Resumo
Ao longo de um estudo sobre as categorias governamentais criadas para abordar o fenômeno do confinamento no Brasil, um documento contendo um modelo de gestão da política prisional foi examinado. Com base em Bourdieu e Hertz, procurou-se desenvolver uma etnografia atenta às expressões para se referir a populações e estabelecimentos, de maneira que possam revelar mudanças e manutenções terminológicas em curso. Nota-se que a privação de liberdade é atravessada pelas políticas públicas e vice-versa, apontando os cárceres como “espaços intersetoriais” e os presos como “pessoas em privação de liberdade”.
Palavras-chave:
Prisões; Modelos de assistência à saúde; Políticas públicas
Introdução
Em 2016, fui relator de um grupo de trabalho (GT) no Ministério da Justiça, momento no qual escutei a apresentação do que foi chamado à época de “novo modelo de gestão do sistema penitenciário”. Posteriormente, essa novidade foi publicada com o título “modelo de gestão para a política prisional”11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016., o documento com 400 páginas contendo inúmeras contribuições para abordar as relações entre Estado, políticas públicas e saúde no sistema penitenciário, em particular no que diz respeito ao planejamento, gestão e avaliação das ações de saúde ofertadas às pessoas privadas de liberdade. Inclusive, durante o mencionado GT ministerial e interinstitucional criado com a finalidade de abordar o cuidado de consumidores de substâncias psicoativas no cárcere, a justificativa para convocar o consultor responsável pela elaboração do “novo modelo” para uma reunião era o fato de que ele colocaria em primeiro plano o acesso do privado de liberdade às políticas sociais. Neste estudo sobre as categorias governamentais criadas para abordar o fenômeno do confinamento no Brasil, colocarei em primeiro plano esse documento com centenas de páginas.
Considerando o Estado um princípio de representação legítima do mundo social, Bourdieu aponta a relevância das categorias estatais para as análises das políticas públicas, pois elas canonizam classificações sociais e produzem identidade social22 Bourdieu P. Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989-92). São Paulo: Companhia das Letras; 2014., estando estreitamente ligadas aos censos e estatísticas, entre eles aqueles nos quais ficamos sabendo o número, o sexo e a idade da população carcerária. Também chamadas de categorias oficiais pelo citado autor, são ilustradas por meio das políticas de habitação na França da década de 1970, cercada de agentes mobilizados em torno do mercado das “casas próprias” e dos “aluguéis”, sendo que serão as políticas penais no Brasil dos anos 2000 e os agentes envolvidos na custódia em “prisões” aquelas sobre o que me deterei. As comissões estatais são centrais na elaboração desses atos de categorização, ou seja, certificações públicas por agentes dotados de autoridade simbólica, como é o caso dos chamados “créditos personalizados” fomentados pelas Comissão de Moradia francesa estudada por Bourdieu22 Bourdieu P. Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989-92). São Paulo: Companhia das Letras; 2014.. Formada por um conjunto de pessoas mandatadas para desempenhar uma missão socialmente reconhecida, a comissão é uma invenção organizacional cuja missão é designar um problema digno de ser tratado por pessoas dignas de administrar problemas públicos. Poderia o mencionado GT ser considerado uma comissão estatal?
Certamente o mencionado GT se encaixa na noção de comissão estatal, na medida em que foi instalado no Ministério da Justiça com a finalidade de abordar um problema público, o cuidado com os consumidores de drogas no cárcere, tendo sido integrado por representantes de diferentes órgãos de dentro e de fora do Poder Executivo em seus variados níveis e setores, inclusive com membros de organismos internacionais. Examinarei as categorias governamentais criadas para abordar o fenômeno do confinamento no Brasil e desenvolvidas em comissões estatais por meio do referido documento sobre o “novo modelo”, particularmente aquelas para se referir aos indivíduos e às instituições.
No contexto da formulação de políticas públicas após a Constituição Federal de 1988 no Brasil, uma série de expressões é cunhada para designar as suas populações-alvo e os estabelecimentos nos quais elas devem ser atendidas. São exemplares desse processo termos como “pessoa portadora de transtorno mental” e “instituição asilar”, em vez de “doente mental” e “hospital psiquiátrico”; “pessoa privada de liberdade” e “estabelecimento penal”, no lugar de “preso” e “prisão”; ou ainda “pessoa em situação de rua” e “centro de referência especializado”, e não mais “morador de rua” e “abrigo”. Essas e outras expressões estão sendo consideradas categorias governamentais para se referir a populações e estabelecimentos, em continuidade com a perspectiva de Bourdieu sobre as categorias oficiais, já que dizem respeito a um dos principais poderes do Estado, “o de produzir e impor as categorias de pensamento que utilizamos espontaneamente a todas as coisas do mundo”33 Bourdieu, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus; 1996. (p. 91).
Muitas dessas reformulações terminológicas acontecem em torno do fenômeno do confinamento, atravessando setores variados do Poder Executivo, como saúde, justiça e assistência social, bem como sistemas, como é o caso do Sistema Único de Saúde (SUS), do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Além de focalizar as categorias governamentais para nomear populações e estabelecimentos, parto da hipótese segundo a qual essa multiplicidade e instabilidade de termos remete aos eufemismos de que nos falava Robert Hertz44 Hertz R. Sociologia religiosa e folclore: coletânea de textos publicados entre 1907 e 1917. Petrópolis: Vozes; 2016.: são criados na medida em que evitamos pronunciar a palavra apropriada, em grande parte motivados por sentimentos como inquietação e aversão. Segundo o próprio autor, ao abordar a polaridade sagrado e profano através das hierarquias entre a mão direita e a esquerda:
Enquanto para a “direita” existe um termo único que se impõe em um área extremamente extensa e apresenta uma grande estabilidade, a ideia de “esquerda” é expressa por várias denominações distintas, cuja difusão é menos importante, que parecem ser destinadas a desaparecer continuamente diante de novos vocábulos: algumas dessas palavras são eufemismos óbvios, [...] ao falar do lado esquerdo, evitava-se pronunciar a palavra apropriada e tendia-se a substituí-la por diversas palavras, constantemente renovadas. A multiplicidade e a instabilidade dos termos que designam a esquerda [...] explicar-se-iam pelos sentimentos de inquietação e aversão experimentados pela comunidade em relação ao lado esquerdo. Na impossibilidade de mudar a coisa, troca-se seu nome com a expectativa de abolir ou atenuar o mal44 Hertz R. Sociologia religiosa e folclore: coletânea de textos publicados entre 1907 e 1917. Petrópolis: Vozes; 2016. (p. 106-107, grifos meus).
Assim, a expressão “louco infrator” pode cair em desuso, enquanto “pessoa adulta portadora de transtorno mental em conflito com a lei” se torna vigente, do mesmo modo como “cadeia” é chamada de “unidade prisional”, essas expressões sendo tomadas aqui ao mesmo tempo como categorias estatais na perspectiva de Bourdieu e eufemismos na de Hertz. Para Oliveira (2015), eufemismo é uma palavra ou expressão mais agradável, que se utiliza para suavizar o peso implícito de outra palavra ou expressão considerada mais grosseira, com a finalidade de reduzir tensões no discurso. Além disso, o eufemismo “pode ser utilizado em diversas áreas, sobretudo nas que envolvem a coletividade, por exemplo, Política, Economia e Sociedade”55 Oliveira R. Dicionário de eufemismos da língua portuguesa. Foz do Iguaçu: Editares; 2015. (p. 15, grifo meu), no caso políticas públicas. Enquanto os eufemismos têm como finalidade amenizar o significado, outras figuras de linguagem têm objetivo oposto, como é o caso dos disfemismos, “emprego de palavra ou expressão depreciativa, ridícula, sarcástica ou chula, operando como um estimulante, irritando a sensibilidade por meio de evocações triviais ou vis. Reforça algo...”55 Oliveira R. Dicionário de eufemismos da língua portuguesa. Foz do Iguaçu: Editares; 2015. (p. 34, grifo meu); este é o caso de “bandido”, entre muitos outros termos que cada vez mais habitam os noticiários e são pronunciados principalmente nos últimos anos pelos próprios dirigentes e autoridades públicas do Poder Executivo Federal.
Metodologia
A etnografia de documentos será a metodologia de pesquisa adotada nesta investigação sobre o referido documento apresentado em um GT ministerial, a partir de agora designado simplesmente de novo modelo. Mais do que verificar o que falta nos escritos e que seria encontrado nas interações face-a-face, sejam elas presenciais e ou virtuais, Vianna (2014)66 Vianna A. Etnografando documentos: uma antropóloga em meio a processos judiciais. In: Castilho S, Lima A, Teixeira C, organizadores. Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: ContraCapa; 2014. p. 77-106. recomenda tomá-los como um universo próprio, uma dimensão da realidade cujo registro é imprescindível no âmbito da administração pública. Essa mesma abordagem também tem sido adotada para investigar a vicissitude das cartas elaboradas por privados de liberdade, por vezes tomando parte em procedimentos e expedientes administrativos77 Padovani N. Cartas reduzidas a termo: processos de estado e trâmites do comando na gestão das relações em uma penitenciária feminina da cidade de São Paulo. In: Ferreira L, Lowenkron L, organizadoras. Etnografia de documentos: pesquisas antropológicas entre papéis, carimbos e burocracias. Rio de Janeiro: E-papers; 2020. p. 17-52.. Ela também inspira outras etnografias em organizações, como é o caso daquela desenvolvida com os técnicos em planejamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada sobre as notas técnicas e outros documentos que eles elaboram, dado seu caráter ao mesmo tempo técnico e político88 Teixeira C. IPEA - Etnografia de uma instituição: entre pessoas e documentos. Rio de Janeiro: ABA Publicações/AFIFEA; 2020..
Assim, localizei registros de expressões por meio das quais o governo federal nomeia certas populações-alvo de suas políticas públicas e os estabelecimentos nos quais espera que elas sejam atendidas, acolhidas, acompanhadas, abrigadas, internadas, cuidadas e/ou custodiadas no novo modelo. Os procedimentos de descrição, sistematização e análise das 400 páginas que compõem o “novo modelo” destacaram essas expressões que apontam para indivíduos e instituições, de maneira que as categorias estatais e os eufemismos pudessem ganhar relevo na análise e assim revelar a representação legítima do mundo social tornada pública pelo Estado. As categorias foram listadas e contadas, e suas frequências no novo modelo também foram apontadas, como veremos no Quadro 1.
Resultados e discussão
Apresentaremos o novo modelo de modo mais abrangente, para em seguida focalizar os elementos relativos às categorias governamentais para se referir aos privados de liberdade e aos estabelecimentos penais. Essa divisão em dois tópicos colabora para o entendimento das peculiaridades do documento, bem como do modo por meio do qual seu conteúdo é acionado para alcançar o objetivo da pesquisa.
Privação de liberdade atravessada por políticas públicas
Dividido em seis partes e doze capítulos, o novo modelo é um documento propositivo, apresentando uma série de sugestões, inclusive um sistema de registro da oferta de atividades nas prisões. Os fundamentos, aspectos conceituais, postulados e processos educativos terminam esse documento que “busca pela uniformização de diretrizes, princípios e procedimentos para os diversos sistemas prisionais brasileiros”11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016., reconhecendo sua pluralidade: “[...] há mais de 1400 modelos de gestão distintos, número que equivale ao quantitativo de estabelecimentos prisionais”11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016.. Essa pretensão de unidade ressalta justamente uma das facetas da concepção bourdieusiana do Estado, um conjunto de agentes mandatados para falar em nome do oficial e ao mesmo tempo falar oficialmente, homogeneizando procedimentos e expedientes muitos heterogêneos, tornando universal um conjunto de fenômenos particulares.
O novo modelo é produto de uma parceria entre o Departamento Penitenciário Nacional e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, a demanda inicial sendo chamada de “Proposta de Modelo de Gestão da Política Prisional”. O novo modelo é propositivo, normativo e contestador das regras que orientam o cotidiano da maioria das prisões, já que no segundo capítulo, sobre os serviços de alimentações, comunicação e escolta, sublinha que:
A ressalva acerca da importância dos aspectos de segurança, nesse caso, não deve ser utilizada como justificativa para impedimentos ou censuras que impossibilitem o contato das pessoas custodiadas com seus familiares ou amigos. Tampouco deve servir para impedir que às pessoas privadas de liberdade seja dada oportunidade de atualização e contato com as informações acerca dos acontecimentos, fatos e eventos que continuam a ocorrer, independentemente de sua condição temporária de privação11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016. (p. 156).
A consultoria que deu origem ao novo modelo foi coordenada por especialistas das ciências sociais e humanas, de maneira que problematiza o conceito de família que orienta os serviços de visitas íntimas e sociais: [...] não deve ficar restrito a laços de consanguinidade ou matrimônio, devendo ser compreendido a partir das relações de segurança emocional, psíquica, material, financeira e afetiva que une as pessoas11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016. (p. 161). Em outras palavras, não se trata de uma forma convencional de propor modos de gerir populações carcerárias, muito pelo contrário, se beneficia de uma ampla literatura filosófica, sociológica, histórica e criminológica reunida nas 11 páginas de referências bibliográficas. É nesse sentido que também considera a administração penitenciária um órgão de caráter administrativo, estando separado das forças policiais - responsáveis pela investigação de crimes e pelas prisões - e do sistema de justiça - responsável pelos processos e procedimentos judiciais11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016. (p. 170), distinguindo forças policiais, sistema de justiça e sistema prisional.
Recomenda também um conjunto de cursos de formação para diferentes atores sociais, incluindo gestores e operadores do sistema prisional e sociedade civil interessada em desenvolver ações em estabelecimentos prisionais. Além disso, o novo modelo pretende representar uma “mudança epistemológica”, na medida em que aponta a centralidade da garantia de direitos e da oferta das políticas, serviços e assistências como eixo estruturante desta Política Prisional, centralidade esta que se coaduna com uma perspectiva transformadora da prisão, numa abordagem que busca causar o menor dano às pessoas privadas de liberdade, bem como minimizar as distinções entre a vida em liberdade civil e a passagem pelos estabelecimentos prisionais11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016. (p. 67).
As atividades e serviços oferecidos devem ter como propósito permitir o desenvolvimento dos sujeitos para a vida em liberdade civil, e não sua doutrinação ou adestramento para a vida encarcerada. A ideia é que ações intersetoriais sejam promovidas para garantir que a permanência na prisão seja provisória, uma “passagem”. Nesse sentido, trata-se de uma tentativa de tornar o que seria o futuro SUSP - o novo modelo é de 2016, o SUSP é de 2018 - mais próximo do SUAS, dada a ênfase que este último sistema dá à intersetorialidade99 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDAS). Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília: MDAS; 2009.. Além disso, no SUAS é comum se destacar a situação provisória, e não permanente, em que se encontram seus usuários, pessoas “em situação de rua” entre eles. É nessa direção que se contesta também a categoria governamental “prisioneiro” no novo modelo:
Aqui o termo ganha um sentido ontológico: trata-se de marcar como algo “essencial”, constitutivo do sujeito, aquilo que é sua condição temporária. A privação de liberdade se torna, dessa forma, uma condição indissociável do próprio ser11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016. (p. 39).
Finalmente, não se pode deixar de notar que o SUS e particularmente a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional foram reconhecidos como pioneiros da mencionada de mudança epistemológica11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016. (p. 118).
Políticas públicas atravessadas pela privação de liberdade
O novo modelo realiza esses e outros esclarecimentos sobre “prisioneiros” e outros termos para se referir à população-alvo da política pública:
Conquanto a Organização das Nações Unidas adote “prisioneiro” como termo genérico para designar as pessoas encarceradas, optar-se-á aqui pelo uso da expressão “pessoas privadas de liberdade” ou correlatas. Utilizar-se-á também, quando a referência for a um conjunto de pessoas privadas de liberdade, o termo “população prisional”, que corresponde a um termo próprio do campo11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016. (p. 31).
Acrescenta também que outros termos utilizados são “administração penitenciária” e “órgãos gestores da administração penitenciária”, sendo que este é utilizado sempre que se faz referência ao caráter institucional e oficial da estrutura de gestão dos sistemas penitenciários estaduais, enquanto o primeiro diz respeito às dinâmicas e formas de atuação de gestores estaduais, equipes dirigentes e servidores dos sistemas prisionais, sendo portanto um termo que indica práticas relacionais dos órgãos gestores da administração penitenciária e outros atores presentes no campo, tais como a própria população prisional, órgãos federais, estaduais ou municipais, sociedade civil etc. Sobre os estabelecimentos nos quais se deve custodiar privados de liberdade, enfatiza que um estabelecimento penal não é apenas o local para onde são enviadas as pessoas cujo julgamento jurídico levou a uma condenação.
Dessa maneira, o novo modelo está atento aos processos de estigmatização da comunidade carcerária:
Por ora, cabe lembrar que enquanto os sistemas penitenciários continuarem operando a partir daquelas relações opacas, as equipes de servidores dos mais variados setores da gestão prisional ainda terão sob seu comando um público que é institucionalmente produzido como mais fragilizado: as pessoas privadas de liberdade e seus familiares. Superar esse quadro de estigmatização e fragmentação é um desafio a mais para uma política nacional11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016. (p. 35).
Os disfemismos, expressões depreciativas como “bandido”, entre outras, são marcantes nesses processos de estigmatização. Como esclarece Oliveira, disfemismos são distintos dos eufemismos, suavizadores do peso implícito das palavras, como é o caso de “privado de liberdade”, em vez de “preso”. O Quadro 1 está repleto deles, tanto no que diz respeito às expressões para se referir aos indivíduos como às instituições, relevando um amplo “trabalho de eufemização”, cercado de “nomeações criadoras”22 Bourdieu P. Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989-92). São Paulo: Companhia das Letras; 2014. (p. 99).
Esses atos de constituição destacam a provisoriedade desejável da privação de liberdade ao se referir às prisões como “espaços de alojamento”, ou ainda “lugar de passagem para as pessoas em privação de liberdade e de trabalho para as equipes de servidores”11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016.. Tal como no SUAS, a ideia é transformar os espaços de abrigamento em locais de passagem, não de permanência, com os pronunciamentos públicos dessas expressões contribuindo para oficializar essa perspectiva, chamada de “mudança epistemológica” no novo modelo. Entretanto, com muito maior frequência se aciona o termo “cadeias” para se referir aos estabelecimentos nos quais se espera que essa privação de liberdade aconteça: dez vezes mais do que espaços de alojamento (70 contra 7) e dezenas de vezes mais do que “lugar de passagem”. Isso quer dizer, no mínimo, que um documento oficial relevante como o novo modelo mantém e ao mesmo tempo muda termos, consolida e ao mesmo tempo cria vocabulários, de maneira que não deixa de se referir às cadeias, embora procure lembrar que elas podem se tornar lugares de passagem.
Levando em conta esse número e a frequência das expressões para se referir aos estabelecimentos no novo modelo, constatamos que “ambiente prisional”, “sistema prisional” (centenas de vezes empregada no documento) e, principalmente, “prisões” (milhares de vezes mencionada no documento) são as mais frequentes no documento, embora também sejam nomeadas como “espaços intersetoriais” e “espaço de confinamento, de aglomeração de muitas pessoas que convivem diariamente e, em geral, sem as condições adequadas de ventilação, de iluminação, de ocupação e de limpeza”11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016.. Tal mudança e multiplicação terminológica, portanto, convive com a manutenção das expressões mais coloquiais para conversar sobre políticas penais.
Esse também é o caso do que acontece com as expressões para se referir às pessoas. Inclusive, enquanto encontramos 61 termos para nomear estabelecimentos no novo modelo, localizamos 95 para as populações, ou seja, esse processo de multiplicidade e instabilidade dos termos mencionado por Hertz44 Hertz R. Sociologia religiosa e folclore: coletânea de textos publicados entre 1907 e 1917. Petrópolis: Vozes; 2016. se aplica sobretudo aos indivíduos, mais do que às instituições. Milhares de vezes o documento adota “prisões” para se referir aos estabelecimentos (1.638), com “população prisional” (5.687) sendo adotado com uma frequência muito maior; do mesmo modo “sistema prisional” (976) e “pessoas em privação de liberdade” (1.575), relevando quais são os termos-chave que se consolidaram na gramática da custódia. Esses e outros eufemismos apontam para um conjunto de categorias governamentais que configuram uma retórica do oficial.
O novo modelo não deixa de lembrar que os ditos lugares de passagem são permeados pelo fluxo de pessoas que adentram as prisões nas condições de familiares dos custodiados, advogados, ou representantes de ONGs, movimentos sociais, universidades e também todos os atores que interagem com o sistema penitenciário, especialmente pessoas privadas de liberdade e seus familiares, os servidores e as equipes dirigentes, de maneira que não se restringe aos chamados sujeitos custodiados11 Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016.. Dezenas, nem centenas nem milhares, de vezes se faz alusão aos “presos” no novo modelo, um contraste com a categoria “prisão”. Nem tudo permanece, bem como nem tudo se modifica quando olhamos com atenção para esse documento de 400 páginas sobre a gestão de políticas públicas, que infelizmente não passou de uma proposta, um papel, uma publicação em um momento histórico nada acolhedor para a centralidade da garantia de direitos e da oferta das políticas, serviços e assistências como eixo estruturante desta Política Prisional, como é o caso do ano de 2016 no Brasil.
Considerações finais
Multiplicidade, mudança e manutenção de termos permeiam as categorias governamentais criadas para abordar o confinamento no Brasil, se levarmos em conta o novo modelo como exemplar desse fenômeno. Se preso é um termo que permanece na gramática da custódia, prisões o fazem de modo muito mais contundente, enquanto a interação de atores no sistema prisional e a consideração deste como lugar de passagem apontam o horizonte da política prisional.
Este estudo sobre as categorias governamentais para se referir a pessoas e estabelecimentos mostrou uma afinidade progressiva entre SUSP, SUS e, principalmente, SUAS, baseada na ênfase na intersetorialidade das ações e na provisoriedade das condições. Se a privação de liberdade pode ser atravessada pela política pública e assim tornar as prisões “espaços intersetoriais”, as políticas públicas podem se tornar mais permeáveis ao “lugar de passagem”, a uma privação de liberdade provisória, e não permanente, efetivamente custodiando pessoas em situação de privação de liberdade, e não pessoas privadas de liberdade, algo que remete a uma condição.
O mapeamento das categorias criadas e utilizadas no âmbito do governo federal do Brasil para se referir a populações confinadas e estabelecimentos asilares dos setores de Justiça com base no novo modelo foi revelador dessas articulações entre sistemas. A descrição das mudanças terminológicas em curso no contexto da formulação de políticas públicas voltadas para pessoas em situação de confinamento nesse setor ilustra o processo de eufemização em andamento na retórica do oficial. Não foi possível analisar os desdobramentos dessas modificações das denominações de pessoas e espaços para a própria classificação do Poder Executivo em setores, como os recentes ministérios da Cidadania e da Justiça e da Segurança Pública. Futuros estudos devem se ocupar desse cenário atual, cercado de disfemismos, mais do que eufemismos, nos pronunciamentos públicos de representantes do governo federal.
Referências
- 1Melo F. Modelo de gestão para a Política Prisional. Brasília: Ministério da Justiça; 2016.
- 2Bourdieu P. Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989-92). São Paulo: Companhia das Letras; 2014.
- 3Bourdieu, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus; 1996.
- 4Hertz R. Sociologia religiosa e folclore: coletânea de textos publicados entre 1907 e 1917. Petrópolis: Vozes; 2016.
- 5Oliveira R. Dicionário de eufemismos da língua portuguesa. Foz do Iguaçu: Editares; 2015.
- 6Vianna A. Etnografando documentos: uma antropóloga em meio a processos judiciais. In: Castilho S, Lima A, Teixeira C, organizadores. Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: ContraCapa; 2014. p. 77-106.
- 7Padovani N. Cartas reduzidas a termo: processos de estado e trâmites do comando na gestão das relações em uma penitenciária feminina da cidade de São Paulo. In: Ferreira L, Lowenkron L, organizadoras. Etnografia de documentos: pesquisas antropológicas entre papéis, carimbos e burocracias. Rio de Janeiro: E-papers; 2020. p. 17-52.
- 8Teixeira C. IPEA - Etnografia de uma instituição: entre pessoas e documentos. Rio de Janeiro: ABA Publicações/AFIFEA; 2020.
- 9Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDAS). Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília: MDAS; 2009.
Financiamento
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - projeto de pesquisa número 406164/2016-9.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
14 Nov 2022 - Data do Fascículo
Dez 2022
Histórico
- Recebido
28 Nov 2021 - Aceito
09 Jun 2022 - Publicado
11 Jun 2022