A campanha de vacinação contra o SARS-CoV-2 no Brasil e a invisibilidade das evidências científicas

Ethel Maciel Michelle Fernandez Karina Calife Denise Garrett Carla Domingues Ligia Kerr Margareth Dalcolmo Sobre os autores

Resumo

O presente texto trata de refletir sobre a campanha de vacinação contra COVID-19 no Brasil à luz da consideração das evidências científicas no processo de tomada de decisão. O Brasil possui um dos maiores e mais completos programas de vacinação do mundo, o Programa Nacional de Imunizações (PNI). Infelizmente, no contexto atual, com as interferências políticas do governo federal, o PNI perdeu seu protagonismo na condução da campanha de vacinação contra a COVID-19. Apesar de ser uma campanha de vacinação com muito potencial e uma das mais aceitas pela população entre os países no mundo, apresentou muitos problemas e deixou diversas lacunas no cenário brasileiro. Nesse sentido, é fundamental que as evidências científicas de qualidade produzidas nesse período possam guiar uma remodelagem constante da estratégia de vacinação. Quatro pontos merecem ser destacados: 1) o intervalo entre as doses; 2) a intercambialidade entre vacinas; 3) a vacinação em adolescentes; e 4) a necessidade de melhores evidências para definir a estratégia de vacinação em certos grupos e faixas etárias.

Palavras-chave:
COVID-19; Vacina; Campanha de vacinação; Brasil

Introdução

A pandemia gerada pelo SARS-CoV-2, decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020, trouxe enormes necessidades de celeridade na produção de conhecimento no mundo globalizado e no olhar para as necessidades de saúde. As incertezas quanto à forma de transmissão, a velocidade de disseminação e as altas taxas de letalidade entre os grupos mais vulneráveis se transformaram em grandes desafios no combate à pandemia.

Na espera para o desenvolvimento de vacinas seguras e eficazes, foram estabelecidas medidas não farmacológicas em todo o mundo, na tentativa de conter a circulação do vírus, diminuindo sua transmissão. Entre essas medidas não farmacológicas estão o uso de máscaras, o distanciamento social, a higienização de mãos, a ventilação de ambientes, a ampla testagem para COVID-19, lockdowns e fechamento de fronteiras11 World Health Organization (WHO). WHO Director-General's Opening Remarks at the Media Briefing on COVID-19 [Internet]. 2020 Mar 11. [cited 2021 Aug 13]. Available from: https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020
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, além da ampla implementação de medidas ativas de vigilância epidemiológica, como a identificação ativa de fontes de infecção, testagem adequada e controle de contactantes. Todas essas medidas são até hoje estimuladas pela OMS22 World Health Organization (WHO). Coronavirus disease (COVID-19) advice for the public. [Internet]. 2021. [cited 2021 Aug 13]. Available from: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/advice-for-public
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Frente à crise sanitária instaurada no Brasil e à lentidão no processo de vacinação ao longo de 2021 (menos de 25% da população imunizada com duas doses ou dose única nos primeiros seis meses de campanha)33 G1. Mapa da vacinação contra COVID-19 no Brasil. [acessado 2021 Ago 13]. Disponível em: https://especiais.g1.globo.com/bemestar/vacina/2021/mapa-brasil-vacina-covid/
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, as medidas não farmacológicas, a testagem e o acompanhamento dos contactantes foram medidas consideradas de grande importância na contenção do vírus. Enquanto a Nova Zelândia e alguns países da Europa controlaram a pandemia precocemente realizando campanhas de testagem em massa, rastreamento de casos confirmados e seus contactantes e usando medidas como lockdown e fechamento de fronteiras44 Cousins S. New Zealand eliminates COVID-19. Lancet 2020; 395(10235):1474., no Brasil, crenças negacionistas disseminadas pelo governo federal levaram a baixa adesão às medidas de isolamento, desvalorização do uso de máscaras, baixa testagem e rastreio de contactantes, resultando em uma das piores curvas epidemiológicas do mundo, com manutenção de alta média móvel de casos e óbitos por longo período de tempo, tornando o país o terceiro em número absoluto de casos registrados e o segundo no ranking de óbitos pela doença no mundo55 Asano CL, Ventura DFL, Aith FMA, Reis RR, Ribeiro TB. Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil. 2021 (Relatório de pesquisa - Cepedisa). [acessado 2022 Jan 07]. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2021/01/boletim-direitos-na-pandemia.pdf
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. Assim, a postura negacionista que permeou os mais de 20 meses do vírus no país, acrescida da falta de controle incisivo e uniformidade na condução da pandemia, resultou na hesitação da população na adoção das medidas de controle, dificultando a contenção de comportamentos de risco para o contágio.

Com a chegada das vacinas, o cenário de crise sanitária ainda se manteve, em decorrência da falta de apoio político federal a essa medida farmacêutica, o que promoveu a desorganização em âmbito nacional da estratégia de vacinação no país66 Domingues CMAS. Desafios para a realização da campanha de vacinação contra a COVID-19 no Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(1):e00344620.. Somou-se a isso a intensificação da crise sanitária, a diminuição da adesão às medidas não farmacológicas para contenção e bloqueio da transmissão e a demora na vacinação, com somente 22,8% da população vacinada com duas doses ou dose única e 52,9% com a primeira dose da vacina33 G1. Mapa da vacinação contra COVID-19 no Brasil. [acessado 2021 Ago 13]. Disponível em: https://especiais.g1.globo.com/bemestar/vacina/2021/mapa-brasil-vacina-covid/
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nos seis primeiros meses de campanha. Vale lembrar que, em novembro de 2020, países da Europa com mais de 80% de vacinados voltaram a enfrentar aumento significativo de casos, especialmente com a chegada da variante Delta, o que torna imprescindível a atenção para a vacinação contra o SARS-CoV-2.

A partir desse cenário, apresentamos um quadro descritivo sobre a campanha de vacinação contra a COVID-19 no Brasil, tratando de apontar os principais erros relacionados a esse processo de acordo com as evidências científicas vigentes.

O PNI e os primeiros passos da campanha de vacinação contra a COVID-19 no Brasil

O Brasil possui um dos maiores e mais completos programas de vacinação do mundo como parte integrante do Sistema Único de Saúde (SUS). Desde a sua criação em 1973, o Programa Nacional de Imunizações (PNI) foi determinante para uma diminuição significativa de casos e óbitos por doenças imunopreveníveis.

Embora o uso de vacinas no país remonte ao ano de 1804, com a introdução da vacina contra a varíola, a consolidação do PNI, a partir do legado deixado pela Campanha de Erradicação da Varíola, foi fundamental para a eliminação da poliomielite e da febre amarela urbana, assim como para a redução de outras doenças infecciosas e o enfrentamento da pandemia de H1N1. O PNI contribui de forma decisiva para o aumento da expectativa de vida no país77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica. Programa Nacional de Imunizações (PNI): 40 anos. Brasília: MS; 2013.

8 Teixeira AMS, Domingues CMAS. Monitoramento rápido de coberturas vacinais pós-campanhas de vacinação no Brasil: 2008, 2011 e 2012. Epidemiol Serv Saude 2013; 22(4):565-578.
-99 Temporão JG. O Programa Nacional de Imunizações (PNI): origens e desenvolvimento. Hist Cienc Saude 2003; 10(Supl. 2):601-617.. Infelizmente, dentro do atual governo, com a falta de investimentos no SUS e com o descaso com políticas públicas de saúde fundamentais, o PNI perdeu seu protagonismo na condução da campanha de vacinação contra a COVID-19. Apesar de contarmos com uma campanha com enorme potencial e uma das melhores respostas da população local no mundo, a estratégia brasileira apresentou muitos problemas e deixou diversas lacunas no processo da vacinação contra a COVID-19.

Muitos foram os tropeços e embates do governo relacionados à vacina e ao processo de vacinação. Desde o início da pandemia, em meados de 2020, o governo federal criou crises diplomáticas com a China e a Índia, os maiores produtores de insumos farmacêuticos ativos do mundo, que repercutiram na capacidade do Brasil em produzir vacinas55 Asano CL, Ventura DFL, Aith FMA, Reis RR, Ribeiro TB. Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil. 2021 (Relatório de pesquisa - Cepedisa). [acessado 2022 Jan 07]. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2021/01/boletim-direitos-na-pandemia.pdf
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. As duas maiores instituições brasileiras produtoras de vacina, o Instituto Butantan, responsável pela CoronaVac, e a Fiocruz, pela AstraZeneca, foram profundamente afetadas. Em 2020, o governo federal poderia ter encomendado 200 milhões de doses da COVAX Facility, a Aliança Mundial de Vacinas formada por 165 países que buscavam garantir suas vacinas, mas se recusou a fazer parte dessa coalizão e só de última hora se somou ao grupo e encomendou apenas 42,5 milhões de doses, não sendo suficiente nem para os grupos prioritários. A Pfizer ofereceu a venda de 70 milhões de doses da vacina e o governo nunca respondeu às repetidas consultas da empresa1010 Maciel E, Domingues C, Kerr L, Garrett D, Fernandez M, Dalcomo M. Vacinação contra COVID-19 no Brasil. Rede Brasileira de Mulheres Cientistas 2021; Nota Técnica 4. [acessado 2021 Ago 13]. Disponível em: https://mulherescientistas.org/wp-content/uploads/2021/05/Nota-Tecnica-4-Vacinacao.pdf
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. Ainda em outubro de 2020, o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, anunciou a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac, mas foi desautorizado pelo presidente da República e suspendeu a compra1111 Tralli C. Ministério anuncia compra de 46 milhões de doses da vacina CoronaVac e diz que imunização começa no 1º semestre de 2021. G1 São Paulo. 2020. [acessado 2021 Ago 13]. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/10/20/governo-federal-anuncia-que-vai-comprar-46-milhoes-de-doses-da-vacina-chinesa-em-parceria-com-o-butantan.ghtml
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. O Ministério da Saúde também não assinou contrato com a Janssen em 2020, mesmo com a empresa afirmando que o Brasil seria prioridade para a entrega de vacinas por ter sido sede do estudo clínico de fase 31010 Maciel E, Domingues C, Kerr L, Garrett D, Fernandez M, Dalcomo M. Vacinação contra COVID-19 no Brasil. Rede Brasileira de Mulheres Cientistas 2021; Nota Técnica 4. [acessado 2021 Ago 13]. Disponível em: https://mulherescientistas.org/wp-content/uploads/2021/05/Nota-Tecnica-4-Vacinacao.pdf
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. Até dezembro de 2020, o Brasil só havia estabelecido acordo com a AstraZeneca para a realização de transferência de tecnologia para a Fiocruz1212 Agência Fiocruz de Notícias. Fiocruz divulga contrato de encomenda tecnológica com a Astrazeneca. 2020. [acessado 2021 Ago 13]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-divulga-contrato-de-encomenda-tecnologica-com-astrazeneca
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. Nesse contexto, fica claro o processo de fragilização do Programa Nacional de Imunizações durante a pandemia da COVID-19 no Brasil.

O avanço da campanha de vacinação no Brasil e o uso de evidências científicas

Tomar decisões na gestão de serviços de saúde não é uma tarefa simples. Há momentos em que faltam conhecimentos para a tomada de decisões, em outros existem conhecimentos suficientes mas as decisões não são tomadas no tempo devido, e há aqueles momentos em que as decisões são necessárias mesmo diante de escassas evidências. O processo de tomada de decisão em temas de saúde é caracterizado por uma grande complexidade1313 Paim JS, Teixeira CF. Política, planejamento e gestão em saúde: balanço do estado da arte. Rev Saude Publica 2006; 40(Esp):73-78.. A partir da década de 1970, o uso do conhecimento científico passou a informar a tomada de decisão no processo de formulação e implementação de políticas públicas1414 Barreto JOM, Souza NM. Making progress in the use of health policies and practices informed by evidence: the Piripiri-Piaui experience. Cien Saude Colet 2013; 18(1):25-34.. Desde então, na área da saúde existe um crescente interesse em garantir a elaboração de políticas informadas pelo conhecimento científico1515 Langlois EV, Becerril Montekio V, Young T, Song K, Alcalde-Rabanal J, Tran N. Enhancing evidence informed policymaking in complex health systems: lessons from multi-site collaborative approaches. Health Res Policy Syst 2016; 14(1).. Isso se deve ao fato de que políticas de saúde baseadas em evidências permitem a melhoria do desempenho do sistema público de saúde, além de evitar iniquidades provenientes de políticas mal formuladas1616 Ramos MC, Silva EN. Como usar a política informada por evidência na saúde pública. Saúde Debate 2018; 42(116):296-306..

A partir dessas premissas, sabemos que o PNI não funcionou de acordo com suas potencialidades durante a pandemia de COVID-19. Nesse sentido, embora o corpo técnico fizesse uso de evidências científicas de qualidade no processo de tomada de decisão, os atores políticos do país tomaram decisões políticas que desconsideraram todos esses aspectos. Apesar dos percalços, atualmente a vacinação tem crescido e doses de CoronaVac, AstraZeneca, Pfizer e Jansen têm sido distribuídas e aplicadas no Brasil, fazendo com que ultrapassássemos a cobertura vacinal dos Estados Unidos. No entanto, se a gestão da pandemia tivesse sido otimizada, e a devida prioridade dada à vacinação, poderíamos ter iniciado o enfrentamento desta pandemia em 2021 com 316 milhões de doses, suficientes para vacinar 78% da população, e 75% de vidas brasileiras perdidas pela COVID-19 poderiam ter sido salvas1717 Hallal PC. SOS Brazil: science under attack. Lancet 2021; 397(10272):373-374..

Além da ineficácia e incompetência na compra de vacinas, a falta de organização e decisão política interferiu nas compras frustradas em pregão de insumos para a campanha de vacinação, não havendo uma aquisição planejada de seringas de alta precisão, que evita o desperdício de doses de imunizantes. Em um processo de investigação dos problemas da gestão federal no enfrentamento à pandemia, a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a COVID-19 apontou apostas equivocadas, suspeitas de superfaturamento na compra de vacinas, entre outras questões. Foram muitos os erros cometidos desde o início da condução da campanha de vacinação, alguns que se perpetuam até hoje, associando-se a inércia e lentidão nas tomadas de decisão, além da incapacidade de corresponder em tempo real ao que apontam as evidências científicas que vão surgindo. Olhar para essas evidências é fundamental para que se possa fortalecer e dar celeridade à vacinação contra a COVID-19 no país.

Algumas questões chamaram a atenção durante o processo de vacinação. Entre elas estão a informação à imprensa de grupos prioritários com fases definidas e, posteriormente, a retirada dessas fases e a criação de um grande grupo prioritário composto de quase 78 milhões de pessoas. Além disso, a vacinação tardia de gestantes e puérperas, em um país que tem oito em cada dez mortes maternas por COVID-19 no mundo, foi iniciada e depois interrompida por um único caso de efeito adverso grave. Na contramão das evidências científicas, esse fato retirou as gestantes dos grupos a serem vacinados, incluindo depois apenas as com comorbidades, e gerou uma demora de mais de dois meses para que a vacinação desse grupo fosse retomada. Essas mudanças, em um curto espaço de tempo, possibilitaram a abertura para que estados e municípios pudessem definir suas próprias ordens de prioridades e acabou gerando desalinhamento e descoordenação entre União, estados e municípios na estratégia de vacinação estabelecida1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis, Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunizações. Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 - 1a edição. Brasília: MS; 2020.,1919 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis, Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunizações. Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 - 2a edição. Brasília: MS; 2021..

É a primeira vez, desde a criação do PNI, que uma grande campanha de vacinação não está sendo precedida de campanha de informação acerca das vacinas, da necessidade de se vacinar grupos prioritários, sobre eventos adversos vinculados à vacinação, entre outras questões. Além disso, problemas de organização do processo de trabalho e de logística da campanha de vacinação, como falta de treinamento das equipes e de uma comunicação coordenada e transparente, são notórios e impactaram negativamente no processo de vacinação da população e na qualidade do trabalho dos profissionais da saúde responsáveis. Temos vacinas com intervalos diferentes, com possíveis eventos adversos diferentes, e não houve um processo de formação e orientação claras para os profissionais de saúde de forma centralizada e coordenada, o que contribuiu para a ocorrência de erros de administração dos imunizantes, fazendo com que a população ficasse, em alguns momentos, insegura de se vacinar.

Some-se a isso que, mesmo com a grande quantidade de evidências de qualidade produzidas no período, desde o início da campanha de vacinação no Brasil, essas não foram utilizadas em tempo oportuno, o que teria sido fundamental para que pudessem ter guiado uma remodelagem da nossa estratégia de vacinação, acelerando os benefícios da campanha e informando e protegendo melhor os cidadãos. Entre as remodelações, quatro pontos nos parecem merecer destaque: o intervalo entre as doses; a intercambialidade entre vacinas; a vacinação em adolescentes; e a necessidade de melhores evidências para definir a estratégia de vacinação em grupos e faixas etárias específicas.

Quanto aos intervalos entre as doses, apontamos que as evidências a respeito dos impactos de novas variantes nas vacinas existentes aumentaram ao longo de 2021. Estudo do Reino Unido demonstrou que a variante Delta diminui a efetividade da vacina, principalmente nas pessoas que receberam apenas uma dose2020 England. Public Health. SARS-CoV-2 variants of concern and variants under investigation in England. Technical Briefing 15. 2021. [cited 2021 Jun 1]. Disponível em: https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/993879/Variants_of_Concern_VOC_Technical_Briefing_15.pdf
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. E mais, a efetividade contra a doença sintomática decresceu para aproximadamente 33% para pessoas com apenas uma dose, mantendo-se uma alta eficácia, em torno de 88%, com as duas doses. Sendo assim, prolongar o intervalo em relação ao aprovado pela fabricante de cada vacina deixa as pessoas vacinadas com apenas uma dose mais suscetíveis. Além disso, quanto menos pessoas vacinadas com a segunda dose, maior a probabilidade de manutenção de alta circulação viral e, com isso, maior a chance de surgirem variantes que poderão escapar das vacinas. Alguns países, como Portugal e Reino Unido, reduziram o intervalo da vacina da Astrazeneca (AZ) para oito semanas em função das evidências científicas. A maior parte dos países mais avançados na campanha de vacinação ao longo do primeiro semestre de 2021 administraram a vacina da Pfizer conforme recomendação do fabricante, com intervalo de 21 dias entre as doses.

Com relação à intercambialidade entre as vacinas, nações como Canadá, Inglaterra e outros países europeus utilizaram esquemas heterólogos de vacinação como programa de saúde pública2121 NPR. Want to mix 2 different COVID-19 vaccines? Canada is fine with that. 2021, jun 4. [cited 2021 Jun 1]. Available from: https://www.npr.org/sections/coronavirus-live-updates/2021/06/04/1002975563/want-to-mix-2-different-covid-19-vaccines-canada-is-fine-with-that
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. Evidências indicam que tais regimes mistos ou combinados de vacinação contra COVID-19 podem desencadear respostas imunológicas até mesmo mais fortes e robustas do que duas doses de uma única vacina2222 Callaway E. Mix-and-match COVID vaccines trigger potent immune response. Nature 2021; 593(7860):491., ao mesmo tempo que simplificam os esforços de imunização para países que enfrentam estoques flutuantes de várias vacinas2323 Shaw RH, Stuart A, Greenland M, Liu X, Nguyen Van-Tam JS, Snape MD; Com-COV Study Group. Heterologous prime-boost COVID-19 vaccination: initial reactogenicity data. Lancet 2021; 397(10289):2043-2046..

Estudos têm sido publicados sobre a eficácia de regimes homogêneos versus regimes heterogêneos. Na Alemanha, foi demonstrado que o reforço de vetor-mRNA heterólogo induziu forte resposta humoral e celular com perfil de reatogenicidade aceitável2424 Schmidt T, Klemis V, Schub D, Mihm J, Hielscher F, Marx S, Abu-Omar A, Ziegler L, Guckelmus C, Urschel R, Schneitler S, Becker SL, Gärtner BC, Sester U, Sester M. Immunogenicity and reactogenicity of a heterologous COVID-19 prime-boost vaccination compared with homologous vaccine regimens. Nature Med 2021; 27:1530-1535.. Na Espanha, estudo com 676 indivíduos mostrou que uma segunda dose da Pfizer em pessoas vacinadas com a AZ induziu uma resposta imune robusta com um perfil de reatogenicidade aceitável e administrável2525 Borobia AM, Carcas AJ, Olmeda MTP, Castaño L, Bertrán MJ, Pérez JG, Campins M, Portolés A, Gonzalez-Pérez M, Morales MTG, Arana-Arri E, Aldea M, Díez-Fuertes F, Fuentes I, Ascaso A, Lora D, Imaz-Ayo N, Baron-Mira L, Agustí A, Pérez-Ingidua C, Cámara AG, Arribas JR, Ochando J, Alcamí J, Belda-Iniesta C, Frías J, CombiVacS Study Group. Reactogenicity and immunogenicity of BNT162b2 in subjects having received a first dose of ChAdOx1s: initial results of a randomised, adaptive, phase 2 trial (CombiVacS) [preprint]. SSRN 2021. Available from: https://ssrn.com/abstract=3854768
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. No Brasil, seria fundamental a condução de estudos populacionais com as vacinas usadas no país, incluindo a CoronaVac, para definir segurança e taxas de infecção, hospitalização e óbito de cada combinação, e para isso se faz mister que a Secretaria de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações possam abrir editais para financiamento de pesquisa nessas áreas no Brasil.

Torna-se também fundamental voltar a atenção para a vacinação de crianças e adolescentes. Ponto importante nessa discussão foi a aprovação pela Anvisa da utilização da vacina da Pfizer para adolescentes de 12 anos ou mais e, recentemente, a aceitação do pedido de aprovação pela mesma empresa para a vacinação de crianças de 5 a 11 anos. Apesar de a vacinação de crianças e adolescentes ter se tornado imperativa, devido ao maior número de mortes e internações neste último grupo etário, o governo tem atuado prontamente em favor de grupos negacionistas. A vacina nesses dois grupos é importante não só para a proteção dos mesmos, mas para ajudar a diminuir a transmissão viral e contribuir para a imunidade coletiva, garantindo o retorno mais seguro às aulas presenciais2626 Walter EB, Talaat KR, Sabharwal C, Gurtman A, Lockhart S, Paulsen GC, Barnett ED, Muñoz FM, Maldonado Y, Pahud BA, Domachowske JB, Simões EAF, Sarwar UN, Kitchin N, Cunliffe L, Rojo P, Kuchar E, Rämet M, Munjal I, Perez JL, Frenck RW Jr, Lagkadinou E, Swanson KA, Ma H, Xu X, Koury K, Mather S, Belanger TJ, Cooper D, Türeci Ö, Dormitzer PR, Sahin U, Jansen KU, Gruber WC, C4591007 Clinical Trial Group. Evaluation of the BNT162b2 Covid-19 Vaccine in Children 5 to 11 Years of Age. N Engl J Med 2021; 386(1):35-46..

Conclusão

A vacinação é uma estratégia coletiva, e para continuarmos a ter a diminuição de casos e óbitos, bem como evitarmos a possibilidade de transmissão de novas cepas no país, será necessário uma melhor organização a partir das melhores evidências científicas disponíveis. Nesse sentido, a estratégia de vacinação no Brasil precisa fazer coro com a ciência. É importante também estarmos atentos a como outros programas de vacinação ao redor do mundo estão organizando suas campanhas de acordo com as especificidades de cada vacina disponível. Nesse sentido, é urgente que o PNI possa avaliar novos paradigmas para a campanha de vacinação com as evidências científicas que vão sendo geradas e que, principalmente, possa comunicar mudanças atualizadas à sociedade, estabelecendo uma maior confiança nas vacinas.

O PNI sempre foi protagonista na região das Américas, introduzindo vacinas no calendário de vacinação para enfrentamento de problemas de saúde pública em relação às doenças imunopreveníveis, em especial em momentos de pandemia, quando a população está sob risco eminente de adoecimento e morte. Portanto, é grave continuarmos a assistir o imobilismo do Ministério da Saúde na tomada de decisão de maneira oportuna, e muitas vezes atuando de forma a confundir a população. O fortalecimento do PNI é estratégico para que a população esteja protegida até que a COVID-19 possa estar efetivamente controlada em nosso país.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2021
  • Aceito
    05 Jan 2022
  • Publicado
    07 Jan 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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