno. Mas ela também possui um lado sombrio, que se tornou muito aparente, na qual Giddens concentra sua discussão sobre os temas segurança versus perigo e confiança versus risco33 Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp; 1991.. A confiança é um meio de interação com os sistemas abstratos que esvaziam a vida cotidiana de seu conteúdo tradicional, ao mesmo tempo em que constroem influências globalizantes44 Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2002.. Risco, por sua vez, surge a partir da industrialização e adquire um caráter distinto de outras épocas. O conceito de “sociedade de risco” caracteriza um segundo período da modernidade, que, para Beck55 Beck U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 34a ed. São Paulo: Sindicato Nacional dos Editores de Livros; 2010., significa viver em circunstâncias incertas criadas pelos próprios indivíduos55 Beck U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 34a ed. São Paulo: Sindicato Nacional dos Editores de Livros; 2010.. Não é que existam efetivamente mais riscos do que em comparação a outras épocas, mas as pessoas se tornaram mais sensíveis à existência deles nas circunstâncias da reflexividade, que representam a constante necessidade de justificar e reordenar as práticas, tendo em vista o conhecimento vigente66 David ML. Sobre os conceitos de risco em Luhmann e Giddens. Rev PPGSP UFSC 2011; 8(1):30-45..
Na modernidade, teria ocorrido um efeito de quebra do vínculo entre alimento e natureza, que desconectou os comedores de seu universo biocultural e, em paralelo, houve um afrouxamento de determinadas relações socializadoras, inerentes à alimentação. Assim, associado ao processo de industrialização, o alimento chega ao consumidor “[...] sem identidade, sem qualidade simbólica, sem alma”, ou seja, dessocializado11 Poulain JP. Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. 2ª ed. Florianópolis: UFSC; 2013.. Por conseguinte, a transformação de receitas pela industrialização colocou em pauta uma grande distinção entre o que é alimento de verdade e o que é produto alimentício. As controvérsias geradas minaram a percepção do consumidor e afetaram sua confiança no sistema perito e na tecnologia empregada no processamento atual da alimentação. Nesse contexto, a geração de riscos alimentares é decorrente da modernização, e a base das incertezas está vinculada aos aspectos sociotécnicos das instituições e suas relações33 Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp; 1991.,55 Beck U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 34a ed. São Paulo: Sindicato Nacional dos Editores de Livros; 2010..
Com base nessas premissas, tenciona-se analisar o conteúdo do guia à luz de conceitos da teoria social, em especial teorias da modernidade, da identidade e dos riscos, no contexto das políticas públicas relacionadas à alimentação e suas normativas institucionais no Brasil. Dentre estas políticas públicas, escolheu-se, para análise, o instrumento Guia Alimentar para a População Brasileira (GAPB)22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2ª ed. Brasília: MS; 2014., pois seu conteúdo reflete a discussão teórica e prática sobre as recomendações dietéticas consideradas adequadas para os brasileiros. Primeiro, identifica-se a importância de seu conteúdo e qual foi sua repercussão no meio científico acerca da forma como foi desenvolvido, bem como da categorização dos alimentos por níveis de processamento. Na sequência, analisa-se as normas e as práticas sociais relacionadas à alimentação, fundamentadas nas abordagens da teoria social. Na terceira parte, discute-se sobre o que é considerado alimento saudável e suas consequências. Por fim, os resultados são apresentados, tendo como base as análises relacionadas ao risco alimentar e as discussões desenvolvidas.
O Guia Alimentar para a População Brasileira
O GAPB é um documento oficial que aborda os princípios e as recomendações de uma alimentação adequada e saudável, configurando-se em um instrumento de apoio às ações de Educação Alimentar e Nutricional (EAN) no Sistema Único de Saúde (SUS) e em outros setores22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2ª ed. Brasília: MS; 2014.. Ele constitui uma das principais estratégias para a implementação da diretriz de Promoção da Alimentação Adequada e Saudável (PAAS), que integra a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN)77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília: MS; 2013., e contribui para o desenvolvimento de planos para promoção e efetivação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA)22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2ª ed. Brasília: MS; 2014., pois toma como alicerce o conceito de segurança alimentar e nutricional (SAN)88 Brasil. Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Lei nº 11.346, 15 de setembro de 2006. Dispõe sobre a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional. Diário Oficial da União; 2006.. Este garante o acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, respaldado em práticas alimentares que promovam a saúde, respeitem a diversidade cultural e sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentável44 Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2002..
A primeira versão do GAPB, lançada em 2006, apresentou diretrizes alimentares oficiais para a população brasileira, sendo considerado referência para indivíduos, profissionais e gestores de saúde99 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia alimentar para a população brasileira: promovendo a alimentação saudável. Brasília: MS; 2006.. Porém, embora contemplasse mais alertas sobre os riscos do que a versão atual, as atuais transformações sociais vivenciadas pela sociedade causaram novos impactos sobre as condições de saúde e nutrição, tornando necessária a apresentação de novas recomendações. O aumento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e a centralidade que a alimentação tem para a saúde mundial são tendências amplas e fundamentais que se destacam para o melhor entendimento dessas transformações, pois passaram a compor as variáveis que põem em risco a saúde.
A segunda edição do GAPB exibe um diferencial que tem sido reconhecido internacionalmente, os padrões de adequação e as recomendações que foram publicados têm fundamento nas culturas regionais e tradicionais do país. Além disso, usou como referência os alimentos, não apenas os nutrientes, uma vez que estes se afastam da percepção cotidiana da população. Por esses motivos, o guia vem sendo elogiado no meio acadêmico, sobretudo, por oferecer incentivo à população para o consumo de “comida de verdade”, além da forma como foi desenvolvido, especialmente na questão da limitação do uso de alimentos ultraprocessados (UP). Pesquisadores renomados em diversas áreas do conhecimento, como Boyd Swinburn (Nova Zelândia), Michael Pollan (Estados Unidos - EUA), Georgy Scrinis (Austrália), Marion Nestlè (EUA)1010 Terry PE. Nutrition research special issue and an interview with Marion Nestle by Paul Terry. Am J Health Prom 2018; 32(6):1329-1332. e Jean-Pierre Poulain (França) demonstraram em entrevistas e palestras no Brasil sua admiração pelo GAPB.
Ao mesmo tempo que ganha notoriedade, o GAPB tem sido alvo de críticas e causador de polêmicas. Em setembro de 2020, uma nota técnica foi emitida pelo Ministério da Agricultura e Pecuária, a qual solicitou ao Ministério da Saúde (MS) que realizasse uma revisão do guia. As principais argumentações eram sobre o novo sistema de classificação de alimentos, denominado NOVA, que divide os alimentos conforme grau, tipo e propósito de processamento55 Beck U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 34a ed. São Paulo: Sindicato Nacional dos Editores de Livros; 2010.. Uma preocupação crucial do GAPB foi diferenciar as categorias de alimentos e seus níveis de processamento, sendo os seguintes termos utilizados pelo MS: alimentos in natura ou minimamente processados; ingredientes culinários processados; alimentos processados; e alimentos ultraprocessados.
Desde o final do século XX, pesquisas vêm chamando a atenção para as transformações sociais, econômicas e culturais ocorridas na sociedade contemporânea e para as mudanças no padrão de alimentação da população mundial, decorrentes de alterações na extensão e no propósito do processamento industrial aplicado para preservar, extrair, modificar ou criar novos alimentos1111 Monteiro CA, Cannon G, Levy R, Moubarac JC, Jaime P, Martins AP, Canella D, Louzada M, Parra D, Ricardo C, Calixto G, Machado P, Martins C, Martinez E, Baraldi L, Garzillo J, Sattamini I. NOVA - classificação dos alimentos. World Nut 2016; 7(1):28-40.. Alguns pesquisadores argumentaram que seria inútil recomendar o consumo baseado em grupos alimentares, tal qual o guia americano da pirâmide alimentar, pois, no mesmo grupo, há cereais integrais e matinais e, neste caso, os dois têm sistemas de produção/manufatura, processamento, conservação e logística diferentes. Consequentemente, os alimentos podem estar classificados em um mesmo grupo dietético, mas têm potencial para provocar efeitos metabólicos desiguais em longo prazo1212 Menegassi B, Almeida JB, Olimpio MYM, Brunharo MSM, Langa FR. A nova classificação de alimentos: teoria, prática e dificuldades. Cien Saude Colet 2018; 23(12):4165-4176..
Na prática, a diferenciação dos alimentos por grau de processamento, tanto por pessoas leigas quanto por especialistas, tem se mostrado um pouco confusa, inclusive no ambiente acadêmico. Um estudo, por exemplo1212 Menegassi B, Almeida JB, Olimpio MYM, Brunharo MSM, Langa FR. A nova classificação de alimentos: teoria, prática e dificuldades. Cien Saude Colet 2018; 23(12):4165-4176., detectou baixo índice de assertividade para a classificação de 30 alimentos, entre as quatro categorias NOVA, com medianas, antes e depois da realização de minicurso elucidativo, de 13 e 23 acertos, respectivamente. Ou seja, demonstrou que os participantes da amostra, que eram alunos e professores de uma faculdade de nutrição, não tinham total compreensão da classificação.
O emprego da classificação NOVA, em estudos populacionais sobre alimentação, nutrição e saúde, tem crescido, para além do GAPB. No Brasil, ela já foi utilizada para avaliar padrões de compra domiciliar de alimentos e preços relativos dos produtos; para verificar a influência do ambiente alimentar e do marketing no consumo de produtos UP; para estabelecer o impacto da intervenção de EAN, entre outros fins. Essa classificação foi reconhecida como pauta de relatórios de órgãos de apoio, responsáveis por fazer cumprir políticas públicas de proteção à alimentação, tal qual a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)1313 Organização Mundial da Saúde (OMS). Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Rede de ação sobre guias alimentares baseados no nível de processamento dos alimentos nas Américas [Internet]. 2021 [acessado 2021 jan 13]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/eventos/seminario-virtual-rede-acao-sobre-guias-alimentares-baseados-no-nivel-processamento-dos.
https://www.paho.org/pt/eventos/seminari... e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), além de ser modelo para outros guias alimentares na América Latina1414 Louzada MLC, Canella DS, Jaime PC, Monteiro CA. Alimentação e saúde: a fundamentação científica do guia alimentar para a população brasileira. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019..
A classificação NOVA, além de possibilitar o entendimento e a distinção dos diferentes processamentos industriais, permite que a escolha dos alimentos considere as diferenças culturais, os sistemas alimentares, social e ambientalmente sustentáveis, na premissa de que o alimento, desde a produção até o consumo, pode impactar na cultura, na vida social e no meio ambiente1212 Menegassi B, Almeida JB, Olimpio MYM, Brunharo MSM, Langa FR. A nova classificação de alimentos: teoria, prática e dificuldades. Cien Saude Colet 2018; 23(12):4165-4176..
As normas sociais, as práticas alimentares e o comer saudável
Norma social remete ao conjunto de convenções relativas à composição estrutural das tomadas de decisões alimentares, das suas condições e do contexto de seu consumo. Norma dietética é definida pelas descobertas científicas e pelos processos que pesam sobre os prescritores técnicos, no que diz respeito a quantidade e qualidade daquilo que eles consideram uma boa alimentação.
Fischler1515 Fischler C. Cultura e gastroanomia: psicopatologia da alimentação cotidiana. Entrevista com Claude Fischler. Horiz Antrop 2011; 36(1):235-256., ao dizer que as sociedades têm códigos complexos e elaborados sobre a comida e sobre o ato de comer: maneiras à mesa, culinárias, regras sobre os pratos, o que pedir primeiro, o que pedir como prato principal, o que pedir como sobremesa, como se portar, o que combina ou não combina, o que beber1515 Fischler C. Cultura e gastroanomia: psicopatologia da alimentação cotidiana. Entrevista com Claude Fischler. Horiz Antrop 2011; 36(1):235-256.. Enfim, há regras e leis implícitas em todas as culturas sobre o que alguém deve ou não comer. Por outro lado, porém, existe a literatura que trata sobre nutrição, com regras baseadas em nutrientes, calorias, proteínas, vitaminas. Em toda essa profusão e difusão de informações, os discursos gastronômicos se confundem com os discursos dietéticos1515 Fischler C. Cultura e gastroanomia: psicopatologia da alimentação cotidiana. Entrevista com Claude Fischler. Horiz Antrop 2011; 36(1):235-256.. Para esse autor, quando se está falando em comida, não se está tratando somente da nutrição, e para se obter uma boa saúde, é necessário que se coma observando a contribuição das duas regras, ou seja, da comensalidade e da nutrição.
Sendo assim, as normas sociais e dietéticas não se excluem, mas se influenciam, são muitas as variáveis entre as normas e as práticas alimentares. Em 1979, Fischler1515 Fischler C. Cultura e gastroanomia: psicopatologia da alimentação cotidiana. Entrevista com Claude Fischler. Horiz Antrop 2011; 36(1):235-256. denominou gastroanomia a desestruturação dessa sintaxe norma-prática em função da individualização do ato de comer, que seria uma defasagem entre as normas e as práticas. O autor afirma que as pessoas se sentem desconfortáveis, cheias de medos e conflitos sobre o que e como devem comer, e isso faz com que alguns indivíduos optem por ser submissos a uma autoridade dogmática ou ao ceticismo e/ou tendem à imobilização1515 Fischler C. Cultura e gastroanomia: psicopatologia da alimentação cotidiana. Entrevista com Claude Fischler. Horiz Antrop 2011; 36(1):235-256.. Em outras palavras, são tantas regras, tantos amigos e inimigos da saúde, que o consumidor se perde, distanciando-se da norma social tradicional, tendo dificuldades para compreender e se adequar à alimentação atualmente considerada saudável.
As incertezas provocam ansiedade e necessidade constante de adaptação, provocam também esvaziamento, uma falta de sentido pessoal aos indivíduos. Nesse sentido, Giddens33 Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp; 1991.,44 Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2002. intensificou os estudos sobre a sociedade contemporânea, abrindo espaço para considerar o eu e a constante construção da identidade como pontos fundamentais, fazendo da construção da autoidentidade uma tarefa complexa, exigindo a criação de novas formas para o indivíduo lidar com essas perspectivas. Trata-se da tomada de decisão cotidiana, um processo próprio da modernidade33 Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp; 1991., que também tem como característica a globalização, a quebra de barreiras, que, por um lado, faz com que as normas sejam padronizadas mundialmente; e, por outro, que as peculiaridades culturais sejam conhecidas em todo o mundo. Sob a ótica da construção da identidade, mesmo se sentindo perdido e confuso, o sujeito precisa fazer escolhas em todos os âmbitos da vida, incluindo o da alimentação33 Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp; 1991..
O problema que o indivíduo moderno encontra, ao ter que se posicionar frente às diferentes e mutáveis normas, é a escolha entre manter o seu saber leigo ou transferir este poder para um saber de experts, ou, ainda, misturando os dois. Em meio a esses desencaixes, os indivíduos continuam sendo os responsáveis por suas escolhas do dia a dia44 Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2002.. Então, eles e/ou grupos sociais alteram o mundo material e transformam as condições de suas próprias ações com base em seus conhecimentos diversos sobre “ser” no mundo. As escolhas embasadas em seus conhecimentos são entendidas como um processo de empoderamento, o qual está disponível ao leigo na forma de reflexividade. Quando se trata de temas complexos e/ou situações em que esse tem dificuldade de traduzir para a ação, ele deve buscar a informação especializada, ou seja, precisa recorrer aos peritos. É dessa forma que ele passeia entre conhecimentos peritos e leigos e faz suas próprias interpretações e escolhas. Assim, marcada pela reapropriação e pelo empoderamento, a sua tomada de decisão refaz o projeto reflexivo de construção da identidade44 Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2002..
Ao mesmo tempo, a ansiedade (que tem se intensificado e se mostrado cada vez mais expressiva na alta modernidade), está relacionada às incertezas e controvérsias em torno da relação do trinômio alimentação, saúde e doença. Por isso, nessa seção, faz-se uma reflexão do atual cenário alimentar, analisando a questão do alimento como promotor preventivo de doenças e fonte de riscos para a saúde.
O saudável está sendo tratado aqui como um termo polissêmico e questionável. Qualquer categorização dos alimentos em saudáveis, ou não, significa uma simplificação das complexas relações que envolvem uma dieta saudável. A estruturação de um padrão de dieta saudável é complexa, já que ela é determinada pela quantidade consumida e pela posição do produto dentro da dieta total, e não apenas pela sua composição1616 Grisotti M. Doenças infecciosas emergentes e a emergência das doenças: Uma revisão conceitual e novas questões. Cien Saude Colet 2010; V(15):1095-1104.. Assim, existe uma frágil fronteira entre a categoria de alimento que parece saudável e a que apresenta riscos, e as consequentes controvérsias científicas geradas por tal perspectiva1717 Guivant JS. Transgênicos e percepção pública da ciência no Brasil. Ambi Soc 2006; 9(1):81-103. são questões fundamentais do conhecimento científico, acolhidas e discutidas pela Sociologia da Alimentação.
Giddens33 Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp; 1991.,44 Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2002. e Beck55 Beck U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 34a ed. São Paulo: Sindicato Nacional dos Editores de Livros; 2010., em sua contribuição para consolidar a abordagem dos riscos alimentares, evidenciam que tanto o conhecimento perito quanto o leigo são perpassados por pressupostos culturais. A ideologia de que poderia existir um indicador objetivo que mediria a periculosidade do risco é resultado de uma percepção cultural particular. Além disso, os autores caracterizam os riscos como decorrentes da modernização e procuram mostrar como a base da incerteza está vinculada a outros aspectos de natureza das instituições, como as relações de confiança55 Beck U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 34a ed. São Paulo: Sindicato Nacional dos Editores de Livros; 2010..
Nesse contexto, o GAPB almeja ser um mediador das escolhas e um facilitador na tomada de decisão alimentar. Por ser uma normativa institucional, o guia é capaz de favorecer/auxiliar nas escolhas, estimulando a cultura e os hábitos regionais e locais, sendo, por isso, considerado um instrumento importante. Pode-se afirmar que se trata de um avanço na consolidação das identidades alimentares da população brasileira.
O perfil alimentar da população brasileira é analisado conforme três fatores contextuais contemporâneos: i) transição nutricional: diminuição da prevalência de desnutrição e aumento do sobrepeso e obesidade; ii) transição epidemiológica: aumento de mortalidade e morbidade, decorrentes de doenças crônicas não transmissíveis, por fatores de risco que se associam fortemente aos determinantes sociais de saúde; iii) transição demográfica: aumento da expectativa de vida, perspectiva de elevação no número de idosos e diminuição da fecundidade.
As transições contextuais estão associadas às mudanças na situação de saúde. Destarte, o modelo de atenção à saúde precisa acompanhar o postulado de coerência que governa o sistema de saúde, e este considera a relação entre a necessidade da população e o sistema que se pratica socialmente1818 Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). A crise contemporânea dos modelos de atenção à saúde. Brasília: CONASS; 2014.. Considerando o envelhecimento da população e o expressivo aumento das doenças crônicas não transmissíveis como diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica, doenças cardiovasculares e obesidade, o modelo de atenção à saúde adotado pelo Brasil se caracteriza pela ênfase na promoção de saúde e prevenção de agravos.
Visando ofertar uma atenção contínua e integral, o país estruturou seu sistema em redes de atenção à saúde com diferentes níveis de complexidade tecnológica. Nessa estruturação, a Atenção Básica assume papel importante como centro de comunicação e ordenação e tenciona ser a porta de entrada para o sistema, o espaço de acolhimento e criação de vínculos entre usuários e profissionais de saúde. São fundantes do conceito de atenção básica a visibilidade de saberes, a sociabilidade, o aumento da capacidade crítica e o apoio ao autocuidado. Nela, o GAPB é utilizado como um instrumento facilitador de escolhas alimentares, seja como “guia” para práticas promotoras de estilo de vida e alimentação saudáveis, seja como parâmetro para avaliação do consumo alimentar da população por diferentes profissionais de saúde.
Resultados da análise sob a ótica do risco alimentar
A análise foi gerada mediante a leitura minuciosa do guia, confrontando com o arcabouço teórico proposto. Ao se realizar esta verificação, percebeu-se que pelo menos duas informações pertinentes ao risco alimentar foram omitidas na segunda edição do GAPB, as quais são: i) o problema dos alimentos industrializados e/ou ultraprocessados (UP); e ii) a omissão referente aos alimentos transgênicos (OGMs).
Em uma de suas diretrizes mais importantes, o guia desaconselha o uso de UP, que são produtos elaborados a partir de formulações industriais, contêm substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, amidos), ou derivadas desses alimentos (as gorduras são hidrogenadas, os amidos são modificados), ou são sintetizadas em laboratório (aromatizantes, corantes). UPs possuem componentes químicos, os quais são utilizados pela indústria para ressaltarem sabor, conservarem, manterem a cor, estabilizarem, emulsionarem e adoçarem os alimentos.
No entanto, na página 51, o guia exibe uma imagem com o formato de uma escada, que serve como um apelo visual para que uma parcela da alimentação diária (equivalente a 1/3 do dia), possa ser proveniente de UPs. O uso de imagens tem relevância inquestionável para as práticas educativas no ensino, e esse recurso visual é extensivamente utilizado para realização de educação alimentar e nutricional (EAN). Destaca-se, contudo, que essa ilustração pode conduzir o leitor leigo a interpretar de maneira contrária à orientação, quando esse tipo de alimento foi fortemente desaconselhado ao uso rotineiro e diário. No guia, a figura da escada representa um ponto positivo, mas também estabelece essa dualidade.
Vinculada a essa primeira observação e intensificando a preocupação, verificou-se que o GAPB oculta todo e qualquer alerta para a presença de OGMs, seja nos alimentos in natura, seja nos ingredientes de alimentos embalados, comumente consumidos no Brasil. Há, no entanto, uma citação sobre esse assunto na página 32, mas, sem relevância. A população ainda não tomou consciência do potencial risco que corre ao consumir alimentos transgênicos. Ressalta-se que, nas palavras de Guivant1717 Guivant JS. Transgênicos e percepção pública da ciência no Brasil. Ambi Soc 2006; 9(1):81-103., o Brasil está entre os países que apresentaram respostas que favorecem o consumo de OGMs, enquanto a maioria dos entrevistados na Europa e na Austrália afirmaram rejeitá-los, ainda que fossem alimentos que oferecessem maior valor nutricional. Ao realizar estudos com foco nas questões envolvendo controvérsias tecnocientíficas, essa autora destaca a utilização desmedida de agrotóxicos, e sua relação com a disseminação dos transgênicos, em diversos contextos sociais.
O impacto na produção de alimentos com sementes modificadas e resistentes, pode ser ainda maior do que se imagina. Dados de uma pesquisa desenvolvida com mais de 10.000 produtores de soja e de milho, entre 1998 e 2011, indicam uma tendência de aumento no uso de pesticidas e agrotóxicos. E esse padrão de mudança no uso de herbicidas ao longo do tempo se deve à resistência das ervas daninhas ao glifosato1919 Perry ED, Ciliberto F, Hennessy DA, Moschin G. Genetically engineered crops and pesticide use in U.S. maize and soybeans. Scie Adv 2016; 2(8):e1600850.. Cortese et al.2020 Cortese RDM, Martinelli SS, Fabri RK, Proença RPC, Cavalli SB. A label survey to identify ingredients potentially containing GM organisms to estimate intake exposure in Brazil. Public Health Nutr 2018; 21(14):2698-713. avaliaram rotulagens de alimentos e apontaram que aproximadamente 64% de toda variedade dos produtos alimentícios e/ou ingredientes neles contidos, comercializados em rede de supermercados da região sul do Brasil, possuem OGMs em potencial na sua composição2020 Cortese RDM, Martinelli SS, Fabri RK, Proença RPC, Cavalli SB. A label survey to identify ingredients potentially containing GM organisms to estimate intake exposure in Brazil. Public Health Nutr 2018; 21(14):2698-713..
O conteúdo contido no guia segue princípios que evidenciam a forte relação que há entre a comida e a identidade social de uma população, assim como mostram os estudos na área da antropologia. À luz da problemática epidemiológica e dos crescentes índices das DCNT, a melhor estratégia de intervenções social, ambiental, regulatória e médica que um país pode adotar, com finalidade preventiva, é estimular uma alimentação saudável e equilibrada, com o consumo de alimentos de verdade, atribuição que o guia cumpriu em sua diretriz22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2ª ed. Brasília: MS; 2014..
Embora exista esse ponto positivo, a comunicação dos riscos do guia foi fraca, ampliando a distância entre a percepção de leigos e peritos. Oliveira e Santos2121 Oliveira MSS, Santos LAS. Guias alimentares para a população brasileira: uma análise a partir das dimensões culturais e sociais da alimentação. Cien Saude Colet 2020; 25(7):2519-2528. sugerem o desenvolvimento de outras pesquisas para estas discussões relacionadas às ciências sociais e humanas e aos conceitos fundantes do GAPB 2014 (padrão alimentar, práticas alimentares, tradição alimentar, práticas culinárias, comensalidade e outros), os quais são intrínsecos ao desenvolvimento de programas e ações para a PAAS, dentro das diretrizes da PNAN77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília: MS; 2013..
A constante revisão do conhecimento ameaça a renovação da confiança nos sistemas abstratos ao expor lacunas e limites nas perícias das quais os indivíduos dependem66 David ML. Sobre os conceitos de risco em Luhmann e Giddens. Rev PPGSP UFSC 2011; 8(1):30-45.. Por isso, um dos maiores desafios, que deve ser superado pelo sistema perito, é atingir um parâmetro racional dos leigos mediante a difusão do maior número de informações pelos técnicos1717 Guivant JS. Transgênicos e percepção pública da ciência no Brasil. Ambi Soc 2006; 9(1):81-103.. Sob essa análise, os fatos expostos podem ser considerados riscos críticos e estão em consonância com o que Giddens33 Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp; 1991. chama de circunstância agravante. Esta ocorre quando um conjunto de riscos, que não é percebido por peritos, ou não é comunicado, uma vez que não se problematiza apenas os limites do conhecimento perito, mas se complexifica e se agrava a própria ideia de perícia.
Considerações finais
O parecer técnico contido no GAPB pode ser considerado um facilitador de escolhas alimentares cotidianas ao trazer dicas de composição das refeições e resgatar normas alimentares importantes. É um forte instrumento para refletir sobre as identidades culturais da população, pois resgata e respeita os saberes tradicionais das diferentes regiões brasileiras.
Contudo, a existência de uma diretriz oficial na forma de guia alimentar não significa, necessariamente, que a população irá se alimentar conforme preconizado. Apesar da grande responsabilidade que o indivíduo tem por suas escolhas alimentares, a ação efetiva está distante de ser uma simples decisão individual e, em muitos casos, requer políticas públicas e ações regulatórias do Estado que tornem os ambientes alimentares mais propícios para a superação dos obstáculos apontados1414 Louzada MLC, Canella DS, Jaime PC, Monteiro CA. Alimentação e saúde: a fundamentação científica do guia alimentar para a população brasileira. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019..
Tem-se o papel da ciência nas argumentações dos diversos atores envolvidos; as agências governamentais que invocam a ciência para embasar suas decisões regulatórias; a indústria que invoca a ciência para questionar as regulações estatais e os aconselhamentos. Os meios de comunicação publicizam os conhecimentos produzidos com o intuito de informar os consumidores, e estes, no meio de tantas informações, parecem estar cada vez mais confusos sobre o que devem ou não comer1616 Grisotti M. Doenças infecciosas emergentes e a emergência das doenças: Uma revisão conceitual e novas questões. Cien Saude Colet 2010; V(15):1095-1104.. Há uma contradição: de um lado, os gastos extraordinários com tecnologias industriais e com publicidade de produtos e marcas específicas; por outro, a total incompatibilidade dos orçamentos governamentais para investirem, na mesma proporção, em educação e em promoção à saúde. As indústrias sempre estarão no ataque, que funciona como estratégia para manterem seus interesses econômicos e, por esse motivo, deveriam ser submetidas a outro tipo de regulamentação, semelhante ao que passou com o setor do tabaco1414 Louzada MLC, Canella DS, Jaime PC, Monteiro CA. Alimentação e saúde: a fundamentação científica do guia alimentar para a população brasileira. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019..
Assim, deve-se começar a pensar no sistema como um todo, em quem toma as decisões e em quem faz as leis. Existem decisões políticas sobre alimentação que são definidas pelos governos nacionais e municipais, pela sociedade civil, por financiadores, empresas e agências internacionais, que implicam no sistema global, no meio ambiente e nos sistemas alimentares, e que afetam os indivíduos, acarretando obesidade e desnutrição2222 The Eat-Lacent Comissão. Alimentando Políticas: a sindemia global da obesidade, desnutrição e mudanças climáticas [Internet]. São Paulo: Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor; 2019 [acessado 2021 jan 13]. Disponível em: https://alimentandopoliticas.org.br/wp-content/uploads/2019/08/idec-the_lancet-sumario_executivo-baixa.pdf.. Uma atual versão do ambicioso trabalho multidisciplinar sobre a saúde planetária defende que os pesquisadores de grupos de trabalhos e comitês responsáveis por divulgações oficiais sobre como se alimentar, devem estudar nutrição no seu contexto cultural, e reforça que as recomendações não devem atacar a cultura local2323 Moreira SA. Alimentação e comensalidade: aspectos históricos e antropológicos. Cie Cult 2010; 62(4):23-26..
Conforme Giddens44 Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2002., independentemente de qual seja o local específico de ação dos indivíduos, estes contribuem diretamente com as influências sociais que possuem consequências e implicações globais44 Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2002.. Essa afirmação explica como as identidades individuais influenciam a esfera coletiva e a consequente interpenetração do local e do global. Logo, a construção do eu e as questões identitárias são feitas de uma forma reflexiva, as pessoas sabem o que, e porque estão fazendo, mesmo que seja limitado a determinadas opções. Ademais, diante da inseparável condição reflexiva da abordagem deste autor, a qual afeta as escolhas cotidianas, é natural que os novos modos de comer se pluralizem e precisem ser analisados sob novas lentes. É importante lembrar que as estruturas sociais não são invioláveis, nem permanentes, mas possuem forma evolutiva.
As evidências científicas suportam que alguns aspectos dos OGMs podem valer a pena, e outros podem ser danosos. Deve-se questionar sobre razões éticas, distribuição injusta e marketing não-transparente, ou controle desigual e antidemocrático do suprimento de sementes. Os consumidores devem ser informados de que forma os alimentos podem afetar a saúde e o meio ambiente e precisam ser críticos em relação ao motivo pelo qual esses dados não estão sendo informados na rotulagem de alimentos processados. Com toda essa ciência em constante evolução, torna-se difícil chegar a uma opinião mais consistente sobre o uso e os riscos do consumo de alimentos transgênicos, sendo que, no âmbito das escolhas, todos indivíduos podem optar pela evidência que lhe fizer mais sentido, ou seja, eles estão expostos às influências e ao dinamismo do mundo moderno. Todavia, quando o indivíduo precisa assumir a responsabilidade por um risco oculto, sem a devida conscientização e o devido conhecimento, isso se torna grave.
Urge a criação de espaços legítimos, de debate público sobre os riscos dos OGMs e de outras tecnologias, que devem ser complementados com sistemas de informações unidirecionados, mais transparentes e abertos, para que as informações corretas cheguem aos consumidores e os ajudem nas escolhas e nas tomadas de decisões2424 Guivant JS, Capalbo DMF, Dusi AN, Fontes EG, Pires CSS. Acima dos confrontos sobre transgênicos: uma experiência piloto de consulta pública. Cad Cien Tec 2009; 26(1):11-37.. Assim, é necessário trabalhar para que todo alimento, passível de oferecer riscos, contenha alerta, informação e publicidade, e o GAPB deve estar em conformidade com todas essas políticas que afetam o ser humano e o planeta, ele precisa proteger e reforçar a cultura e o sistema alimentar baseado em alimentos in natura ou minimamente processados e, por isso, não poderia ter omitido dois riscos importantes.
O GAPB sustenta o seu compromisso de promoção dos hábitos alimentares saudáveis por meio do estímulo à ampliação da autonomia das pessoas nas escolhas e na produção de práticas alimentares (empoderamento). O guia busca engajar práticas que tenham fundamentação científica e propicia autocuidado e o debate entre sociedade civil, profissionais da saúde e gestores, respeitando as diferenças, o diálogo e as subjetividades. Ao abordar a comensalidade contemporânea, com destaque às mudanças alimentares urbanas ocorridas no contexto da globalização, o guia coloca o foco na desterritorialização da produção dos alimentos e dos serviços relacionados à alimentação e seu impacto sobre o comportamento alimentar, além de valorizar os aspectos sociais e culturais do alimento2525 Garcia RWD. Reflexos da globalização na cultura alimentar: considerações sobre as mudanças na alimentação urbana. Rev Nut 2003;16(4):483-492.. Ainda assim, outros autores sugerem o desenvolvimento de outras pesquisas para essas discussões à luz das ciências sociais e humanas e dos conceitos fundantes do guia2121 Oliveira MSS, Santos LAS. Guias alimentares para a população brasileira: uma análise a partir das dimensões culturais e sociais da alimentação. Cien Saude Colet 2020; 25(7):2519-2528..
Os modos de comer são estruturantes da organização social, influenciando a sociabilidade e o prazer ao comer11 Poulain JP. Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. 2ª ed. Florianópolis: UFSC; 2013.,1515 Fischler C. Cultura e gastroanomia: psicopatologia da alimentação cotidiana. Entrevista com Claude Fischler. Horiz Antrop 2011; 36(1):235-256.,2323 Moreira SA. Alimentação e comensalidade: aspectos históricos e antropológicos. Cie Cult 2010; 62(4):23-26.. O guia inovou ao considerar e valorizar a comensalidade e o modo como se come, entendendo que características como tempo, atenção e companhia à mesa são determinantes para uma alimentação saudável e para a saúde. Sobre o processo de trabalho participativo adotado na formulação, foi-lhe atribuída grande vantagem devido ao caráter compartilhado e ao amplo debate. No entanto, reconhece-se o desafio para que o GAPB chegue às pessoas e contribua para a promoção da saúde com equidade e integralidade, tendo-se em conta que o Brasil tem extensa ocupação territorial e aproximadamente 212 milhões de habitantes, com grandes diferenças regionais, sociais e étnicas.
Referências
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» https://www.paho.org/pt/eventos/seminario-virtual-rede-acao-sobre-guias-alimentares-baseados-no-nivel-processamento-dos - 14Louzada MLC, Canella DS, Jaime PC, Monteiro CA. Alimentação e saúde: a fundamentação científica do guia alimentar para a população brasileira. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Out 2022 - Data do Fascículo
Nov 2022
Histórico
- Recebido
15 Dez 2021 - Aceito
29 Jun 2022 - Publicado
01 Jul 2022