Resumo
O sucesso do Programa Nacional de DST/Aids no Brasil se deve, em boa medida, à pluralidade de atores sociais engajados no combate à Aids. Este artigo visa analisar a dinâmica de mudanças ocorridas dentro do subsistema da Política Nacional de DST/Aids à luz do modelo de coalizões de defesa (MCD). Trata-se de um estudo que se vale da análise documental dos marcos normativos e de entrevistas com informantes-chave. Os resultados apontam para a formação de três coalizões: Coalizão A (engajamento social), Coalizão B (força governamental), e Coalizão C (parcerias internacionais), que, mediadas pelos parlamentares e instituições científicas, travam disputas traduzindo seus pontos de vista em ações governamentais. Os achados mostram que, embora bem-sucedida, a Política Nacional de DST/Aids enfrentou grandes dificuldades em estabelecer padrões que contemplassem as necessidades da população. Entretanto, mesmo que as coalizões contem com estratégias distintas, apresentam-se como convergentes, pois se direcionam para o mesmo objetivo. Vale ressaltar que, nos dias atuais, a onda conservadora atuante no Brasil apresenta tendência a inviabilizar novas políticas no campo da Aids e ameaça direitos humanos e sociais adquiridos. Tais impactos devem ser analisados em estudos futuros.
Key words:
HIV; Public policy; Civil society; Coalitions
Abstract
The success of the National STD/AIDS Program in Brazil is, to a great extent, associated with the multiplicity of social actors involved in the fight against AIDS. The scope of this article is to analyze the dynamics of changes occurring within the subsystem of national STD/AIDS policy in the light of the advocacy coalition framework (ACF) model. The study is based on documentary analysis of regulatory frameworks and interviews with key informants. The results point to the formation of three coalitions: Coalition A (social engagement); Coalition B (the force of governmental policies/actors); and Coalition C (international partnerships) which, mediated by the House of representatives and scientific institutions, wage disputes to translate their viewpoints into government actions. The data show that, despite being successful, the National STD/AIDS Policy faced great difficulties in establishing standards that addressed the needs of the population. However, although coalitions have different strategies, they are convergent, as they are directed towards the same objectives. It is worth mentioning that nowadays, the conservative wave in Brazil tends to preclude renewed policies in the field of AIDS and may threaten well-established human and social rights. Such impacts need to be analyzed in future studies.
Key words:
HIV; Public policy; Civil society; Coalitions
Introdução
Os pilares da resposta brasileira à epidemia da Aids foram construídos com base no ambiente político de redemocratização do país após o período autoritário. O principal delimitador desse processo foi a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988, que reestabeleceu ao povo brasileiro os direitos à cidadania e afirmou o direito à saúde como fundamental para o ser humano.
Nesse período de intensas mudanças, as agendas políticas de luta da sociedade civil se ampliaram e os movimentos sociais evidenciaram as contradições econômicas e sociais presentes na sociedade brasileira, que determinavam iniquidades e exclusão social11 Souza MA. Movimentos sociais no Brasil contemporâneo: participação e possibilidades no contexto das práticas democráticas. In: Anais do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, 2004; Coimbra. p. 1-16. [acessado 2019 Jun 17]. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4597767
https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti... .
A consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Lei nº 8.080/90, e o seu controle por parte da sociedade, definido pela Lei nº 8.142/90, foram fundamentais para a consolidação da luta contra Aids. Além disso, a participação direta de pessoas que vivem com HIV/Aids (PVHA) no bojo do movimento as transformam de destinatários, supostamente passivos das referidas políticas, em proponentes ativos e protagonistas, segundo uma dinâmica similar àquela verificada nos Estados Unidos da América (EUA), obviamente a partir de marcos sociais e econômicos distintos, como discutido por Shilts22 Shilts R. And the band played on: politics, people, and the AIDS epidemic. New York: St. Martin's Griffin; 2007..
O Brasil identificou desde o início da epidemia (1980), até junho de 2019, um total de 966.058 casos de Aids, com maior concentração nas regiões Sudeste (51,3%) e Sul (19,9%). As regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste correspondem a 16,1%, 6,6% e 6,1% do total de casos, respectivamente33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Boletim Epidemiológico HIV/AIDS. Brasília: MS; 2019.. Segundo os dados do SINAN, declarados no SIM, e registrados no SISCEL/SICLOM, foram notificados 37.161 casos de Aids em 2018. Em 2019, porém, registra-se uma queda acentuada, de mais de 50%, totalizando 15.923 casos no ano44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). TABNET. DATASUS - Departamento de Informática do SUS. Informações de Saúde [Internet]; 2019. [acessado 2019 Jun 17]. Disponível em: www.datasus.gov.br
www.datasus.gov.br... . Portanto, há de se considerar importante subnotificação nos sistemas oficiais de informações em saúde.
Em contraste com esses números, novas tendências da epidemia no mundo apontam para uma reemergência da doença no país. Agências e ativistas internacionais mostram que a Aids voltou a crescer, e que um incremento acentuado de casos é evidente no Brasil em populações mais jovens55 Global Health Policy. The Global HIV/AIDS Epidemic [Internet]; 2019. [acessado 2020 Mai 28]. Disponível em: https://www.kff.org/global-health-policy/fact-sheet/the-global-hivAids-epidemic/
https://www.kff.org/global-health-policy... . A própria distribuição do risco entre sexos foi alterada em função do aumento de casos entre essas populações, com um crescimento significativo entre 2007 e 2019 na faixa etária de 15-24 anos33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Boletim Epidemiológico HIV/AIDS. Brasília: MS; 2019..
A Aids, no Brasil, está desproporcionalmente concentrada entre homens que fazem sexo com homens (HSH), como observado em outros países. Embora tenha sido observada uma tendência de redução na incidência da infecção pelo HIV em vários países, uma fração de HSH ainda troca sexo por dinheiro e usa preservativos de forma inconsistente. Assim, a epidemia tem crescido desproporcionalmente nesse grupo, ampliando as vulnerabilidades e aumentando o risco de infecção pelo HIV66 Kerr LS, Mota RS, Kendall C, Pinho AA, Mello MB, Guimarães MDC, Dourado I, Brito AM, Benzaken A, McFarland W, Rutherford G. HIV among MSM in a large middle-income country. AIDS 2013; 27(3):427-435.
7 Beyrer C, Baral SD, van Griensven F, Goodreau SM, Chariyalertsak S, Wirtz AL, Brookmeyer R. Global epidemiology of HIV infection in men who have sex with men. Lancet 2012; 380(9839):367-77.-88 Alecrim DJD, Ceccato MGB, Dourado I, Kerr L, Brito AM, Guimarães MDC. Fatores associados à troca de sexo por dinheiro em homens que fazem sexo com homens no Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(3):1025-1039..
Os ganhos continuam a ser obtidos no esforço de controlar a epidemia, especialmente no que diz respeito a testes e alternativas de tratamento99 Join United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAIDS). Global Aids Update 2019: communities at the centre defending rights breaking barriers reaching people with HIV services. Geneva: UNAIDS, 2019.. Entretanto, as expectativas foram parcialmente frustradas em relação à redução da incidência e mortalidade da tuberculose (TB) em PVHA, a despeito de um inegável declínio de formas mais graves, extrapulmonares e disseminadas. Estima-se que 11% dos casos de TB ocorrem em pessoas soropositivas, e esta é ainda a principal causa de morte nessa população1010 Nogueira BMF, Rolla VC, Akrami KM, Kiene SM. Factors associated with tuberculosis treatment delay in patients co-infected with HIV in a high prevalence area in Brazil. PLOS ONE 2018; 13(8):e0202292.. E apesar do aumento na proporção de novos casos de tuberculose testados para infecção por HIV nos últimos anos (76,3% em 2016), uma testagem abrangente para HIV ainda é um desafio1111 Rolla VC, Trajman A, Kawamura M, Cavalcante S, Soares E, Perini FB, Carvalho ACC, Croda J, Silva JRL. A summary of the proceedings of a meeting on the treatment of latent tuberculosis infection in target populations in Brazil 2020. J Bras Pneumol 2020; 46(4):e20200023..
Somado a isso, com a ampla disponibilidade da terapia antirretroviral, esse grupo vive mais tempo e tende a apresentar taxas mais elevadas de doenças não transmissíveis, à medida que envelhece e utiliza terapias potentes ao longo de décadas. Com isso, apresentam mortalidade associada a doenças relacionadas a distúrbios metabólicos e câncer com multimorbidades associadas a vários fatores como: perda da qualidade de vida conquistada com o advento da terapia antirretroviral potente, polifarmácia, fragilidades orgânicas estruturais1212 Castilho JL, Escuder MM, Veloso V, Gomes JO, Jayathilake K, Ribeiro S, Souza RA, Ikeda MI, Alencastro PR, Tupinanbas U, Brites C, McGowan CC, Grangeiro A, Grinsztejn B. Trends and predictors of non-communicable disease multimorbidity among adults living with HIV and receiving antiretroviral therapy in Brazil. J Int AIDS Soc 2019; 22(1):e25233..
Atualmente no Brasil, a ascensão de um governo moralista-conservador tem implementado mudanças preocupantes na agenda política governamental, com a perda de autonomia do Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais, rebaixado a “Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis”, retirando a Aids do centro do debate. Entretanto, o impacto mais profundo é no financiamento do programa de DST/Aids, devido às modificações no orçamento original, em decorrência da incorporação em um orçamento conjunto que abrange diversas doenças crônicas transmissíveis. Tais medidas comprometem a noção de justiça social, de cunho liberal-igualitária, que está na base do SUS1313 De Mario CG, Barbarini TA. A perversão da agenda da saúde pública brasileira: da saúde como direito universal à cobertura universal em saúde. Revista Estado y Políticas Públicas 2020; 14(1):69-91..
A crise de valores/padrões comportamentais instaurada no Brasil - na qual questões de gênero e sexualidade, direitos humanos e ativismo político se tornaram objeto de disputa e questionamentos - modificou a agenda governamental1414 Agostini R, Rocha F, Melo E, Maksud I. A resposta brasileira à epidemia de HIV/AIDS em tempos de crise. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4599-4604.. Portanto, antecipa-se que este estudo se refere a estratégias políticas estabelecidas antes da emergência do presente governo e dos desmontes significativos da política pública de saúde no Brasil.
Visando analisar a formulação e a dinâmica de mudanças na política nacional de DST/Aids, este artigo se valerá dos aportes teóricos do Modelo de Coalizões de Defesa (MCD), proposto por Paul Sabatier1515 Sabatier P. An advocacy coalition framework of policy change and the role of policy-oriented learning therein. Policy Sciences 1988; 21(1):129-168., e das sucessivas revisões decorrentes do debate teórico ao longo dos anos1616 Sabatier P, Weible CM. The advocacy coalition framework: Innovations and Clarifications. In: Sabatier PA, editor. Theories of the policy process. Boulder: Westview; 2007. p. 189-22..
Metodologia
Trata-se de um estudo que teve início em fevereiro de 2017 e término em março de 2018, valendo-se da análise documental dos marcos normativos e de entrevistas com informantes-chave, captados a partir de seu reconhecimento na luta social contra a Aids, para analisar a construção da Política Nacional de DST/Aids com base no Modelo de Coalizões de Defesa (MDC). As etapas metodológicas estão descritas no diagrama metodológico, disponível na Figura 1.
A construção e o desenvolvimento de um quadro analítico adaptado à Política Nacional de DST/Aids nos permite compreender as mudanças na agenda governamental frente a uma conjuntura crítica, examinando em detalhes uma série de fatores que influenciaram o processo político decisório.
Para fins do presente estudo, consideramos: coalizões de defesa como um conglomerado de atores sociais que se unem a partir de crenças similares, a depender do grau de coordenação; sistema de crenças, um conjunto de valores, ideias e objetivos e/ou posicionamento que auxiliam na formação de uma coalizão de defesa; e subsistema de política, um conjunto de atores sociais com atuação em determinado escopo geográfico que traduzem suas crenças em questões de política1515 Sabatier P. An advocacy coalition framework of policy change and the role of policy-oriented learning therein. Policy Sciences 1988; 21(1):129-168.,1616 Sabatier P, Weible CM. The advocacy coalition framework: Innovations and Clarifications. In: Sabatier PA, editor. Theories of the policy process. Boulder: Westview; 2007. p. 189-22..
Por fim, destaca-se que a pesquisa seguiu as normas que regulamentam as pesquisas envolvendo seres humanos contidas na resolução nº 466/12 CNS/CONEP, sendo aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola Nacional de Saúde pública sob CAAE 68643517.5.0000.5240 - parecer nº 2.190.051.
Resultados e discussão
Os resultados e a respectiva discussão foram organizados em duas partes: (A) apresentação e projeção das coalizões de defesa da Aids no Brasil, e (B) a Aids na agenda governamental e a implementação dos principais marcos normativos.
(A) Apresentação e projeção das coalizões de defesa da Aids no Brasil
Seffner e Parker1717 Seffner F, Parker R. Desperdício da experiência e precarização da vida: momento da resposta brasileira à AIDS. Interface (Botucatu) 2016; 57(20):293-304. descrevem que o processo de enfrentamento à Aids no Brasil foi caracterizado pelo esforço em analisar de modo inovador a conjuntura na qual emerge, assim como as sequências de eventos e situações decorrentes. No âmbito desse desenvolvimento, destacam-se elementos como a expansão do movimento homossexual, nos termos da etnografia clássica de MacRae1818 MacRae E. A construção da igualdade: política e identidade homossexual no Brasil da "abertura". Salvador: EDUFBA; 2018, e uma maior aproximação de profissionais e ativistas.
Inicialmente, as redes sociais estavam relacionadas a solidariedade e empatia e vinculadas a processos de natureza política. Cabe observar, entretanto, que esses movimentos de identificação e solidariedade não ocorreram de modo universal. O padrão dominante de movimentos e conflitos sociais costuma envolver dinâmicas de suporte mútuo que coabitam com conflitos, muitas vezes intensos. Embates foram observados, inclusive, no âmbito do próprio movimento gay1818 MacRae E. A construção da igualdade: política e identidade homossexual no Brasil da "abertura". Salvador: EDUFBA; 2018.
A construção da política de Aids deve, portanto, ser observada e analisada por comparação com outras políticas em geral e a políticas de controle de epidemias em particular, com o recurso a modelos analíticos que são familiares para os estudiosos de políticas governamentais e sociais. Considerando-se o amplo espectro das políticas públicas e a literatura especializada, há padrões e semelhanças observáveis quando se trata de processos decisórios, sejam eles de caráter incremental1919 Lindblom C. The Science of Muddling Through. Public Administration Review 1959; 19:718-723. ou mais orientados à dinâmica de atores2020 Kingdon J. Agendas, alternatives and public policies. Boston: Little Brown; 2011,2121 Sabatier PA; Jenkins-Smith HC. The advocacy coalition framework: an assessment. In: Sabatier PA, editors. Theories of the Policy Process. Boulder: Westview Press; 1999. p. 117-166..
No âmbito de tais padrões ou molduras emergem e se desenvolvem as singularidades típicas de todas as situações em que políticas estejam envolvidas. As singularidades das políticas relacionadas à Aids são percebidas na literatura especializada, por exemplo, quando se vê que toda a ênfase e protagonismo presentes no combate à Aids não se repete para viroses que compartilham aspectos epidemiológicos similares, como a hepatite C2222 Bastos FI. AIDS na terceira década. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..
Por sua vez, há semelhanças em relação a outras políticas no setor de saúde no que se refere ao embate de ideias e de interesses na arena democrática, mediado pelas condutas de atores sociais e por seus valores e estratégias.
Destaca-se a capacidade dos grupos de pressão em persuadir os formuladores de políticas, ao mesmo tempo em que se observa uma receptividade das entidades governamentais. Assim, as crenças comuns de um conjunto de atores sociais, sejam eles públicos ou privados, afetam o desenvolvimento das políticas quanto ao modo como esses atores percebem os problemas e as oportunidades e concebem respostas e estratégias frente aos mesmos2323 Silva RD. O papel das coalizões de defesa da agricultura nas agendas da política comercial externa brasileira. Encuentro Latinoamericano 2016; 3(1):82-97..
Neste artigo, o modelo analítico utilizado segue a dinâmica das coalizões de defesa de políticas. No MDC adaptado para o presente estudo, identificam-se três grupos predominantes: Coalizão A - engajamento social; Coalizão B - força governamental; e Coalizão C - parcerias internacionais, apresentados no Quadro 1.
Os sistemas de crenças impulsionam as tomadas de decisão e são os principais responsáveis por determinar a direção que determinada coalizão procurará dar a um programa ou política pública2424 Weible CM, Sabatier PA, McQueen K. Themes and Variations: Taking stock of the Advocacy Coalition Framework. The Policy Studies Journal 2009; 37(1):121-140.. À medida que as coalizões de defesa se organizam, estas competem para traduzir as crenças em políticas públicas, e assim participam de processos contínuos de aprendizagem (policy-oriented learning − aprendizado orientado à política). Esse modelo de aprendizado é o pilar da dinâmica interna desse subsistema e influencia a percepção dos policy makers (implementadores de políticas), atuando de forma a fortalecer as coalizões às quais estão vinculadas2525 Weiss CH. Research for policy's sake: The enlightenment function of social research. Policy Analysis 1977; 3(4):531-545..
Com relação à implantação da Política Nacional de DST/Aids, observou-se que as coalizões de defesa, embora apresentem estratégias diferentes, comungam do mesmo objetivo: conter a disseminação da epidemia e promover a saúde de indivíduos e comunidades. Logo, apresentam-se como coalizões de defesa convergentes2626 Vicente VEB; Calmon, PCDP. A análise de políticas públicas na perspectiva do modelo de coalizões de defesa. In: 35º Encontro da ANPAD. Rio de Janeiro; 2011. p. 1-15.: O movimento da Aids em todo o país foi uma correlação de forças: organizações governamentais e não governamentais, compreensão de agravos, e de certa forma aglutinação de pessoas com características semelhantes e que [tinham uma coisa de projeto-sociedade], não apenas de vencer uma doença” (entrevista 01: ex-gestora pública).
No entanto, as questões associadas ao amplo e diversificado plano das organizações religiosas no Brasil merecem atenção especial. Neste estudo, a ação convergente foi identificada a partir dos grupos atuantes na coalizão de defesa. Entretanto, não se deve ignorar o fato de que diversas igrejas, especialmente as mais descentralizadas, como no caso dos grupos evangélicos, tiveram também uma participação ativa no bloqueio às políticas governamentais no período estudado. Tais atores estabelecem estruturas de veto de políticas que, de resto, existem em todos os processos políticos. Há informação jornalística abundante sobre esses movimentos religiosos2727 Stiftung HB. Religião e política: os evangélicos no poder [Internet]. 2012. [acessado 2020 Jun 3]. Disponível em: https://br.boell.org/pt-br/2012/05/08/religiao-e-politica-os-evangelicos-no-poder
https://br.boell.org/pt-br/2012/05/08/re... .
Em geral, existe dentro de um subsistema uma coalizão dominante que, devido à sua grande influência no processo político, consegue impor sua visão no processo de implementação das políticas públicas, o que depende dos recursos disponíveis (dinheiro, expertise, apoios políticos)2828 Grisa C. As ideias na produção de políticas públicas: contribuições da abordagem cognitiva. In: Bonnal P, Leite SP, organizadores. Análise comparada de políticas agrícolas: uma agenda em transformação. Rio de Janeiro: Mauad; 2011..
As políticas públicas são conceituadas como percepções ou, em sentido valorativo, sistemas de crença (belief systems) que incorporam teorias das diferentes coalizões sobre como atingir determinados objetivos. Os sistemas de crenças estão organizados de forma tripartite: o núcleo duro (deep core), o núcleo político (policy core) e os aspectos secundários (secondary aspects)2121 Sabatier PA; Jenkins-Smith HC. The advocacy coalition framework: an assessment. In: Sabatier PA, editors. Theories of the Policy Process. Boulder: Westview Press; 1999. p. 117-166..
O deep core (DC) integra os axiomas normativos e ontológicos fundamentais. São crenças difíceis de ser modificadas. No policy core (PC) se encontram as estratégias para atingir os objetivos do deep core dentro de um subsistema; e os secondary aspects (SA) correspondem às decisões instrumentais e às informações necessárias para implementar o policy core. A estrutura organizacional do sistema de crenças no subsistema de Aids também pode ser observada no Quadro 1.
A principal unidade de análise do MDC é o subsistema de políticas, espaço no qual um conjunto de atores individuais ou coletivos discutem determinada questão de política pública e regularmente tentam influenciar as decisões naquele domínio1515 Sabatier P. An advocacy coalition framework of policy change and the role of policy-oriented learning therein. Policy Sciences 1988; 21(1):129-168.. No entanto, para uma análise coerente do contexto dos subsistemas, devem ser considerados os eventos exógenos (estáveis e dinâmicos) e os eventos endógenos, ou internos, onde são gerados as políticas e os programas.
Para isso, o MDC conta com um quadro analítico capaz de estruturar e subsidiar a análise de um subsistema. A partir do modelo heurístico apresentado por Weible, Sabatier e McQueen24 em seu estudo seminal, para os fins deste artigo adaptamos o referido quadro visando analisar o subsistema de Aids no Quadro 2.
O subsistema de Aids é composto de diferentes estratégias políticas e da competição entre as coalizões. Esse espaço é influenciado também por fatores endógenos e exógenos. Entre os fatores endógenos, com maior potencial disparador do processo político e que configuram o predomínio de dinâmicas mais associadas a conjunturas políticas, cabe mencionar: 1) pânico social, identificado como característica-chave do problema, um dos principais fatores que impulsionaram a tomada de decisão governamental; 2) desigualdades sociais como elemento de contínua pressão política, econômica e social sobre os governos, especialmente em função da vulnerabilidade social disseminada; 3) estigmatização do preservativo, considerado por grupos conservadores como potencial fomentador de relações sexuais precoces e promíscuas, bem como da prostituição e do homossexualismo; 4) normas comportamentais impostas à sociedade e que podem ser descontruídas ou alteradas por demanda sociais, como foi o caso dos testes anti-HIV obrigatórios na admissão de trabalhadores em certas empresas/serviços públicos; 5) aumento do número de casos em mulheres, crianças e hemofílicos, fato que gerou mudanças na opinião pública, desconstruindo conceitos de que a Aids seria uma doença exclusiva de uma minoria gay; e 6) pauperização da epidemia, definida como mudanças nos padrões da doença em termos socioeconômicos, e que afetam substancialmente o subsistema.
Como fatores exógenos associados à dinâmica das principais instituições nacionais, destacamos: 1) redemocratização do país, responsável pelas alterações no padrão político e na reestruturação do processo democrático; 2) construção do Sistema Único de Saúde (SUS), macropolítica responsável por estabelecer os preceitos do direito universal à saúde como direito de todos e dever do Estado.
A validade desses fatores depende das estruturas de oportunidade das coalizões, aqui definidas pelo maior grau de consenso devido à pressão social e às mudanças no regime político (arcabouço estrutural que sustenta as demandas coletivas). Entretanto, os baixos recursos financeiros e a forte competição orçamentária são os principais fatores limitantes das estruturas de oportunidades das coalizões.
As coalizões presentes no subsistema, com base em suas crenças, iniciam o processo de disputa e produção de políticas, por meio de estratégias específicas. Os policy brokers (mediadores), lideranças, interessados e empreendedores políticos são os responsáveis por induzir acordos políticos. Para autores clássicos como Kingdon2020 Kingdon J. Agendas, alternatives and public policies. Boston: Little Brown; 2011, os empreendedores ocupam o centro da mudança política ao conectar fluxos de políticas segundo janelas de oportunidades. Em modelos de coalizões de defesa, o papel desses empreendedores se assemelha ao de mediadores que participam ativamente dos movimentos e fóruns de discussão de políticas e parlamentares, enquanto instituições científicas atuam seguindo o padrão de advocacy e estabelecem parcerias e redes sociais de diversos tipos.
O campo da Aids é atravessado pela multiplicidade de atores sociais e, na maioria das vezes, o status dos indivíduos aderidos a instituições é multifacetado, entrelaçado a atributos como liderança pessoal, científica e posição em determinado emprego institucional ou enquanto agente governamental. Tais formas de inserção institucional permitem que se movimentem e articulem mais facilmente ações dentro da arena política, o que transforma seu status de poder em suporte político às coalizões e favorecem as articulações dentro do subsistema de Aids. As ações preventivas e assistenciais direcionadas a PVHA são reflexos desse processo de disputa dentro do subsistema.
Em meio a esse processo, foram apontados fatores como a ausência ou insuficiência de recursos públicos para financiar ações de saúde. No entanto, as parcerias e as cooperações internacionais proporcionaram empréstimos ao governo para que este investisse em ações destinadas ao controle da epidemia, além de recursos federais próprios direcionados aos estados e municípios para financiar ações preventivas.
A implantação da Política Nacional de DST/Aids, portanto, é resultado dos processos de interação das coalizões no âmbito do subsistema. É considerada como desfecho de políticas (policy outputs) do subsistema da política de Aids e, consequentemente, gera inúmeras mudanças nas regras institucionais em vigência.
Finalizando o processo, os impactos das políticas públicas, considerados neste estudo como impactos positivos, determinaram mudanças em indicadores de morbidade e mortalidade. A própria dinâmica de casos novos é afetada pelos efeitos no tratamento na redução do número de infectantes e a consequente diminuição no número de casos novos. A cronificação da doença no plano individual também resulta de efeitos positivos do acesso ampliado ao tratamento.
(B) Aids na agenda governamental e a implementação dos principais marcos normativos
A construção de uma agenda é complexa e requer um entendimento aprofundado das estratégias utilizadas para a identificação dos problemas, do debate em torno da construção de alternativas e dos atores envolvidos no processo2929 Pinto ICM. Construção da agenda governamental: atores, arenas e processo decisório na saúde. Organ Soc 2008; 15(44):13-23..
No campo da Aids, a multiplicidade de atores sociais, a redemocratização do país e a criação do SUS elevaram o patamar da resposta à epidemia no Brasil. Neste contexto, se trabalhou muito essa questão do direito e do dever do Estado relacionado a ações direcionadas à Aids (entrevista 02: ex-gestora pública).
O pano de fundo para o desenvolvimento da política de Aids foi a própria criação do SUS, sem o qual teríamos dificuldades inerentes à ausência de sistemas de caráter público e nacional, o que se mostrou um importante obstáculo em muitos países. Décadas depois, a ausência de um sistema nacional de saúde tem sido associada à contraditória e falha resposta dos EUA à pandemia de COVID-193030 Dorsett M. Point of no return: COVID-19 and the U.S. healthcare system: an emergency physician's perspective. Sci Adv 2020; 6(26):eabc5354..
As primeiras propostas de implantação de uma política direcionada a PVHA se deu em âmbito local. Nota-se que diversos municípios de maior porte e estrutura no âmbito da saúde e, ao nível das unidades intermediárias da federação, o estado de São Paulo, valendo-se de sua autonomia e maiores recursos, produziram ações direcionadas à prevenção da doença, tendo em vista que o próprio Ministério da Saúde considerava a Aids uma doença de uma minoria rica e que não exigiria políticas especialmente focalizadas3131 Galvão J. AIDS no Brasil: agenda de construção de uma epidemia. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora ABIA; 2000.. Sendo assim, considera-se que, no início da epidemia, o governo federal desenvolveu um papel secundário, basicamente ampliando suas responsabilidades a partir da implantação da Política Nacional de DST/Aids.
A implantação do programa de Aids no estado de São Paulo no ano de 1985 foi o pontapé inicial da resposta brasileira à epidemia. No entanto, apenas em 1985 o governo brasileiro criou a Coordenação Nacional de Doenças Sexualmente Transmitidas e Aids e divulgou as primeiras diretrizes para o programa. Neste artigo, para fins de organização da pesquisa, os normativos foram sumarizados em temas apresentados no Quadro 3.
Tema I: controle e acesso aos medicamentos mostram que as políticas de contenção a epidemias de HIV/Aids por meio de medidas preventivas marcam o início das ações governamentais. O ano de 1985 representa um marco na história de enfrentamento da Aids em todo o mundo, principalmente com a comercialização dos testes anti-HIV e o estabelecimento das diretrizes do Programa Nacional de DST/Aids (PN Aids)3232 Teodorescu LL, Teixeira PR. História da AIDS no Brasil: as respostas governamentais à epidemia de AIDS, v. 1. Brasília: Ministério da Saúde; 2015..
As medidas terapêuticas do governo brasileiro frente às dimensões tomadas pela epidemia foram normatizadas em 1988, por meio da Portaria Interministerial nº 3195/88, com ênfase em ações de prevenção, por intermédio de Campanhas Internas de Prevenção da Aids (CIPAS). A redemocratização do país e a criação do SUS foram essenciais nesse processo.
A primeira terapia antirretroviral foi disponibilizada no mercado internacional ainda na década de 1980. A terapia com Zidovudina (AZT) teve repercussão em toda a sociedade. Nessa fase, a Aids já não era considerada uma doença nova, e as premissas principais para o seu controle estavam estabelecidas3232 Teodorescu LL, Teixeira PR. História da AIDS no Brasil: as respostas governamentais à epidemia de AIDS, v. 1. Brasília: Ministério da Saúde; 2015.. Contudo, à medida que o uso da monoterapia com AZT se disseminou, dois problemas graves emergiram: os seus efeitos adversos graves e a emergência da resistência viral, no âmbito de cada paciente em tratamento e da população3333 Wainberg MA, Dascal A, Mendelson J. Anti-retroviral strategies for AIDS and related diseases. Can J Infect Dis 1991; 2(3):121-128..
Embora o governo tenha estabelecido a organização do acesso e da distribuição de AZT, com da Portaria 21 de março de 1995, o maior avanço na trajetória da Aids (reconhecido mundialmente) ocorreu em 1996, com o advento da terapia tripla antirretroviral, que representou um avanço substancial no tratamento da doença e um incremento dramático de sua efetividade e resolutividade. A aprovação da Lei nº 9.313, de 13 de novembro de 1996, estabeleceu essa terapia como um direito assegurado por lei a todas as PVHA. Além de servir como um instrumento legal para a reinvindicação de direitos, essa lei marca o início de grandes mudanças no âmbito da política de assistência farmacêutica às pessoas soropositivas3434 Oliveira MA, Esher AFSC, Santos EM, Cosendey MAE, Luiza VL, Bermudez JAZ. Avaliação da assistência farmacêutica às pessoas vivendo com HIV/AIDS no Município do Rio de Janeiro. Cad Saude Publica 2002; 18(5):1429-1439..
Contudo, novos avanços relacionados ao HIV/Aids foram concretizados pelas Portarias nº 21 e nº22, de 2017: o acesso à profilaxia pré-exposição (PrEP) para populações sob maior risco de adquirir o HIV, a incorporação do Tenofovir associado à Entricitabina (TDF/FTC 300/200 mg) como PrEP e a aprovação do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da PrEP foram estabelecidas no âmbito do SUS.
Novas demandas políticas foram introduzidas nas arenas de debates. As coalizões se fortaleceram politicamente e grandes esforços foram feitos em direção a políticas farmacêuticas mais abrangentes e inclusivas, bem como o fomento contínuo às inovações terapêuticas. Reconhecido por suas políticas de acesso universal a medicamentos para PVHA, o Brasil ganhou lugar de destaque no cenário mundial da luta contra a doença.
E é nesse cenário que emerge a indústria farmacêutica, estabelecendo amplos debates e impulsionando intensas negociações com as coalizões já estabelecidas no subsistema de Aids, por exemplo desqualificando a emergência em diversos países de renda média de medicamentos genéricos e similares, com ataques à produção brasileira e à mais robusta indústria farmacêutica indiana3535 Kapstein EB, Busby JW. Aids drugs for all: social movements and market transformation. London: Cambridge University Press; 2013.. A intensificação da proteção da propriedade intelectual na esfera global implicou mudanças na agenda política, tendo em vista o forte conflito entre concessão de patentes farmacológicas e o acesso da população aos medicamentos. Nesse período, frente aos altos custos de medicamentos e, consequentemente, ao acesso limitado aos mesmos, o regime de propriedade intelectual e o movimento de luta contra Aids entraram em colisão3636 Meiners CMMA. Patentes farmacêuticas e saúde pública: desafios à política brasileira de acesso ao tratamento anti-retroviral. Cad Saude Publica 2008; 24(7):1467-1478..
Tema II: licenciamento compulsório registra normativos polêmicos sobre as patentes farmacêuticas, exemplificadas pelas portarias nº 985, de 2005, nº 886, de 2007, por meio das quais demonstra interesse público sobre o Lopinavir + Ritonavir e o Efavirez, respectivamente, e pelo Decreto nº 6.108, de maio de 2007, e sua respectiva prorrogação.
A grande polêmica sobre as patentes farmacêuticas demonstra a dualidade dos discursos: de um lado, grupos defensores da indústria farmacêutica alegam ser importante fortalecê-la, pois a mesma produz ganhos e inovações terapêuticas, comprovados pela redução das taxas de mortalidade e morbidade da população. Por outro lado, observa-se a formação de grupos contrários a esse ideário, que afirmam que essa relação causal (patente x inovação) pode produzir efeitos nocivos associados à imposição de barreiras de acesso ao tratamento e gerar consequências adversas no campo da saúde pública3535 Kapstein EB, Busby JW. Aids drugs for all: social movements and market transformation. London: Cambridge University Press; 2013..
Após várias tentativas de acordo frustradas para redução de preços dos medicamentos com as empresas farmacêuticas, o governo brasileiro, via Ministério da Saúde, passou a adotar uma postura mais agressiva, ameaçando por diversas vezes utilizar o instrumento do licenciamento compulsório, previsto no conjunto de cláusulas da “Rodada de Doha” sobre propriedade intelectual em casos de ameaça iminente a saúde pública e segurança dos estados nacionais3737 Reis R, Vieira MF, Chaves G. Access to medicines and intellectual property in Brazil: a civil society experience. In: Reis R, Terto Jr V, Pimenta MC, editors. Intellectual property rights and access to ARV medicines: civil society resistance in the Global South. Rio de Janeiro: ABIA, 2009.. Frente ao alto custo dos medicamentos e ao aumento expressivo dos gastos, o governo federal promulgou o Decreto nº 6.108, de 2007, que concede licenciamento compulsório, por interesse público, de patentes referentes ao Efavirenz para fins de uso público não comercial. E em 4 de maio de 2012, esse prazo foi prorrogado até o ano de 2017 pelo Decreto nº 7.723.
Tema III: incentivos financeiros a ações de combate à Aids mostram que o financiamento, a princípio, procurava privilegiar basicamente dois aspectos: ações de prevenção e ações assistenciais, desempenhadas, em grande parte, pelas organizações da sociedade civil.
Entretanto, o acordo de empréstimo com o Banco Mundial (BM) suscitou uma grande inflexão no PN Aids, que passou a contar com recursos substanciais para o controle da epidemia no Brasil3131 Galvão J. AIDS no Brasil: agenda de construção de uma epidemia. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora ABIA; 2000.. No período 1994-2007, o PN Aids contou com três acordos de empréstimo com o BM, com uma contrapartida paritária do governo brasileiro visando financiar as ações de prevenção e tratamento da Aids, totalizando 425 milhões de dólares. Os três empréstimos tinham características semelhantes: ações de prevenção implementadas por ONGs; capacitação de serviços de saúde para pacientes com Aids; e desenvolvimento institucional3838 World Bank. Project performance assessment report Brazil: first and second AIDS and STD control projects. Sector and Thematic Evaluation Group Operations Evaluation. 1993..
Em relação ao financiamento destinado a ONGs para desempenhar ações de prevenção, as coalizões se viram às voltas com grandes empecilhos. A equipe do BM via com desconfiança essa proposta e recuou ao conhecer as parcerias já estabelecidas entre as ONGs brasileiras e o Programa Nacional3232 Teodorescu LL, Teixeira PR. História da AIDS no Brasil: as respostas governamentais à epidemia de AIDS, v. 1. Brasília: Ministério da Saúde; 2015.. A fim de garantir a transparência no uso dos recursos financeiros associados ao PN Aids, o governo brasileiro aprovou normas relativas ao Sistema de Monitoramento da Política de Incentivo, por meio da Portaria nº 1.679, de 2004, a qual estipula que todas as secretarias de Saúde dos estados, do Distrito Federal e dos municípios deveriam preencher o instrumento de acompanhamento de despesas e gastos de recurso público.
Novos debates e pressões sociais conduziram as entidades governamentais a instituir a Portaria nº 1.824, de 2004, que dispõe sobre as normas relativas aos recursos adicionais destinados às esferas governamentais para apoio financeiro a ações desenvolvidas por casas de apoio para adultos vivendo com HIV/Aids.
Na última década, os normativos fazem referência à ampliação do incentivo financeiro às casas de apoio para PVHA, por intermédio da Portaria nº 2.555, de 2011, complementada pela Portaria nº 3.276, de 2013 (a qual define escopo, regras e monitoramento do financiamento dos serviços de vigilância, prevenção e controle de DST/Aids, incluindo o apoio às organizações da sociedade civil e casas de apoio a PVHA), e à organização do financiamento segundo normas de cooperação mútua entre a administração pública e as organizações da sociedade civil (OSC), a partir da Lei nº 1.3019, de 2014.
Há mudanças significativas nas políticas públicas ao longo dos anos, desde os primeiros casos de Aids até os dias atuais.
Tema IV: direitos e benefícios das pessoas vivendo com HIV/Aids refletem sobre a forma como as coalizões de defesa foram capazes de pressionar os órgãos governamentais a implantar, em todo o país, políticas relacionadas à proteção dos direitos humanos fundamentais das PVHA, assim como instituir, em âmbito nacional, medidas que visem à redução da discriminação das PVHA.
Esse processo de transformação teve início com a Lei nº 7.670, de 1988, que estabelece benefícios às pessoas vivendo com HIV/Aids, e é fortalecido pela portaria interministerial nº 796, de 1992, que traz recomendações sobre a proteção da dignidade e dos direitos humanos a esse grupo. As mudanças significativas no que diz respeito ao processo de trabalho foram concretizadas em maio de 2010, pela Portaria nº 1.246, de 2010, ao proibir as empresas de realizarem, compulsoriamente, o teste anti-HIV em seus funcionários. No mesmo ano, foi publicada a Instrução Normativa INSS/PRES nº 45, que estabelece a qualquer brasileiro o direito de concessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, englobando, entre outras, as PVHA, sem a necessidade de cumprir o prazo mínimo de contribuição e desde que pertença à categoria de segurado.
Um grande exemplo de esforços que estão sendo feitos a fim de desconstruir os preconceitos e reduzir o efeito devastador sobre as pessoas vivendo com HIV/Aids foi a publicação da Lei nº 12.948, de 12 de junho de 2014, que criminaliza condutas discriminatórias contra PVHA e o paciente com Aids. Porém, ainda assim persistem práticas discriminatórias e estigmas evidentes em nossa sociedade, o que prejudica o processo terapêutico, corroborando o UNAIDS99 Join United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAIDS). Global Aids Update 2019: communities at the centre defending rights breaking barriers reaching people with HIV services. Geneva: UNAIDS, 2019. ao afirmar que o estigma e a discriminação estão entre os principais obstáculos para prevenção, tratamento e cuidado em relação ao HIV.
Com base no que foi debatido, considera-se que o sucesso da Política Nacional de DST/Aids se deve, em grande parte, à pluralidade de atores sociais envolvidos no processo e à convergência das coalizões de defesa. Entretanto, mesmo que se note uma tendência à cronificação (e, com isso, a uma hipotética “normalização”) da doença (ou seja, sua possível equiparação às demais condições crônicas, como a diabetes tipo II e a hipertensão arterial), os esforços precisam ser contínuos, uma vez que a emergência de um governo conservador-autoritário após a eleição de 2018 pode ameaçar os direitos humanos e sociais conquistados aos longos dos anos.
Considerações finais
Este estudo considera que as ações destinadas à Aids (1980-2017) partiram de um viés democrático e resultaram em decisões mais equilibradas. Organizações da sociedade civil, entidades governamentais e cooperações internacionais formaram um tripé imensamente necessário para o sucesso da política nacional de DST/Aids.
A aplicação do MCD à política de Aids revelou que, embora os conflitos estivessem presentes dentro do subsistema, evidenciado pelas crenças distintas, coalizões diferentes e estratégias singulares, é possível desenvolver políticas públicas por meio do compartilhamento de crenças entre essas coalizões. Portanto, embora apresentem estratégias diferentes, as coalizões de defesa contra a Aids coexistem e estabelecem constantes relações de mutualismo. Nesses casos, observa-se uma política construída via intersetorialidade e apoio mútuo.
Ainda que muitos pesquisadores considerem que este modelo teórico seja inviável se aplicado fora do cenário norte-americano, este estudo evidenciou que o MDC adaptado à Política Nacional de DST/Aids é capaz de analisar as articulações dentro do subsistema brasileiro. Entretanto, pesquisas sobre a aplicação do MDC à área de saúde são escassas e pouco exploradas, o que limita a comparabilidade do presente estudo. Sugere-se que novas pesquisas sejam realizadas para se chegar a resultados mais fidedignos e consistentes, e que contemplem os diferentes aspectos da teoria.
Por fim, ressalta-se que, atualmente, a onda conservadora vigente no Brasil, caracterizada pelo “discurso de ódio”, pela falta de diálogo com a sociedade em questões de gênero, sexualidade e prevenção, justificada pelo resgate da família tradicional, os ataques governamentais às organizações da sociedade civil e o desmonte do SUS têm comprometido o fortalecimento de políticas públicas no campo da Aids. Assim, este estudo deve ser complementado por análise de novas coalizões que surgiram no cenário atual, os seus reflexos no sistema político decisório e as modificações na agenda governamental da Aids.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
11 Mar 2022 - Data do Fascículo
Mar 2022
Histórico
- Recebido
15 Ago 2020 - Aceito
05 Jan 2021 - Publicado
07 Jan 2021