Diferentes modelos formativos em saúde e as concepções estudantis sobre atendimento médico humanizado

Renata Meira Veras Vitória Batista Calmon de Passos Caio Cézar Moura Feitosa Sheyla Christine Santos Fernandes Sobre os autores

Resumo

Desde 2009, coexistem na Universidade Federal da Bahia dois modelos formativos influindo sobre a formação médica: o tradicional e o regime de ciclos. As mudanças curriculares produzidas na instituição tiveram como objetivo reorientar o perfil profissional ao Sistema Único de Saúde e desenvolver maior compreensão sobre a diversidade humana, o adoecer e o cuidar. Este estudo analisou se esses modelos têm produzido diferentes concepções acerca do que é um atendimento humanizado entre os estudantes de medicina. Recorreu-se à análise de similitude, com suporte do software Iramuteq para o tratamento dos dados. Observamos que ambos os grupos têm concepções centradas no paciente, entretanto, estudantes egressos do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde demonstraram basear suas ideias em um conceito ampliado de saúde, considerando seus vários determinantes. Estudantes ingressos no curso via Exame Nacional do Ensino Médio expuseram percepções considerando aspectos éticos e humanísticos necessários, mas limitadas ao contato direto entre médico e paciente. Conclui-se que a formação prévia no Bacharelado Interdisciplinar em Saúde pode ser responsável pela ampliação da criticidade estudantil sobre o conceito de saúde e a humanização do atendimento.

Palavras-chave:
Universidade; Educação médica; Humanização; Estudantes de medicina; Atendimento médico

Introdução

No campo da saúde, a desumanização não é um problema novo, mas ainda é grave e atual, tanto na formação dos profissionais quanto no cotidiano das práticas. A literatura demonstra que são frequentes relatos e queixas dos usuários dos serviços acerca das violências sofridas, seja institucionalmente, seja no contato direto com os trabalhadores da área11 Passos VBC, Veras RM, Fernandez CC, Lemos OL, Cardoso GMP, Rocha MND. Atendimento humanizado: as concepções de estudantes de medicina. Rev Bras Promoç Saúde 2020; 33(Supl.):11560.

2 Azeredo YN, Schraiber LB. Autoridade, poder e violência: um estudo sobre humanização em saúde. Interface (Botucatu) 2021; 25(1):e190838.
-33 Barros MEB, Gomes RS. Humanização do cuidado em saúde: de tecnicismos a uma ética do cuidado. Fractal (Niterói) 2011; 23(3):641-658.. Nesse contexto, a relação entre médicos e pacientes se destaca como uma das principais fontes dessa problemática.

No Brasil, o setor de saúde passou por transformações com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que no modelo anterior de atenção à saúde o trabalho médico era estritamente individual, biologicista e sem consideração pela dimensão histórico-social no processo de adoecer. Portanto, com a implementação do SUS, o desafio de adequar os profissionais a um novo modelo, que busca promover atenção de maneira igualitária, integral e humanizada em âmbito individual e coletivo, estava posto44 Escorel S, Nascimento DR, Edler FC. As origens da reforma sanitária e do SUS. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, Suárez JM, organizadores. Saúde e democracia: histórias e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 59-81..

Considerando esse fato, sabe-se que a educação superior tem grande importância na construção do perfil dos futuros profissionais que atuarão em tal cenário. dessa forma, desde a década de 1990, uma série de iniciativas começaram ser desenvolvidas com a intenção de discutir e promover as mudanças necessárias, sendo algumas das principais a CINAEM (Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico), a PNH (Política Nacional de Humanização), o Pró-Saúde (Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde), o PROMED (Programa de Incentivo às Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina) e as DCN (Diretrizes Curriculares Nacionais) para o curso de medicina criadas em 2001 e reformuladas em 201455 Veras RM, Feitosa CCM. Reflexões em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em medicina a partir da Política Nacional de Promoção da Saúde. Interface (Botucatu) 2019; 23(Supl. 1):e170743.

6 Brasil. Conselho Nacional de Educação (CNE). Resolução CNE/CES nº 3, de 23 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União 2014; 23 jun.
-77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Brasília: MS; 2004..

Nesse movimento, a Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (FAMEB/UFBA), com apoio do Pró-Saúde, produziu uma reforma que acrescentou o Eixo Ético-Humanístico (EEH) à sua matriz curricular. Este seria um conjunto de oito disciplinas dispostas ao longo dos primeiros oito semestres do curso, com o objetivo de promover discussões e reflexões múltiplas nos campos da ética e das humanidades e assim estimular o desenvolvimento de atitudes éticas e humanas nos estudantes88 Formigli VL, Barbosa HS, Lima MAG, Araújo IB, Fagundes NC, Macedo RSA. Projeto Político-Pedagógico do curso de graduação em medicina da FMB. Gazeta médica da Bahia 2010; 79(1):3-47.

9 Mota JC, Veras RM. Eixo ético-humanístico da Faculdade de Medicina da Bahia: percepção dos estudantes. Rev Bioet 2020; 28(2):319-331.
-1010 Veras RM, Fernandez CC, Feitosa CCM, Fernandes S. Perfil socioeconômico e expectativa de carreira dos estudantes de medicina da Universidade Federal da Bahia. Rev Bras Educ Med 2020; 44(2):e056..

No mesmo período, foi implantado na UFBA um regime de ciclos parcial com o suporte do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI). Nesse modelo de formação, a entrada na universidade é por meio dos bacharelados interdisciplinares divididos em grandes áreas do conhecimento1111 Veras RM, Lemos DVS, Macedo BTF. A trajetória da criação dos bacharelados interdisciplinares na Universidade Federal da Bahia. Avaliação (Campinas) 2015; 20(3):621-641.. Uma dessas áreas é a da saúde, tendo sido criado o Bacharelado Interdisciplinar em Saúde (BIS). Este curso tem como objetivo evitar a profissionalização precoce e promover uma formação geral, por meio de um currículo de natureza interdisciplinar que conduz os estudantes a ter contato com as demais áreas do conhecimento, bem como estimulando a sua autonomia e livre trânsito na universidade por intermédio dos componentes curriculares (CC) optativos1212 Universidade Federal da Bahia (UFBA). Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC). Projeto Pedagógico do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde. Salvador: UFBA; 2010.. Ao final do BIS, os estudantes devem decidir a sua profissionalização e se submeter a um processo seletivo interno que reserva 20% das vagas nos cursos tradicionais, chamados cursos de progressão linear (CPL), para que eles escolham com base em seu itinerário formativo e interesse profissional o curso em que continuarão seus estudos. Até 2018, 291 estudantes ingressaram no curso de medicina após concluírem o BIS1313 Universidade Federal da Bahia (UFBA). Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC). Ingresso de estudantes graduados em Bacharelado Interdisciplinar nos Cursos de Progressão Linear da UFBA (Processos Seletivos 2012 a 2018). Salvador: UFBA; 2018..

As perguntas que norteiam esta investigação são: qual o impacto das mudanças formativas e curriculares realizadas na UFBA na maneira como os estudantes concebem um atendimento médico humanizado? Existem diferenças nas concepções por conta das diferentes formas de ingresso? Portanto, este estudo pretende analisar as concepções de atendimento médico humanizado (AMH) dos estudantes de medicina ingressos via ENEM/SISU e dos egressos do BIS, e posteriormente comparar seus resultados.

Métodos

O presente artigo é produto de um estudo transversal, de caráter exploratório, com abordagem qualitativa. Para tanto, optou-se pela realização de análises de similitude, tendo suporte do software Iramuteq (Interface de R pour lês Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) para organização e tratamento dos dados. É necessário ressaltar também que os dados aqui apresentados são fruto de uma pesquisa maior, intitulada “O que acham os estudantes de medicina acerca do eixo ético-humanístico da Faculdade de Medicina da Bahia (FAMEB/UFBA)?”.

A seleção dos sujeitos considerou como critérios ter idade acima de 18 anos e matrícula ativa. Foi identificado que, do total de 344 estudantes participantes, 171 não tinham nenhuma graduação anterior e 107 possuíam alguma ou mais de uma graduação anterior, dos quais 68 eram egressos do BIS. O instrumento escolhido para coleta dos dados foi o questionário semiaberto, contendo questões objetivas acerca de características socioeconômicas dos participantes e duas questões abertas buscando as concepções dos estudantes sobre as contribuições do Eixo Ético-Humanístico (EEH) para sua formação e o que eles consideravam um atendimento médico humanizado. As respostas a essa última questão foram as utilizadas para este estudo, considerando como variável a modalidade de acesso ao curso de medicina: ingresso via ENEM/SISU ou via migração BIS/CPL.

Para responder ao objetivo desta análise, o corpus total das respostas foi reorganizado entre estudantes egressos e não egressos do BIS, de maneira que resultou em 68 que tinham o BIS como graduação prévia e 276 que não. Diante disso, foram criados dois novos corpus, um para cada um desses grupos, para que fosse possível a execução de suas análises separadamente.

O questionário foi aplicado em agosto de 2018, durante as aulas das disciplinas do EEH. A adesão foi voluntária e aqueles que quiseram participar assinaram os respectivos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido. É importante destacar que o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da UFBA (CAAE: 87862917.8.0000.5531 - Parecer nº 2.769.003).

O Iramuteq é um software livre que, baseado na linguagem Python, permite a realização de diversos tipos de análises lexicais1414 Camargo BV, Justo AM. Tutorial para uso do software de análise textual IRAMUTEQ. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2013., sendo uma delas a análise de similitude, utilizada nesta investigação. O uso dessa ferramenta no suporte à organização e ao tratamento dos dados foi de grande importância, tendo em conta o número de sujeitos participantes.

Nesse sentido, a análise de similitude se demonstrou pertinente, pois, sendo baseada na teoria dos grafos, permite a identificação das coocorrências entre as palavras, e a representação visual gerada como resultado indica as relações de conexidade entre os vocábulos. O tamanho de cada palavra indica sua importância no corpus e a espessura das linhas que ligam cada termo assinalam o grau de associação entre eles, de modo que quanto mais espessa a linha, maior esse grau. Outro ponto positivo é que esse tipo de análise também permite a identificação de partes comuns e de especificidades entre os textos, considerando as variáveis descritivas verificadas na análise, e tais semelhanças e especificidades podem ser agrupadas em “halos” e “comunidades”, que são círculos de agrupamentos1414 Camargo BV, Justo AM. Tutorial para uso do software de análise textual IRAMUTEQ. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2013..

Resultados e discussão

Levando em conta que foram criados dois corpus, cada um foi submetido a uma análise de similitude no software, resultando nas figuras 1 e 2 apresentadas a seguir. A Figura 1 é a representação das concepções dos estudantes que ingressaram no curso diretamente pelo ENEM/SISU, e a Figura 2 representa as concepções dos estudantes de medicina que tiveram o BIS como formação prévia. Optou-se por organizar a apresentação desses resultados e sua discussão em dois subtópicos dispostos em sequência.

Figura 1
Árvore de similitude das concepções de atendimento humanizado dos estudantes de medicina que ingressaram no curso diretamente pelo ENEM/SISU.

Figura 2
Árvore de similitude das concepções de atendimento humanizado dos estudantes de medicina egressos do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde.

Concepções de estudantes que ingressaram diretamente pelo ENEM/SISU

Observando a Figura 1, é possível notar que o núcleo central é a palavra “paciente” e que todas as demais palavras estão intrinsecamente ligadas a ela. O Iramuteq permitiu a organização em halos daquelas palavras presentes no sistema léxico periférico, agrupando os termos que possuíam coocorrências particulares entre si e que por isso se diferenciaram das demais, criando assim subgrupos, ainda que dentro do mesmo universo semântico.

No halo 1, composto pelo núcleo “paciente”, as palavras de maior conexão foram “médico”, “autonomia”, “empatia”, “doença”, “respeito” e “atendimento”, sendo as três últimas originadoras de outros três halos. Essa centralidade da palavra paciente e a forma como esse círculo maior engloba os demais indicam que a visão dos estudantes comumente tem nesse sujeito seu personagem principal. Somando-se a isso a consideração dos demais vocábulos, percebe-se a indicação de um senso comum nesse grupo, que concebe a humanização do atendimento a partir de aspectos da relação médico-paciente (RMP). Nesse ponto, é importante destacar o grau de conexão entre as palavras médico e paciente. A espessura da linha que as conecta indica uma forte associação, algo que pode reforçar a hipótese anterior, destacando também a importância do médico nessa relação. A seguinte fala pode exemplificar bem essa noção: [...] é o médico que ouve o paciente, não interrompe, não é arrogante, se importa além da doença, respeita a autonomia, não faz procedimentos sem consentimento, não trata o paciente como mero cliente e não impõe uma relação de superioridade (Estudante 444, 5º semestre).

Observamos que os estudantes apontam características de médicos e pacientes que consideram importantes no exercício de um atendimento humanizado. Tais qualidades, como respeito, empatia, autonomia, saber ouvir, são valores morais e posturas que, ainda que representem atributos pessoais, são muito importantes nesse serviço. Sobre isso, reflete-se que pensar em humanização pressupõe que ela se faz necessária em contextos em que os valores humanos se demonstram escassos1515 Rios IC. Humanidades e medicina: razão e sensibilidade na formação médica. Cien Saude Colet 2009; 15(Supl. 1):1725-1732.. Nas discussões acerca desse assunto no campo da saúde é consenso que essa escassez é realidade nas interações entre profissionais da saúde e usuários dos serviços. Na medicina, o esgotamento do modelo biomédico evidenciou a necessidade de se repensar a formação médica, considerando reforçar a importância dos aspectos humanísticos no intuito de diminuir a assimetria da RMP1616 Caprara A, Franco ALS. A relação paciente-médico: para uma humanização da prática médica. Cad Saude Publica 1999; 15(3):647-654.

17 Caprara A, Rodrigues J. A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico. Cien Saude Colet 2004; 9(1):139-146.

18 Costa FD, Azevedo RCS. Empatia, relação médico-paciente e formação em medicina: um olhar qualitativo. Rev Bras Edu Med 2010; 34(2):261-269.
-1919 Minahim MA. A autonomia na relação médico-paciente: breves considerações. Cad Ibero-Am Direito Sanit 2020; 9(1):85-89.. Uma provável contribuição para a consciência dos estudantes da UFBA sobre a necessidade de tais valores no futuro exercício profissional é a presença do EEH na formação, tendo em vista que tais disciplinas se propõem a fomentar discussões e reflexões entre os alunos nos campos da ética e das humanidades2020 Nery Filho A, Lins L, Batista CB, Vasconcelos C, Torreão L, André SB, Jacobina RR. Bioética e literatura: relato de experiência do Eixo ético-humanístico FMB-UFBA. Rev Bioet 2013; 21(2):344-349..

No entanto, chama atenção a contradição demonstrada pelos sujeitos a partir da ênfase dada ao papel do médico. Apesar do destaque da palavra “paciente” num contexto geral, a análise das falas indica que há uma percepção de protagonismo médico, ao mesmo tempo em que há uma passividade daquele que é atendido. É fato que uma boa RMP precisa estar pautada na sensibilidade do médico diante do sofrimento do outro1515 Rios IC. Humanidades e medicina: razão e sensibilidade na formação médica. Cien Saude Colet 2009; 15(Supl. 1):1725-1732.. Entretanto, para que a humanização do cuidado se concretize, a relação precisa ser horizontal, sem sobreposição de um dos seus personagens.

Já o halo 2, originado a partir da palavra “doença”, agrupa também os vocábulos “necessidade”, “problema” e “sujeito’’. Uma das particularidades presente nos discursos diz respeito à importância de se enxergar os indivíduos para além de suas patologias, como seres com múltiplas necessidades que devem ser levadas em consideração no atendimento, e que por sua vez demandam múltiplas competências dos profissionais. Isso pode ser observado nos seguintes trechos:

[...] é o que consiga de modo integral atender às necessidades do paciente como um todo e não apenas entender certos processos de adoecimento, dando a eles atenção e tentando cumprir da melhor maneira as demandas por ele trazidas (Estudante 98, 1º semestre).

[...] é considerar o sujeito integralmente, enxergar além da doença (Estudante 206, 3º semestre).

[...] é aquele que você atende e ajuda, mas, mais importante que isso, ajuda seu paciente a entender seus problemas e a lidar com a terapêutica, sendo ativo no processo (Estudante 249, 3º semestre).

As concepções desse grupo corroboram uma perspectiva contrária ao padrão, no ponto em que demonstram compreender a importância de se superar a visão hegemônica da medicina tradicional acerca da fragmentação do corpo e exercer sua prática profissional orientando-se por noções mais próximas às da integralidade. Foucault2121 Foucault M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1987. explica que essa fragmentação do corpo, reforçada pela evolução dos conhecimentos nas ciências biológicas ao longo do último século, contribuiu significativamente para que o foco e o interesse da medicina se voltassem para as patologias e suas causas, em detrimento dos sujeitos que as vivenciam.

Por outro lado, as respostas também sugerem contradições ao apontarem que a busca pelo atendimento médico pressupõe a preexistência de doenças, problemas ou necessidades por parte do paciente. Esse cenário revela a perseverança de ideais inerentes ao modelo biomédico, curativo, que privilegia a intervenção sobre a doença e a cura, em detrimento do cuidado e da promoção da saúde11 Passos VBC, Veras RM, Fernandez CC, Lemos OL, Cardoso GMP, Rocha MND. Atendimento humanizado: as concepções de estudantes de medicina. Rev Bras Promoç Saúde 2020; 33(Supl.):11560.,2222 Marcondes WB. A convergência de referências na promoção da saúde. Saude Soc 2004; 13(1):5-13.. Barros2323 Barros JAC. Pensando o processo saúde doença: a que responde o modelo biomédico? Saude Soc 2002; 11(1):67-84. acrescenta que, mesmo quando desejam enxergar os pacientes como um todo, considerando inclusive o contexto socioeconômico em que eles vivem, os médicos muitas vezes tendem a voltar-se ao reducionismo dessa visão, porque a própria formação deles foi pautada em tal modelo.

O halo 3, por sua vez, liderado pela palavra “respeito”, contém também as palavras “consideração” e “lugar”. Esse grupo demonstra uma percepção de que um AMH demanda respeito ao paciente, a ideia de “se colocar no lugar dele” e a consideração dos seus desejos, falas e pensamentos. Algo que pode ser bem representado pela fala a seguir:

[...] é um atendimento com respeito, empatia e consideração ao próximo. Se pôr no lugar do outro (Estudante 395, 2º semestre).

[...] é focado no respeito ao indivíduo e na sua condição humana, levando em consideração as suas opiniões no processo saúde-doença, na terapêutica, no diagnóstico (Estudante 52, 8º semestre).

As concepções desse halo remetem ao trabalho de Rego2424 Rego S. A formação ética dos médicos: saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003., que, ao investigar valores considerados essenciais ao exercício da profissão por estudantes de medicina, apontou “respeito” como a palavra mais usada por eles, com diversas interpretações. O autor argumenta que uma das possíveis razões para isso seria o fato de cotidianamente os estudantes lidarem com episódios envolvendo questões éticas, nos quais a maioria delas seria decorrente da “coisificação” do ser, a desconsideração do paciente como pessoa. E ao presenciarem tais situações, os estudantes percebiam a grande necessidade desse valor em sua prática.

No mesmo estudo, observou-se ainda que entre alguns indivíduos havia uma compreensão sobre a ética profissional baseada na máxima do cristianismo: “faça ao próximo aquilo que gostaria que fosse feito a você mesmo” (p. 135). Rego2424 Rego S. A formação ética dos médicos: saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. explica que há neste ideal uma preocupação genuína com o outro. Contudo, reflete que, na ideia de “se colocar no lugar do outro”, implicitamente há também a negação ao paciente de sua condição de sujeito moral. Isso porque nessa situação o médico considera seus próprios valores e percepção da situação para tomar decisões acerca do outro, e este assume um lugar passivo, apenas de objeto de ação de tais decisões. Partindo dessa compreensão, é possível que também entre os sujeitos da presente investigação haja tais percepções, justificando o destaque da palavra respeito e da ideia de se colocar no lugar do outro em suas falas.

O halo 4 destaca a palavra “atendimento”, sendo esta também a de maior conexão com a palavra “paciente” em todo o corpus, algo perceptível pela espessura da conexão entre elas. As demais palavras associadas são “saúde”, “respeitado”, “condição” e “técnica’’. A forte relação desse grupo com o halo central pode estar relacionada ao fato de a palavra atendimento estar indiretamente conectada a todas as respostas da árvore devido à própria questão de investigação deste estudo: “O que é um atendimento médico humanizado para você?” Dessa maneira, as falas que representam este halo, na generalidade, são muito similares às dos demais halos, reforçando algumas de suas concepções, tais quais: a centralidade no paciente, a importância atribuída ao respeito na RMP e a visão curativa acerca do objetivo do atendimento. Algo particular nesse agrupamento, no entanto, é a presença da palavra “saúde” e o destaque da palavra “técnica”. Como pode ser visto a seguir:

[...] é o atendimento no qual o paciente seja bem tratado, ouvido de maneira ativa e que tenha sua autonomia respeitada para que ele possa participar das decisões acerca da saúde (Estudante 329, 7º semestre).

[...] é focado no respeito ao indivíduo e na sua condição humana, levando em consideração as suas opiniões no processo saúde-doença, na terapêutica, no diagnóstico (Estudante 52, 8º semestre).

[...] é o atendimento que possibilita o desenvolvimento da empatia na melhor construção da relação médico-paciente, e que faça excelente uso da técnica, somando o melhor dos pontos de vista técnico e humano (Estudante 211, 6º semestre).

As respostas desse grupo sugerem que, ao contrário do que foi observado no halo 2, os estudantes privilegiam conceber o atendimento médico a partir do foco sobre a saúde dos indivíduos, e não sobre a doença. Percebemos no conteúdo integral das falas que “saúde” foi mencionada em referência a diferentes contextos. Entretanto, foi demonstrada a presença de um senso comum acerca do vocábulo enquanto processo dinâmico, relacionado à doença, que deve ter o paciente como personagem fundamental na tomada de decisões sobre seu estado. Isso remete ao conceito ampliado de saúde, no qual o indivíduo que recebe atendimento é o elemento central. Nessa perspectiva, a presença de alguma patologia não significa necessariamente a ausência de saúde, justamente por esta sofrer influência de diversos fatores2525 Silva JLL. O processo saúde-doença e sua importância para a promoção da saúde. Informe-se em Promoção da Saúde 2006; 2(1):3-5..

Além disso, vislumbra-se que há entre os sujeitos uma ideia de oposição entre a necessidade da técnica e a humanização do atendimento. A respeito disso, sabe-se que a humanização da saúde pode ser compreendida também sob vários olhares77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Brasília: MS; 2004.,2626 Rios IC, Schraiber LB. Humanização e humanidades em medicina. São Paulo: Editora Unesp; 2012.. Tratando-se do atendimento médico, essas compreensões estão relacionadas aos princípios de conduta profissional de base humanista e ética e aos incentivos institucionais para o desenvolvimento de tais princípios. Todavia, é importante destacar que tal modelo de atendimento não desconsidera a importância da técnica para sua qualidade. Pelo contrário, compreende-se que as habilidades relacionais também podem ser baseadas em teorias e técnicas importantes ao exercício profissional1515 Rios IC. Humanidades e medicina: razão e sensibilidade na formação médica. Cien Saude Colet 2009; 15(Supl. 1):1725-1732.,2626 Rios IC, Schraiber LB. Humanização e humanidades em medicina. São Paulo: Editora Unesp; 2012..

Por meio da observação atenta de cada agrupamento da árvore, associada à análise integral das falas dos sujeitos participantes, reitera-se a compreensão de que as concepções dos estudantes que ingressaram diretamente pelo ENEM/SISU, via de regra, têm muitas semelhanças entre si, apesar de suas particularidades. Além disso, é admissível reafirmar que tais concepções se direcionam aos aspectos relacionais das interações entre médicos e pacientes, habilidades de cunho emocional, como empatia, e outros requisitos fundamentais, como valores morais e competência técnica. Somando-se a isso, ainda, concepções de saúde e doença que se contrapõem. Esse cenário ajuda a reforçar a pertinência da árvore ao apresentar poucos subgrupos, com estes parcialmente inseridos no núcleo central.

É importante ressaltar, contudo, que a discussão a respeito da RMP deve considerar muito mais do que os aspectos subjetivos dessa interação. Fernandes2727 Fernandes JCL. A quem interessa a relação médico paciente? Cad Saude Publica 1993; 9(1):21-27. pondera que a afetividade inevitavelmente existe na relação entre pessoas, e entre médico e paciente não é diferente, a despeito de ter seus aspectos específicos. Sentimentos sempre estarão presentes, de formas positivas e negativas. E isso não significa que este não seja um aspecto importante da RMP. Entretanto, é fundamental ir além dessa compreensão e refletir acerca das outras forças que permeiam os modelos de atenção à saúde nas sociedades, tais quais a corporação médica, os interesses do Estado e as classes sociais hegemônicas.

Concepções de estudantes egressos do BIS

Na Figura 2, verifica-se que a palavra “paciente” compõe o núcleo central da árvore, representado pelo halo 1, tendo como principais ramificações as palavras “atendimento”, “aspecto”, “autonomia”, “saúde”, “respeito”, “vida”, “cuidado”, “empatia” e “social”. As quatro últimas palavras, por sua vez, dão origem a quatro outros halos periféricos. Comparando-se visualmente as duas figuras, além da diferença de quantidade de halos, já é possível perceber que neste grupo as comunidades de palavras que compõem suas concepções são bem definidas, e portanto mais independentes entre si. Assim como na árvore anterior, no halo 1 os estudantes indicam que o foco do atendimento deve ser o paciente. No que diz respeito a este halo, a fala a seguir é bastante representativa:

[...] é quando o profissional respeita e entende as diversas esferas da vida do paciente e tenta adequar o seu cuidado e assistência ao paciente, e não tentar adequar o paciente ao cuidado (Estudante 327, 7º semestre).

O estudante afirma que a preocupação do médico deve ser produzir cuidado respeitando a autonomia do paciente, e o cuidado não deve ser produto das escolhas apenas do médico. De acordo com Ribeiro e Amaral2828 Ribeiro MMF, Amaral CFS. Medicina centrada no paciente e ensino médico: a importância do cuidado com a pessoa e o poder médico. Rev Bras Educ Med 2008; 32(1):90-97., uma medicina centrada no paciente deve se opor à medicina centrada no médico e na doença, só assim será possível produzir um atendimento humanizado, em que os pacientes serão coparticipantes na produção de seus estados de saúde. Dessa maneira, ao relacionar a palavra “paciente” com “autonomia”, “saúde” e “respeito”, parece-nos que os estudantes deste halo estão afinados com a medicina centrada no paciente.

Por sua vez, o halo 2 é iniciado pela palavra “vida” e, além dela, comporta também as palavras “história” e “diverso”. Os estudantes deste grupo compreendem que cada vida possui uma história diversa das demais, o que é fundamental para a construção de planos de cuidado. A esse respeito, os estudantes 91 e 94 afirmam:

[...] é aquele em que posso unir os conhecimentos técnicos e éticos, sem desconsiderar que estou lidando, antes de tudo, com um ser humano, e isso pressupõe que ele carrega consigo uma história de vida e diversas influências socioculturais que influenciam no seu estado de saúde, e o meu papel é acolher todas elas e manejar da melhor forma possível dentro das minhas capacidades e possibilidades (Estudante 91, 1º semestre).

[...] é entender o paciente como um produto do meio, suas necessidades, fragilidades, atuar de forma equânime de acordo com história de vida dos que precisam do atendimento médico, perceber que, antes de tudo, há ali um ser humano (Estudante 94, 1º semestre).

Os estudantes sublinham a importância das histórias de vida no atendimento, demonstrando que o médico, no encontro com o paciente, deve não apenas identificar sinais e sintomas biológicos, mas escutar suas necessidades, suas concepções sobre o adoecer, e assim compreender como a doença está permeada na história social das pessoas1717 Caprara A, Rodrigues J. A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico. Cien Saude Colet 2004; 9(1):139-146.. De maneira semelhante no halo 3, a palavra que origina o grupo é “cuidado”, e junto a ela distribuem-se as palavras “sujeito”, “individual” e “humano”. As respostas dos estudantes 385 e 355 apontam para o reconhecimento dos limites do modelo biomédico que coisifica e homogeneíza as experiências de adoecer, e de que, pelo contrário, o papel do médico é ser um cuidador que reconhece as individualidades dos sujeitos.

[...] é o que visa entender o outro como um ser plural, não só pela sua patologia, mas que tem anseios, sentimentos, vivências e merece todo o respeito e cuidado individual dentro de sua pluralidade (Estudante 385, 5º semestre).

[...] é aquele que contempla o ser humano como ser complexo, individual, e não trata como objeto de estudo (Estudante 355, 5º semestre).

Ayres2929 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho, interação e saber nas práticas de saúde. Rev Baiana Enferm 2017; 31(1):e21847. ressalta que a discussão sobre o cuidado tem se tornado cada vez mais relevante em diferentes disciplinas e que esse conceito se baseia fundamentalmente na solidariedade social para superar o individualismo, bem como na construção de ações que levem em consideração o outro, que se importem com a intersubjetividade que envolve as relações humanas. Grosseman e Patrício3030 Groseman S, Patricio ZM. A relação médico-paciente e o cuidado humano: subsídios para promoção da educação médica. Rev Bras Educ Med 2004; 28(2):99-105., por sua vez, afirmam que a formação acadêmica em medicina negligencia os aspectos subjetivos seja do paciente, seja do estudante, e que isso repercute na capacidade dos médicos em estabelecerem uma boa RMP. Entretanto, com a reforma no setor de saúde no Brasil, fruto da implantação no SUS na década de 1990, as DCN têm exigido médicos mais humanistas, que compreendam os aspectos culturais e emocionais dos pacientes, o que envolve uma revisão dos currículos das instituições formadoras e da prática docente55 Veras RM, Feitosa CCM. Reflexões em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em medicina a partir da Política Nacional de Promoção da Saúde. Interface (Botucatu) 2019; 23(Supl. 1):e170743..

Já o halo 4 abriga as palavras “empatia” e “vínculo”, sendo a primeira a originadora do grupo. O estabelecimento de vínculos é um aspecto central na edificação das relações entre os usuários e as equipes de saúde, pois significa que há abertura e confiança entre as partes, contribuindo para maior resolutividade dos problemas de saúde. Entretanto, a construção dos vínculos demanda sensibilidade e empatia, ou seja, competência afetiva dos profissionais3131 Santos WS. Organização curricular baseada em competência na educação médica. Rev Bras Educ Med 2011; 35(1):86-92.. A esse respeito, o estudante 22 afirmou:

[...] é atuar de maneira tal a estabelecer um vínculo de confiança, empatia, boa comunicação e respeito a autonomia do paciente (Estudante 22, 4º semestre).

O desenvolvimento dos aspectos afetivos e emocionais nos profissionais de saúde tem sido um desafio. Percebe-se dificuldade entre os docentes de pensar estratégias de ensino para o desenvolvimento e mensuração do êxito dessas competências na formação inicial, além disso, quando se trata desse campo, extrapola-se os limites da formação universitária, pois envolve também a personalidade e os valores individuais1818 Costa FD, Azevedo RCS. Empatia, relação médico-paciente e formação em medicina: um olhar qualitativo. Rev Bras Edu Med 2010; 34(2):261-269..

Por fim, o halo 5, originado com o vocábulo “social”, apresenta ramificações com as palavras “biológico”, “econômico”, “cultural” e “contexto”. Este halo apresenta uma concepção holista de atendimento médico, assim como essas palavras estão também conectadas aos modelos teóricos dos determinantes sociais da saúde (DSS). As falas das estudantes 86 e 28 ilustram essa compreensão:

[...] é anamnese bem-feita, procurando saber os contextos social, cultural, religioso, econômico, e entendendo acerca das desigualdades existentes, conhecendo o Sistema Único de Saúde e suas formas de acesso, e que a terapêutica seja conversada, justa e beneficente, utilizando a ética (Estudante 86, 1º semestre).

[...] é tratar com respeito, respeitar a autonomia, de maneira a valorizar a dignidade humana, prevendo os valores éticos e valores humanos compreendendo todas as dimensões constitutivas do sujeito, sendo elas biológica, psicológica, social, cultural, econômica e espiritual (Estudante 28, 4º semestre).

Os estudantes deste grupo descrevem a importância de diferentes fatores que podem interferir na situação de saúde de um indivíduo ou grupo, o que nos permite inferir que eles estão mobilizando a abordagem dos DSS, teorias que apontam que o processo de saúde e doença é determinado pelas condições de vida das populações e não se reduz unicamente à causalidade patológica3232 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis 2007; 17(1):77-93.. Embora seja um ganho explicativo considerar esses fatores e perceber que os estudantes os mobilizaram em suas respostas, há uma persistente apartação entre o ser biológico e o social, o que pode gerar dificuldades para os profissionais em como perceber e agir nos serviços de saúde, visto que no plano real tais fatores aparecerão coadunados nas histórias de vida e nos processos de adoecimento dos pacientes3333 Garbois JA, Sodre F, Dalbello-Araujo M. From the notion of social determination to one of social determinants of health. Saude Debate 2017; 41(112):63-76..

Fernandes2727 Fernandes JCL. A quem interessa a relação médico paciente? Cad Saude Publica 1993; 9(1):21-27. afirma que os médicos muitas vezes se sentem impossibilitados, na atenção primária à saúde, de resolver as questões abordadas pelos pacientes, visto que elas não se reduzem ao biológico. Ou seja, os profissionais se sentem limitados quando as demais dimensões do processo de adoecer entram em cena, o que nos permite inferir que, mais do que apontar ou constatar a existência das dimensões sociais, culturais e econômicas, é importante saber lidar com elas. Portanto, as instituições formadoras precisam produzir, durante a formação inicial, instrumentos de intervenção que permitam aos futuros profissionais se sentirem mais resolutivos em relação aos aspectos do adoecer que extrapolam o campo biomédico, pois assim os encontros serão ainda mais humanizados.

Os respondentes abordaram também os direitos dos usuários em seus discursos, ou seja, a necessidade de respeitar os princípios éticos e a autodeterminação dos sujeitos nos projetos terapêuticos que serão adotados. Não é possível tratar de humanização das práticas em saúde sem reconhecer que há assimetria na relação entre os médicos e os pacientes e que esta deve ser reequilibrada a partir de uma atuação diferenciada dos médicos3434 Fortes PAC. Ética, direitos dos usuários e políticas de humanização da atenção à saúde. Saude Soc 2004; 13(3):30-35..

De forma genérica, foi possível apreender que os estudantes egressos do BIS mobilizaram o conceito ampliado de saúde em suas explicações, ou seja, não reduzindo a saúde à não doença. Os halos que foram produzidos a partir das respostas dos estudantes apontam que eles entendem que o AMH deve levar em consideração a escuta da história de vida, a autonomia do paciente e os aspectos socioemocionais que envolvem a relação médico-paciente. Além disso, também emergiu a visão de que o atendimento humanizado deve atentar-se para os diversos aspectos (econômicos, sociais e culturais) da vida que geram necessidade de cuidados.

É possível inferir que este grupo tem essas compreensões sobre o processo saúde, doença e cuidado poque ingressou na universidade pelo regime de ciclos, tendo como primeiro ciclo o BIS. Este curso de natureza geral e interdisciplinar está ancorado em posições teóricas que criticam a individualização e a medicalização da saúde. O BIS possui duas disciplinas obrigatórias (Introdução ao campo da saúde e Campo da saúde, saberes e práticas) que apresentam aos estudantes a historicidade do conceito de saúde, os modelos assistenciais à saúde e os diferentes sistemas médicos, com o objetivo de difundir o entendimento de que a biomedicina é um produto da história humana, uma racionalidade que deve ser questionada e aperfeiçoada3535 Teixeira CFS, Coelho MTAD, Rocha MND. Bacharelado interdisciplinar: uma proposta inovadora na educação superior em saúde no Brasil. Cien Saude Colet 2013; 18(6):1635-1646.. Além disso, o corpo discente do BIS precisa cursar disciplinas artísticas e humanísticas, o que permite uma expansão cognitiva em relação à diversidade humana e aos seus modos de vida, o que argumentamos ser fundamental para conseguir compreender a saúde para além das técnicas1212 Universidade Federal da Bahia (UFBA). Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC). Projeto Pedagógico do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde. Salvador: UFBA; 2010..

Em contraposição, a árvore 1 elucida que os sujeitos ingressos no curso diretamente pelo ENEM/SISU têm visões, acerca do atendimento humanizado, mais relacionadas a valores, posturas e competências que o médico deve apresentar enquanto profissional para uma boa RMP. Enfatiza-se a preocupação com o respeito com o outro e a resolução dos problemas/necessidades/doenças/condições apresentadas ao médico por quem busca o atendimento. Percebemos que essas concepções, se comparadas às dos estudantes egressos do BIS, são mais restritivas no que se refere à amplitude do conceito de humanização3636 Veras RM, Passos VBC, Feitosa CCM, Fernandes SCS. O bacharelado interdisciplinar em saúde e medicina: uma análise de correspondência de concepções acerca de atendimento humanizado. NTQR 2020; 3(1):528-541..

No entanto, é importante destacar a relevância de existir, entre esses estudantes, a compreensão a respeito do foco de um atendimento humanizado ser o paciente, e de como este deve ser ouvido e respeitado. Num contexto de precarização do trabalho médico e da hegemonia do complexo industrial-farmacêutico, ter essa concepção reforça a importância da interdisciplinaridade na educação médica e de iniciativas como o EEH para contribuir com a proposta da humanização do cuidado em saúde.

Considerações finais

O presente estudo permitiu analisar as concepções dos estudantes de medicina em relação ao atendimento médico humanizado. O diferencial de outros estudos já realizados dentro dessa temática é que este tratou de analisar dois grupos: os que vivenciaram o modelo de ciclos e os que ingressaram diretamente no curso de medicina. Ficou demonstrado que, a depender do tipo de ingresso, existem diferenças nessas concepções. Os estudantes egressos do BIS definiram o AMH indicando uma concepção ampla de saúde, sem se limitar ao momento do encontro entre médico e paciente. Já os estudantes ingressos via ENEM/SISU apresentaram uma tendência a relacionar a humanização do atendimento ao contexto do encontro imediato.

Devemos atentar também para os limites do currículo, embora este seja um dispositivo poderoso de poder-saber que seleciona os conhecimentos considerados formativos com vistas a edificar um perfil ideal de egresso, é sempre inconcluso. As concepções e ações de um estudante e futuro profissional transbordam esse dispositivo, pois são atravessadas por outras relações. Entretanto, não devemos abrir mão da responsabilidade científica e social da universidade, que é formar pessoas capacitadas para as necessidades e os desafios que as comunidades apresentam.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa de produtividade da primeira autora, e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa de mestrado da segunda autora e do terceiro autor.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Maio 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2021
  • Aceito
    27 Nov 2021
  • Publicado
    29 Nov 2021
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