“Nós, mães de autistas”: entre o saber da experiência e as memórias coletivas em vídeos no YouTube

Bárbara Morais Santiago Freitas Paula Gaudenzi Sobre os autores

Resumo

Este artigo é resultado de uma pesquisa que analisou narrativas de mães de autistas sobre suas experiências com seus filhos, que foram produzidas e compartilhadas por elas por meio de vídeos no YouTube. Utilizamos a metodologia qualitativa, que nos permitiu debater a lógica e os significados atribuídos à doença, à saúde, à maternidade e ao cuidado dos filhos, em direção a uma reconstrução narrativa produzida por nós, pesquisadoras. Observamos que essas mulheres falavam prioritariamente sobre suas experiências como mães de autistas e abordavam diretamente os percalços emocionais de ter um filho com autismo, tais como o luto do filho ideal promovido pelo diagnóstico e a construção do cuidado de uma criança autista. Por meio dos vídeos, as mães formam um grupo de identificação, baseado na premissa de que viveram experiências comuns, as quais geram um grande valor e se transformam em um capital existencial. Falar sobre tais experiências em um espaço público e de grande alcance como o YouTube produz, entre outras coisas, memórias coletivas que possibilitam o desenvolvimento de uma comunidade afetiva. Compreendemos que a história individual relatada e produzida nos vídeos pode ajudar emocionalmente e pragmaticamente outros que possuem uma vivência parecida, permitindo que o cotidiano seja reabitado.

Palavras-chave:
Autismo; Maternidade; Mídias sociais; Narrativa

Introdução

Este artigo é um recorte de uma pesquisa que analisou narrativas de mães de autistas sobre suas experiências com seus filhos, que foram compartilhadas por elas por meio de vídeos no YouTube11 Freitas B. "Toda mãe de autista sabe do que eu estou falando": narrativas compartilhadas por mães de autistas em uma plataforma digital de vídeos [dissertação]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2020.. A importância cada vez maior da Internet na vida das pessoas, atravessando desde as relações interpessoais até setores econômicos22 Silva SP, Mundim PS. Mediações no YouTube e o caso 'Ocupação do Complexo do Alemão': características e dinâmica de uso. Intercom 2015; 38(1):231-253.,33 Hine C. Ethnography for the internet: Embedded, embodied and everyday. London: Bloomsbury; 2015., e a contribuição significativa das redes sociais digitais para a construção do sentido público sobre saúde44 Nunes F. Por amor e por direitos: as gramáticas do afeto e da política nas mobilizações públicas de familiares de autistas. Cadernos de Campo 2017; 25(25):222-245. indicam a relevância do presente trabalho.

Ademais, não é raro os familiares de autistas expressarem, durante os atendimentos clínicos, que informações compartilhadas por famílias de crianças com autismo na internet os ajudam no cuidado cotidiano de seus filhos44 Nunes F. Por amor e por direitos: as gramáticas do afeto e da política nas mobilizações públicas de familiares de autistas. Cadernos de Campo 2017; 25(25):222-245.,55 Dester L. Narrativas parentais sobre os sentidos do diagnóstico de autismo do filho. [dissertação] Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas; 2015.. O intuito de escutar as mães originou-se do interesse em analisar o que era dito sobre o autismo por pessoas que não são especialistas - como são os médicos e terapeutas -, ou seja, pessoas que não tinham capital cultural66 Bourdieu P. Os três estados do capital cultural. In: Catani A, Nogueira MA, organizadores. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes; 2007. p.71-80. para falar sobre o autismo, mas que tinham a experiência cotidiana de lidar com crianças autistas.

Aspectos metodológicos

A pesquisa foi realizada na plataforma digital de compartilhamento de vídeos YouTube, pois há diversas menções sobre sua utilização pelos pais em pesquisas sobre parentalidade e autismo55 Dester L. Narrativas parentais sobre os sentidos do diagnóstico de autismo do filho. [dissertação] Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas; 2015.. O YouTube é uma plataforma de conteúdo colaborativo, o maior site de publicação e exibição on-line de vídeos77 Burgess J, Green J. YouTube e a revolução digital. São Paulo: Aleph; 2009.,88 Pellegrini D, Reis D, Monção P, Oliveira R. YouTube: uma nova fonte de discursos. Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação 2010:1-8. [acessado 2021 jan 7]. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-pelegrini-cibercultura.pdf
http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-pelegrin...
. Sua popularidade decorre, em grande parte, das características técnicas, que permitem que o compartilhamento seja feito de forma prática e simples. Grande parte do conteúdo disponível na plataforma é produzida por pessoas comuns99 Strangelove M. Watching YouTube: extraordinary videos by ordinary people. Toronto: University of Toronto Press; 2010..

As mães que compartilharam os vídeos analisados o fizeram no modo público e, portanto, estão cientes de que tais conteúdos estão disponíveis para acesso a todos os usuários da plataforma. Logo, com base na Resolução nº 510/2016, não houve necessidade de submeter a pesquisa ao sistema CEP/CONEP. Ainda assim, tivemos o cuidado de proteger a identidade daqueles que participaram dos vídeos analisados nesta pesquisa.

Os principais recursos da plataforma que foram relevantes para nossa pesquisa foram: o player, no qual o vídeo é exibido; a seção de comentários, na qual usuários e produtores podem escrever mensagens textuais; e os canais em que ficam organizados todos os vídeos compartilhados por determinado usuário. Analisamos as imagens e as narrativas produzidas nesses espaços, além das interações sociais que lá ocorreram.

Como nosso interesse era investigar as narrativas produzidas pelas mães de crianças com autismo, utilizamos a metodologia qualitativa, que nos permitiu debater a lógica e os significados atribuídos à doença, à saúde, à maternidade e ao cuidado dos filhos. Seguimos o caminho apontado por Castellanos1010 Castellanos ME. A narrativa nas pesquisas qualitativas em saúde. Cien Saude Colet 2014; 19(4):1065-1076. em direção a uma reconstrução narrativa produzida por nós, pesquisadoras. Esta narrativa é considerada um segundo nível de interpretação, sendo o primeiro nível a narrativa em si do sujeito pesquisado - no caso desta pesquisa, as mães que produziram os vídeos. Optamos por este método pois também compreendemos que os vídeos compartilhados no YouTube não expõem, em si, a “verdade” do sujeito pesquisado.

Com vistas a selecionar os vídeos com maior capilaridade entre os pais de crianças com autismo, optamos pela estratégia comumente utilizada na plataforma para acessar conteúdos de interesse1111 Montaño S. Apontamentos para a pesquisa do audiovisual em plataformas de vídeo. Anais do 38º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Rio de Janeiro; 2015.: mecanismo de busca e palavras-chave. Os dados foram colhidos em maio de 2019. Buscamos pelas palavras “filho autista” na plataforma e aplicamos o filtro “classificar por”, na opção “contagem de visualizações”, selecionando para triagem os primeiros 50 vídeos mais visualizados. Por fim, elegemos para análise aqueles produzidos por familiares, totalizando 18 vídeos. Para sistematizar a análise, abrimos um arquivo de texto para cada vídeo e colocamos as informações descritivas, transcrições de trechos dos vídeos, comentários e, simultaneamente, fizemos relações com as teorias e interpretações que emergiram durante a visualização de cada vídeo.

Resultados e discussão

Os vídeos analisados possuem um total de 3.656.796 visualizações, têm duração heterogênea - o mais longo com 19min55s e o mais curto com 2min19s - e foram publicados em 2018 (6), 2017 (6), 2016 (2), 2013 (2) e 2011 (2). Em 2019, não surgiu nenhum vídeo produzido por mães sobre seus filhos autistas, provavelmente porque a pesquisa foi realizada no início do ano. Havia 3.875 comentários, distribuídos em oito dos vídeos - os demais não tinham comentários, pois a seção fora “desativada” pelos canais.

Todos os vídeos foram feitos por mães, e algumas delas foram responsáveis por mais de um vídeo. Assim, identificamos aqueles vídeos que foram produzidos pela mesma pessoa e chegamos a dez canais que foram analisados. Dentre eles: sete têm menos de 20 mil usuários inscritos, poucos vídeos no canal e/ou publicações irregulares; e três têm uma quantidade média de 100 mil usuários inscritos e publicações regulares. A maioria (7) destes canais falam sobre maternidade exclusivamente na realidade do autismo e os outros sobre maternidade em geral, incluindo a experiência com um filho autista.

Em termos de linguagens verbal e visual utilizadas, os vídeos se assemelham a outros no YouTube. São vídeos que convocam os usuários a se inscreverem no canal, curtirem o vídeo e compartilharem com os amigos. Em sua maioria, as mães aparecem sozinhas, em ambientes internos; as falas são organizadas e claras, demonstrando que seguem algum tipo de roteiro e preparação; e as mães estão vestidas casualmente e maquiadas. Este grupo de vídeos pode ser descrito como testemunhal22 Silva SP, Mundim PS. Mediações no YouTube e o caso 'Ocupação do Complexo do Alemão': características e dinâmica de uso. Intercom 2015; 38(1):231-253. - aqueles em que a pessoa oferece o seu testemunho como se estivesse conversando com o telespectador - ou didático22 Silva SP, Mundim PS. Mediações no YouTube e o caso 'Ocupação do Complexo do Alemão': características e dinâmica de uso. Intercom 2015; 38(1):231-253. - aqueles que possuem uma narrativa informativa, com o intuito de demonstrar determinado aspecto de uma questão.

Alguns poucos vídeos mostram as crianças e suas “evoluções”. Estes, em geral, não possuem falas diretas, apenas imagens e textos mostrando algo que foi aprendido, aparentemente, sem produção prévia. A qualidade do áudio, da imagem e da edição são visivelmente amadoras e os vídeos parecem ter sido gravados com smartphones.

As informações sobre as mães eram insuficientes, o que impossibilitou traçar um perfil apurado delas. Mas identificamos, por meio das vestimentas, do espaço físico e da linguagem, que se tratava de uma maioria jovem adulta e, provavelmente, pertencente à classe média. Quando investigamos outros vídeos do canal, as poucas informações disponíveis falavam sobre o lugar em que moravam e o tipo de rede de saúde que acessaram. Por exemplo, três famílias moravam no exterior (EUA e Europa) e as sete demais moravam no Sudeste do Brasil. Duas das famílias utilizavam o SUS no tratamento de seus filhos, duas frequentavam serviços mistos (financiados em parte pelo governo) e seis, tratamentos particulares.

A idade aproximada dos filhos variava entre três e sete anos, sendo que em apenas um vídeo a mãe fala sobre o filho (autista) adulto. Além disso, a grande maioria deles é do sexo masculino, sendo apenas uma menina. Identificamos que as mães descrevem seus filhos categorizando-os em “graus do autismo”. A maioria denomina seus filhos como “autistas moderados”, outras como “autista leve”. O único adulto é considerado com “autismo severo” e uma mãe dizia que ainda não sabia “o grau”.

Conforme indicamos, buscamos vídeos produzidos por familiares de pessoas com autismo acerca desta condição e percebemos que são as mães as principais produtoras dos vídeos. Contudo, a busca por narrativas sobre o autismo resultou em vídeos que abordavam, em primeiro plano, as mudanças nas vidas das mães a partir do nascimento do filho e, mais especificamente, após o diagnóstico atribuído ao filho. Os vídeos traziam pouco a discussão sobre o autismo enquanto entidade nosológica e davam relevo ao autismo atravessando a experiência de maternidade com essas crianças.

Mesmo quando a indicação do vídeo era de que abordaria o autismo descrevendo-o a partir das etapas do desenvolvimento e de outras caracterizações, a maioria tratava prioritariamente da forma como as mães vivenciam e vivenciaram estes processos. Temos como exemplo um vídeo no qual aparecem mãe e filho, e a mãe diz: Hoje a mamãe vai falar sobre você. A mamãe pode falar sobre você?” e segue narrando o percurso e os sentimentos vividos por ela na definição diagnóstica de seu filho e como seu cotidiano mudou diante dessa “descoberta”.

Observamos que as mães se identificam como “mãe de autista” a partir da aposta de que suas vivências eram semelhantes a de outras mães com filhos autistas, sobretudo a partir do diagnóstico atribuído. Ademais, identificamos que as mães dos vídeos analisados tinham um saber fruto da experiência que se configura como um capital existencial1212 Nettleton S. Cementing Relations Within a Sporting Field: Fell Running in the English Lake District and the Acquisition of Existential Capital. Cult Sociol 2013; 7(2):196-210., apontando para um valor/capital que se constitui a partir de formações coletivas, pautadas em identificações das vivências pessoais. Neste bojo, algumas dessas mães identificam que apenas quem experimenta a situação - ter um filho autista - pode compreendê-la e compartilhar um universo comum.

A partir dessas percepções, dividimos nossa análise em dois grandes temas, interligados: “A ‘mãe de autista’: experiências em torno do diagnóstico” e “Construção do comum entre o saber da experiência e as memórias compartilhadas”.

A “mãe de autista”: experiências em torno do diagnóstico

Vimos nos relatos dos vídeos que as mães se constituem enquanto mães a partir do autismo do filho e é difícil se enxergarem apenas como mães: são mães de autistas. Apresentar-se publicamente por meio de referenciais simbólicos de seus filhos foi observado em outras pesquisas1313 Vianna A, Farias F. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu 2011; 37:79-116.,1414 Novais K. Lutar, amar e sofrer entre as Mães pela Diversidade. Sexualidad Salud y Sociedad 2020; 36:291-316 e nos abre o caminho para entender a identidade que emerge da imagem de si, composta pela díade mãe-filho. Algumas mães se identificam como “mãe azul”, fazendo referência à cor que usualmente é utilizada para representar o autismo44 Nunes F. Por amor e por direitos: as gramáticas do afeto e da política nas mobilizações públicas de familiares de autistas. Cadernos de Campo 2017; 25(25):222-245.,1515 Pereira AK, Souto V. A cor do autismo e sua relevância na representação simbólica de mulheres. Anais do 9º Congresso Internacional de Design da Informação Sociedade Brasileira de Design da Informação. Belo Horizonte; 2019. p.1403-1411., como na fala de um vídeo: nossa vida de mãe e, principalmente, (para e ri e diz num tom de confissão) eu ia dizer mãezinha azul (volta para o tom normal). Ao incorporar à experiência de maternidade a cor azul ou a qualidade de “autista”, a um só tempo, as mães dos vídeos se diferenciam das demais mães que não fazem parte deste grupo e colocam luz no processo de tornar-se mãe a partir da especificidade de seus filhos. Assim escreve uma mãe na descrição de seu vídeo: Ser mãe de um autista não é fácil...só quem vive essa luta diária sabe...

A partir das narrativas, identificamos que a entrada das mães na realidade do autismo é mais expressiva a partir do diagnóstico de seus filhos. Segundo Rosemberg1616 Rosenberg CE. The tyranny of diagnosis: specific entities and individual experience. Milbank Q 2002; 80(2):237-260., o ato de ser diagnosticado articula a experiência individual com o social, tratando-se de um ritual de passagem da incerteza para uma narrativa estruturada. As mães narram uma relação paradoxal com o diagnóstico, pois ao mesmo tempo em que indicam alívio por dar sentido às diferenças observadas no comportamento de seus filhos, se veem em um lugar social complexo e desconhecido. Se antes a angústia emergia do fato de não saber o que está acontecendo, agora emerge de não saber como será o futuro e da necessidade de ressignificação sobre quem é o seu filho.

As mães descrevem que, quando o diagnóstico médico é atribuído, algo de “novo” se impõe. Expressões como “caiu a ficha”,um baque”, relatos de choros e sensação de desamparo são comuns entre elas. Tais descrições vão ao encontro do que Moreira et al.1717 Moreira MC, Nascimento MA, Campos D, Albernaz L, Costa AC, Barros L, Horovitz D, Martins A, Madureira A, Oliveira N, Pinto M. Adoecimentos raros e o diálogo associativo: ressignificações para experiências morais. Cien Saude Colet 2019; 24(10):3673-3682. analisaram sobre a experiência de familiares de crianças e adolescentes com doenças raras, marcada pelo “susto” do diagnóstico.

Instaura-se um “antes e depois” na história das mães, experiência esta que pode ser lida como uma “ruptura biográfica”1818 Bury M. Doença crônica como ruptura biográfica. Tempus (Brasília) 2011; 5(2):41-55.. Isto é, as bases simbólicas, recursos materiais e afetivos em que a vida da pessoa se estruturava até então são significativamente abaladas. Inicia-se, destarte, uma imersão em um novo mundo, permeado por experiências oriundas da condição de seus filhos e pelos aspectos subjetivos relacionados.

Para as mães dos vídeos analisados, o antes se articula com os ideais e as expectativas construídas pela mãe em relação ao seu bebê, os quais começam a claudicar a partir da “intuição” de que seu filho tem “algo de errado”. O depois, por seu turno, é oriundo da confirmação médica do diagnóstico, que coloca a mãe em um novo universo, à medida que novos encontros se constroem com os médicos, com o sistema de saúde, com a linguagem médica, com os termos técnicos e com os próprios fantasmas.

O momento desde a percepção de que algo está diferente com o filho até conseguir um diagnóstico é descrito muitas vezes como “luta pelo diagnóstico”, entendido como algo a ser batalhado. O caminho percorrido até “conseguir” o diagnóstico é longo e, por vezes, atravessado por queixas de incapacidade técnica dos profissionais. De um lado, a percepção das mães de que há “algo de errado” e, do outro, a posição dos especialistas de que “é apenas um atraso”, “ele só tem um atraso na fala” ou “você está procurando doença para seu filho”.

A “luta” é para que as diferenças que as mães identificam em seus filhos sejam reconhecidas como um significante biomédico, passando de “algo de errado” para autismo. Como podemos verificar em um dos comentários: A psicóloga me disse q eu é q preciso de terapia e que estou procurando doença para meu filho, detalhe: ela só o vê uma vez por semana, eu o acho estranho e diferente desde bebê... Ou ainda: A nossa luta é grande! Conseguir um diagnóstico, conseguir um médico que dê o diagnóstico. Conseguir tratamento, porque todo mundo acha que não precisa. Aí a gente vai ter que conseguir convencer os outros que o nosso filho é autista. É muito cansativo.

Apesar de todas as crianças serem diferentes das fantasias das mães e dos pais, o processo subjetivo de adequação entre o que foi fantasiado e a criança real é especialmente delicado no caso de crianças com dificuldades de desenvolvimento1919 Mannoni M. A criança retardada e a mãe. São Paulo: Martins Fontes; 1999.. Nas projeções parentais, não se espera que algo possa interferir no desempenho da criança. Este processo é representado na seguinte fala em um dos vídeos: ...ninguém engravida querendo ter um filho deficiente. Então, é um choque muito grande. Você idealiza uma criança na sua cabeça, você põe expectativas, você já imagina momentos com aquela criança, já imagina uma vida inteira para aquele serzinho que está dentro da sua barriga.

Há ainda relatos que expressam a “perda do filho”, indicando o luto do filho ideal, quando aquele filho que foi imaginado passa a não existir mais. Uma mãe relata sobre o momento em que o médico confirmou o diagnóstico: foi como se tivessem me arrancado todos os meus sonhos, todas as minhas expectativas. Como se tivessem me arrancado aquela [nome da criança], levado ela embora e me entregado outra e dissessem ‘fica com essa aqui’!

Considerando que a maternidade é uma construção que passa por aspectos da singularidade psíquica da mulher, atravessados por aspectos socioculturais, é preciso que a mulher que dá à luz um bebê ocupe o lugar subjetivo de mãe2020 Freud S. Introdução ao narcisismo In: Freud S. Obras completas Volume 12 - Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) São Paulo: Companhia das Letras; 2010. p. 9-37.. As insígnias culturais como, por exemplo, a idealização da maternidade ou o ideal de normalidade compartilhado conformam o modo de experienciar ser mãe e, neste sentido, mulheres que possuem filhos autistas podem ter impactos significativos no que se refere aos planos para o futuro e como valoram suas famílias, inclusive no que se refere à própria identidade de mãe. Isso é ilustrado, por exemplo, em um vídeo em que a mãe relata que, ao entender que sua filha com autismo seria diferente de seus ideais e expectativas, precisaria então ser outra mãe para ela.

A idealização da maternidade pressupõe não apenas a “mãe ideal”, mas também o “filho ideal”. Com o desenvolvimento da criança, a idealização que fora construída a seu respeito é confrontada com as características da criança real. Aos poucos, se opera uma mudança na representação psíquica das mães no que se refere ao filho e se dá um processo de ajuste sobre como ele atuará em sua economia psíquica, como expressou uma mãe: Eu sou a mãe da [nome da filha] e eu como mãe não quero que nada aconteça com a minha filha. Eu queria que ela nascesse sem nenhum tipo de dificuldade, sem nenhum tipo de comprometimento, sem nenhum diagnóstico.

Apesar das mães de autistas não serem um grupo homogêneo - pois constroem e atribuem sentidos próprios para o autismo de seus filhos e expressam diferentes formas de lidar com o diagnóstico -, o impacto subjetivo do diagnóstico ressoa de forma parecida entre elas, na medida em que está estreitamente vinculado à maneira como o autismo é representado socialmente e como são construídas as narrativas públicas sobre o lugar das mães e dos pais. É necessário reinventar-se, reorganizar a dinâmica familiar e, principalmente, reconfigurar o que é considerado “normal”. Inaugura-se, no encontro com o diagnóstico de uma criança, uma nova mãe, com novos planos e que passa a se entender a partir da identidade de “mãe de autista”.

Dois âmbitos principais merecem destaque neste cenário de construção da “maternidade autista”. O primeiro refere-se às especificidades das vivências - comuns - de mães de filhos autistas, sobretudo aquelas ligadas com o cuidado com os filhos. O segundo âmbito, interligado com o primeiro, refere-se à construção do sentimento de identidade - de “mãe de autista”. Na medida em que as mães se identificam desta forma, constrói-se uma ideia de grupo, que será melhor explorada no tópico seguinte.

As mães que acolhem a diferença de seus filhos, apesar das suas expectativas de maternagem quebradas, constroem subjetivamente novas relações com eles para tornar possível a vivência da maternidade. Cuidar de uma criança com autismo é uma atuação complexa e permeada de contradições, mas é também o lidar com eles em seus cotidianos que permite a construção do lugar subjetivo de “mães de autistas”. Lidar no cotidiano significa acompanhar o desenvolvimento “atípico” de seus filhos, aprender com eles que o tempo de espera “dos marcos” (do desenvolvimento) é outro, que as formas de se comunicar são diversas.

Lidar no cotidiano com as excentricidades dos filhos é também experimentar um cotidiano que se apresenta muitas vezes como violento. Estas crianças e seus familiares estão inseridos em um ambiente que não é preparado para suas formas de estar na vida. Recolhem os efeitos do estigma e do preconceito oriundos de suas performances atípicas.

Sobre isso, reflete uma mãe em seu vídeo: Muita terapia na vida de uma pessoa para superar o fato de que você é uma pessoa neuroatípica vivendo em um mundo desenhado para neurotípicos. Ela reconhece o preconceito manifestado em olhares indiscretos, motivados pela repulsa à diferença e produtores de exclusão social. Esta mãe escolhe nomear a diferença fazendo referência ao movimento da neurodiversidade que considera o autismo não como uma doença que deve ser tratada ou curada e sim como uma manifestação das diferenças humanas2121 Ortega F. Deficiência, autismo e neurodiversidade. Cien Saude Colet 2009; 14(1):67-77.. Outra mãe conta sobre as queixas que a escola fazia constantemente acerca do comportamento de seu filho: (...) na escola ele não parava quieto, ele ficava com as mãos no ouvido. (...) Antes na sala de aula era uma reclamação todo dia, todos os dias reclamavam que o [nome do filho] não sentava, fazia bagunça, fazia isso, fazia aquilo…

A falta de acolhimento às diferenças dos autistas, os olhares indiscretos e as mais diversas situações preconceituosas tendem a provocar nas mães a evitação do convívio social2222 Zanatta E, Menegazzo E, Guimarães A, Ferraz L, Motta MG. Cotidiano de famílias que convivem com o autismo infantil. Rev Baiana Enferm 2014; 28(3):271-282.. Este é um ponto importante de identificação entre as mães e as mobiliza a se reunirem e a ajudarem outras mães. As mães dos vídeos se identificam como mães que ajudam e que são ajudadas e associam o “mostrar o dia a dia” com a “ajuda”. Em um vídeo, cujo conteúdo é a experiência do filho com determinado medicamento, relatando os efeitos e o processo de decisão em medicá-lo ou não, temos o seguinte comentário: Você ajudou muito nós mães de filhos autistas.

Falar sobre as experiências vividas significa, em outros termos, narrar sobre memórias individuais acerca do cotidiano com um filho com autismo. Entretanto, quando essas memórias compartilhadas pelos vídeos são acessadas por outras mães cujas experiências são semelhantes, testemunhamos a construção de fortes identificações. Como ilustra a fala de uma mãe que, ao narrar sobre uma dificuldade cotidiana, interrompe suas explicações para dizer: As mães que têm crianças com autismo vão saber do que eu tô falando. Além disso, constantemente, as mães dos vídeos se utilizam da primeira pessoa no plural para narrar sobre suas experiências, nós, mães de autistas.

A cada vídeo produzido, visto, revisto, a cada comentário lido, relido, respondido, estas mães habitam e reabitam o cotidiano2323 Ortega F. Rehabitar la cotidianidad. In: Ortega F, editor. Veena Das: Sujetos del dolor, agentes de dignidad. Bogotá: UNAL; 2008. p. 15-70.. Apesar de serem narradas experiências individuais, há algo da ordem do comum que possibilita que as mães de autistas se identifiquem como tal, no registro de uma identidade social, como refere Pollak2424 Pollak M. Memória e identidade social. Estudos Históricos 1992; 5(10): 200-212.. A partir das experiências e memórias compartilhadas, constrói-se uma identidade social que agrega vivências e reforça o espírito de coletividade na esfera social.

Construção do comum entre o saber da experiência e as memórias compartilhadas

Vimos que há experiências comuns que permitem uma forte identificação entre as mães de autistas e como consequência a construção da identidade “mãe de autista”. Para Pollak2424 Pollak M. Memória e identidade social. Estudos Históricos 1992; 5(10): 200-212., a identidade é compreendida como a imagem que construímos sobre nós para nós mesmos e para os outros. A identidade social é articulada com as memórias, tanto coletivas quanto individuais, e ambas são constituintes da noção de unidade, de coerência da pessoa. Outro aspecto fundamental é que uma identidade é construída em relação ao olhar do outro: A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros2424 Pollak M. Memória e identidade social. Estudos Históricos 1992; 5(10): 200-212.. (p. 204). Memórias e identidades não são essências ou algo imutável, pelo contrário, são construções que dialogam com as disputas e valores em jogo em um dado contexto sociocultural2424 Pollak M. Memória e identidade social. Estudos Históricos 1992; 5(10): 200-212..

Além da identificação entre as mães, observamos a existência de memórias compartilhadas que sustentam a ideia de comunidade e que criam alianças. Uma das formas de criar a aliança entre as mães se dá a partir do compartilhamento de suas experiências cotidianas, principalmente pelo fato das mães com crianças com desafios no desenvolvimento, em geral, não terem pessoas no seu dia a dia com vivências semelhantes2525 Silva E. Cuidadoras de pessoas com deficiências: uma análise à luz da categoria de gênero. Anais Eletrônicos do 3º Seminário Nacional de Educação, Diversidade Sexual e Direitos Humanos.Vitória; 2014.. Como nos conta uma mãe: Aqui, eu não consigo pegar na mão das pessoas, não consigo abraçar, porque, aqui, eu recebo muitos recados mas com os vídeos que eu posto, com as atividades que posto, como meu dia a dia (...) eu consigo ajudar de alguma forma.

Em um cenário diferente, narrado por Vianna e Farias1313 Vianna A, Farias F. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu 2011; 37:79-116., sobre o movimento de mães de vítimas da violência policial, as autoras observaram a construção de um sentimento de coletividade a partir do compartilhamento de uma dor pessoal. A cena paradigmática que trouxeram foi de uma assembleia pública, na qual uma mãe autoriza-se a falar pelo que entende ser seu grupo. Como referem, “em nome de um coletivo ao mesmo tempo vago, porém identificável de modo mais ou menos concreto”1313 Vianna A, Farias F. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu 2011; 37:79-116. (p.82), a mãe narra a dor de perder seu filho, mas diz “nós, mães” quando fala publicamente sobre seu sofrimento.

As experiências cotidianas desafiadoras exigem que as mães reconstruam suas relações também cotidianas, isto é, criem formas de reabitar o cotidiano, determinando as subjetividades dessas mulheres. Cotidianidade, nesta perspectiva, significa uma unidade que encontra sua expressão concreta nas comunidades às quais as mães pertencem, nas quais se definem repertórios de enunciados e ações e se encontram os recursos socioculturais com que enfrentam as adversidades. Ademais, são as ações cotidianas e os gestos de hospitalidade, a moralidade no registro do comum, os fios entrelaçados no tecido da vida, diz Das2626 Das V. Ordinary ethics. In: Fassin D, editor. A Companion to moral anthropology. West Sussex: John Wiley and sons; 2012. p.133-149., que promovem satisfação e possibilitam a reparação. Sobre isso, temos uma mãe que se despede em seu vídeo falando que tem muita coisa para compartilhar, fazendo a seguinte ressalva: não sou uma terapeuta, eu não sou uma fono, eu sou só uma mãe querendo dividir coisas de mãe com você.

Na esteira de Pollak2424 Pollak M. Memória e identidade social. Estudos Históricos 1992; 5(10): 200-212., entendemos que as narrativas analisadas, apesar de singulares - pois são percepções da realidade vivida -, são um fenômeno coletivo e social, na medida em que os cenários que compõem o cotidiano ou que são criados no imaginário coletivo conformam as lembranças que compõem as experiências individuais das mães. As memórias individuais, ao estarem inseridas em uma coletividade, são atravessadas por memórias coletivas herdadas pela socialização. Coletividade, aqui, pode ser entendida como a sociedade em que vivem, mas também os pequenos grupos aos quais as mães pertencem, como, por exemplo, o canal de YouTube e as interações que lá ocorrem. Neste sentido, os vídeos do YouTube podem ser lidos como locus de expressão das experiências e de socialização e produção de novas memórias.

Acontecimentos, personagens e lugares são, segundo Pollak2424 Pollak M. Memória e identidade social. Estudos Históricos 1992; 5(10): 200-212., os critérios formadores de memórias coletivas e individuais, sendo constitutivos da identidade social. Os acontecimentos podem ser vividos pessoalmente, no cotidiano do indivíduo, mas também “por tabela”, ou seja, por um grupo ao qual a pessoa se sente pertencer e, apesar de não serem vividos pessoalmente pelo indivíduo, ganham uma força significativa no imaginário. Assim, a memória se constitui não apenas pelo vivido concretamente, mas também por uma espécie de memória herdada.

Diretamente ou por tabela, também podem ser frequentadas pessoas e personagens que contribuem para a criação da memória. Além das pessoas encontradas no decorrer da vida que compõem os cenários de relacionamentos interpessoais, Pollak2424 Pollak M. Memória e identidade social. Estudos Históricos 1992; 5(10): 200-212. se refere às personagens frequentadas “por tabela”, que se transformam quase que em conhecidas, assim como figuras reconhecidas histórica ou politicamente. O mesmo pode ser dito sobre os lugares, que fazem parte de lembranças pessoais ou de uma memória pública.

As mães produtoras dos vídeos vivenciam experiências cotidianas com seus filhos, mas também vivenciam acontecimentos “por tabela” ao interagirem com outras mães. Assim, os conteúdos cotidianos transmitidos pelos vídeos constituem as memórias não apenas de quem produz, mas também de quem os assiste. A identificação em relação aos acontecimentos pode ser vista no uso constante da primeira pessoa do plural também nos comentários sobre os vídeos publicados, além de falas apontando a similaridade do vivido, tais como Deus abençoe!!!achava que somente eu passava por essas experiências.vc é show parabéns e Incrível!!! Comigo foi a mesma coisa!!

As elaborações das mães sobre o autismo, a maternidade autista e a identidade social “mãe de autista” formam as bases para que as mães identifiquem que têm um saber para transmitir, um saber que é reconhecido e legitimado por outras mães. Aqui está em jogo um capital que engloba a variável existencial, pois refere-se diretamente ao cotidiano e às vicissitudes de ser mãe de autista, sendo a experiência um princípio de diferenciação poderoso entre os que vivem a condição e aqueles que não vivem e, neste sentido, a narrativa daqueles é uma forma de transmissão que informa e que constrói formas de estar no mundo (com o filho autista).

O que está em jogo é quem tem o saber necessário para falar sobre a condição autista para além dos especialistas - médicos, em sua maioria. As mães têm um lugar de destaque entre aquelas que sabem sobre a condição dos filhos, na medida em que há um valor oferecido à experiência individual que se traduz no reconhecimento de um saber produzido a partir da experiência. Segundo Nunes44 Nunes F. Por amor e por direitos: as gramáticas do afeto e da política nas mobilizações públicas de familiares de autistas. Cadernos de Campo 2017; 25(25):222-245., é comum as associações de familiares oferecerem cursos, atividades pedagógicas e palestras sobre autismo e, apesar de convocarem “especialistas” de áreas como o direito, pedagogia e psicologia, oferecerem um importante lugar de fala aos familiares e associados, levando suas experiências e opiniões para esses espaços.

Para Rios2727 Rios C. Expert em seu próprio filho, expert em seu próprio mundo - Reinventando a(s) expertise(s) sobre o autismo In: Rios C, Fein E, organizadoras. Autismo em tradução: uma conversa intercultural sobre condições do espectro autista. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens; 2019. p. 231-258., apesar de heterogêneas quanto ao contexto de fundação e características das famílias, uma marca constante da maioria das associações é legitimar suas ações por meio de uma combinação de ações baseadas em evidência chancelada pelo saber da experiência. O reconhecimento do saber das mães a partir das experiências com seus filhos vai de encontro à perspectiva moderna de que as mães devem aderir às diretrizes científicas transmitidas pelos médicos para cuidar de seus filhos2828 Tourinho J. A mãe perfeita: idealização e realidade. IGT na Rede 2006; 3(5): 1-33., sem levar em consideração as especificidades das crianças, da mãe e da relação que se constitui entre o par.

Para Larrosa, o saber da experiência possui uma qualidade existencial, isto é, sua relação com a existência, com a vida singular e concreta de um existente singular e concreto2929 Larrosa J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ 2002; 19:20-28. (p. 27). Não se trata de serem bem informadas - apesar de muitas vezes serem -, mas de serem tocadas pela condição de seus filhos e, a partir disso, produzirem um saber. Assim, se por um lado se trata de um saber particular, subjetivo e contingente, marcado por experiências singulares, por outro, as vivências têm pontos de encontro, caminhos que se cruzam, territórios que se assemelham. As mães têm algo em “comum” partilhado: suas “lutas”, seus sentimentos, seus desafios cotidianos e a construção da maternidade dentro da realidade do autismo.

A diluição das diferenças em prol de um comum se estabelece, em uma de suas dimensões, devido à constituição de um capital existencial oriundo do entendimento de que apenas quem experimenta determinada situação pode compreendê-la e a partir disso, narrar, transmitir e compartilhar. A força desta ideia cria um universo comum, um universo de pessoas “hábeis” a falar sobre determinado tema1212 Nettleton S. Cementing Relations Within a Sporting Field: Fell Running in the English Lake District and the Acquisition of Existential Capital. Cult Sociol 2013; 7(2):196-210.. Assim apresentam também Vianna e Farias1313 Vianna A, Farias F. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu 2011; 37:79-116. ao indicarem que, apesar de serem gratas pelo apoio e solidariedade de outras pessoas que não “viveram na pele”, as mães deixam claro que só quem tem a vivência ímpar de ter perdido um filho para a violência policial sabe o que é.

O ato de narrar possibilita que as mães organizem suas experiências e reconstruam seus cotidianos e, ao mesmo tempo, que produzam memórias coletivas, possibilitando o desenvolvimento de uma comunidade afetiva. Segundo Caldas3030 Caldas F. A memória construída: comunidade de destino, colônia e rede. Primeira versão 2003; 8(123):2-5., na perspectiva de Halbwachs, a formação da memória comum se dá, sobretudo, por afinidades afetivas e trajetórias comuns e, portanto, pressupõe uma comunidade afetiva.

São também os ganhos afetivos que estruturam o movimento de construção narrativa das experiências pessoais e o compartilhamento dos vídeos analisados. É o que nos conta uma mãe sobre o seu encontro com outra “mãe de autista” na rede social: Eu comecei a entender que o que eu tava passando podia ser compartilhado, podia ser dividido e o que a [nome da mulher] fez por mim... A [nome da mulher] me salvou. Eu posso fazer por outras pessoas. A adesão afetiva ao grupo é perpassada pela ideia de que todas vivenciaram algo em comum como, por exemplo, a dor oriunda da experiência da diferença de seus filhos.

Portanto, a construção de um comum e de uma comunidade afetiva dá um lugar social importante para as mães dos vídeos - a de mães de autistas. Se por um lado as mães lidam constantemente com situações de preconceito e violência devido ao encontro da diferença de seu filho autista com o mundo, por outro têm reconhecidas suas experiências enquanto saber.

Outra dimensão importante da publicização de experiências singulares é a possibilidade de o relato chegar a outras pessoas com a mesma vivência e, a partir desse encontro, ser produzida uma rede de sociabilidade, mesmo que no digital. A história individual relatada e produzida nos vídeos pode ajudar emocionalmente e pragmaticamente outros que possuem uma vivência parecida, permitindo que o cotidiano seja reabitado2323 Ortega F. Rehabitar la cotidianidad. In: Ortega F, editor. Veena Das: Sujetos del dolor, agentes de dignidad. Bogotá: UNAL; 2008. p. 15-70..

Considerações finais

Conforme indicamos, as mulheres dos vídeos analisados falavam prioritariamente sobre suas experiências como mães de autistas e, em sua maioria, em tom confessional, abordando os percalços emocionais de ter um filho com autismo, tais como o luto do filho ideal promovido pelo diagnóstico e a construção do cuidado de uma criança autista.

Identificamos que os vídeos que priorizam a experiência de ser mãe de autista, tanto na sua dimensão pragmática (de como cuidar do filho) como na sua dimensão reflexiva (como elaborar sentimentos ruins), receberam mais visualizações do que os vídeos que fazem reflexões sobre o que é o autismo ou que promovem discussões sobre políticas públicas ou melhor tipo de terapia. Entendemos que, diante da experiência de ter um filho autista, as mães que buscam os vídeos priorizam discussões sobre algo que as afeta diretamente no cotidiano: referências de como outras mães lidam com as dificuldades emergentes desta realidade e vontade de compartilhar com a comunidade suas próprias experiências.

Portanto, os vídeos analisados expõem, sobretudo, narrativas de mulheres sobre o que é ser mãe de autista, as suas experiências, como vivenciaram o atravessamento do autismo no seu cotidiano, como foi a mobilização subjetiva que o diagnóstico de seus filhos produziu afetando o exercício da maternidade e nos mostram a construção de identificações entre as mães produtoras de vídeos e mães que os assistem e os comentam.

Certamente, a experiência da maternidade no contexto do autismo não é abordada exclusivamente nos tipos de vídeos analisados, havendo outras fontes nas quais tais vivências são mostradas, como, por exemplo, livros autobiográficos, documentários, filmes etc. Entendemos que o fato de tais narrativas serem compartilhadas no YouTube produz efeitos na maneira como as mães produzem os vídeos e como a audiência os percebe. Os vídeos no YouTube possuem um ethos que dialoga com a lógica da plataforma ao convocar a hiperexposição de pessoas “comuns”, o que constrói diante da audiência uma imagem de que se tratam de mães reais com experiências reais. Podemos observar a produção de uma “aura de autenticidade”3131 Sibilia P. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de janeiro: Nova Fronteira; 2008. nesses conteúdos que, apesar de não ser exclusiva desta plataforma, é bastante significativa nela. Um dos recursos é a exposição de momentos íntimos e, a princípio, privados, seja por meio de inserções de fotos ou filmagens.

É importante sinalizar, no entanto, que todas as participantes foram mulheres brancas e, provavelmente, de classe média e sabemos que fatores socioeconômicos e raciais marcam diferentemente a experiência de ter um filho autista. Em um de seus aspectos diferenciais, a classe social e a cor da pele influenciam diretamente no acesso ao tratamento para a criança e a qualidade da assistência, assim como determina em certa medida os espaços de circulação na cidade e os encontros com pares. Nesse sentido, é importante que outras pesquisas analisem as experiências contadas de mães negras com filhos autistas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Abr 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2021
  • Aceito
    18 Maio 2021
  • Publicado
    20 Maio 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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