Resumo
O tabagismo é um problema de Saúde Pública e é controversa a liberação do seu uso no sistema prisional. Sua prevalência nesta população é elevada, inclusive nas prisões femininas. O objetivo deste artigo é estimar a prevalência do tabagismo em mulheres privadas de liberdade e os fatores associados. Estudo de corte transversal, com 259 participantes que responderam um questionário numa prisão no Centro-Oeste do Brasil. A variável dependente foi o tabagismo, e as independentes, as sociodemográficas, histórico de vida, situação jurídica e uso de outras drogas. Realizou-se análises descritiva e bivariada, através de razões de prevalência com o teste Qui-quadrado e, na análise multivariável, a regressão de Poisson. A prevalência de tabagismo foi de 86,87%. No modelo final as variáveis: faixa etária, de 18 a 39 anos (RP 1,33; IC95% 1,10-1,61); uso de álcool (RP 1,26; IC95% 1,00-1,59); uso de maconha (RP 1,16; IC95% 1,03-1,30); e interação entre tempo de prisão e uso de cocaína (RP 1,05; IC95% 1,00-1,11) se mantiveram associadas ao tabagismo. A prevalência de tabagismo foi alta. A faixa etária 18-39 anos, uso de álcool, maconha e interação entre tempo de prisão por 36 meses ou mais e uso de cocaína foram fatores associados ao tabagismo.
Palavras-chave:
Tabagismo; Prisão; Mulheres; Fatores de Risco
Introdução
Existem onze milhões de pessoas presas em todo o mundo, sendo que as prisões estão funcionando acima da capacidade em 119 países, onde as medidas para reduzir a população carcerária têm se demonstrado inadequadas. O Brasil é o terceiro país com maior população carcerária (811.707), sendo menor, em números absolutos, apenas para Estados Unidos (2.068.800) e China (1.690.000). Em nosso país, a taxa de população carcerária era de 381 pessoas privadas de liberdade por 100 mil habitantes, onde 5,1% eram mulheres. Ao se comparar as séries históricas entre países, o Brasil se destaca no crescimento destas taxas. Entre as mulheres, houve aumento de 455% na taxa de aprisionamento entre 2000 e 2016, enquanto, por exemplo, teve redução de 2% na Rússia11 Penal Reform International (PRI) and Thailand Institute of Justice (TIJ). Global Prison Trends 2021 [Internet]. Londres: PRI; 2021 [cited 2021 out 16]. Available from: https://www.penalreform.org/global-prison-trends-2021/key-messages-facts-and-figures.. O Sistema Penitenciário do Estado de Mato Grosso contemplava ao redor 17.000 reeducandos sob sua custódia, sendo 12.460 em celas físicas, e o restante em domiciliar com monitoramento eletrônico22 Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, Período de Julho a Dezembro de 2020 [Internet]. Brasília: DEPEN; 2020 [acessado 2021 out 13]. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen..
Destaca-se que o tabagismo e uso de drogas ilícitas ou outros agravos à saúde na população em geral é diferente do perfil epidemiológico entre os indivíduos do sistema prisional, principalmente na maneira como estes se distribuem, potencializados pelas condições de superpopulação, estrutura insalubre das celas com umidade, sujeira, pouca iluminação e ventilação, intenso contato físico entre os presos, violências, abusos que geram impacto direto nas demandas de saúde, dificultando assim o atendimento e tratamento destes indivíduos de forma integral e efetiva33 Minayo MCS, Constantino P, organizadoras. Deserdados sociais: condições de vida e saúde dos presos do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2015..
O tabagismo é um problema de saúde pública, sendo considerado uma doença neurocomportamental causada pela dependência da nicotina, além de ser fator de risco para doenças crônicas não transmissíveis44 Benowitz NL. Pharmacology of nicotine: addiction, smoking-induced disease, and therapeutics. Annu Rev Pharmacol Toxicol 2009; 49:57-71.. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que o tabaco mata mais de 8 milhões de pessoas por ano, sendo que cerca de 7 milhões dessas mortes resultam do uso direto deste produto, sendo, destes, cerca de 1,2 milhão de não fumantes expostos ao fumo passivo55 Global Burden of Disease (GBD) [Internet]. Washington, D.C.: IHME [cited 2021 out 17]. Available from: https://www.healthdata.org/gbd/2019.
https://www.healthdata.org/gbd/2019... . A OMS ainda afirma que cerca de 80% dos 1,3 bilhão de fumantes do mundo vivem em países de baixa e média renda, onde a carga de doenças e mortes relacionadas ao tabaco é maior66 World Health Organization (WHO). Report the Global Tobacco Epidemic: addressing new and emerging products [Internet]. 2021 [cited 2021 out 13]. Available from: https://www.who.int/teams/health-promotion/tobacco-control/global-tobacco-report-2021.
https://www.who.int/teams/health-promoti... .
A assistência à saúde no sistema prisional deveria estar disponível e ser fornecida em condições análogas a assistência à saúde para a população em geral. Nesse sentido, várias organizações elaboraram diretrizes e padrões para a prestação de cuidados de saúde em instalações correcionais. No Brasil, o Ministério da Saúde desenvolveu a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Pessoa Privada de liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), instituída através da Portaria Interministerial nº 1, de 2 de janeiro de 2014, onde o principal objetivo é garantir o direito à saúde para todas as pessoas privadas de liberdade no Sistema Prisional. Além disso, esta política visa a garantia do acesso dessa população ao Sistema Único de Saúde (SUS), respeitando os preceitos dos direitos humanos e de cidadania77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação de Saúde no Sistema Prisional. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional. 1ª ed. Brasília: MS; 2014., bem como a Política Nacional de Atenção às Mulheres Presas e Egressas (PNAMPE)88 Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJ). Departamento Penitenciário Nacional. Gabinete do Departamento Penitenciário Nacional. Nota Técnica nº 17/2020/DIAMGE/CGCAP/DIRPP/DEPEN/MJ, de 26 de maio de 2020. Consolida a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional (PNAMPE). Brasília: MJ; 2020..
Importante destacar que o Brasil consolidou o Programa Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT) no âmbito do SUS, incluindo o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Dependência à Nicotina99 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria nº 1.575, de 29 de agosto de 2002. Consolida o Programa Nacional de Controle do Tabagismo. Diário Oficial da União 2002; 3 set.. Com isso, a abordagem cognitivo-comportamental e o tratamento medicamentoso do fumante, com Terapia de Reposição de Nicotina e Bupropiona, passaram a ser fornecidos gratuitamente à população brasileira.
O Brasil tem se destacado mundialmente devido à implantação e implementação de políticas de controle do tabagismo que são progressivamente mais eficazes, o que fez reduzir a prevalência do tabagismo, de 34,8% em 1989, na população adulta1010 Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN). Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN) 1989. Brasília: INAN, MS; 1990., para 12,6% em 20191111 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (BR). Pesquisa nacional de saúde: 2019: informações sobre domicílios, acesso e utilização dos serviços de saúde: Brasil, grandes regiões e unidades da federação. Rio de Janeiro: IBGE; 2020., apesar da redução do tabagismo em mulheres ter sido menor do que entre os homens.
O tabagismo na prisão tem sido visto como um mecanismo de enfrentamento do estresse1212 Turan O, Turan PA. Smoking-Related Behaviors and Effectiveness of Smoking Cessation Therapy Among Prisoners and Prison Staff. Respir Care 2016; 61(4):434-438. que, combinados com a falta de tratamentos para parar de fumar, podem contribuir para as altas taxas de tabagismo. As mulheres vivenciam a separação da família e amigos, privação de liberdade, longos períodos de tédio nas celas e estresse em torno da situação pessoal com a qual devem lidar ao voltar para a comunidade1313 Mignon S. Health issues of incarcerated women in the United States. Cien Saude Colet 2016; 21(7):2051-2060.. Além disso, existem dificuldades na interação entre privados de liberdade, agentes penitenciários e a equipe de saúde.
Considerando o tabagismo como um problema de saúde pública, além de sua maior prevalência na população privada de liberdade, bem como ser esta dependência química um fator de risco para doenças crônicas não transmissíveis, este estudo tem o objetivo de estimar a prevalência do tabagismo e os fatores associados em mulheres privadas de liberdade em Cuiabá, Mato Grosso, Brasil.
Métodos
Trata-se de um estudo epidemiológico de corte transversal, com todas as 259 mulheres adultas privadas de liberdade da Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto May em Cuiabá, Centro-Oeste do Brasil.
As entrevistas foram realizadas na enfermaria da unidade prisional, no período de outubro de 2020 a março de 2021 pela médica pesquisadora que trabalha em saúde pública e com tabagismo, por ordem de chegada das participantes. Foi realizada entrevista e aplicado um questionário contendo questões com os seguintes campos (variáveis independentes): informações gerais com identificação, dados sociodemográficos, data da prisão, histórico de vida, história criminal, uso de tabaco, álcool, outras drogas e questões relativas a comorbidades.
A variável dependente foi o tabagismo, definido quando a entrevistada respondeu estar fumando e já ter fumado mais que 100 cigarros na vida.
Foram incluídas todas as mulheres privadas de liberdade que aceitaram voluntariamente participar e excluídas as mulheres que apresentavam déficit cognitivo ou comportamental que as impossibilitassem de responder ao questionário.
Em relação à análise de dados, inicialmente foi feita a análise descritiva, sendo, em seguida, realizada a análise bivariada, visando associar a variável dependente (tabagismo) e demais variáveis independentes, utilizando-se o teste do Qui-quadrado de Mantel‐Haenszel e a medida de associação a Razão de Prevalência, com seus respectivos intervalos de confiança de 95%. Também foram testadas por meio de análise estratificada possíveis confundimentos e interações, de acordo com os critérios de plausibilidade biológica endossados pela literatura científica. As variáveis com teste de associação com p<0,20 foram testadas no modelo multivariável de Poisson com estimativa robusta de variância, sendo retiradas, paulatinamente pelo método backward, sendo mantidas, no modelo multivariável final, as variáveis comum p-valor menor que 5% (p<0,05).
As análises foram realizadas usando Epi-Info® 7.2.4 software (Center for Desease Control and Prevention, Atlanta, Georgia, EUA), com posterior uso do software SPSS® versão 20.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA) para análise do modelo multivariável. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso sob o número 4.038.796. Todas as participantes foram informadas sobre as características do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
A idade média das reclusas foi de 32,63 (DP±9,12) anos. A Tabela 1 mostra os dados sociodemográficos descritivos, onde a faixa etária mais prevalente foi a de 18-29 anos (46,33%), ser solteira foi a situação civil mais encontrada, com 51,74%. Quanto à escolaridade, o maior grupo foi o fundamental incompleto, com 43,24%. A maioria era da cor parda (62,93%).
Em média, as mulheres privadas de liberdade foram encarceradas por pelo menos 51,73 meses (DP±58,56) ou 4,31 anos. Na Tabela 1 também se encontram os dados relacionados à história de vida, situação na justiça criminal e o uso de substâncias. Nota-se que a maioria delas foi criada sem os pais (55,21%), tendo boa relação familiar (55,60%) e com filhos menores que 12 anos (45,46%). Quanto à situação na justiça, a maioria delas estava em situação provisória (57,53%). Em relação ao uso de substâncias, a prevalência do tabagismo foi de 86,87%, e outras drogas até prisão: uso do álcool 67,18% e as drogas ilícitas (maconha e/ou cocaína) foi de 57,92%.
A idade média do início do tabagismo foi 13,41±1,91 anos, álcool 15,60±3,67 anos, maconha 15,50±2,92 anos e cocaína 16,33±3,30 anos (Tabela não apresentada).
As medidas de associação entre tabagismo e dados sociodemográficos se encontram na Tabela 2, onde as variáveis que se mostraram associadas ao tabagismo foram: faixa etária 18 a 39 anos (RP 1,44; IC95% 1,17-1,78) e escolaridade até ensino médio completo (RP 1,17; IC95% 0,93-1,49).
Na Tabela 3, a análise bivariada mostra a associação do tabagismo e ter sofrido violência na infância (RP 1,12; IC95% 1,03-1,23), crime associado a droga (RP 1,11; IC95% 1,01-1,23), uso de álcool (RP 1,50; IC95% 1,18-1,90), uso de maconha (RP 1,32; IC95% 1,17-1,28) e uso de cocaína (RP 1,17; IC95% 1,07-1,28).
Na direção ainda de procurar algumas associações entre o uso de cocaína e tabagismo, num primeiro momento estratificou-se esse uso entre a faixa etária de 18 a 39 anos e 40 anos ou mais, tendo sido observado uma associação 1,12 vez mais entre o uso de cocaína e tabagismo apenas com associação estatística significante na faixa etária entre 18 e 39 anos. Em acréscimo, ao se estratificar o uso de cocaína e tabagismo por tempo de prisão, observou-se associação apenas entre aquelas que residiam na prisão 36 meses ou mais tempo, apresentando 1,26 vez mais uso de cocaína entre esses últimos (Tabela 4).
No modelo multivariável final, Tabela 5, vê-se que permaneceram associadas ao tabagismo as seguintes variáveis: faixa etária 18-39 anos (RP 1,33; IC95% 1,10-1,61), uso de álcool (RP 1,26; IC95% 1,00-1,59), uso de maconha (RP 1,16; IC95% 1,03-1,30) e interação entre tempo de prisão 36 meses ou mais e uso de maconha (RP 1,16; IC95% 1,03-1,30) e interação entre tempo de prisão 36 meses ou mais.
Discussão
A prevalência do tabagismo encontrada neste estudo (86,9%) foi bastante elevada. Este dado é semelhante aos da literatura internacional e nacional, que tem encontrado altas taxas de tabagismo na população privada de liberdade1414 Spaulding AC, Eldridge GD, Chico CE, Morisseau N, Drobeniuc A, Fils-Aime R, Day C, Hopkins R, Jin X, Chen J, Dolan KA. Smoking in Correctional Settings Worldwide: Prevalence, Bans, and Interventions. Epidemiol Rev 2018; 40(1):82-95.,1515 Howell BA, Guydish J, Kral AH, Comfort M. Prevalence and factors associated with smoking tobacco among men recently released from prison in California: A cross- sectional study. Addict Behav 2015; 50:157-160.. Estudo realizado no Nordeste do Brasil mostrou que 60,3% das reeducandas eram tabagistas1616 Medeiros MM, Santos AAP, Oliveira KRV, Silva NAS, Silva JKAM, Anunciação BMG. Panorama das condições de saúde de um presídio feminino do nordeste brasileiro. Rev Pesqui (Univ Fed Estado Rio J, Online) 2021; 13:1060-1067.. Outro estudo realizado em mulheres privadas de liberdade nos EUA mostrou que a maioria das presidiárias (73,9%) era fumante, sendo que 60,6% delas já haviam tentado parar de fumar pelo menos uma vez na vida. No geral, 64,2% delas relataram interesse em participar do programa de cessação do tabagismo, porém somente 24,5% se sentiam muito confiantes1717 Cropsey K, Eldridge G, Ladner T. Smoking among female prisoners: an ignored public health epidemic. Addict Behav 2004; 29(2):425-431..
Destaca-se que a maioria das mulheres fumantes da Penitenciária respondeu positivamente que gostariam de participar de um programa de cessação. Possivelmente, estas mulheres sentiram a importância da presença, quase que diária, da médica pesquisadora principal deste estudo, que, além do tabagismo, realizou de maneira voluntária atendimento de outros agravos, com orientações de saúde, encaminhamentos e intervenções mais simples demandadas pela população em estudo.
Contudo, ao se comparar a prevalência de tabagismo desse estudo com a população em geral, os números foram muito superiores. Segundo o Vigitel 2020 (Inquérito Telefônico sobre Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas) realizado apenas nas capitais brasileiras, a prevalência de tabagismo em adultos foi de 9,5%, tendo sido maior no sexo masculino (11,7%) do que no feminino (7,6%). Em Cuiabá-MT, essa prevalência de tabagistas mulheres foi de 8,1%1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis. Vigitel Brasil 2020: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2020. Brasília: MS; 2021..
Algumas possíveis explicações podem ser aventadas para o melhor entendimento desta alta taxa de prevalência em mulheres privadas de liberdade aqui encontrada. Em primeiro lugar, o fato de a prisão ser um ambiente hostil, levar a piores condições de estresse crônico, normas bastante restritivas nessas comunidades e dificuldades de acesso aos serviços de saúde1919 Ahmed R, Angel C, Martel R, Pyne D, Keenan L. Access to healthcare services during incarceration among female inmates. Int J Prison Health 2016; 12(4):204-215.. Outras situações, também não avaliadas na presente pesquisa podem estar relacionadas às desigualdades, iniquidades e à violência social expressas na situação de encarceramento, além de condições insalubres tais como celas com pouca ventilação, a própria marginalização social dessas mulheres privadas de liberdade e acesso limitado aos cuidados de saúde33 Minayo MCS, Constantino P, organizadoras. Deserdados sociais: condições de vida e saúde dos presos do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2015..
Em nosso estudo observou-se uma maior prevalência de tabagismo entre as mulheres mais jovens, tendo sido essa associação estatisticamente significante no modelo final. Semelhante a outros estudos que mostram em adultos jovens a maior prevalência de tabagismo entre todas as faixas etárias na maioria dos países industrializados e exibem grande variabilidade no comportamento de fumar2020 Ghenadenik AE, Gauvin L, Frohlich KL. Smoking in Young Adults: A Study of 4-Year Smoking Behavior Patterns and Residential Presence of Features Facilitating Smoking Using Data From the Interdisciplinary Study of Inequalities in Smoking Cohort. Nicotine Tob Res 2020; 22(11):1997-2005.,2121 Reid JL, Hammond D, Rynard VL, Madill CL, Burkhalter R. Tobacco Use in Canada: Patterns and Trends, 2017 Edition. Waterloo: Propel Center for Population Health Impact, University of Waterloo; 2017..
Outra variável que permaneceu no modelo final associada ao tabagismo foi o uso prévio de álcool, conforme encontrado em outro estudo2222 Richmond RL, Indig D, Butler TG, Wilhelm KA, Archer VA, Wodak AD. Smoking and other drug characteristics of aboriginal and non-aboriginal prisoners in australia. J Addict 2013; 2013:516342.. O álcool e a nicotina têm efeitos farmacológicos interativos que motivam seu uso combinado, além de um papel de reforço e tolerância cruzada no desenvolvimento do consumo, manutenção e dependência de ambas as substâncias2323 Oliver JA, Blank MD, Van Rensburg KJ, MacQueen DA, Brandon TH, Drobes DJ. Nicotine interactions with low-dose alcohol: pharmacological influences on smoking and drinking motivation. J Abnorm Psychol. 2013; 122(4):1154-1165..
Semelhante ao uso prévio de álcool, em nosso estudo, o uso prévio de maconha também se manteve associado ao tabagismo, conforme dado encontrado em outro estudo2222 Richmond RL, Indig D, Butler TG, Wilhelm KA, Archer VA, Wodak AD. Smoking and other drug characteristics of aboriginal and non-aboriginal prisoners in australia. J Addict 2013; 2013:516342.. As condições biopsicossociais pré-encarceramento e a situação de saúde da população carcerária, mostrando que transtornos relacionados a outras drogas, dentre as pessoas privadas de liberdade, comumente precedem o aprisionamento. Outro estudo mostra que o uso de tabaco e maconha, duas das substâncias mais utilizadas em todo o mundo estão fortemente interligadas em vários aspectos2424 Lemyre A, Poliakova N, Bélanger RE. The Relationship Between Tobacco and Cannabis Use: A Review. Subst Use Misuse 2019; 54(1):130-145..
Possivelmente, o uso de outras drogas pode estar influenciando no tabagismo, tanto na iniciação quanto na manutenção da dependência, colocando estes usuários como poliadictos2525 Lopez-Quintero C, Pérez de los Cobos J, Hasin DS, Okuda M, Wang S, Grant BF, Blanco C. Probability and predictors of transition from first use to dependence on nicotine, alcohol, cannabis, and cocaine: results of the National Epidemiologic Survey on Alcohol and Related Conditions (NESARC). Drug Alcohol Depend 2011; 115(1-2):120-130.,2626 Liu Y, Williamson V, Setlow B, Cottler LB, Knackstedt LA. A importância de considerar o uso de polissubstâncias: lições da pesquisa sobre cocaína. Drug Alcohol Depend 2018; 192:16-28.. Estudo mostra que a maioria (64%) dos indivíduos condenados às prisões relataram uso de drogas no mês anterior à sua prisão. Além disso, quase metade dos indivíduos preencheram os critérios para transtorno por uso de substâncias antes da admissão, com 40% tendo um transtorno por uso de drogas e 21% tendo um transtorno por uso de álcool2727 Maruschak LM, Bronson J, Alper M. Survey of prison inmates, 2016: Alcohol and drug use and treatment reported by prisoners. Washington: Bureau of Justice Statistics; 2016.. Em outro estudo, com 102 adultos encarcerados em uma prisão urbana nos EUA, encontrou-se mais de 70% dos participantes fumantes, apesar do forte conhecimento (95%) da ligação entre tabagismo e doenças graves2828 Ahalt C, Buisker T, Myers J, Williams B. Smoking and Smoking Cessation Among Criminal Justice-Involved Older Adults. Tob Use Insights 2019; 12:1179173x19833357..
Estudos epidemiológicos mostraram que o uso de nicotina é uma porta de entrada para o uso de maconha e cocaína em populações humanas. O problema da droga lícita normalmente começa na adolescência e prossegue para drogas ilegais2929 Kandel DB, Kandel ER. A molecular basis for nicotine as a gateway drug. N Engl J Med 2014; 371(21):2038-2039.. Consonante a esse fato, em nossa pesquisa encontramos que a idade média do início do tabagismo foi menor que álcool, maconha e cocaína.
Em estudo realizado com uma amostra de 287 mulheres em penitenciária feminina na cidade de Porto Alegre-RS, 54,4% apresentaram uso de substâncias psicoativas (ao longo da vida), sendo que 15,7% com dependência de álcool e 38,3% com dependência de outras substâncias, como maconha, cocaína e crack3030 Mello DC. Quem são as mulheres encarceradas? [dissertação]. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 2008.. Outro estudo realizado com uma amostra de 134 mulheres, em uma penitenciária do Rio de Janeiro-RJ, identificou que, quando em liberdade, 45,5% das mulheres consumiram drogas ilícitas, sendo a droga ilícita mais consumida a maconha, seguida de cocaína e crack3131 Quitete B, Paulino B, Hauck F, Aguiar-Nemer AS, Silva-Fonseca VA. Transtorno de estresse pós-traumático e uso de drogas ilícitas em mulheres encarceradas no Rio de Janeiro. Rev Psiquiatr Clin 2012; 39(2):43-47..
Nesse estudo, o modelo de interação entre tempo de prisão e consumo de cocaína acabou permanecendo no modelo multivariável, indicando que entre as privadas de liberdade com mais tempo de prisão, houve associação entre uso de cocaína e tabagismo. Possivelmente, entre essas últimas a prevalência de uso de cocaína era maior, consistente com outro estudo que mostra o uso de substâncias ilícitas associado a uma chance ajustada 2,47 maior de fumar (IC95% 1,29-5,39) e na análise bivariada que cada cinco anos adicionais de história de encarceramento estava associado a 1,32 vez mais chance de fumar (IC95% 1,02-1,71)1515 Howell BA, Guydish J, Kral AH, Comfort M. Prevalence and factors associated with smoking tobacco among men recently released from prison in California: A cross- sectional study. Addict Behav 2015; 50:157-160..
Algumas limitações do estudo devem ser consideradas. Estudos do tipo transversal não necessariamente estabelecem relação entre causa e efeito, bem como a utilização de informações subjetivas ou de autorrelato, o que pode levar a viés de memória. Outra limitação se refere ao fato de as informações coletadas terem sido autorreferidas, o que poderia ter contribuído para subestimar as proporções das variáveis explicativas. Entretanto, a utilização da razão de prevalência como medida de efeito, tanto na análise bivariada quanto no modelo multivariável de Poisson, permitiu um bom ajuste das medidas de efeito e impedem a hiperestimação das medidas de associação.
O conhecimento sobre os fatores associados ao tabagismo na população estudada torna-se importante quando se planeja implantar um programa de cessação. Este é um dos primeiros estudos que avaliou os fatores associados ao tabagismo em toda população privada de liberdade feminina de uma penitenciária brasileira. Deve-se considerar a diversidade dos fatores envolvidos, como dificultadores da cessação, dando destaque para os aspectos relacionados com a condição do espaço social em que se encontra esta mulher, e o fato dela ser poliadicta. É imperioso que o poder público possa dar a oportunidade para que estas fumantes fiquem livres do tabaco, o que irá contribuir para a redução de danos à saúde desta população.
Conclusão
A prevalência de tabagismo nas mulheres privadas de liberdade neste estudo foi elevada. As principais variáveis associadas ao tabagismo foram faixa etária 18-39 anos, uso de álcool e maconha e interação entre tempo de prisão por 36 meses ou mais e uso de cocaína. O encarceramento de mulheres oferece uma ótima oportunidade para abordar o tratamento do tabagismo. Entre tantas circunstâncias negativas relacionadas à vida prisional, é importante destacar que, caso seja de interesse do serviço público prisional e SUS, é possível o desenvolvimento de ações como a abordagem para cessação de tabagismo, melhoria da educação em saúde e estabelecimento de redes de apoio à saúde para essa população vulnerável e negligenciada.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
14 Nov 2022 - Data do Fascículo
Dez 2022
Histórico
- Recebido
28 Nov 2021 - Aceito
17 Jun 2022 - Publicado
19 Jun 2022