Resumo
É consensual que os profissionais de saúde não estão a implementar a prática baseada na evidência como seria desejável e recomendado pela ciência e organismos internacionais com responsabilidade sobre as diretrizes emanadas para os contextos de saúde. Este focus group com oito participantes teve por objetivo compreender a perspetiva dos estudantes do curso de graduação em enfermagem sobre o seu envolvimento num projeto de transferência de conhecimento para a clínica. A análise qualitativa seguiu as etapas de codificação, armazenamento/recuperação e interpretação dos achados, e foi efetuada com um software de análise de dados qualitativos. Estudo autorizado por uma comissão de ética e que respeitou os princípios inerentes à investigação. As quatro categorias que emergiram da análise de conteúdo foram: “pertencer”, “usar evidência”, “melhorar cuidados” e “desenvolver competências”. A análise das categorias, subcategorias e verbatins permite concluir que a participação em projetos de transferência para a clínica, na voz dos estudantes, gera oportunidades de aprendizagem sobre a implementação e comunicação de evidência, facilita a integração no serviço, a participação, o trabalho colaborativo e o desenvolvimento de competências transversais.
Palavras-chave:
Enfermagem; Prática clínica baseada em evidências; Aprendizagem; Estudantes; Gestão do conhecimento
Introdução
O desenvolvimento metodológico e o aumento da produção científica nas ciências da saúde tem possibilitado o aumento do conhecimento, todavia verifica-se que esse incremento não tem sido acompanhado pela implementação dos resultados nos contextos clínicos, não gerando uma verdadeira prática baseada na evidência (PBE), nem pela educação, dada as escassas oportunidades que os estudantes têm de integrar projeto de investigação ou translação de conhecimento11 Zanchetta MS, Fredericks S, Mina ES, Schwind J, Sidani S, Miranda J, Santos WS, Bookey-Bassett S, Ehtesham N, Ziegler E, Fernandes JP, Lee K, Bailey A, Espin S, Rose D, Lee C. Nursing students’ research education. Esc Anna Nery 2021; 25(3):e20200293.
2 Amit-Aharon A, Melnikov S, Warshawski S. The effect of evidence-based practice perception, information literacy self-efficacy, and academic motivation on nursing students’ future implementation of evidencebased practice. J Prof Nurs 2020; 36(6):497-502.-33 Ferreira O, Baixinho CL, Medeiros M, Synthia E. Aprender a usar evidência no curso de licenciatura em enfermagem: resultados de um Focus Group. NTQR 2021; 8(2021):35-43..
Os autores advogam que, dada a pertinência da PBE, é emergente incutir um sentimento de paixão e entusiasmo entre os estudantes em relação à pesquisa e à sua relevância quotidiana para garantir resultados de saúde de qualidade44 Hurlbut J, Elkins M. Redesigning an Undergraduate Nursing Research Course Using Innovative Teaching Strategies. SM J Nurs 2018; 4(1):1017. e custo-efetivos55 Watson SI, Sahota H, Taylor CA, Chen YF, Lilford RJ. Cost-effectiveness of health care service delivery interventions in low and middle income countries: a systematic review. Glob Health Res Policy 2018; 3:17.. No caso concreto da enfermagem, educar uma nova geração de pesquisadores é um desafio para o desenvolvimento de atitudes e habilidades de pesquisa11 Zanchetta MS, Fredericks S, Mina ES, Schwind J, Sidani S, Miranda J, Santos WS, Bookey-Bassett S, Ehtesham N, Ziegler E, Fernandes JP, Lee K, Bailey A, Espin S, Rose D, Lee C. Nursing students’ research education. Esc Anna Nery 2021; 25(3):e20200293.,33 Ferreira O, Baixinho CL, Medeiros M, Synthia E. Aprender a usar evidência no curso de licenciatura em enfermagem: resultados de um Focus Group. NTQR 2021; 8(2021):35-43. e influencia a forma como esses futuros profissionais usam a evidência na sua tomada de decisão clínica33 Ferreira O, Baixinho CL, Medeiros M, Synthia E. Aprender a usar evidência no curso de licenciatura em enfermagem: resultados de um Focus Group. NTQR 2021; 8(2021):35-43.,66 Cardoso M, Baixinho CL, Ferreira O, Nascimento P, Pedrosa R, Gonçalves P. Aprender prática baseada na evidência pelo envolvimento em atividades de investigação - autopercepção dos estudantes. Cogitare Enferm 2021; 26:e79806..
Ratificamos que essa mudança demanda que graduandos e docentes redesenhem novas e amplas oportunidades de educação para o século XXI, que sejam transformadoras, empoderadoras e significativas11 Zanchetta MS, Fredericks S, Mina ES, Schwind J, Sidani S, Miranda J, Santos WS, Bookey-Bassett S, Ehtesham N, Ziegler E, Fernandes JP, Lee K, Bailey A, Espin S, Rose D, Lee C. Nursing students’ research education. Esc Anna Nery 2021; 25(3):e20200293., por forma a diminuir as lacunas entre investigação, prática, políticas de saúde e resultados de investigação33 Ferreira O, Baixinho CL, Medeiros M, Synthia E. Aprender a usar evidência no curso de licenciatura em enfermagem: resultados de um Focus Group. NTQR 2021; 8(2021):35-43.,66 Cardoso M, Baixinho CL, Ferreira O, Nascimento P, Pedrosa R, Gonçalves P. Aprender prática baseada na evidência pelo envolvimento em atividades de investigação - autopercepção dos estudantes. Cogitare Enferm 2021; 26:e79806., e promovendo uma cultura científica de trabalho colaborativo para o desenvolvimento de produtos que propiciem a introdução dos resultados nos contextos33 Ferreira O, Baixinho CL, Medeiros M, Synthia E. Aprender a usar evidência no curso de licenciatura em enfermagem: resultados de um Focus Group. NTQR 2021; 8(2021):35-43.,77 Baixinho CL, Costa AP. From the hiatus in the theory - practice discourse to the clinic based on the uniqueness of knowledge. Esc Anna Nery 2019; 23(3):e20190141..
A dificuldade da transferência do conhecimento, para uma verdadeira PBE, justifica-se pela preferência por modelos unidirecionais para a introdução dos resultados de investigação e por questões relacionadas à educação e às oportunidades dadas na formação graduada para essa aprendizagem66 Cardoso M, Baixinho CL, Ferreira O, Nascimento P, Pedrosa R, Gonçalves P. Aprender prática baseada na evidência pelo envolvimento em atividades de investigação - autopercepção dos estudantes. Cogitare Enferm 2021; 26:e79806., o que permite o status quo de conhecimento preconcebido e imutável11 Zanchetta MS, Fredericks S, Mina ES, Schwind J, Sidani S, Miranda J, Santos WS, Bookey-Bassett S, Ehtesham N, Ziegler E, Fernandes JP, Lee K, Bailey A, Espin S, Rose D, Lee C. Nursing students’ research education. Esc Anna Nery 2021; 25(3):e20200293..
Por outro lado, as próprias equipes e instituições de saúde enquanto consumidoras da evidência têm não só de empreender uma PBE, mas precisam de conhecimento científico e da experiência necessária para se engajarem ativamente na produção de novos conhecimentos11 Zanchetta MS, Fredericks S, Mina ES, Schwind J, Sidani S, Miranda J, Santos WS, Bookey-Bassett S, Ehtesham N, Ziegler E, Fernandes JP, Lee K, Bailey A, Espin S, Rose D, Lee C. Nursing students’ research education. Esc Anna Nery 2021; 25(3):e20200293..
Face ao exposto, o desenvolvimento de competências e habilidades está entre as principais prioridades da pesquisa de enfermagem11 Zanchetta MS, Fredericks S, Mina ES, Schwind J, Sidani S, Miranda J, Santos WS, Bookey-Bassett S, Ehtesham N, Ziegler E, Fernandes JP, Lee K, Bailey A, Espin S, Rose D, Lee C. Nursing students’ research education. Esc Anna Nery 2021; 25(3):e20200293.,33 Ferreira O, Baixinho CL, Medeiros M, Synthia E. Aprender a usar evidência no curso de licenciatura em enfermagem: resultados de um Focus Group. NTQR 2021; 8(2021):35-43.,66 Cardoso M, Baixinho CL, Ferreira O, Nascimento P, Pedrosa R, Gonçalves P. Aprender prática baseada na evidência pelo envolvimento em atividades de investigação - autopercepção dos estudantes. Cogitare Enferm 2021; 26:e79806.. Há quem advogue que o conhecimento sobre a metodologia de pesquisa e a expertise em prática avançada de enfermagem são prioridades11 Zanchetta MS, Fredericks S, Mina ES, Schwind J, Sidani S, Miranda J, Santos WS, Bookey-Bassett S, Ehtesham N, Ziegler E, Fernandes JP, Lee K, Bailey A, Espin S, Rose D, Lee C. Nursing students’ research education. Esc Anna Nery 2021; 25(3):e20200293.,22 Amit-Aharon A, Melnikov S, Warshawski S. The effect of evidence-based practice perception, information literacy self-efficacy, and academic motivation on nursing students’ future implementation of evidencebased practice. J Prof Nurs 2020; 36(6):497-502., até porque o desenvolvimento de competências científicas implica a aquisição e a consolidação de um conjunto mínimo de atributos, conhecimentos, habilidades e atitudes, relacionados com a PBE, o que contribui para cuidados mais seguros, de maior qualidade e centrados na pessoa88 Keib CN, Cailor SM, Kiersma ME, Chen AMH. Changes in nursing students’perceptions of research and evidence-based practice after completing a research course. Nurs Educ Today 2017; 54:37-43.,99 Loura D, Bernardes R, Baixinho CL, Rafael H, Félix I, Guerreiro M. Aprender em projetos de investigação durante a licenciatura em enfermagem: revisão integrativa da literatura. NTQR 2020; 3(2020):293-304.. Porém estudos recentes reforçam que os enfermeiros não estão bem preparados para aplicar a evidência1010 Horntvedt MT, Nordsteien A, Fermann T, Severinsson E. Strategies for teaching evidence-based practice in nursing education: a thematic literature review. BMC Med Educ 2018; 18(1):172. e que os estudantes de enfermagem não a valorizam e têm falta de conhecimentos e competências para a poder utilizar1111 Patelarou AE, Mechili EA, Ruzafa-Martinez M, Dolezel J, Gotlib J, Skela-Savič B, Ramos-Morcillo AJ, Finotto S, Jarosova D, Smodiš M, Mecugni D, Panczyk M, Patelarou E. Educational interventions for teaching evidence-based practice to undergraduate nursing students: a scoping review. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(17):6351.. A Declaração de Sicília recomenda um modelo de cinco etapas, a fim de cumprir os requisitos mínimos de ensino e condução de PBE. São elas: elaborar uma pergunta clínica; identificar a evidência; avaliar criticamente a evidência; integrar a evidência aos conhecimentos clínicos, preferências dos doentes e seus valores para tomar uma decisão prática; e avaliar a mudança ou o resultado1212 Larsen CM, Terkelsen AS, Carlsen AF, Kristensen HK. Methods for teaching evidence-based practice: a scoping review. BMC Med Educ 2019; 19(1):259..
No caso concreto deste projeto, os estudantes finalistas da graduação em enfermagem tiveram a possibilidade de participar durante um semestre num projeto de translação de conhecimento para a clínica, cujo referencial teórico segue o modelo de Graham e colaboradores denominado processo conhecimento-para-ação. Tal método utilizado e divulgado por esses autores define dois ciclos centrais para a translação do conhecimento: o ciclo da criação do conhecimento e o ciclo da ação, que ilustra o processo de aplicação do conhecimento1313 Graham ID, Logan J, Harrison MB, Straus SE, Tetroe J, Caswell W, Robinson N. Lost in knowledge translation: time for a map? J Contin Educ Health Prof 2006; 26(1):13-24.. A participação dos estudantes ocorreu durante o seu estágio de integração à vida profissional. Concordamos que esses são momentos-chave para a melhoria dos conhecimentos, atitudes e competências dos alunos ao nível da PBE1414 Mena-Tudela D, González-Chordá VM, Cervera-Gasch A, Maciá-Soler ML, Orts-Cortés MI. Effectiveness of an Evidence-Based Practice educational intervention with second-year nursing students. Rev Lat Am Enfermagem 2018; 26:e3026.,1515 Kitson A, Brook A, Harvey G, Jordan Z, Marshall R, O’Shea R, Wilson D. Using Complexity and Network Concepts to Inform Healthcare Knowledge Translation. Int J Health Policy Manag 2018; 7(3):231-243., dado que a aprendizagem sobre investigação e utilização do conhecimento científico é maior quando é integrada nessa tipologia de ensino66 Cardoso M, Baixinho CL, Ferreira O, Nascimento P, Pedrosa R, Gonçalves P. Aprender prática baseada na evidência pelo envolvimento em atividades de investigação - autopercepção dos estudantes. Cogitare Enferm 2021; 26:e79806.. Face ao exposto, é objetivo deste estudo compreender a perspetiva dos estudantes, do curso de graduação em enfermagem sobre o seu envolvimento num projeto de translação de conhecimento para a clínica.
Método
Este focus group (FG) pretendeu responder à questão de pesquisa: “Como percepcionam os estudantes da graduação de enfermagem o seu envolvimento num projeto de translação de conhecimento?” Estabeleceu-se um protocolo: planeamento, preparação, moderação, análise dos dados e divulgação dos resultados1616 Krueger RA, Casey MA. Focus groups: a practical guide for applied research. New Delhi: Sage; 2014..
O guião da entrevista semi-estruturada partiu da questão estímulo: “Quais os contributos do envolvimento no projeto transição segura para a vossa aprendizagem?” E foi conduzida por forma a evoluir para questões mais especificas1616 Krueger RA, Casey MA. Focus groups: a practical guide for applied research. New Delhi: Sage; 2014., sem condicionar a discussão.
Os participantes para o FG foram selecionados de entre os que integraram o projeto Transição Segura entre fevereiro e julho de 2019 e que acederam participar, livre e esclarecidamente na pesquisa. A amostra foi intencional e homogénea para permitir focalizar a discussão no tema1616 Krueger RA, Casey MA. Focus groups: a practical guide for applied research. New Delhi: Sage; 2014., já que todos têm em comum uma característica relevante face ao assunto em discussão - terem participado num projeto de translação do conhecimento para a clínica. Os estudantes foram contactados para saber da intenção em participar e receberam um e-mail duas semanas antes com os objetivos, tempo estimado de duração do FG e identificação do moderador e co-moderador. Sendo uma atividade extracurricular, creditada em suplemento ao diploma e que decorreu em simultâneo com o estágio, o grupo focal só foi realizado após a saída da nota. O FG foi realizado na Escola de Enfermagem, numa sala preparada para o efeito, tendo sido garantindas boas condições de gravação, privacidade e comodidade1616 Krueger RA, Casey MA. Focus groups: a practical guide for applied research. New Delhi: Sage; 2014..
A videogravação e transcrição foram realizadas por um dos investigadores presentes, de forma a permitir “visualizar” o que ocorreu. A análise dos achados seguiu as fases de: codificação; armazenamento/recuperação; e interpretação - a partir da análise sistemática dos dados1717 Bloor M, Frankland J, Thomas M, Robson K. Focus groups in social research. London: Sage; 2001..
Para aumentar o rigor, a análise dos achados foi feita com recurso ao software informático WebQDA. A codificação dos códigos livres foi efetuada pelo investigador que fez a transcrição, sendo posteriormente validada pela equipa de investigação. Na definição das categorias foi assegurada a representatividade, a exaustividade, a homogeneidade e a pertinência.
A pesquisa foi aprovada pela Comissão de Ética (Parecer 09/2019 HVFX). Foram respeitados os princípios éticos e formais inerentes ao desenvolvimento da investigação. Foram assegurados também a todos os participantes o direito a desistir da pesquisa, o anonimato e a confidencialidade dos dados.
Resultados
Os oito participantes do estudo, com um média de 21,7 (±1,9) anos, são finalistas da graduação em enfermagem. Desses, sete são mulheres.
Emergiram na análise dos achados 190 unidades de registo, as quais foram posteriormente organizadas em quatro categorias: “pertencer”, “usar evidência”, “melhorar cuidados” e “desenvolver competências” e respetivas subcategorias (Tabela 1).
A categoria com maior representatividade é “usar evidência”. O projeto, ao qual os estudantes foram integrados, tem por finalidade a introdução da evidência na clínica e proporciona oportunidades de aprendizagem sobre a evidência. A participação dos estudantes decorre como atividade extracurricular, nos serviços onde estão a estagiar, o que os leva a considerar que as atividades do projeto, relacionadas com a transferência de conhecimento, são paralelas e complementares aos resultados esperados para o estágio:
[...] teríamos já de desenvolver uma monografia, mas só que o fato de sabermos que estávamos a trabalhar para o projeto [...] e então colocou em mim a pressão “ah! OK!”, então isto tem de ser mesmo alguma coisa com uma base científica muito forte, para além, daquilo que já seria de esperar para a monografia (P1).
Constatar que um trabalho teórico pode ser implementado na prática e dá gosto esta parte dos resultados que obtivemos com a revisão integrativa da literatura poderem ser realmente utilizados e não ser só um trabalho (P5).
Por outro lado, a participação leva a uma maior reflexão sobre as práticas e à procura de soluções para as questões clínicas e necessidades dos contextos, como se observa nestes verbatins:
A mais-valia dos projetos é de facto esta, o vermos o ideal e as dificuldades do contexto em pensarmos fora da caixa como resolver, o que nós aprendemos e como podemos aplicar no contexto (P2).
[...] deixei de aceitar tudo como certo ou correto. Quando me dizem faz-se assim, pergunto sempre o porquê e baseado em quê (P1).
Constata-se que os participantes consideram que a aprendizagem da evidência se efetua integrada nas atividades em que participam:
E depois conseguíamos ver também que mesmo que não haja muita investigação feita naquela área, poderemos ser nós próprios, um dia mais tarde, quem sabe, a produzir informação e mais conhecimento, e desenvolver mais o que trabalhámos agora acaba por ser um contributo (P1).
[...] temos também outras hipóteses de colher e analisar dados do nosso contexto, e assim aprendemos algumas coisas da investigação (P7).
Para mim ajudou a diminuir as diferenças entre a teoria e a prática, isto parece estranho de se dizer, mas, muitas vezes criticamos que os conteúdos da escola são muito teóricos e pouco aplicados na prática, há diferenças grandes, mas esta experiência permitiu agarrar na teoria e aplicar na prática que é algo que não fizemos nos outros EC (P8).
Para as aprendizagens sobre evidência contribui as oportunidades dadas para a comunicação de resultados dos projetos pelos estudantes:
Sim, e a mais pertinente acabou por ser um desafio quer de escrita, quer também de comunicação oral, porque passar de um trabalho muito [.../ e compactá-lo todo numa única folha, passo a expressão, é difícil (P6).
E não é só isso, é termos aquela noção que nós, nos pósteres na universidade, vamos ser expostos aos professores, ser expostos aos colegas, e desta vez vai ser exposto ao público e isso dá outro peso, digamos assim, ao trabalho que estamos a elaborar e outra responsabilidade, é um trabalho que não é só nosso, colaboramos nele, temos de ter mais brio, mais rigor e maior noção do que estamos a escrever (P7).
Um contributo para essa aprendizagem é a integração no serviço, que gera oportunidades de participação e trabalho colaborativo. Os participantes reforçam que a integração, facilitada pela existência de um plano e de um trabalho contínuo entre escola e serviço, onde outros colegas já estiveram envolvidos, é um aspeto positivo do projeto: [...] ajudou também a integrar na equipa, por isso foi muito positivo, sim (P4); [...] o facto de saber que no projeto o trabalho que eu estou a desenvolver será importante também mais para a frente numa fase posterior foi bom para a integração (P8).
A existência de uma parceria com esses serviços, onde decorrem os estágios, para além de promover a integração bem-sucedida, cria ainda oportunidades de participação do estudante em atividades, nas reuniões e nas decisões relativas ao projeto e até das atividades para concretizar o seu estágio, como se constata nestas falas:
[...] o estar disponível para responder às nossas questões e às nossas dúvidas, sempre OK, sempre a explicar como funciona e como fazem aqui, também a partilha das nossas próprias ideias, o que achávamos que poderia ser feito, partilharmos estas ideias connosco e estarem acessíveis para falar e partilhar isso connosco também acho que é muito importante (P1).
[...] nós tivemos a possibilidade de participar numa consulta de vida ativa e no final a enfermeira até pediu a nossa opinião sobre coisas que nós pudéssemos lembrar que talvez eles não se lembrariam, até sabe bem estarmos envolvidos e contarem connosco no serviço (P8).
[...] os enfermeiros tiveram de ter essa abertura para que nós pudéssemos participar [...] ela própria me incentivava e dava-me feedback (P7).
[...] até porque somos estudantes, há muita coisa que não participamos nos serviços e assim acaba por ser dada possibilidade (P3).
A integração e a participação aliam-se a oportunidades de trabalho colaborativo com os enfermeiros e outros elementos da equipa multidisciplinar:
[...] foi uma das coisas que eu também senti, apesar de estar a apresentar para enfermeiros coordenadores de unidade e enfermeiros chefes, psicólogo e equipa multidisciplinar, o facto foi que senti que eles não me tratavam só como um aluno (P7).
[...] eu considero que, por parte da equipa nas reuniões multidisciplinares, nós, enquanto estudantes, podíamos ter um papel ativo nessas reuniões e nem sempre acontece, não agora, mas nos estágios anteriores, mesmo quando assistíamos a formações em serviço, geralmente não participávamos, nem com dúvidas, foi uma mais-valia (P3).
A integração e as oportunidades de participação e trabalho colaborativo geram no estudante um sentimento de pertença, até porque: Essa proximidade também permitiu aprender outras coisas para além do projeto (P7).
O facto de o projeto ter como foco a translação do conhecimento para a clínica permite que os estudantes observem in loco as vantagens do uso da evidência na práxis. Os estudantes observam que o uso da evidência possibilita “melhorar cuidados” porque:
[...] não era só a prestação de cuidados aos idosos, era também o termos um projeto macro que permitia enquadrar esses cuidados na segurança e qualidade, tínhamos a prestação de cuidados e um projeto extra, mas que se relacionavam (P8);
A consulta de follow up da unidade vai permitir, futuramente, não já agora, mas futuramente, mudar o seguimento destes doentes, ter feedback da evolução até para se melhorar as práticas na unidade e poder acompanhar durante mais tempo estes doentes. Saber o que o doente apresenta depois do internamento e mantê-lo ligado à unidade é algo bastante prático (P3).
As possibilidades de aprendizagem estendem-se ao desenvolvimento de competências essenciais para o exercício da profissão e a liderança das equipas, tais como autonomia e gestão de tempo e conflitos:
[...] no meu caso não houve assim grandes conflitos, mas é sempre uma possibilidade e algo que acaba por ser desenvolvido (P7).
[...] quando encontrávamos um problema, tínhamos de o resolver e, sim, foi como tu dizias (referindo-se ao desenrascar) principalmente nessa área (P8).
Um participante salienta ainda a possibilidade de desenvolver competências de liderança:
[...] em que uma pessoa, digamos assim, tem de distribuir trabalho para as pessoas trabalharem de alguma forma equitativamente, digamos assim, mas há sempre uma pessoa que acaba por coordenar as coisas (P7).
Os resultados obtidos apontam que a existência de projetos comuns entre escola e serviços, bem como o contínuo envolvimento de estudantes, promove a integração, cria oportunidades de participação e de trabalho colaborativo, o que aumenta o sentimento de pertença que permeia o surgimento de oportunidades de participação e aprendizagem, permitindo constatar as vantagens do uso da evidência na clínica, desenvolvendo atitudes e competências necessárias para a valorização e uso da evidência.
Discussão
Os achados reforçam os resultados de outros estudos, que observam que a implementação de uma educação que permita a aprendizagem de evidência para ser bem-sucedida implica que os estudantes compreendam a importância da evidência, sejam competentes no seu uso, baseando as decisões nos resultados de investigação66 Cardoso M, Baixinho CL, Ferreira O, Nascimento P, Pedrosa R, Gonçalves P. Aprender prática baseada na evidência pelo envolvimento em atividades de investigação - autopercepção dos estudantes. Cogitare Enferm 2021; 26:e79806.,1818 Lehane E, Leahy-Warren P, O’Riordan C, Savage E, Drennan J, O’Tuathaigh C, O’Connor M, Corrigan M, Burke F, Hayes M, Lynch H, Sahm L, Heffernan E, O’Keeffe E, Blake C, Horgan F, Hegarty J. Evidence-based practice education for healthcare professions: an expert view. BMJ Evid Based Med 2019; 24(3):103-108.. Em potencial, essa experiência pode contribuir para o desenvolvimento de profissionais que valorizem a evidência e que suportem a sua decisão nos resultados dos estudos, com competências para a implementar na prática, com o objectivo final de melhorar a prestação de cuidados de saúde e, consequentemente, os resultados em saúde da população1818 Lehane E, Leahy-Warren P, O’Riordan C, Savage E, Drennan J, O’Tuathaigh C, O’Connor M, Corrigan M, Burke F, Hayes M, Lynch H, Sahm L, Heffernan E, O’Keeffe E, Blake C, Horgan F, Hegarty J. Evidence-based practice education for healthcare professions: an expert view. BMJ Evid Based Med 2019; 24(3):103-108..
Os participantes reforçam a importância de aprenderem como se transfere a evidência e até como isso ajuda na diminuição do fosso entre a teoria e a prática. Esse achado encontra eco na voz dos autores que reclamam uma rutura paradigmática com essa visão de um vazio entre dois mundos (teórico e prático). Para tal, torna-se necessário promover a reflexão sobre as práticas, os “modos de fazer” e as consequências da atividade, usando o conhecimento baseado na investigação para a tomada de decisão77 Baixinho CL, Costa AP. From the hiatus in the theory - practice discourse to the clinic based on the uniqueness of knowledge. Esc Anna Nery 2019; 23(3):e20190141.. Para isso os professores devem não só instruir os estudantes, mas criar oportunidades de participação em investigação99 Loura D, Bernardes R, Baixinho CL, Rafael H, Félix I, Guerreiro M. Aprender em projetos de investigação durante a licenciatura em enfermagem: revisão integrativa da literatura. NTQR 2020; 3(2020):293-304.,1919 Ertug N, Önal H. Undergraduate nursing students’ research activities and utilization: a Turkish sample. Aquichan 2014; 14(2):251-260..
A opção por projetos que possibilitem a prática da evidência, para além da formação teórica, pode auxiliar na resolução desse fosso, não só pela aprendizagem de como transferir conhecimento para a clínica, mas pelo papel futuro que esses recém-licenciados podem ter nas suas equipas, na divulgação das suas aprendizagens e na criação de oportunidades para o debate/reflexão sobre o uso e transferência da evidência77 Baixinho CL, Costa AP. From the hiatus in the theory - practice discourse to the clinic based on the uniqueness of knowledge. Esc Anna Nery 2019; 23(3):e20190141..
A estreita colaboração da escola com os contextos clínicos e a hipótese de colocar hands-on pela participação em projetos de translação de conhecimento que decorrem nos contextos é uma mais-valia para a pesquisa, leitura, síntese da evidência, transferência de conhecimento e verificação do impacto que a evidência pode ter na melhoria dos cuidados2020 Long A, Bischoff WR, Aduddell K. Research prescription for undergraduate students: research mentoring in a small liberal arts university. J Prof Nurs 2018; 35(3):170-173.. Os próprios estudantes percecionam o envolvimento no projeto e que a aprendizagem de como usar a evidência tem impactos na melhoria dos cuidados e no desenvolvimento de outras competências transversais. O que reforça as recomendações dos autores para uma articulação ativa entre as instituições académicas e as clínicas, criando oportunidades de trabalho colaborativo que possam beneficiar o desenvolvimento do estudante e simultaneamente contribuir para a melhoria das práticas66 Cardoso M, Baixinho CL, Ferreira O, Nascimento P, Pedrosa R, Gonçalves P. Aprender prática baseada na evidência pelo envolvimento em atividades de investigação - autopercepção dos estudantes. Cogitare Enferm 2021; 26:e79806.,99 Loura D, Bernardes R, Baixinho CL, Rafael H, Félix I, Guerreiro M. Aprender em projetos de investigação durante a licenciatura em enfermagem: revisão integrativa da literatura. NTQR 2020; 3(2020):293-304.,2121 AlThiga H, Mohidin S, Park YS, Tekian A. Preparing for practice: Nursing intern and faculty perceptions on clinical experiences. Med Teach 2017; 39(suppl. 1):S55-S62..
Outro achado relevante é a importância atribuída ao pertencer à equipa, que aparenta ser facilitada pela integração nos projetos em curso na instituição. A “pertença” é uma característica universal do ser humano e é uma necessidade humana básica2222 Sedgwick MG, Yonge O. ‘We’re it’, ‘we’re a team’, ‘we’re family’ means a sense of belonging. Rural Remote Health 2008; 8(3):1021.. Para alguns autores, é uma das necessidades mais importantes dos estudantes, que lhes permite trabalhar de forma fiável no ambiente clínico66 Cardoso M, Baixinho CL, Ferreira O, Nascimento P, Pedrosa R, Gonçalves P. Aprender prática baseada na evidência pelo envolvimento em atividades de investigação - autopercepção dos estudantes. Cogitare Enferm 2021; 26:e79806.,2323 Ashktorab T, Hasanvand S, Seyedfatemi N, Salmani N, Hosseini SV. Factors affecting the belongingness sense of undergraduate nursing students towards clinical setting: a qualitative study. J Caring Sci 2017; 6(3):221-235..
Uma integração bem-sucedida, que leve ao sentimento de pertença, pode reduzir o stress e a tensão2323 Ashktorab T, Hasanvand S, Seyedfatemi N, Salmani N, Hosseini SV. Factors affecting the belongingness sense of undergraduate nursing students towards clinical setting: a qualitative study. J Caring Sci 2017; 6(3):221-235. e promover a aprendizagem66 Cardoso M, Baixinho CL, Ferreira O, Nascimento P, Pedrosa R, Gonçalves P. Aprender prática baseada na evidência pelo envolvimento em atividades de investigação - autopercepção dos estudantes. Cogitare Enferm 2021; 26:e79806.. Assim, os enfermeiros clínicos que são os tutores dos estudantes devem ajudá-los a tornarem-se membros da equipa e fomentar o desenvolvimento do sentimento como se pertencessem, construindo pontes entre o pessoal e os estudantes2222 Sedgwick MG, Yonge O. ‘We’re it’, ‘we’re a team’, ‘we’re family’ means a sense of belonging. Rural Remote Health 2008; 8(3):1021.. O desenvolvimento do sentimento de pertença a uma comunidade envolve quatro elementos: a adesão, a influência, a integração e satisfação de necessidades e a ligação emocional partilhada2424 Ditzel LM. Sense of Community among Nurses: Results of a Study. Int J Nurs Stud [periódico na Internet]. 2017 Set. [acessado 2021 Set 16];2(2): [cerca de 9 p.]. Disponível em: https://doi.org/10.20849/ijsn.v2i2.191
https://doi.org/10.20849/ijsn.v2i2.191... .
Estudos futuros devem explorar os achados desta pesquisa e a relação da integração, do trabalho colaborativo e da participação para a aprendizagem e valorização do uso da evidência.
A metodologia usada no envolvimento dos graduandos torna-os ativos na busca de evidência e transferência do conhecimento, reforçando o sentimento de pertença e de que fazem parte da equipa quando são conhecidos pessoal e profissionalmente66 Cardoso M, Baixinho CL, Ferreira O, Nascimento P, Pedrosa R, Gonçalves P. Aprender prática baseada na evidência pelo envolvimento em atividades de investigação - autopercepção dos estudantes. Cogitare Enferm 2021; 26:e79806.,2222 Sedgwick MG, Yonge O. ‘We’re it’, ‘we’re a team’, ‘we’re family’ means a sense of belonging. Rural Remote Health 2008; 8(3):1021..
Uma última nota, nesta discussão, para ressalvar o espírito crítico e reflexivo que estão explícitos em algumas narrativas dos participantes e que se estende à recomendação para a manutenção do projeto e para a continuação da participação dos estudantes no seu desenvolvimento66 Cardoso M, Baixinho CL, Ferreira O, Nascimento P, Pedrosa R, Gonçalves P. Aprender prática baseada na evidência pelo envolvimento em atividades de investigação - autopercepção dos estudantes. Cogitare Enferm 2021; 26:e79806..
Considerações finais
A participação dos estudantes da graduação em enfermagem em projetos de translação do conhecimento possibilita a aquisição de conhecimentos, o desenvolvimento de atitudes e competências para a aprendizagem de uma prática baseada na evidência e o uso do conhecimento na clínica.
Na análise de conteúdo ao discurso dos oito participantes do FG emergem as seguintes categorias: “usar evidência”, “pertencer”, “melhorar cuidados” e “desenvolver competências”. A categoria com maior expressão é “usar evidência”, com 114 das 190 unidades de registo, isto é, 60%.
Crentes que essa será uma competência core para os profissionais de saúde do futuro, com impacto na melhoria dos cuidados, na saúde coletiva e na sustentabilidade dos sistemas de saúde, e suportados nos resultados desta pesquisa, recomendamos que nos estágios os estudantes tenham oportunidade de utilizar os resultados de investigação e que aprendam a transferi-los para os contextos clínicos.
A limitação do estudo prende-se com o método utilizado e com a possível influência da interação estabelecida entre o grupo na resposta individual.
Agradecimentos
Agradecemos aos participantes do estudo o seu contributo para esta pesquisa.
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» https://doi.org/10.20849/ijsn.v2i2.191
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
04 Maio 2022 - Data do Fascículo
Maio 2022
Histórico
- Recebido
23 Set 2021 - Aceito
15 Nov 2021 - Publicado
17 Nov 2021