Representações sociais da maternidade para mulheres em privação de liberdade no sistema prisional feminino

Anderson Brito de Medeiros Glauber Weder dos Santos Silva Thaís Rosental Gabriel Lopes Jovanka Bittencourt Leite de Carvalho Jaime Alonso Caravaca-Morera Francisco Arnoldo Nunes de Miranda Sobre os autores

Resumo

Neste artigo, objetivou-se analisar as representações sociais da maternidade de mulheres gestantes, lactantes e que vivenciaram a gestação em privação de liberdade no sistema prisional. Trata-se de estudo qualitativo, ancorado nos pressupostos do Paradigma Teórico das Representações Sociais, realizado com 42 mulheres. As participantes eram, em maioria, jovens entre 18 e 39 anos de idade (90,5%; n=38) e se encontravam solteiras (50,0%; n=21); 61,9% (n=26) relataram duas ou mais gestações e 47,6% (n=20) referiram um ou mais abortamentos. A possível representação do ser mãe na prisão se cristalizou, em termos semânticos, principalmente pelos termos “separação” (f=27; OME: 2,9), “tristeza” (f=18; OME: 2,3), “horrível” (f=16; OME: 2,1) e “dor” (f=12; OME: 2,8). Na zona de substituição e de descontextualização, as representações foram objetivadas pelos termos “separação” (f=18; OME: 3), “tristeza” (f=13; OME: 2,5), “medo” (f=11; OME: 2,2) e “horrível” (f=10; OME: 1,5). Evidenciou-se que a centralidade das representações sociais para as participantes do estudo reflete o sofrimento vivenciado pela separação da díade mãe-filho.

Palavras-chave:
Enfermagem; Gravidez; Prisões; Prisioneiros; Psicologia Social

Introdução

O aprisionamento feminino caracteriza-se como a forma de penalidade ligada, intrinsecamente, à violência contra a mulher, levando-a à exclusão do seu papel na sociedade. Associado a essa condição, ocorre o abandono das atividades familiares como companheira e mãe, entre os papéis dados à mulher. Nesse contexto, o entrelaçamento da maternidade destaca-se como um fenômeno complexo, resultante da construção cultural, contextual, histórica e social, no envolvimento do cuidado e sentimentos afetivos11 Anjos CLS, Rodrigues LM. O encarceramento feminino à luz dos direitos humanos. Rev ESMAT 2016; 8(10):49-42.,22 Braga AGM, Angotti B. Da hipermaternidade à hipomaternidade no cárcere feminino brasileiro. Rev Inter Direit Hum 2015; 12(22):229-239..

Não obstante, o cenário vivenciado pelas mulheres durante o período gravídico-puerperal, no sistema prisional, em privação de liberdade, traça o delineamento, incipiente e fragilizado, da configuração política, social e patriarcal dominante quanto ao papel da mulher neste campo. Esse fato estimula a desigualdade de gênero e corrobora com as estatísticas negativas referentes ao aprisionamento feminino durante o processo gravídico33 Washington Office on Latin America (WOLA). Mujeres, políticas de drogas y encarcelamiento: una guía para la reforma de políticas en América Latina y el Caribe. Washington D.C.: WOLA; 2016.,44 Ariza LJ, Iturralde M. Una perspectva general sobre mujeres y prisiones en América Latna y Colombia. Rev Derecho Publico 2015; 35:1-25..

No Brasil, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen Mulheres), publicado em 2018, aponta um aumento de 656% na população prisional feminina, chegando ao número de 42 mil entre os anos 2000 e 2016. São 40,6 mulheres aprisionadas para cada 100 mil. Dados internacionais demonstram que o Brasil ocupa o 4º lugar na colocação mundial em população prisional feminina, aproximando-se de países como os Estados Unidos, China e Rússia, que ocupam o 1º, 2º e 3º lugares, respectivamente55 Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSS). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. 2ª ed. Brasília: MJSS; 2018.. Salienta-se que o Brasil, a Argentina e a Costa Rica apresentam mais de 60% do aprisionamento feminino associado ao tráfico de drogas33 Washington Office on Latin America (WOLA). Mujeres, políticas de drogas y encarcelamiento: una guía para la reforma de políticas en América Latina y el Caribe. Washington D.C.: WOLA; 2016..

O painel atual feminino em privação de liberdade no Brasil revela um predomínio de mulheres jovens, negras, com ensino fundamental incompleto, solteiras e com envolvimento em crime de tráfico de drogas, causa esta que reflete, na dimensão de gênero, a submissão do feminino ao masculino, nesse caso, com atribuição passiva e influenciada pelo parceiro na conjuntura de relacionamento55 Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSS). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. 2ª ed. Brasília: MJSS; 2018.,66 Fraga PCP, Silva JKN. A participação feminina em mercados ilícitos de drogas no Vale do São Francisco, no Nordeste brasileiro. Tempo Soc 2017; 29(2):135-158..

As situações vivenciadas no contexto carcerário permitem que a mulher/gestante/mãe atribua significados da sua própria espacialidade existente no sistema prisional. Portanto, requerem um investimento científico, no contexto carcerário feminino, a partir da maternidade, ao abrigo do olhar da subjetividade das significações do Paradigma Teórico das Representações Sociais (PTRS). Assim, pode-se obter melhores entendimentos efetuados e decorrentes das mudanças do cenário privado de liberdade77 Moscovici S. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes; 2007.. Nesta perspectiva, sob a ótica da PTRS, paradigma é o efeito das interações humanas existentes entre duas ou mais pessoas. À vista disso o paradigma teórico enaltece o entendimento do todo em especificidades, e não apenas de forma isolada e sem identificação, indo ao encontro das mulheres no aprisionamento que sentem necessidade de falar sobre angústias, anseios, alegrias, medos e, sobretudo, de expor as especificidades do ser feminino.

A contextualização apresentada permite ir ao encontro das respostas provenientes do problema de pesquisa, e, assim, responder à seguinte pergunta: quais as representações sociais da maternidade de mulheres gestantes, lactantes e que vivenciaram a gestação em privação de liberdade?

Na perspectiva paradigmática e representacional, objetiva-se analisar as representações sociais da maternidade de mulheres gestantes, lactantes e que vivenciaram a gestação em privação de liberdade, no sistema prisional.

Método

Este artigo consiste em um estudo de abordagem qualitativa, ancorado nos pressupostos do Paradigma Teórico das Representações Sociais77 Moscovici S. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes; 2007. pautado na vertente estrutural, com a presença da Teoria do Núcleo Central8 e Zona Muda99 Guimelli C, Deschamps JC. Effets de contexte sur la production d´associations verbales: le cas de representations socials des Gitans. Cahier Int Psychol Soc 2000; 47:44-54..

As Representações Sociais, de acordo com Moscovici77 Moscovici S. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes; 2007., diz respeito ao efeito das interações humanas existentes entre duas ou mais pessoas, as quais tornam o mundo, as pessoas e as vozes com mais propriedades para se definir um ser social, independentemente do cenário posto. Dito de outra forma, é a familiarização do não familiar77 Moscovici S. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes; 2007..

No presente estudo, mostra-se a vertente estrutural das representações sociais, que se articula à abordagem voltada à estrutura da representação e dos respectivos significados, com vistas à interpretação das relações das pessoas, sob perspectiva cognitivo-estrutural77 Moscovici S. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes; 2007.,88 Abric JC. L'approche structurale des représentations sociales: Développements récents. Psychol Soc 2001; 4:81-103..

O estudo foi desenvolvido nas quatro instituições públicas de detenção feminina do estado do Rio Grande do Norte (RN). Compuseram o universo populacional da pesquisa 43 mulheres, dentre elas: gestantes, lactantes e mulheres que vivenciaram a gestação em privação de liberdade no sistema prisional feminino do estado do RN. Todas foram submetidas aos critérios de elegibilidade.

No estudo, foram incluídas as mulheres que, independentemente do regime prisional, encontravam-se nas seguintes condições: gestaram no cenário estudado; vivenciaram o processo de amamentação e o período puerperal dentro do sistema prisional; vivenciaram gestação ou amamentação outrora no sistema prisional.

Foram excluídas do estudo mulheres que manifestaram comportamentos de risco à segurança do pesquisador, quais sejam: entendimento do agente penitenciário de ações agressivas por parte da mulher em visitas e de agressividade recente com as prisioneiras; mulheres com alteração das funções psíquicas, como pensamento e sensopercepção que impedissem a capacidade cognitiva para oferta de dados, mediante orientações dos penitenciaristas; mulheres que, por motivos pessoais e/ou penais, não podiam estar em espaço comum às visitas; mulheres com sinais de presunção de gravidez e que apresentaram abortamento durante a coleta.

Assim, a amostra deste estudo foi composta por todas as mulheres gestantes, lactantes e que vivenciaram a gestação em privação de liberdade no sistema prisional do estado do RN, totalizando 42 participantes. Destas, 15 são gestantes, 7 são lactantes e 20 são mulheres que vivenciaram a gestação em privação de liberdade, no sistema prisional em outro momento aquém da coleta de dados. Aponta-se que apenas uma mulher foi excluída, por apresentar comportamentos de risco e estar em local reservado.

A coleta de dados ocorreu em três momentos distintos, durante os meses de maio a setembro de 2019, seguindo os passos éticos e legais por meio de questionário sociodemográfico, entrevista semidirigida associada à Técnica de Associação Livre de Palavras (TALP), além da substituição e descontextualização, as quais são condições para obtenção da Zona Muda (ZD)99 Guimelli C, Deschamps JC. Effets de contexte sur la production d´associations verbales: le cas de representations socials des Gitans. Cahier Int Psychol Soc 2000; 47:44-54..

A entrevista semidirigida foi conduzida por um termo indutor da TALP “Ser mãe na prisão”. Após respostas oriundas do termo, cada mulher mencionou, em ordem hierárquica, as palavras importantes de “ser mãe na prisão”. Logo em seguida, solicitou-se que a entrevistada falasse um significado para cada termo de forma espontânea, ou seja, externando o contexto com naturalidade, a fim de encontrar as representações no campo semântico1010 Neves DAB, Brito RC, Códula ACC, Silva JT, Tavares DWS. Protocolo verbal e teste de associação livre de palavras: perspectivas de instrumentos de pesquisa introspectiva e projetiva na ciência da informação. Rev Ponto Acesso 2014; 8(3):64-79..

A estratégia explicativa do termo indutor visa esclarecer a região implícita na verbalização dos sujeitos, em detrimento às normatizações encaradas por determinados grupos sociais que não podem externar situações, devido ao contexto vivenciado. Aplicou-se a mesma técnica com direcionamentos diferentes, no intuito de encontrar a ZM, da seguinte forma: “Se eu lhe digo: ‘Ser mãe na prisão’, o que a senhora acha que as demais mulheres presas aqui pensam?”88 Abric JC. L'approche structurale des représentations sociales: Développements récents. Psychol Soc 2001; 4:81-103..

Inicialmente, preparou-se a matriz textual, com processamento e análise teórica. Em seguida, os dados encontrados foram lematizados e categorizados, para melhor compreensão representacional e operacional de ambos os processos. O processamento ocorreu no Software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRAMUTEQ), versão 7 alpha 21111 Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: Um Software Gratuito para Análise de Dados Textuais. Temas Psicol 2013; 21(2):513-518.. Com os dados oriundos da TALP e da ZM, realizou-se o processamento lexográfico por meio do IRAMUTEQ 2.

Nesta pesquisa, realizou-se interpretação por análise prototípica (quadro de quatro casas), sendo representadas, qualitativamente, com objetivo de fornecer ao leitor dados da situação real do tema pesquisado, para análises e interpretações estatísticas e lexicográficas1212 Costa TL, Oliveira DC, Formozo GA. Representações sociais sobre pessoas com HIV/AIDS entre enfermeiros. Estud Psicol 2012; 12(1):242-259..

Na análise prototípica, foram buscadas as palavras com maior frequência de evocação e as mais rapidamente evocadas, a fim de colaborar com a compreensão dos componentes sociais que integram o senso comum das mulheres gestantes, lactantes e que vivenciaram a gestação em privação de liberdade no sistema prisional.

As respostas provenientes dos participantes seguem média preestabelecida, de modo que o valor 1 é direcionado para a primeira resposta, o valor 2, para a segunda resposta e assim sucessivamente. Nesse sentido, mostram-se os pontos de corte para compor os quadrantes, a partir do emprego da mediana nas palavras evocadas. Nas cinco palavras evocadas, o ponto de corte foi três, de acordo com a Ordem Média de Evocação (OME). Assim, as palavras com OME≤2 foram classificadas como baixa ordem de evocação e ≥3 incluídas como alta OME, as quais foram selecionadas para presente análise1212 Costa TL, Oliveira DC, Formozo GA. Representações sociais sobre pessoas com HIV/AIDS entre enfermeiros. Estud Psicol 2012; 12(1):242-259.. A constituição dos valores para composição do quadro de quatro casas com seus respectivos componentes representacionais - núcleo central e de elementos periféricos - foram calculadas automaticamente pelo software IRAMUTEQ, obtendo uma frequência intermediária de 8.37, com ordem média das evocações (OME) de 3,081111 Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: Um Software Gratuito para Análise de Dados Textuais. Temas Psicol 2013; 21(2):513-518..

Portanto, reforça-se que esses elementos foram a base para elaboração do quadro de quatro casas, para o entendimento da Teoria do Núcleo Central (TCN), destacando-se e identificando-se o núcleo central, os elementos intermediários e a periferia da representação, a partir dos elementos de natureza normativa e funcional1313 Wachelke J, Wolter R, Matos RF. Efeito do tamanho da amostra na análise de evocações para representações sociais. Liber 2016; 22(2):153-160..

No mais, o estudo recebeu parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob número 3.178.18. A coleta de dados foi precedida da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), informando às mulheres sobre anonimato e sigilo dos dados.

Resultados

Neste estudo, em termos gerais, as participantes: eram, principalmente do regime privado e do regime provisório; vivenciaram a gestação em privação de liberdade no sistema prisional, sendo 47,6% (n=20) nesse perfil; 90,5% (n=38) tinham idades entre 18 e 39 anos, com média de 29 anos; autodeclararam-se no estado civil solteira (50,0%; n=21); em termos de escolaridade, 59,5% (n=25) não concluíram o ensino fundamental, e nenhuma das mulheres tinha concluído o ensino médio. Prevaleceram mulheres provenientes da capital Natal e região metropolitana, perfazendo o total de 59,5% (n=25).

As mulheres, majoritariamente, apresentaram o quantitativo de três ou mais gestações (61,9%; n=26); sobre os abortamentos, 47,6% (n=20) referiram pelo menos uma vez; o tipo de pena a ser cumprida em regime fechado apresentou maior proporção (52,4%; n=22) e 16,7% (n=07) não sabiam o tipo de regime que estavam cumprindo. No regime provisório, encontravam-se 14,3% (n=06). Sobre o tempo em que cumprem a pena no presídio, 54,8% (n=23) responderam que fazia menos de um ano; 23,8% (n=10), dois anos ou mais; e 21,4% (n=09) relataram fazer mais de um ano no sistema prisional feminino.

Processamento prototípico - Técnica de Associação Livre de Palavras - matriz 1

Na análise prototípica da matriz 1, verificou-se que o termo indutor “Ser mãe na prisão” resultou em 210 evocações e 94 palavras distintas. Após lematização e categorização, o número de palavras diferentes evocadas pelas mulheres foi reduzido para 61. Excluindo-se as evocações com frequência inferior a 3, resultou-se em aproveitamento de 31,1% (n=19). O Quadro 1 apresenta o resultado do processamento prototípio da matriz 1.

Quadro 1
Quadro de quatro casas da análise prototípica (matriz 1). Mulheres gestantes, lactantes que vivenciaram a gestação no sistema prisional.

A partir da frequência e da Ordem Média de Evocação (OME), no QSE, observa-se o campo representacional como a possível representação nuclear do ser mãe na prisão, a qual cristalizou-se, em termos semânticos, principalmente pelo elemento “separação”, remetendo o estado de “tristeza” e “dor” ao termo indutor “ser mãe na prisão”, consubstanciado como momento “horrível. Desse modo, o núcleo central das representações é caracterizado pela dicotomia da díade materna mãe-filho aos seis meses de idade, uma vez que as participantes apresentavam os termos direcionados à “separação”:

Medo da minha separação com o meu filho. (Mulher 1).

Perder meu filho com seis meses, a dor aumentou. (Mulher 23).

Os elementos secundários encontram-se na primeira periferia do quadro de quatro casas, ou seja, no QSD, sendo as palavras “sofrimento” e “medo” as que se mostraram com altas evocações e frequências. Dessa forma, os termos encontrados podem-se ligar ao núcleo central, tendo em vista a fala das participantes ao denotar significados voltados ao fortalecimento dos referidos elementos centrais, sendo atribuído valor à ruptura do vínculo mãe-filho, associado também ao “sofrimento” e “medo” vivenciado no sistema prisional, os quais surgem a partir da “separação”, bem como do aprisionamento:

Tento não olhar para a grade para não sofrer e lembrar que estou presa. (Mulher 6).

Sofrimento pela criança. (Mulher 42).

No QID, encontra-se a segunda periferia da representação social, que são os elementos mais fracos na organização representacional, apresentando menor interferência nos demais quadrantes, uma vez que o número de evocações nessa periferia é pequeno e citado nos últimos lugares. Curiosamente, o quadrante se mostra como uma possibilidade para as mães, ao se apresentar com evocações e frequências inclinando-as, de um lado, para “adoção” do filho para instituições governamentais, do outro, tornando a mulher “forte”, diante da “desassistência” encontrada e do “aprisionamento_filho”, levando-a ao “arrependimento”, sobretudo, ao “aprendizado” diante do cotidiano no sistema prisional. Salienta-se, ainda, o sentimento de “angústia” apresentado na segunda periferia, justapondo a presença do elemento “procedimento.

Entende-se por “procedimento”, no contexto aqui pesquisado, o momento no qual as mulheres em privação de liberdade no sistema prisional são postas com as mãos para frente e sobre o ombro da outra apenada ou com as mãos na cabeça e de frente para parede com os pés afastados:

É ter medo de perder minha filha para o conselho tutelar, justiça, adoção. (Mulher 10).

É saber que o filho está tirando cadeia comigo. (Mulher 9).

A zona de contraste da representação se configura como elementos com OME de frequência baixa, localizado no QIE; todavia, emergidas logo nas primeiras posições. São elementos possíveis de constituir o núcleo central de indivíduos, inferindo, assim, a presença de subgrupos, com significados iniciais da representação, sem modificar a centralidade do quadro de quatro casas. Observou-se, nesse quadrante, a presença da palavra “saudade”, a qual, provavelmente, direciona-se aos vínculos rompidos, seja com o (a) filho(a) e o/ou familiares, tornando a vivência no sistema prisional como condição “difícil” e, ao mesmo tempo, “distante” da base familiar. Aponta-se, também, a “violência” encontrada e referida pelas participantes, indo ao encontro do “medo”, apresentado na primeira periferia, e do estar no sistema prisional “abandonada”, pelo Estado, familiares e, sobretudo, pelo companheiro:

É ter saudades da família, minha mãe e filha. (Mulher 17).

Medo de apanhar na cara, gestante só apanha na cara. (Mulher 23).

Processamento prototípico - Técnica de Associação Livre de Palavras - Modelo de substituição e de descontextualização - matriz 2

O processamento prototípico referente à matriz 2, após o termo indutor “Ser mãe na prisão”, identificou 210 evocações e 95 palavras diferentes; sequencialmente, realizou-se a lematização e categorização, apresentando/identificando 61 palavras díspares mencionadas pelas mulheres. Por conseguinte, excluíram-se as evocações com frequência inferior a 3, resultando em aproveitamento de 32,8% (n=20) (Quadro 2).

Quadro 2
Quadro de quatro casas da análise prototípica (matriz 2). Mulheres gestantes, lactantes e que vivenciaram a gestação no sistema prisional.

O quadro de quatro casas, pertencente à matriz 2, refere-se à zona de substituição e à de descontextualização (zona muda); as representações do quadrante superior foram objetivadas pelos elementos que formaram o núcleo central. Dessa forma, atribuiu-se maior valor à “separação”, assemelhando-se aos elementos centrais do quadro de quatro casas da normalidade (matriz 1), com a cristalização representacional, uma vez que as falas proferidas pelas participantes encontram-se associadas com os termos acima. Logo, “separação” reafirma o rompimento do vínculo materno (díade mãe-filho); esse rompimento é reforçado com sentimentos negativos ao “ser mãe na prisão”, como “tristeza,medo” e “horrível”, sendo estes direcionados ao “sofrimento” da mãe com o filho.

A composição da primeira periferia (QSE) ocorreu pelas evocações significativas da ruptura da díade mãe-filho, sobressaindo-se o “sofrimento” vivenciado pela mulher dentro do sistema prisional antes, durante e após a presença do(a) filho(a) no cenário. A “dor” e “desassistência” inclinam-se, também, para o “sofrimento”. Todavia, esses significados são atribuídos, presumidamente, ao medo da ausência de cuidados com o filho, bem como a “desassistência” sentida no sistema prisional. Assim, visualiza-se forte presença de prováveis elementos periféricos com influências nas evocações dos termos centrais diante da semelhança apresentada no significado elaborado pela mulher, ao citar as palavras acima e presentes no QSE.

Observa-se, no QID, forte significação da palavra “violência”, relacionada ao que é vivenciado no sistema prisional quanto às brigas e às rebeliões, do mesmo modo que o valor simbólico sobre os elementos “aprisionamento” e “aprisionamento_filho” são refletidos diretamente ao sofrimento do filho. Sobre a “angústia” referida na evocação, tem-se que ela se encontra voltada à idealização frustrada e à delimitação temporal da mãe em cuidar do(a) filho(a), reafirmada como o medo durante a realização de “procedimento” enquanto grávida, transformando-a, diante da realidade, em mulher mais “forte. Circunstancialmente, as palavras “chorar” e “arrependimento” constituem uma maior compreensão de sua situação como indivíduo, ou seja, sobre o cotidiano da mulher gestante e/ou lactante no sistema prisional, referentes aos significados acerca do(a) filho(a).

Os elementos de contraste traduzem, neste resultado, sentimentos, informações e, sobretudo, os significados que se encontram atribuídos ao cotidiano das participantes no sistema prisional diante da “saudade” do(a) filho(a), da família, da vida extramuros. Pode-se considerar, também, “adoção”, “distante” e “solidão” como expressões que reafirmam a “saudade”, na dimensão do distanciamento do(a) filho(a), principalmente quando se trata de “adoção”. Para esta última evocação semântica, somam-se, ainda, as palavras “ruim” e “difícil”, sugerindo potencializção da ruptura da díade. Assim, o quadrante em foco mostra a singularidade dos subgrupos, formados sem modificar os elementos centrais da representação social.

Dessa forma, integralizam-se à matriz 2, os termos divergentes e os que apresentaram diferença representacional, tais como: Núcleo central (“medo” e “dor”); Primeira periferia (“dor”, “desassistência” e “medo”); Zona de contraste (“adoção”, “solidão”, “ruim”, “violência” e “abandonada”); Segunda periferia (“violência”, “chorar”, “adoção”, “desassistência” e “aprendizado”). De tal modo, mantém-se a cristalização entre os dois quadros de quatro casas com a forte presença de palavras que representam e atribuem significados à “separação”, sobretudo, da díade materna, potencializada por sentimentos negativos.

Discussão

A representação social das mulheres gestantes, lactantes e que vivenciaram a gestação em privação de liberdade no sistema prisional assume o caráter formativo, com conjunto de elementos possibilitando a cristalização do núcleo central. A experienciação da maternidade no aprisionamento ocorre de forma ambivalente, entre ruptura e condição de delicadeza e sentimentalismo, sugerindo, assim, que a vivência dessas mulheres siga uma trajetória de sofrimento pela separação da díade mãe-filho em face da criminalização dos seus atos pessoais e do sentido e sentimento em ser mãe, portanto, sobreposição de penalizações impostas pelas normatizações, leis e regimentos jurídicos imputados pelo sistema prisional.

Os termos evocados e encontrados nas matrizes 1 e 2 revelam, apesar dos significados divergentes, uma lógica implícita para o mesmo sentido social, de acordo com os relatos das mulheres participantes. Tais valores denotam a semelhança na construção da normalidade, bem como na descontextualização dos quadrantes do quadro de quatro casas.

O núcleo central das mulheres gestantes, lactantes e que vivenciaram a gestação em privação de liberdade, no sistema prisional, definido no quadro de quatro casas (quadrante superior esquerdo), constituiu-se, estatisticamente, pelos termos evocados mais rapidamente, fato esse sugestivo pela literatura, como identificados nas primeiras posições, tornando-os estáveis e resistentes a modificações88 Abric JC. L'approche structurale des représentations sociales: Développements récents. Psychol Soc 2001; 4:81-103..

Enfatiza-se que os dados encontrados demonstram divergências singulares sobre a complexidade da mulher que vive a privação de liberdade em seu ciclo gravídico-puerperal, reforçando uma condição implícita, que possibilita compreender que estejam organizadas e fortalecidas quanto à representação social no mesmo núcleo88 Abric JC. L'approche structurale des représentations sociales: Développements récents. Psychol Soc 2001; 4:81-103.. A função geradora, componente para criação e transformação de significados de outros elementos, torna-os com sentidos e valores na representação. Por sua vez, a função organizadora - a qual se constitui como núcleo central - une os elementos representacionais.

A palavra “separação” foi o termo apresentado no núcleo central com maior representatividade, encontrando-se agrupado com os demais elementos no mesmo quadro, como direcionados à separação institucionalizada no sistema prisional brasileiro: “tristeza”, “horrível”, “dor” e “medo”. Salienta-se que a condição de permanência do filho no presídio, durante o período de amamentação exclusiva, limita-se até o sexto mês de vida, a partir da Lei nº 11.942 de 20091414 Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.942, de 28 de maio de 2009. Dá nova redação aos arts. 14, 83 e 89 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de Execução Penal, para assegurar às mães presas e aos recém-nascidos condições mínimas de assistência. Diário Oficial da União; 2009., resultando na ruptura do vínculo mãe-filho, gerando, assim, sentimentos, emoções, atitudes e respostas como consequências negativas para díade, além de um certo sentido de autoproteção pela condição e circunstância de mãe aprisionada.

O cenário do aprisionamento feminino, quando associado à gestação ou à lactação, define-se, por um lado, como um leque de representações particulares para mulher-mãe, as quais favorecem complicações para díade mãe-filho, podendo ser entendidas como representações polêmicas77 Moscovici S. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes; 2007.. Por outro, como uma projeção do futuro diante de interrogações construídas, a partir do que é vivenciado no sistema prisional, quando as mães têm data marcada para se distanciar do filho, mães ficam no intramuros e filhos(as) vão para o extramuros1515 Amaral MF, Bispo TCF. Mães e filhos atrás das grades: um olhar sobre o drama do cuidar de filhos na prisão. Rev Enferm Contemp 2016; 5(1):51-58..

Durante a permanência no sistema prisional, as mulheres aqui focalizadas sofrem de maneira cíclica pela separação do filho no contexto do aprisionamento. Somam-se a isso a carga de responsabilidade, preocupações, pensamentos, culpabilizações, anseios e, consequentemente, adoecimento durante a gestação e puerpério sobre os próximos dias a serem vivenciados no sistema prisional. Certamente, esses desdobramentos levam-nas ao adoecimento mental e físico, elencados a partir da tristeza, do medo e da dor, referidos nas evocações1616 Lima GMB, Pereira Neto AF, Amarante PDC, Dias MD, Ferreira Filha MO. Mulheres no cárcere: significados e práticas cotidianas de enfrentamento com ênfase na resiliência. Saud Debat 2013; 37(98):446-456..

Nesse ínterim, aponta-se contextualmente, o quão difícil é, para essa mulher, ser mãe e exercer a maternagem sem interferências. Destaca-se, ainda, lidar com o dia a dia no cárcere, além de conviver disciplinarmente com datas e horas pré-determinadas, capazes de potencializar o sofrimento materno e, consequentemente, o adoecimento da mulher no aprisionamento, a partir da retórica oportunizada pela separação da díade mãe e filho. Soma-se às condições de ambiência precárias e deterioradas no presídio, a superpopulação das celas. O limitado suporte de saúde apropriado torna o sistema prisional sem as principais funções, que é restringir, ressocializar e reintegrar a mulher privada de liberdade para sociedade1616 Lima GMB, Pereira Neto AF, Amarante PDC, Dias MD, Ferreira Filha MO. Mulheres no cárcere: significados e práticas cotidianas de enfrentamento com ênfase na resiliência. Saud Debat 2013; 37(98):446-456..

As situações do aprisionamento são determinantes e condicionantes para os agravos de saúde da mãe e do(a) filho(a), visto que o ambiente é precário, insalubre e hostil. Nessa perspectiva, o adoecimento da mulher-mãe aprisionada no sistema prisional com o(a) “filho(a) preso(a)” apresenta níveis elevados, dada as circunstâncias, eclodindo, especialmente, os transtornos mentais com evoluções mais graves1717 King EA, Tripodi SJ. The Relationship Between Severe Mental Disorders and Recidivism in a Sample of Women Released from Prison. Psychiatr Q 2018; 89(3):717-731.. Tal realidade é evidenciada em um estudo, no qual se demonstra que 75% das mulheres no cárcere sofrem com algum distúrbio mental1818 Santos IG, Silva IP, Masullo YAG. Women in Jail: a literature review on the reality of women in charge. GEOP 2020; 4(3):255-273..

Dessa forma, parte-se da conjuntura de que o encarceramento da díade mãe-filho - mesmo que em condições, cenários, regimes diferentes - apresenta aspectos projetados que se encontram no mesmo caminho. De um lado, mães que necessitam dos(as) filhos(as) durante o aprisionamento, pelos sentimentos construídos na vinculação, na carência sentimental da mulher, nas necessidades biológicas e fisiológicas da maternidade, além da instabilidade de como o(a) filho(a) irá viver fora da prisão e sem a mãe. Do outro lado, crianças que são vitimizadas e aprisionadas no sistema prisional recebem por impacto reclusão da sociedade, de familiares e do próprio crescimento e desenvolvimento, o qual é afetado, substancialmente, com doenças mentais e distúrbios crônicos, associados, ainda, à mortalidade precoce1919 Pech A, Bloom BE. Children of incarcerated parents: Problems and resilience. In: McShane MD, Cavanaugh M. Understanding juvenile justice and delinquency. Connecticut: Praeger; 2016. p. 122-139..

No que concernem à vivência e ambiência para o recém-nascido na prisão, a existência de berçários nas instituições prisionais femininas brasileiras é respaldada pela Lei nº 11.942, de 28 de maio de 2009; no entanto, não é praticável na totalidade dos estados22 Braga AGM, Angotti B. Da hipermaternidade à hipomaternidade no cárcere feminino brasileiro. Rev Inter Direit Hum 2015; 12(22):229-239.. Ademais, alguns cenários no Brasil detêm de unidades materno-infantil para abrigar a mãe e o filho; todavia, essas unidades têm características de extensão do presídio, apenas. Em Ezeiza, na Argentina, a proposta utilizada é apresentada como creche, uma vez que a criança fica com a mãe na creche e, ao mesmo tempo, no sistema prisional; à noite, fica sob os cuidados dos familiares22 Braga AGM, Angotti B. Da hipermaternidade à hipomaternidade no cárcere feminino brasileiro. Rev Inter Direit Hum 2015; 12(22):229-239..

Nessa contextualização, independentemente do desfecho, haverá prejuízos para a díade materna, uma vez que o aprisionamento da mãe com o filho potencializa a pena e acarreta danos para ambos. Desse modo, as mães entendem a responsabilidade e o valor do papel materno de ser mãe no sistema prisional, uma vez que este ensina e estabelece novos horizontes, tornando-as, na maioria das vezes, mulheres “ressocializadas” e prontas para exercer a maternidade extramuro22 Braga AGM, Angotti B. Da hipermaternidade à hipomaternidade no cárcere feminino brasileiro. Rev Inter Direit Hum 2015; 12(22):229-239.,1919 Pech A, Bloom BE. Children of incarcerated parents: Problems and resilience. In: McShane MD, Cavanaugh M. Understanding juvenile justice and delinquency. Connecticut: Praeger; 2016. p. 122-139.,2020 Soares EMC, Castro AE. Amamentação no cárcere: as entrelinhas para mães e filhos como sujeitos de Direito [Internet]. Âmbito Jurídico; 2018 [acessado 2020 dez 2]. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12515.
http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n...
.

Para contextualizar a centralidade dos elementos representacionais, as periferias apresentam-se como suporte para tal, pois dão sustentabilidade ao núcleo e atribui-lhe sentido. A primeira periferia (Quadrante Superior Direito/QSD) infere, em primeiro momento, sofrimento e medo vivenciado pela mãe e pelo(a) filho(a) diante do universo que é o sistema prisional, reverberando na separação da díade materna. Em segundo momento, o conjunto de componentes verbais evocados enfatizam como a dor e a desassistência presentes nesse cotidiano prisional potencializam, progressivamente, o sofrimento.

As evocações dessa periferia (Quadrante Superior Direito/QSD) podem relacionar os sentimentos nominados ao sofrimento das mulheres gestantes e lactantes no sistema prisional, uma vez que estas estão contrabalanceadas com a presença de elementos de baixa frequência com termos de alta evocação, inclinando-se ao núcleo central2121 Ferrari IF. Mulheres encarceradas: elas, seus filhos e nossas políticas. Rev Mal-Estar Subj 2010; 10(4):1325-1352..

O desamparo direcionado à mãe e ao(à) filho(a) no sistema prisional impacta, diretamente, a vivência fora de privação de liberdade, uma vez que a desestruturação da rede familiar dessas mulheres se mostra como fator tênue, portanto, cruel às necessidades dessas crianças em ambiente extramuro. Após o aprisionamento da mulher, há declínio dos laços familiares e do segmento financeiro, refletindo na saída dos(as) filhos(as) das grades e na inexistência de responsáveis pela tutela, o que vêm a colaborar para exclusão do sujeito da sociedade. Esses achados corroboram, ainda, para a culpabilização da mãe sobre o sofrimento do(a) filho(a) e a incapacidade dela de executar seu papel2222 Wacquant L. A aberração carcerária à moda francesa. Dados 2004; 47(2):215-232..

Diante da segunda periferia (Quadrante Inferior Direito/QID), encontram-se os termos com frequência de evocações baixa, ou seja, menos importante para representação social. Contudo, as palavras apresentadas no referido quadro refletem, diretamente, no contexto representacional, mesmo que na individualidade e/ou singularidade da mulher, pois apresentam elementos sobre o quão é difícil ser mãe no sistema prisional, a partir do cotidiano do cenário.

A pena a ser paga pela mulher que cometeu delito à sociedade deve ser direcionada ao aprisionamento, somente. No entanto, esse cumprimento surge com violência nos mais diversos segmentos vivenciados pela mulher no sistema prisional. O gênero feminino torna-se violentado a partir do momento que é tratado de maneira idêntica ao masculino, pois a igualdade se apresenta de forma desigual, tendo em vista as diferenças em todos os aspectos. Agrega-se a esse contexto a inexistência da visita íntima para as mulheres no estado do RN, sendo as apenadas infringidas quanto ao direito da sexualidade, além da falta de assistência necessária diante das peculiaridades e necessidades da mulher - como higiene, alimentação, ciclo reprodutivo, a citar o período da menstruação, dentre outros aspectos não respeitados, inerentes à dignidade humana das mulheres ocidentais. As causas citadas, portanto, levam as mulheres apenadas a serem violentadas na totalidade do termo2323 Queiroz N. Presos que menstruam. Rio de Janeiro: Record; 2015..

Sobre a adoção obrigatória no sistema prisional feminino - quando passados/decorridos os seis meses de convivência entre a mãe e o(a) filho(a) e na inexistência de parentes que recebam a tutela da criança -, tal processo também pode ser visualizado/caracterizado como violência contra a mulher, no que diz respeito à maternidade; afirma-se isso diante dos termos presentes na segunda periferia e na presença da fala das participantes. A violência configura-se de tal modo que as crianças saem do convívio da mãe para o desconhecido, portanto, para o não familiar, em termos representacionais e parentais, seja familiar ou lar adotivo. Esse fato rompe o vínculo e violenta a mulher em sua individualidade, bem como a criança, uma vez que a afeta consideravelmente2424 Ormeno GR, Maia JMD, Willians MCA. Crianças com pais ou mães encarcerados: uma revisão da literatura. J Clin Child Adolesc Psychol 2018; 4(2):141-161..

Acrescenta-se a essa periferia o sofrimento encapsulado da mãe ao mencionar o aprisionamento do filho ou, para algumas, como aprisionamento duplo ou ser presa duas vezes, com teor de arrependimento, aprendizado, considerando-se a influência do encarceramento para filho(a), com a privação materna. Observa-se isso, a partir do rompimento da díade mãe-filho, sendo apresentado, no viés da transgressão e do desvio, como lição para mãe e como motivo de aprendizado, o que reflete, diretamente, no(a) “filho(a) preso(a)”, o qual, sem culpa, cumpre uma pena, num primeiro momento, no presídio com a mãe. Noutro, fora do presídio, sem apoio materno e, muitas vezes, de familiares2525 Zenerato J, Parra CR. Filhos do cárcere e suas consequências psicológicas. Psicologia Pt 2018: 1-12..

Na zona de contraste (Quadrante Inferior Esquerdo/QIS), aparecem os termos evocados por menos pessoas - ou seja, mulheres gestantes, lactantes e que vivenciaram a gestação no sistema prisional - com significados representacionais importantes, uma vez que reforçam o núcleo central e a variação com representatividade de subgrupos.

A saudade e a distância referidas nesse quadrante estão ligadas à separação da mãe em relação ao(à) filho(a), após o sexto mês de vida, período imposto pela Lei nº 11.942, de 28 de maio de 2009, que se refere ao tempo de aleitamento materno, indo contra o previsto em lei das organizações nacionais e internacionais de saúde sobre os benefícios de manter o aleitamento materno exclusivo, até a continuidade de dois anos de idade do filho1414 Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.942, de 28 de maio de 2009. Dá nova redação aos arts. 14, 83 e 89 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de Execução Penal, para assegurar às mães presas e aos recém-nascidos condições mínimas de assistência. Diário Oficial da União; 2009..

Agregam-se à zona de contraste o abandono, a solidão e as dificuldades apresentadas pelas mulheres em privação de liberdade no sistema prisional feminino. O encarceramento feminino por si favorece o rompimento dos vínculos familiares e de amizades, restringindo ainda mais as mulheres à sociedade. Os fatores predisponentes para o abandono da mulher pelos vínculos compreendem o perfil socioeconômico dos familiares e amigos, o distanciamento das prisões da zona urbana, além dos estigmas atribuídos a esse cenário, do mesmo modo que os preconceitos estabelecidos, excluindo-as do convívio social e potencializando o sofrimento diante da solidão impetrada2626 Jesus ACF, Oliveira LV, Oliveira EA, Brandão GCG, Costa GMC. O significado e a vivência do abandono familiar para presidiárias. Cien Saud 2015; 8(1):19-25..

Reforça-se que esse acontecimento reflete na esfera biopsicossocial da díade materna mãe-filho, que prejudica, substancialmente, o processo cognitivo do(a) filho(a) e intensifica o sofrimento da mulher-mãe nesse cenário2727 Carneiro ZS, Veríssimo LOR. Gestação e desenvolvimento de bebês em situação de cárcere. Extens Ação 2016; 2(11):39-49.. Evidentemente, além dos fatores propulsores de sofrimento da mulher-mãe, no sistema prisional, a ruptura com data marcada para o sexto mês de vida do(a) filho(a) colabora, intensamente, para o quão difícil é pagar pelo delito cometido nos presídios brasileiros e ser contemplado com fatores que maximizam a pena.

Considerações finais

Evidenciou-se que as representações sociais das mulheres gestantes, lactantes e que vivenciariam a gestação em privação de liberdade, no sistema prisional, sobre a maternidade, apresentaram sentimentos e significados generalizados do “ser mãe na prisão”, os quais direcionam os núcleos de sentidos para o sofrimento vivenciado pela díade materna mãe-filho com a separação. O sistema prisional feminino, quando associado à maternidade, transpõe o aprisionamento e potencializa a pena da mulher pelo delito cometido, uma vez que as singularidades da gestação e do puerpério são comprometidas a partir dos fatores presentes nas entrelinhas do cárcere.

Portanto, faz-se necessária, antes de tudo, a efetivação, em plenitude, das leis e políticas sociais, educacionais e de saúde que regem o universo prisional feminino, juntamente com o olhar ampliado e humanizado dos profissionais e da sociedade sobre o público focalizado. Destaca-se, também, que a mulher apenada, independentemente do crime cometido, é um ser humano com singularidades e necessidades, assim, urge que as equipes de saúde prisional adentrem aos presídios femininos e efetivem os princípios do SUS.

Ademais, pontua-se que este estudo contou com algumas limitações, como as dificuldades encontradas no campo de pesquisa no que concerne à liberação para adentrar aos presídios para a realização da pesquisa. A restrição em não poder estabelecer rotina de coleta de dados, semanalmente, diante das especificidades do sistema prisional, como escolta armada para transferência de mulheres, presença de outras atividades nos espaços do presídio, brigas entre as detentas e alarme para rebelião são exemplos das dificuldades encontradas.

Referências

  • 1
    Anjos CLS, Rodrigues LM. O encarceramento feminino à luz dos direitos humanos. Rev ESMAT 2016; 8(10):49-42.
  • 2
    Braga AGM, Angotti B. Da hipermaternidade à hipomaternidade no cárcere feminino brasileiro. Rev Inter Direit Hum 2015; 12(22):229-239.
  • 3
    Washington Office on Latin America (WOLA). Mujeres, políticas de drogas y encarcelamiento: una guía para la reforma de políticas en América Latina y el Caribe. Washington D.C.: WOLA; 2016.
  • 4
    Ariza LJ, Iturralde M. Una perspectva general sobre mujeres y prisiones en América Latna y Colombia. Rev Derecho Publico 2015; 35:1-25.
  • 5
    Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSS). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. 2ª ed. Brasília: MJSS; 2018.
  • 6
    Fraga PCP, Silva JKN. A participação feminina em mercados ilícitos de drogas no Vale do São Francisco, no Nordeste brasileiro. Tempo Soc 2017; 29(2):135-158.
  • 7
    Moscovici S. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes; 2007.
  • 8
    Abric JC. L'approche structurale des représentations sociales: Développements récents. Psychol Soc 2001; 4:81-103.
  • 9
    Guimelli C, Deschamps JC. Effets de contexte sur la production d´associations verbales: le cas de representations socials des Gitans. Cahier Int Psychol Soc 2000; 47:44-54.
  • 10
    Neves DAB, Brito RC, Códula ACC, Silva JT, Tavares DWS. Protocolo verbal e teste de associação livre de palavras: perspectivas de instrumentos de pesquisa introspectiva e projetiva na ciência da informação. Rev Ponto Acesso 2014; 8(3):64-79.
  • 11
    Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: Um Software Gratuito para Análise de Dados Textuais. Temas Psicol 2013; 21(2):513-518.
  • 12
    Costa TL, Oliveira DC, Formozo GA. Representações sociais sobre pessoas com HIV/AIDS entre enfermeiros. Estud Psicol 2012; 12(1):242-259.
  • 13
    Wachelke J, Wolter R, Matos RF. Efeito do tamanho da amostra na análise de evocações para representações sociais. Liber 2016; 22(2):153-160.
  • 14
    Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.942, de 28 de maio de 2009. Dá nova redação aos arts. 14, 83 e 89 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de Execução Penal, para assegurar às mães presas e aos recém-nascidos condições mínimas de assistência. Diário Oficial da União; 2009.
  • 15
    Amaral MF, Bispo TCF. Mães e filhos atrás das grades: um olhar sobre o drama do cuidar de filhos na prisão. Rev Enferm Contemp 2016; 5(1):51-58.
  • 16
    Lima GMB, Pereira Neto AF, Amarante PDC, Dias MD, Ferreira Filha MO. Mulheres no cárcere: significados e práticas cotidianas de enfrentamento com ênfase na resiliência. Saud Debat 2013; 37(98):446-456.
  • 17
    King EA, Tripodi SJ. The Relationship Between Severe Mental Disorders and Recidivism in a Sample of Women Released from Prison. Psychiatr Q 2018; 89(3):717-731.
  • 18
    Santos IG, Silva IP, Masullo YAG. Women in Jail: a literature review on the reality of women in charge. GEOP 2020; 4(3):255-273.
  • 19
    Pech A, Bloom BE. Children of incarcerated parents: Problems and resilience. In: McShane MD, Cavanaugh M. Understanding juvenile justice and delinquency. Connecticut: Praeger; 2016. p. 122-139.
  • 20
    Soares EMC, Castro AE. Amamentação no cárcere: as entrelinhas para mães e filhos como sujeitos de Direito [Internet]. Âmbito Jurídico; 2018 [acessado 2020 dez 2]. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12515
    » http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12515
  • 21
    Ferrari IF. Mulheres encarceradas: elas, seus filhos e nossas políticas. Rev Mal-Estar Subj 2010; 10(4):1325-1352.
  • 22
    Wacquant L. A aberração carcerária à moda francesa. Dados 2004; 47(2):215-232.
  • 23
    Queiroz N. Presos que menstruam. Rio de Janeiro: Record; 2015.
  • 24
    Ormeno GR, Maia JMD, Willians MCA. Crianças com pais ou mães encarcerados: uma revisão da literatura. J Clin Child Adolesc Psychol 2018; 4(2):141-161.
  • 25
    Zenerato J, Parra CR. Filhos do cárcere e suas consequências psicológicas. Psicologia Pt 2018: 1-12.
  • 26
    Jesus ACF, Oliveira LV, Oliveira EA, Brandão GCG, Costa GMC. O significado e a vivência do abandono familiar para presidiárias. Cien Saud 2015; 8(1):19-25.
  • 27
    Carneiro ZS, Veríssimo LOR. Gestação e desenvolvimento de bebês em situação de cárcere. Extens Ação 2016; 2(11):39-49.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2021
  • Aceito
    15 Jul 2022
  • Publicado
    17 Jul 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br