Resumo
A surdez é compreendida a partir de dois discursos - o clínico-terapêutico e o socioantropológico. O artigo objetiva realizar uma análise genealógica da surdez, ou seja, das práticas de saber e poder, na política de saúde brasileira. É uma pesquisa qualitativa, documental, que se baseia em pressupostos teóricos de Michel Foucault. Foram selecionados 13 documentos normativos e 10 informativos, assim como realizadas oito entrevistas semiestruturadas, com amostra não probabilística, utilizando-se a técnica bola de neve. A análise mostrou que as políticas de saúde voltadas às pessoas com deficiência auditiva são efeito das relações de poder e saber existentes no campo da surdez, no qual o discurso médico-patológico, que concebe a surdez como uma deficiência a ser corrigida, é tido como o discurso verdadeiro. O discurso socioantropológico, que reconhece o surdo pelo olhar da diferença e pelo uso da língua de sinais, é um discurso sujeitado, que não tem encontrado espaços na política de saúde. Foram colocados em evidência os contrassensos entre as conquistas ligadas ao acesso às tecnologias e as proposições do setor saúde, cuja política direciona suas ações exclusivamente para o alcance de uma norma ouvinte, desconsiderando a multiplicidade dos sujeitos surdos.
Palavras-chave:
Surdez; Direito à saúde; Política de saúde; Acessibilidade; Barreiras de comunicação
Introdução
No mundo, a partir da década de 70 do século XX, intensificou-se o debate em defesa dos direitos humanos, incluindo as pessoas com deficiência, especialmente nos Estados Unidos, Canadá e países europeus11 Romero CF. La extensión de los ajustes razonables en el derecho de las personas en situación de discapacidad de acuerdo al enfoque social de derechos humanos. Ius et Praxis 2016; 22(2):227-252.. A evolução e amadurecimento deste movimento suscitou transformações importantes, dentre elas a mudança do próprio termo deficiência, que passou a ser considerado como uma mescla entre os agravos infringidos ao corpo e às barreiras que impedem a plena participação na sociedade, definição esta que foi consagrada na Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas22 United Nations Treaty Collection. Convention on the Rights of Persons with Disabilities. New York; 13 dec. 2006 [Internet]. [cited 2017 nov 27] Available from: https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-15&chapter=4&clang=_en.
https://treaties.un.org/Pages/ViewDetail... .
Esta mudança conceitual na categoria deficiência, que associou os impedimentos corporais aos ambientes com barreiras33 Barbosa L, Pereira EL, Rodrigues DS. LC 142: desafios da avaliação da deficiência em um marco de justiça. Cad Bras Ter Ocup 2017; 25(4):909-915., se mostrou como importante estratégia política, porém, apesar de desencadear avanços positivos, ainda não deu conta de algumas especificidades. Nesta concepção bastaria incluir quem tem surdez no conjunto de pessoas com deficiência, mas a questão é que muitas pessoas surdas não se subjetivam assim44 Davis LJ. Introduction: disability, the missing term in the race, class, gender triad. In: Davis LJ. Enforcing normalcy: disability, deafness and the body. New York: Verso; 2000.. Elas se autointitulam Surdos, membros de uma Comunidade Surda e que compõe uma minoria linguístico cultural, por serem parte de um grupo que faz uso de uma língua visuogestual - a língua de sinais, sua característica identitária principal.
Há dois regimes de verdade sobre a surdez que coexistem. Um primeiro associado ao discurso da deficiência sob a perspectiva do modelo biomédico, centrado no déficit e no ensino da fala, considerado o discurso verdadeiro.
Denominado por alguns estudiosos de modelo clínico-terapêutico, concebe a surdez como um déficit anátomo-fisiológico que gera a perda auditiva55 Skliar C. Um olhar sobre o nosso olhar acerca da surdez e das diferenças. In: Skliar C, organizadores. A surdez: um olhar sobre a diferença. 8ª ed. Porto Alegre: Mediação; 2016. p.5-6., considerada um sinal patológico que suscita esforços no sentido de reparação, gerando um intenso processo de medicalização da surdez66 Rodríguez-Martín D, Rigol-Cuadra A, Crespo-Mirasol E, Maestre-González E. Falta de adecuación del sistema de salud a grupos minoritarios y minorizados: el caso de la Comunidad Sorda. In: Jubany O, Guasch O, organizadores. Intersecciones encarnadas: [Con]textos críticos en género, identidad y diversidad. Barcelona, Editorial Bellaterra; 2020. p.55-84.. Está sob a égide de um mesmo regime de verdade que, como afirmam Carvalho e Martins77 Carvalho AF, Martins VRO. Anunciação e insurreição da diferença surda: contra-ações na biopolítica da educação bilíngue. Childhood & Philosofy 2016; 12(24):391-415., é aquele de um corpo em que falta algo, razão pela qual o indivíduo vivencia situações de desvantagem, restando-lhe o caminho da reparação. Ser surdo é visto como desvantagem por ser causa da dificuldade em estabelecer uma comunicação e, por isto, neste discurso, se encaixa perfeitamente à categoria pessoa com deficiência.
Um segundo discurso, o da diferença, centrado na língua de sinais, na comunidade e cultura surdas, foi denominado socioantropológico. Os estudos que tomam por base este modelo da surdez, em sua grande maioria, atribuem à formação da identidade o uso da língua de sinais, sendo ela aquilo que constituiria o sujeito e o que permitiria a ele compartilhar vivências sociais, crenças, valores culturais e favoreceria, consequentemente, a conexão com a sociedade na qual está inserido77 Carvalho AF, Martins VRO. Anunciação e insurreição da diferença surda: contra-ações na biopolítica da educação bilíngue. Childhood & Philosofy 2016; 12(24):391-415.-88 Chaveiro N, Rodríguez-Martin, Faria JG. Educação bilíngue para surdos em Barcelona-Espanha. The Specialist 2020;41(1)..
No Brasil, há 9.722.163 de pessoas com deficiência auditiva, mas não se sabe exatamente quantas usuárias de língua de sinais99 Brasil. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Cartilha do Censo 2010: pessoas com deficiência. Brasília; 2014. 29p.. Uma grande investigação internacional mostrou que, em 2007, existiam no Brasil 1.700.000 usuários de língua de sinais1010 Haualand H, Allen C. Deaf people and human rights. World Federation of the Deaf and Swedish National Association of the Deaf. Finland; 2009. 71 p.. Este número, ainda que desatualizado, evidencia que a quantidade de pessoas que usam a Língua Brasileira de Sinais (Libras) não é tão inexpressiva ao ponto de serem invisíveis às políticas públicas de saúde. Pode-se afirmar que o que comanda ter ou não espaço na agenda de prioridades governamentais não são, necessariamente, os parâmetros quantitativos, mas as assimetrias de poder-saber que perfazem o corpo social.
Poder não se constitui como um fato em si; é, antes de tudo, “um modo de ação de alguns sobre os outros”, só possível de existir em ato. Nas palavras de Foucault1111 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus H, Rabinow P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Carrero VP. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010.
[...] é um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidades onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais fácil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações1111 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus H, Rabinow P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Carrero VP. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010.(p. 243).
Neste contexto, quando o outro da ação é o surdo, enquanto subjetividade constituída como modo-indivíduo ou como um coletivo grupal de sujeição, sobre o qual o poder é exercido, o produto desta relação tem se traduzido em barreiras (linguísticas, comunicacionais e atitudinais), cuja expressão é a negação de direitos.
Quando estas barreiras ocorrem no contexto da saúde, a consequência é a ameaça a um direito fundamental. Estes obstáculos relacionam-se com a dificuldade no acesso à informação em língua de sinais ou por outras estratégias comunicacionais, pelo desconhecimento dos profissionais sobre a realidade dos surdos, sua cultura e direitos e a falta de acessibilidade aos serviços1212 Rodríguez-Martín D, Rodríguez-García C, Falcó-Pegueroles A. Ethnographic analysis of communication and the deaf community's rights in the clinical context. Contemporary Nurse 2018; 54(2):126-138.. Desta forma, o direito à informação e à autonomia quanto à tomada de decisões sobre sua própria saúde é, portanto, negado.
O contrassenso (ou não) é que o Sistema de Saúde brasileiro criou, ao longo de sua história, duas políticas envolvendo a pessoa com deficiência auditiva - a Política Nacional de Atenção à Saúde Auditiva (PNASA)1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.073, de 28 de setembro de 2004. Instituiu a Política Nacional de Atenção à Saúde Auditiva. Diário Oficial da União [Internet]. 28 set. 2004. [acessado 2017 set 3]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2004/prt2073_28_09_2004.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis... , em 2004, e a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPCD), em 20121414 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 793, de 24 de abril de 2012. Institui a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União [Internet]. 24 abr. 2012. [acessado 2017 set 3]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0793_24_04_2012.html.
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Esta Rede foi criada com o objetivo principal de ampliar o acesso e qualificar o cuidado e foi um desdobramento do Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência - Plano Viver sem Limite, publicado no Decreto 7.612/2011, cujo propósito foi promover o exercício pleno e equitativo dos direitos das pessoas com deficiência, por meio da articulação de políticas, programas e ações.
Indagamos se estas políticas estariam contemplando a população de pessoas com deficiência auditiva respeitando suas singularidades, ou seja, quando se pensa nesta população isto inclui a parte que é usuária de língua de sinais? Dito isto, este artigo tem por objetivo realizar análise genealógica da surdez, ou seja, das práticas de saber e poder, no contexto da política de saúde brasileira.
Percurso metodológico
O presente artigo refere-se à parte da análise realizada na tese Ruídos e silêncios: uma análise genealógica da surdez na política de saúde brasileira1515 Vianna NG. Ruídos e silêncios: uma análise genealógica sobre a surdez na política de saúde brasileira [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2018.. Trata-se de pesquisa qualitativa, documental e que realiza análise genealógica baseada em pressupostos teóricos de Michel Foucault. A análise genealógica consiste em mostrar de onde emergem as relações de poder, bem como as resistências, percorrendo os fios que interconectam os acontecimentos no emaranhado dos fatos históricos1111 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus H, Rabinow P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Carrero VP. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010.. A atenção é sobre as forças que são agenciadas e que, em sua inter-relação, produzem fatos que tentam se impor como verdade universal.
Foucault1616 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Ramalhete R. Rio de Janeiro: Vozes; 2014. 302p. aponta que, no exercício de poder, também há os discursos de verdade, que dele emergem e, simultaneamente, os reforçam.
Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber; nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder1616 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Ramalhete R. Rio de Janeiro: Vozes; 2014. 302p. (p. 31).
Identificar os saberes que se apresentam como verdade é tarefa relativamente simples, pois eles estão na superfície, circulando livremente no corpo social, subsidiando e reforçando o poder. Porém, por debaixo deles, ofuscados e reprimidos, também há saberes, que são os saberes próprios das resistências, saberes sujeitados e inerentes a todo exercício de poder. Os ‘saberes sujeitados’ são blocos de saberes históricos que estavam presentes e disfarçados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos, e que a crítica fez reaparecer pelos meios, é claro, da erudição1717 Foucault M. Aula de 7 de janeiro de 1976. In: Foucault M. Em defesa da sociedade. Tradução: Galvão MEAP. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2010. p.1-19. (p. 8).
Para que os saberes sujeitados saiam da sombra em que o discurso verdadeiro os colocou, para identificar a emergência das relações de forças, o genealogista deverá selecionar documentos onde os acontecimentos se materializaram. Os detalhes, os fatos ignorados, considerados como não história e, portanto, negligenciados, rechaçados, importam à genealogia1818 Foucault M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Foucault M. Microfísica do poder. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal; 2009. p. 15-37..
Assim, para a realização da análise genealógica selecionamos 13 documentos normativos e 10 documentos informativos (Quadro 1). A escolha dos documentos norteou-se pelos seguintes critérios: 1) Leis e Decretos federais que dizem respeito às pessoas com deficiência; 2) Leis e Decretos federais relacionados à surdez e à língua de sinais; 3) Portarias do Ministério da Saúde que dizem respeito às pessoas com deficiência; 4) Portarias do Ministério da Saúde sobre Pessoa com Deficiência diretamente relacionadas à surdez; e 5) Publicações do Governo Federal (Secretaria da Pessoa com Deficiência e do Ministério da Saúde) relacionadas à pessoa com deficiência (auditiva) de caráter informativo e/ou avaliativo. Além destes, foram realizadas oito entrevistas semiestruturadas, também consideradas documentos (Quadro 2). A amostra foi não probabilística utilizando-se a técnica bola de neve, em que sujeitos selecionados inicialmente indicam outros participantes. O critério de inclusão foi ser ator sociopolítico de alguma fase de construção das políticas de saúde e/ou educação voltadas às pessoas com deficiência, como lideranças de movimentos sociais, gestores, representantes de serviços de reabilitação, membros de conselhos e comitês que, por meio da história oral, compartilharam informações sobre o tema.
Do ponto de vista temporal, a análise genealógica da surdez no contexto da política de saúde considerou como ponto de partida a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, e as políticas voltadas às pessoas com deficiência auditiva que dele se originaram.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/UNICAMP) (CAE 51771815.2.0000.5404; Parecer nº 1.468.353) e realizada conforme a Resolução nº 466/2012. A participação dos sujeitos foi voluntária, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados e discussão
Práticas de saber e poder sobre a surdez na política de saúde brasileira
Quando o SUS foi criado, o Ministério da Saúde (MS) começou, logo na década seguinte, a implementar as primeiras ações voltadas às pessoas com deficiência. No que se refere à deficiência auditiva, especialistas, sobretudo otorrinolaringologistas e fonoaudiólogos de um centro universitário, conhecido no meio acadêmico como de tradição oralista, prestavam consultoria ao governo federal.
O oralismo foi, de fins do século XIX até grande parte do século XX, a abordagem pedagógica privilegiada na educação dos surdos, sendo, no curso da história, incorporada pelos fonoaudiólogos como abordagem terapêutica. Atrelado ao regime de verdade que concebe a surdez sob perspectiva clínico-terapêutica, seu objetivo é integrar a criança surda à sociedade ouvinte, por meio do desenvolvimento da língua oral1919 Vieira CR, Molina KSM. Prática pedagógica na educação de surdos: o entrelaçamento das abordagens no contexto escolar. Educação e Pesquisa 2018; 44..
O trecho a seguir ilustra a participação destes especialistas junto ao MS na década de 90.
(...) existiam dois consultores: um otorrino, que fazia cirurgia lá em Bauru, e ela (...) que era fonoaudióloga. A tabela se deve a ela. Porque ela era a favor da oralidade, da oralização e o otorrino ajudou a gente a pôr, na portaria, os implantes cocleares. E (ela), mais o grupo dela (da Universidade de São Paulo-USP/Bauru), fizeram a tabela. Depois chamamos a Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, uns deram palpite aqui, outros ali e tiramos das mãos dos otologistas e dos otorrinos. A fonoaudiologia que fez a tabela (Gestor 2 MS).
A tabela a que se refere o trecho anterior é a “Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais”, através da qual, como resultado do trabalho desenvolvido por esta equipe, sobretudo pelos Fonoaudiólogos, foram inseridos no SUS os primeiros procedimentos destinados às pessoas com deficiência auditiva. No meio acadêmico, a fonoaudióloga que o trecho menciona, “mais o grupo dela”, são conhecidos como um grupo da corrente oralista pertencentes à USP de Bauru.
Este mesmo grupo também ofereceu enormes contribuições à PNASA1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.073, de 28 de setembro de 2004. Instituiu a Política Nacional de Atenção à Saúde Auditiva. Diário Oficial da União [Internet]. 28 set. 2004. [acessado 2017 set 3]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2004/prt2073_28_09_2004.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis... , criada em 2004, a partir de tensionamentos de categorias profissionais vinculadas à reabilitação, especialmente de fonoaudiólogos.
A partir desta política, em que não havia praticamente nada passou a existir a possibilidade de habilitar serviços como Centros de Reabilitação Auditiva. Estes passaram a receber recursos do MS para desenvolver ações de atenção diagnóstica e terapêutica, triagem e monitoramento da audição2020 Escarce AG, Lemos SMA, Carvalho SAS. Profile and work satisfaction among professionals of hearing care health network. Audiol Commun Res 2015; 20(2):96-103., beneficiando muitos brasileiros, sobretudo idosos.
A política também apontou ações que deveriam ser desenvolvidas na atenção básica, tais como: promoção da saúde auditiva, prevenção e identificação precoce, ações informativas e educativas, orientação familiar e encaminhamento para serviços de reabilitação1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.073, de 28 de setembro de 2004. Instituiu a Política Nacional de Atenção à Saúde Auditiva. Diário Oficial da União [Internet]. 28 set. 2004. [acessado 2017 set 3]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2004/prt2073_28_09_2004.html
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A PNASA foi um divisor de águas no que se refere ao acesso às tecnologias duras2121 Merhy EE, Feuerwerker LCM. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea In: Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES; Júnior HS, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2016. p.59-72., capazes de prover estímulos auditivos a quem não possui esta possibilidade. São poucos os sistemas de saúde do mundo que arcam com este tipo de recurso em sua totalidade. O Gráfico 1 mostra a crescente evolução no número de aparelhos auditivos dispensados no período em que a PNASA estava em vigor, até que a RCPCD viesse a substituí-la em 2012.
Quantidade aprovada de OPM auditiva comprada com recurso federal. Brasil, 2008 a 2012. Não estavam disponíveis no DATASUS informações anteriores a 2008.
Buscamos entender qual foi o contexto sócio histórico que culminou com a criação da PNASA e identificamos que foi preciso haver abertura na agenda governamental para que o tema da reabilitação auditiva passasse a ser priorizado. A condição de emergência se deu a partir da presença de uma assessora, que trabalhava na Área Técnica Saúde da Pessoa com Deficiência do MS que, além de ser fonoaudióloga, tinha estreito vínculo com o Partido dos Trabalhadores (PT), partido político que comandava o governo federal à época. Assim, o discurso da Fonoaudiologia estava presente, não apenas no MS, mas também dentro do próprio Palácio do Planalto.
Aí vem a questão política que é muito importante. A assessora era do PT. A audiologia ganhou por conta de ser uma bandeira bem representada. Não estou dizendo que foi só isso, mas houve dois determinantes importantes: um é que nós tivemos um assessor técnico que, como petista, podia levar para o Palácio ‘as reivindicações da fono’ (grifo meu). (...) Tanto que, se você for olhar pelas datas, você vai ver um incremento (financeiro) muito grande nesta parte, na gestão que (a assessora) representava o PT na coordenação (Gestor 2 MS).
Esta assessora e as relações de poder nas quais estava envolvida colaborou para a criação de um cenário favorável para que as “reivindicações da fono” pudessem ser atendidas, dando o respaldo necessário para colocar em prática as proposições do grupo que assessorava o MS.
(...) quem ajudou a construir a portaria foi o pessoal da fono, a começar com a (fonoaudióloga da USP/Bauru). Aquelas portarias (2.073/2004, 587/2004 e 589/2004) todas foram feitas com o pessoal de Bauru. A (fonoaudióloga) brigou muito porque este espaço precisava ter no SUS, e ela entendia de procedimento e o pessoal da ABA (Associação Brasileira de Audiologia) também (Gestor 2 MS).
Aparece, ainda que de forma menos expressiva nos relatos dos entrevistados, a participação de dois lugares institucionais - a Associação Brasileira de Audiologia e a Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, cujos discursos pareciam não divergir dos do grupo de profissionais pertencentes ao centro universitário de tradição oralista.
No bojo dos fatos históricos que se caracterizam como condição de emergência da PNASA, faz-se necessário problematizar que saberes sobre a surdez especialistas, sociedade científica e consultores técnicos do MS agenciam para embasar suas práticas. O trecho a seguir exemplifica e reforça a continuidade do uso do discurso clínico-terapêutico sobre a surdez.
E era uma briga dos otologistas com os otorrinos, dos consultores, uma confusão. (...) a grande briga na verdade era a linguagem de sinais ou a linguagem oral. Tanto que, quando chegou à Coordenação o Projeto de Lei (PL) que instituía a Língua Brasileira de Sinais no Brasil, a coordenadora não assinou e foi contra o PL. E aí foi uma confusão (..), mas a Coordenação não arredou o pé. A saúde ficou como contra, mas ganhou (o PL foi aprovado) (Gestor 2 MS).
O momento, início dos anos 2000, era de disputas que iam muito além do campo da saúde. Na educação, o discurso socioantropológico da surdez ressoava com muito mais facilidade e a língua de sinais entrava nas salas de aula. Na saúde, este discurso, que pode ser considerado como pertencente a um saber sujeitado, não teve eco, a não ser por uma parte ainda pequena de fonoaudiólogos, que passariam paulatinamente a incorporar este discurso em suas práticas, adotando o bilinguismo como abordagem de trabalho.
O bilinguismo surge em decorrência do discurso socioantropológico da surdez, como uma abordagem pedagógica que defende a exposição da criança surda à língua de sinais em ambiente escolar, para que seja adquirida de forma natural e como primeira língua. Simultaneamente à aquisição desta língua, defende-se a aprendizagem da língua auditivo-oral como segunda língua, em sua modalidade oral e/ou escrita.
A publicação de uma lei - a Lei de Libras, promulgada em 2002 -, que reconhecia os sinais como mais uma língua brasileira, tensionava um conjunto de práticas defendidas pelo setor saúde, representadas pelos especialistas que influenciam diretamente a construção das políticas voltadas para este segmento. Não é de se espantar que o MS tenha se colocado contra o PL que reconhecia a Libras como principal meio de expressão dos surdos. Esta postura baseou-se nos argumentos que, não só defendiam o acesso às tecnologias reparadoras da audição e o desenvolvimento da oralidade, como também disseminavam a ideia de que a língua de sinais se constituía em um entrave ao desenvolvimento da linguagem.
(...) se achava que se deveria dar chance para todas as pessoas falarem e se desenvolverem cada vez mais e não se limitar. Porque (os especialistas diziam que), ‘segundo as pesquisas’ (grifo meu), (...) as pessoas quando adquiriam a língua de sinais (...) tinham mais dificuldade de se comunicar (...), de adquirir a fala. E a ideia era colocar na tabela do SUS o implante coclear, as próteses, tudo que fosse favorável à fala. (...) Não tinha, dentre os especialistas, nenhum que fosse contra a oralização e, por isso, acabou dando este tom. E também tinha uma conotação assim: a área da educação era a que tinha a responsabilidade pelas questões da Libras (...) o medo era que se (a Libras) se instituísse como uma língua oficial, não desse chance para a oralização. Besteira. Porque as duas coisas podem coincidir (Gestor 2 MS).
A PNASA é resultado, portanto, de práticas de saber-poder pautadas pelo regime de verdade sobre surdez que há séculos se constitui como um discurso verdadeiro. Ela foi criada pensando em um público alvo muito bem definido: o deficiente auditivo, ou seja, aquele que não escuta, mas tem que escutar; o que não fala, mas tem que falar. Qualquer indivíduo que escape a esta norma, mesmo que tenha uma perda auditiva, não se torna objeto da política. A política de saúde criada para as pessoas com deficiência auditiva reitera um sujeito produzido no século XVIII e assume um perfil excludente.
A criação da PNASA era também uma reação contra um saber que estava ganhando cada vez mais espaço, o que ficava evidente com a aprovação da Lei 10.436/2002. Além da própria política em si, o campo da saúde, estrategicamente, demarca os territórios que são dele e da educação.
Desta forma, a saúde atribui para si todas as ações necessárias à normalização do sujeito deficiente auditivo e, ao mesmo tempo, interdita a Libras na saúde, como se fosse um território proibido por onde a língua de sinais não teria permissão para transitar. Para não simplesmente negá-la, o que seria politicamente incorreto, reforça que a responsabilidade por ela é de outro setor - o da educação.
As políticas voltadas às pessoas com deficiência acabam por instituir nos documentos normativos dois tipos de sujeitos: o deficiente auditivo, que pertence à saúde, e o surdo, à educação. Assim, a PNASA acabou por reforçar esta binaridade. Ao indivíduo restava sujeitar-se a estas normatividades, ainda que quisesse transitar pelos dois espaços.
Não estamos fazendo uma crítica sobre o SUS oferecer acesso às tecnologias capazes de auxiliar na oralidade. É importante destacar que isto é um ponto positivo a ser valorizado no sistema brasileiro. O que queremos ressaltar é o fato da política não reconhecer que, dentro do segmento pessoas com deficiência auditiva, há um conjunto de pessoas cuja interação se dá por meio da língua de sinais. Não são raros os relatos de surdos usuários de Libras que são abordados por profissionais que procuram convencê-los de que devem fazer uma cirurgia de implante ou adaptar um aparelho auditivo em detrimento da língua de sinais.
No caso de um surdo adulto, ele também deve ter o direito de escolha respeitado. Ele pode ser usuário de Libras, mas querer aprender a falar; (...) ele precisa ser respeitado e precisa haver serviços bem preparados para isso. Ele não pode procurar um serviço e lá quererem convencê-lo de que ele não deve mais usar língua de sinais (Liderança surda 1).
Apesar de apontarmos que a PNASA foi uma política criada desconsiderando a multiplicidade de sujeitos surdos, há que se reconhecer que ela permitiu atender a um conjunto de necessidades de uma parte significativa da população. A despeito disso, o investimento foi desproporcionalmente maior em tecnologias duras. Se, por um lado, as perdas auditivas estavam sendo mais identificadas e aumentou o acesso a aparelhos auditivos, por outro, se garantiu muito pouco a integralidade do cuidado já que, muitas vezes, ele se encerrava na adaptação do aparelho.
Vale pontuar que compreendemos integralidade como algo só possível de ser alcançado mediante o conhecimento das necessidades de saúde das pessoas, que dizem respeito as suas condições de vida, ao acesso a toda tecnologia de saúde2121 Merhy EE, Feuerwerker LCM. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea In: Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES; Júnior HS, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2016. p.59-72. capaz de melhorar e prolongar a vida, à criação de vínculos entre o usuário e os profissionais, e à autonomia no modo de andar a vida2222 Cecílio LCO. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção em saúde. In: Pinheiro R, Mattos R, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro-São Paulo: IMS/UERJ-ABRASCO; 2001. p.113-26..
Uma das principais críticas refere-se à não criação de mecanismos que garantissem o cuidado integral, superando, por exemplo, dificuldades de acesso ao acompanhamento terapêutico realizado por fonoaudiólogos com o objetivo de promover o desenvolvimento da linguagem, uma vez que este atendimento se concentra nos mesmos serviços onde os aparelhos auditivos são dispensados, longe, muitas vezes, das casas das pessoas.
A integração entre os pontos de atenção, a garantia da integralidade e do acesso para todos os cidadãos de um estado, com alocação de serviços de reabilitação de acordo com a realidade e demanda locais, ainda são objetivos a serem alcançados2323 Maciel FJ, Friche AAL, Januário GC, Santos MFN, Reis RA, Neto RO, Lemos SMA. Análise espacial da atenção especializada na Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência: o caso de Minas Gerais. CoDAS 2020; 32(3):1-7..
A fragmentação do cuidado é um desafio a ser superado não apenas no que diz respeito às pessoas com deficiência, mas que se impõe a todo o sistema de saúde. Por este motivo, o SUS passou por um processo de reavaliação do modelo organizacional, culminando com a adoção das Redes de Atenção à Saúde (RAS), em 2010, como principal estratégia para o alcance da integralidade2424 Tofani LFN, Furtado LAC, Guimarães CF, Feliciano DGCF, Silva GR, Bragagnolo LM, Andreazza R, Chioro A. Caos, organização e criatividade: Revisão integrativa sobre as redes de atenção à saúde. Cien Saude Colet 2021; 26(10):4769-4782..
A partir da implantação deste novo modelo organizacional em Redes Temáticas, foi criada a RCPCD apontado por Louvison2525 Louvison MCP. Regionalização dos sistemas de saúde como resposta às desigualdades territoriais: um debate necessário. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):1-3. como redes que propiciaram maior diálogo entre os atores, mas que não enfrentou problemas estruturais importantes.
Para implantação da RCPCD, tal como na elaboração da PNASA, o MS contou com a colaboração de consultores externos e das sociedades científicas, porém, desta vez, foi montado um grupo mais amplo e diversificado de profissionais da área - o Comitê de Assessoramento à Implementação da RCPCD.
Por outro lado, este comitê, formado por representantes de várias universidades e Centros de Reabilitação para pensar a política, se subdividia em Grupos de Trabalho (GT), sendo que o “GT da Auditiva” não possuía a mesma diversificação de membros. O trecho a seguir ilustra aspectos do seu funcionamento.
O GT (da Auditiva) era bastante homogêneo, principalmente porque tinha muito otorrino. O discurso era muito parecido, o grupo não tinha grandes divergências. Porque a gente estava discutindo na época uma coisa específica que era a questão da protetização, não se estava discutindo reabilitação (neste caso, usado como sinônimo de terapia). Reabilitação, para aquele grupo, era discutir a tecnologia, não era discutir modelos de reabilitação. Isso nunca foi discutido, assim: “vamos discutir o que é melhor para o surdo (...)”. Já era consenso no grupo de que, se a criança é surda, faz o diagnóstico, vai protetizar ou vai para o implante (...). Ia se chegar na reabilitação, ia-se falar, mas esse dia não chegou. Porque tinha pessoas com diferentes formações e ia dar muita polêmica eu acho. (...) Foram poucas as vezes em que foi possível colocar: “não podemos esquecer que tem língua de sinais”. Isso não era um ponto… me parecia assim: isso é uma coisa da educação (Representante de Centro de Reabilitação 1).
Este Comitê teve a chance de avançar num debate que a política anterior não se propôs a fazer, mesmo com a presença de novos atores sociais, pertencentes a outros lugares institucionais. Ao analisar as orientações da nova política descritas no Instrutivo de Reabilitação Auditiva, Física, Intelectual e Visual2626 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do SUS: instrutivos de reabilitação Auditiva, física, intelectual e visual. Brasília: MS; 2014. 78 p., elaborado pelo corpo técnico do MS em conjunto com estes especialistas que, naquele momento, já não se restringiam mais ao grupo da USP Bauru, observamos que o conteúdo é praticamente o mesmo que o da PNASA, com algumas poucas atualizações.
Os documentos orientadores ainda apresentam foco no acesso à tecnologia dura, descrevendo de forma bastante detalhada critérios que dizem respeito à avaliação; à indicação, seleção e adaptação do aparelho de acordo com a idade de aparecimento, tipo e grau da perda auditiva; ao monitoramento periódico do equipamento na vida cotidiana do indivíduo, visando eventuais ajustes eletroacústicos e o oferecimento de orientações quanto ao uso e manuseio do aparelho.
O Gráfico 2 evidencia a ampliação do acesso através do crescente número de aparelhos auditivos dispensados a partir de 2012, quando foi criada a RCPCD.
Os documentos também apontam a necessidade de terapia fonoaudiológica, mas sem grandes orientações sobre esta prática, restringindo-se a dizer que deve ser pautada por uma “reabilitação integral”, sem maiores esclarecimentos.
Páginas e páginas são dedicadas ao aparelho auditivo, algumas linhas ao “acompanhamento fonoaudiológico” e nada em relação às diferentes possibilidades terapêuticas de trabalho com o surdo, incluindo a presença da língua de sinais. Poderia ser uma constatação sem importância se desconhecêssemos as relações de forças, as práticas de saber-poder que permeiam o campo da surdez.
É expressivo não ter sido problematizado o tema da reabilitação, não terem sido postas em análise as abordagens terapêuticas que podem ser adotadas nos Centros de Reabilitação Auditiva. O MS continuava com a mesma postura e com o mesmo discurso sobre a surdez. Se nesta época ele se eximia de pôr em pauta este assunto porque poderia dar muita “polêmica”, é porque ele é um dos espaços onde o discurso verdadeiro sobre a surdez mais ressoa.
Em certa ocasião, este ponto chegou a ser questionado na Comissão Intersetorial deSaúde da Pessoa com Deficiência do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que tinha como membro uma fonoaudióloga que atua sob uma perspectiva bilíngue. O tensionamento se reverberou para o interior do “GT da Auditiva”, sendo rapidamente neutralizado.
Isso só foi citado em uma reunião, a coordenadora comentou que ela ia participar de uma reunião do CNS, em que ia também ter usuários surdos e ser discutida a questão da Libras. Aí teve uma discussão no grupo. E se questionou: “a gente precisava mesmo discutir a questão da Libras? Porque, na verdade, a gente está falando de recursos tecnológicos”. E acabou por aí, nunca mais teve… Provavelmente a coordenadora participou (da reunião no CNS), mas ela não deu retorno para a gente do que aconteceu. Ela só citou isso em uma das reuniões e daí houve um certo estranhamento do grupo, porque também tinha muito otorrino. E eles diziam: “Libras é educação. A gente é saúde”. (...) Isso não voltou mais à discussão (Representante de Centro de Reabilitação 1).
Mais recentemente, entretanto, observamos uma mudança na versão atualizada do Instrutivo de Reabilitação Auditiva, Física, Intelectual e Visual2727 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do SUS: instrutivos de reabilitação Auditiva, física, intelectual e visual. Brasília: MS; 2020. 124 p. que pela primeira vez reconheceu a Lei 10.436/2002 e sinalizou a necessidade da equipe profissional, em conjunto com a família, avaliar a possibilidade de incluir a língua de sinais no processo terapêutico.
Quem tensiona as forças que rondam a política de saúde não é o movimento surdo, mas a categoria de profissionais da reabilitação, mais especificamente fonoaudiólogos adeptos do bilinguismo.
Essa demanda do centro de reabilitação, a questão da Libras no processo terapêutico, é uma demanda dos profissionais que trabalham com terapia, não menos legítima, mas muito circunscrita entre os fonoaudiólogos e na história de formação dos fonoaudiólogos, nessa briga que existe entre quem defende o oralismo e o bilinguismo. É a categoria profissional que coloca essa problemática para a Coordenação-Geral de Saúde da Pessoa com Deficiência (do MS) (Gestor 1 MS).
As disputas entre profissionais que se vinculam ao oralismo e ao bilinguismo parece não se restringir apenas a dar ou não mais visibilidade aos usuários de Libras dentro da política, mas também a garantir espaços de atuação. Seja qual for a corrente à qual o fonoaudiólogo se filia, ela tem sempre um caráter terapêutico que visa restaurar uma norma, o que continua não sendo pauta do movimento social de surdos.
A tentativa de problematizar o trabalho terapêutico com surdos de modo a considerar a língua de sinais foi da categoria de fonoaudiólogos que defende o bilinguismo, não do movimento surdo. Isto se deve ao fato dos surdos usuários de Libras não se reconhecerem nesta agenda e, portanto, não pressionarem o MS, como mostra o trecho abaixo.
O movimento de pessoas surdas pressiona muito pouco a Coordenação-Geral de Saúde da Pessoa com Deficiência, a saúde em geral. As demandas deles estão em outros lugares, eles querem intérprete de Libras nas unidades de saúde, por isso foram criadas as Centrais de Libras (Gestor 1 MS).
Outro ponto que merece análise são as cirurgias de implante coclear que também estão interligadas à RCPCD, especialmente porque o acompanhamento terapêutico dos usuários pode ocorrer nos Centros de Reabilitação Auditiva.
As Diretrizes Gerais para a Atenção Especializada às Pessoas com Deficiência Auditiva2828 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.776, de 18 de dezembro de 2014. Aprova diretrizes gerais, amplia e incorpora procedimentos para a Atenção Especializada às Pessoas com Deficiência Auditiva no Sistema Único de Saúde. [Internet]. [acessado 2017 set 3]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/prt2776_18_12_2014.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis... deixam claro que a reabilitação deve ser baseada no método oral, excluindo a possibilidade da língua de sinais de modo simultâneo.
Acrescenta ainda que ela deve ocorrer na sua cidade de origem, com a intenção de superar a barreira geográfica que, muitas vezes, está na raiz da descontinuidade do cuidado; mas, por outro lado, não cria mecanismos de gestão concretos para que isto se operacionalize e a longitudinalidade do cuidado de fato ocorra.
Nesta linha, tanto quem se submete à cirurgia de implante coclear, quanto quem faz adaptação de aparelho muitas vezes tem o cuidado interrompido quando mais precisaria dele. Nesta configuração, a única parte que não corre riscos de ter “prejuízos” é uma indústria da saúde que tem o SUS como um grande mercado consumidor, visto que ele é totalmente dependente das empresas fornecedoras. Os valores referentes aos investimentos públicos em aparelhos auditivos, como pode ser visualizado no Gráfico 3, são da ordem de milhões de reais anualmente.
Quantidade e valores aprovados de OPM auditiva compradas com recurso federal. Brasil, 2008 a 2017.
É evidente que há interesse econômico de um setor empresarial de equipamentos médicos, que também se pauta pelo discurso médico-patológico da surdez. Um dos surdos entrevistados expressou a convicção de que as práticas dos profissionais, sobretudo médicos, se pautam por uma lógica movida por interesses econômicos.
O grupo e os médicos, famosos inclusive, que fazem essa política não aceitam a Libras, porque o que os médicos querem? Dinheiro! (...) Nós precisamos ser mais respeitados, somos humanos e temos o direito a ter nossa língua, por que não aceitá-la também? (Liderança surda 2).
Apesar de existir quem trabalhe pautado apenas por este tipo de interesse, não acreditamos que as práticas de saber-poder exercidas pelos profissionais sejam exclusivamente por isso. Seria uma visão bastante reducionista e até injusta. Para analisar esta questão, recorremos a dois de nossos intercessores, Deleuze e Foucault, que problematizam as razões pelas quais o exercício do poder pode se justificar.
Quanto ao problema que você coloca - vê-se quem explora, quem lucra, quem governa, mas o poder é algo ainda mais difuso - eu levantaria a seguinte hipótese: mesmo o marxismo - e sobretudo ele - determinou o problema em termos de interesse (o poder é detido por uma classe dominante definida por seus interesses). Imediatamente surge uma questão: como é possível que pessoas que não têm muito interesse nele sigam o poder, se liguem estreitamente a ele, mendiguem uma parte dele? É que talvez em termos de investimentos, tanto econômicos quanto inconscientes, o interesse não seja a última palavra; há investimentos de desejo que explicam que se possa desejar, não contra seu interesse - visto que o interesse é sempre uma decorrência e se encontra onde o desejo o coloca - mas desejar de uma forma mais profunda e mais difusa do que seu interesse2929 Deleuze G, Foucault M. Os intelectuais e o poder: conversa entre Michel Foucault e Guilles Deleuze. In: Foucault M. Microfísica do poder. Org. e trad. Roberto. Machado. Rio de Janeiro: Graal; 2009. p. 69-78. (p. 76).
Este diálogo nos remete à possibilidade de que, ao se subjetivarem por um discurso médico-patológico, os profissionais desejem de fato a “cura” da surdez, lançando mão de todos os recursos possíveis. Em última instância, estes desejos estão perfeitamente alinhados aos interesses das empresas, que têm cada dia mais lucratividade porque há uma massa de profissionais em perfeita sintonia com elas.
Somado a isso, consideramos que fatores como a própria exclusão vivenciada cotidianamente pelos surdos na sociedade e o distanciamento da formação dos profissionais em relação à população surda e sua cultura, acabam por provocar um real desconhecimento de suas necessidades de saúde, contribuindo para que os formuladores de políticas, bem como a equipe assessora, adotem práticas de saber poder que vão na contramão da integralidade da atenção à saúde.
Conclusão
As práticas de saber e poder que giram em torno da surdez, inevitavelmente, tiveram repercussões nas políticas públicas, que são produto de um ou vários governos, atravessados por inúmeras forças. Identificamos que as políticas de saúde - Política Nacional de Atenção à Saúde Auditiva e Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência - foram pautadas por um regime de verdade sobre a surdez que há séculos se constitui como um discurso verdadeiro e que não reconhece que o sujeito surdo pode ser vários, com diferentes necessidades que podem incluir ou não o acesso à tecnologia.
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Financiamento
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
22 Abr 2022 - Data do Fascículo
Abr 2022
Histórico
- Recebido
08 Jan 2021 - Aceito
13 Maio 2021 - Publicado
15 Maio 2021