Das consultas terapêuticas à consulta conjunta: contribuições de Winnicott à prática do apoio matricial

From therapeutic consultations to joint consultation: Winnicott’s contributions to matrix support practice

Gustavo Vieira Pablo Castanho Sobre os autores

Resumo

O artigo tem como objetivo revisitar as Consultas Terapêuticas do psicanalista Donald Winnicott, buscando identificar nesta estratégia clínica subsídios para a sustentação técnica e ética do apoio matricial e das consultas conjuntas no Sistema Único de Saúde (SUS). Para tanto, realiza-se uma releitura de textos de Winnicott e comentadores, colocando-os em debate com aspectos do trabalho em saúde mental na atenção básica. A partir da análise detalhada de uma das consultas descritas pelo psicanalista, abordam-se implicações para a prática do apoio matricial, tanto na intervenção junto à equipe, como na escuta do paciente e sua família. Além disso, com base no estudo dos relatos de consultas de Winnicott, apresentam-se contribuições para as consultas conjuntas no SUS, considerando seus eixos assistencial e formativo. Como resultados técnicos e éticos, destacam-se: (a) a prioridade da escuta direta da pessoa sobre quem advém a queixa; (b) a importância de sustentar o “espaço e tempo” que possibilite uma experiência significativa ao paciente; (c) o uso de instrumentos de entrevista à luz do “brincar partilhado”; (d) o paciente como sujeito ativo na construção de seu projeto terapêutico; (e) a importância da equipe local no suporte e “tradução” da experiência do paciente.

Key words:
Public health; Matrix support; Psychoanalysis

Abstract

The scope of this article is to revisit the Therapeutic Consultations of psychoanalyst Donald Winnicott, seeking to identify technical and ethical contributions which can strengthen the “matrix support” and joint consultations in the Unified Health System (SUS). A rereading of Winnicott’s texts and those of commentators is conducted, presenting a debate between the author’s ideas and the work in mental health in primary care. Based on detailed case analysis, the article addresses some implications for the practice of matrix support, both in the intervention by the team, and in listening to the patient and family members. In addition, based on a contextualized study of Winnicott’s consultation reports, the work presents contributions for joint consultations in the SUS, both in its care and in its formative axis. The following stand out in terms of technical and ethical results: (a) the priority of listening directly to the person who gave rise to the complaint; (b) the importance of sustaining “space and time” to allow a meaningful experience for the patient; (c) the use of interview instruments in the light of “shared playing”; (d) the patient as an active subject in the construction of his therapeutic project; (e) the importance of the local team in supporting and “translating” the patient’s experience.

Key words:
Public health; Matrix support; Psychoanalysis

Introdução

A proposição do apoio matricial no campo da saúde coletiva e políticas públicas brasileiras advém de um rico debate sobre a ampliação da clínica. Segundo o médico sanitarista Gastão Campos11 Campos GWS. Saúde paidéia. 3ª ed. São Paulo: São Paulo Hucitec; 2003., várias racionalidades na saúde são fundadas em uma clínica “degradada” (restrita à lógica queixa-conduta) ou em uma clínica “oficial” (limitada ao biologicismo e aos “especialismos”). Como contraponto a estas perspectivas, o autor propõe uma “clínica ampliada”, que possibilite incluir também o sujeito e o seu contexto no processo saúde/doença. Segundo Campos, esta ampliação da clínica seria facilitada pelo trabalho cooperativo e conjunto entre profissionais e, para tanto, o autor apresenta duas noções fundamentais: a equipe de referência e o apoio especializado matricial.

Conforme Campos22 Campos GWS. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Cien Saude Colet 1999; 4(2):393-403., a equipe de referência consiste no grupo de profissionais que acompanham longitudinalmente uma determinada adstrição de usuários, o que possibilitaria maior vinculação destes últimos com o serviço de saúde - a exemplo das equipes de saúde da família na atenção básica do SUS33 Giovanella L, Mendonça MHM. Atenção primária à saúde. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014. p. 525-625.. O apoio matricial, por sua vez, foi concebido por Campos22 Campos GWS. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Cien Saude Colet 1999; 4(2):393-403. como uma retaguarda especializada que desenvolve intervenções conjuntas e/ou articuladas com as equipes de referência, estendendo as possibilidades de atuação destas últimas e permitindo maior efetividade e vinculação dos usuários de saúde com os serviços. Neste arranjo de trabalho, segundo o autor, busca-se superar a fragmentação do cuidado e a lógica de encaminhamentos de usuários entre serviços de saúde. Enquanto um matriciador pode atuar conjuntamente com diferentes equipes/serviços, uma equipe de referência “generalista” seguiria sendo a principal responsável pelo acompanhamento longitudinal dos usuários de sua adstrição.

Desde o ano de 2008, o apoio matricial foi implantado como política pública de saúde por meio dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família. Segundo revisão bibliográfica integrativa sobre o apoio matricial em saúde mental na atenção básica realizada por Treichel et al.44 Treichel CAS, Campos RTO, Campos GWS. Impasses e desafios para consolidação e efetividade do apoio matricial em saúde mental no Brasil. Interface (Botucatu) 2019; 23:1-18., os impasses e desafios para a consolidação e efetividade do apoio matricial se dariam não somente devido a questões estruturais ou políticas, visto terem identificado também “forte prevalência de obstáculos epistemológicos para [sua] consolidação e efetividade”44 Treichel CAS, Campos RTO, Campos GWS. Impasses e desafios para consolidação e efetividade do apoio matricial em saúde mental no Brasil. Interface (Botucatu) 2019; 23:1-18.(p.12). Sobre este aspecto, os autores destacam dois fatores: (a) a falta de delineamentos claros sobre as estratégias para a prática do matriciamento e (b) a falta de conhecimentos, habilidades ou formação específicos para o desenvolvimento do trabalho.

Consideramos que alguns destes obstáculos epistemológicos estão relacionados à carência de referenciais para a prática do matriciamento na interface com diferentes abordagens teórico-clínicas. Neste mesmo sentido, Onocko-Campos55 Onocko-Campos R. Psicanálise e Saúde Coletiva: interfaces. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014. nos alerta que a ênfase política na saúde coletiva pode produzir, por vezes, uma “negação” da dimensão clínica do cuidado. Assim, compreendemos que a psicanálise é uma das abordagens que pode contribuir para a dimensão clínica do apoio matricial.

O presente trabalho propõe revisitar as Consultas Terapêuticas do psicanalista inglês Donald Winnicott, buscando identificar nesta estratégia clínica subsídios para a sustentação técnica e ética do apoio matricial e das consultas conjuntas no Sistema Único de Saúde (SUS). Este artigo é resultado de pesquisa de Doutorado em Psicologia Clínica, e as questões que motivaram a realização deste estudo são igualmente advindas da prática de um dos autores do artigo como psicólogo no apoio matricial na Atenção Básica. O presente artigo consiste em uma pesquisa teórica, na interação entre psicanálise e saúde coletiva.

Tal interação é tributária de uma abordagem metodológica de leitura teórica que valoriza o contexto histórico-biográfico de Winnicott66 Rodman FR. Winnicott: life and work. Cambridge: Da Capo; 2003.

7 James M. Has Winnicott become a Winnicottian? In: Spelman M, Thomson-Salo F, editores. The Winnicott Tradition. London: Karnac; 2015. p. 7-19.

8 Kanter J. "Let's never ask him what to do": Clare Britton's transformative impact on Donald Winnicott. Am Imago 2004; 61(4):457-481.
-99 Alexander S. Primary Maternal Preoccupation: D. W. Winnicott and Social Democracy in Mid-Twentieth-Century Britain. In: Taylor B, Alexander S, editores. History and Psyche. New York: Palgrave Macmillan US; 2012. p. 149-172. e a experiência profissional dos próprios autores com o SUS. Seguimos a proposta de Mezan1010 Mezan R. Que significa "pesquisa" em psicanálise? In: A sombra de Don Juan e outros ensaios. 2ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005. p. 95-134. de uma leitura-escuta flutuante atenta ao contexto dos artigos analisados e marcada de modo indelével pelo “pensamento clínico”1111 Mezan R. Pesquisa em psicanálise: algumas reflexões. J Psican 2006; 39(70):227-241. do pesquisador. Deste modo, entendemos que o conhecimento de dados histórico-biográficos, bem como o contato profissional com questões clínicas semelhantes às do autor, deslocam possibilidades de leitura, permitindo novas problematizações e entendimentos dos textos originais sem, contudo, redundarem em um relativismo na interpretação. Nas palavras de André Green1212 Green A. La déliaison. Littérature 1971; 3:33-52., face aos escritos, ocorreria um “espaço potencial”, sendo nele que propomos encontrar e criar releituras teórico-clínicas para a prática no apoio matricial.

Para tanto, abordamos inicialmente alguns aspectos das consultas terapêuticas de Winnicott, enfatizando seu interesse para a saúde coletiva. Na sequência, analisamos um dos casos clínicos descritos pelo psicanalista, apresentando interfaces entre os elementos éticos e técnicos das consultas terapêuticas e o apoio matricial. Por fim, tomamos o contexto e conjunto de relatos de consultas de Winnicott, a fim de estabelecer algumas correlações com as intervenções conjuntas no apoio matricial, tanto no que tange ao eixo assistencial (ou de cuidado), como no eixo de formação interprofissional.

As consultas terapêuticas de Winnicott e seu interesse para a Saúde Coletiva

Donald Winnicott se tornou psicanalista pela Sociedade Britânica de Psicanálise em 1935, mas desde o início da década de 1920 iniciou sua prática profissional em instituições voltadas principalmente à saúde infanto-juvenil66 Rodman FR. Winnicott: life and work. Cambridge: Da Capo; 2003.. Neste contexto de atuação, o autor sublinha ter desenvolvido uma estratégia clínica fundamentada na psicanálise - embora distinta da “análise padrão” -, que mais tarde passou a denominar “consultas terapêuticas”1313 Winnicott DW. O valor da consulta terapêutica. In: Winnicott C, Davis M, Shepherd R, editores. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed; 1994. p. 244-248..

Foi ao longo de 40 anos de atuação no Hospital Paddington Green que Winnicott exerceu de forma mais extensa esta prática clínica66 Rodman FR. Winnicott: life and work. Cambridge: Da Capo; 2003.,1414 Winnicott DW. Clínica particular. In: Winnicott C, Shepherd R, Davis M, editores. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed; 1994. p. 223-229., acolhendo aproximadamente sessenta mil famílias e lidando com casos de grande vulnerabilidade social99 Alexander S. Primary Maternal Preoccupation: D. W. Winnicott and Social Democracy in Mid-Twentieth-Century Britain. In: Taylor B, Alexander S, editores. History and Psyche. New York: Palgrave Macmillan US; 2012. p. 149-172.,1515 Winnicott C. Interview with Clare Winnicott. In: Rudnytsky PL, editor. The Psychoanalytic Vocation. New Haven/London: Yale Univ.; 1991. p. 180-194.. Este hospital passou a integrar o National Health Service na década de 194099 Alexander S. Primary Maternal Preoccupation: D. W. Winnicott and Social Democracy in Mid-Twentieth-Century Britain. In: Taylor B, Alexander S, editores. History and Psyche. New York: Palgrave Macmillan US; 2012. p. 149-172., sistema universal de saúde que serviu de referência para a organização do SUS. Winnicott justifica a proposição das consultas terapêuticas na ampliação do valor social da psicanálise, assim como enfatiza o caráter público desta prática clínica, aberta para toda família que pudesse comparecer no dia e horário disponibilizados1313 Winnicott DW. O valor da consulta terapêutica. In: Winnicott C, Davis M, Shepherd R, editores. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed; 1994. p. 244-248.,1414 Winnicott DW. Clínica particular. In: Winnicott C, Shepherd R, Davis M, editores. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed; 1994. p. 223-229.. Logo, podemos perceber um contexto clínico-institucional com diversas afinidades com a saúde coletiva. A partir desse cenário, a fim de propor interfaces com o apoio matricial, abordaremos três elementos constitutivos das consultas terapêuticas.

O primeiro consiste na definição de Winnicott de “consulta terapêutica”: a exploração mais completa o possível da primeira ou de poucas entrevistas1313 Winnicott DW. O valor da consulta terapêutica. In: Winnicott C, Davis M, Shepherd R, editores. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed; 1994. p. 244-248.,1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984.. Assim, a lógica desta prática preconizava a intervenção clínica o mais breve possível, direcionada especialmente para crianças e adolescentes, embora Winnicott e pesquisadores indiquem que ele também realizava consultas terapêuticas com adultos1313 Winnicott DW. O valor da consulta terapêutica. In: Winnicott C, Davis M, Shepherd R, editores. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed; 1994. p. 244-248.,1717 Winnicott DW. O Jogo do Rabisco. In: Winnicott C, Davis M, Shepherd R, editores. Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed; 1994. p. 230-243.,1818 Gustafson J, Dichter H. Winnicott and Sullivan in the brief psychotherapy clinic, part I. Contemp Psychoanal 1983; 19(4):624-637.. O perfil de paciente indicado para esta modalidade de tratamento era aquele que não podia ou não precisava realizar uma “análise tradicional”. Além disso, o autor1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984.,1717 Winnicott DW. O Jogo do Rabisco. In: Winnicott C, Davis M, Shepherd R, editores. Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed; 1994. p. 230-243. ressaltava a importância de o paciente contar com um “ambiente suficientemente bom” que pudesse continuar o trabalho iniciado na(s) entrevista(s). Neste sentido, destaca-se a atuação do psicanalista junto aos pais das crianças e adolescentes consultados, o que facilitava a constituição de um ambiente de suporte entre as consultas (ou após a última entrevista). Além disso, conforme Winnicott1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984. indica em seus relatos de caso, a escola e outras agências sociais constituíam elementos importantes na sustentação ambiental em vários casos. Logo, assim como as intervenções no SUS, as consultas terapêuticas eram pensadas em conexão com a família e o contexto sociocomunitário.

O segundo elemento refere-se à “potencial continuidade de contato” entre Winnicott1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984. e o paciente, visto que o profissional estava disponível para realizar outras entrevistas (conforme a demanda ou necessidade), assim como mantinha comunicação à distância com vários dos pacientes e/ou famílias (p.ex. por telefone ou carta). Logo, podemos compreender que, embora a consulta terapêutica se configurasse como uma intervenção pontual, a “presença em potencial” de Winnicott operava uma função clínica importante na condução dos casos. Este elemento possui afinidade com o papel do matriciador que, embora não faça parte da equipe de referência, mantém-se como retaguarda clínica e pode ser acessado quando isso se faz necessário.

O terceiro elemento é o horizonte de cooperação interprofissional nas consultas terapêuticas. Sobre este tema, Winnicott afirma:

[...] é necessário efetuar este trabalho em um setting mais amplo em que haja a oportunidade para que um caso deslize para outro tipo de categoria de psiquiatria infantil [...]. Se a entrevista psicoterapêutica mostrar-se insatisfatória mesmo quando se pergunta “Qual é o mínimo que precisamos fazer neste caso?”, então um mecanismo mais complexo pode ser colocado em ação1313 Winnicott DW. O valor da consulta terapêutica. In: Winnicott C, Davis M, Shepherd R, editores. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed; 1994. p. 244-248.(p.247).

É interessante notar que na citação acima o autor utiliza o termo setting, considerado por ele em outro artigo1919 Winnicott DW. Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto analítico. In: Winnicott DW. Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2000. p. 374-392. como o contexto no qual a clínica seria praticada, incluindo dimensões como o horário, local e relação analítica. Deste modo, podemos considerar que a possibilidade de outro profissional de saúde mental ser incluído no cuidado era constituinte do setting das consultas terapêuticas, em conjunto com os dois elementos apresentados acima.

Em uma leitura atenta dos relatos de entrevistas de Winnicott, identificamos que esta prática clínica também era ampliada pela discussão e/ou acompanhamento conjunto com médicos de família (general practitioners), conforme podemos verificar em cinco dos casos apresentados em sua compilação de consultas terapêuticas1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984.. Na perspectiva de Alexander99 Alexander S. Primary Maternal Preoccupation: D. W. Winnicott and Social Democracy in Mid-Twentieth-Century Britain. In: Taylor B, Alexander S, editores. History and Psyche. New York: Palgrave Macmillan US; 2012. p. 149-172., a atuação conjunta de Winnicott com médicos de famílias estava alinhada com o preconizado no “Dawson Report” - matriz discursiva sob a qual foram construídas as políticas do SUS e, além disso, base fundamental para a constituição do apoio matricial no Brasil2020 Castro CP, Campos GWS. Apoio Matricial como articulador das relações interprofissionais entre serviços especializados e atenção primária à saúde. Physis 2016; 26(3):455-481.. Além disso, extrapolando os serviços de saúde, podemos também encontrar em diversos registros de Winnicott a cooperação com profissionais da educação e da assistência social, o que também indica o caráter intersetorial de sua prática77 James M. Has Winnicott become a Winnicottian? In: Spelman M, Thomson-Salo F, editores. The Winnicott Tradition. London: Karnac; 2015. p. 7-19.,88 Kanter J. "Let's never ask him what to do": Clare Britton's transformative impact on Donald Winnicott. Am Imago 2004; 61(4):457-481.,1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984..

Conforme discutem Vieira et al.2121 Vieira G, Castanho P, Campos EP. Uma ampliação do setting face à exclusão: contribuições de Winnicott para o cuidado clínico em equipe. Cad Psican CPRJ 2020; 42(43):91-115., embora o cuidado de outro profissional ou serviço nem sempre se fizesse necessário, o horizonte potencial de cooperação interprofissional era constituinte do “setting ampliado” das consultas terapêuticas, sendo assim um dos requisitos para as possibilidades da prática. Este elemento é evidenciado no relato de consulta terapêutica da adolescente Hesta em que, nas palavras de Winnicott, constituiu-se um “trabalho em equipe” entre ele, o médico de família e uma jovem que atuou como cuidadora local1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984., assim como no testemunho de sua esposa - a assistente social Clare Winnicott2222 Winnicott C. Letter to the Editor. Int J Psychoanal 1972; 53:559-560. - sobre o psicanalista trabalhar “para fora” (outwards), buscando apoio tanto dos pais como de outras pessoas significativas na vida dos pacientes atendidos nas consultas terapêuticas.

Logo, os três elementos apresentados acima configuram um contexto clínico-institucional fecundo para se pensar possíveis interfaces entre as consultas terapêuticas e o apoio matricial. Além disso, é importante considerar mais uma noção teórico-clínica fundamental: para Winnicott, nas primeiras entrevistas o profissional ainda equivaleria ao que ele denomina “objeto subjetivo”1313 Winnicott DW. O valor da consulta terapêutica. In: Winnicott C, Davis M, Shepherd R, editores. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed; 1994. p. 244-248.. Esta concepção era baseada na percepção de um paradoxo: Winnicott identificou que diversas crianças - que indicavam alguma esperança em obter ajuda - relatavam ter sonhado com ele na noite anterior à primeira consulta. O autor relaciona ainda esta constatação com a sua perspectiva igualmente paradoxal sobre os primórdios da relação mãe-bebê: para ele, o recém-nascido cria o seio que é oferecido pela mãe2323 Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.. Deste modo, a ideia de objeto subjetivo consiste em alguém que é, ao mesmo tempo, encontrado e criado.

A noção winnicotiana de “objeto subjetivo” possui implicações importantes para a relação profissional-paciente: para o autor, assim como a mãe precisa se adaptar sensivelmente ao bebê a fim de sustentar a experiência criadora primordial, o profissional precisaria se ajustar ao lugar de objeto subjetivo nas primeiras entrevistas, permitindo igualmente ser encontrado-criado pelo paciente. Esta contribuição é de grande valia para compreender em termos psicodinâmicos a potencialidade clínica dos primeiros contatos entre o profissional e a pessoa que busca ajuda.

Embora tenhamos enumerado possíveis afinidades entre o apoio matricial e as consultas terapêuticas, uma diferença importante consistia na disponibilidade de Winnicott ser acessado diretamente pelas famílias, sem haver a necessidade da mediação de uma equipe de referência. Neste sentido, consideramos que uma de suas consultas - o caso Iiro - se distingue devido a demanda ter sido endereçada a Winnicott por meio de uma equipe de saúde, e não primeiramente pela família ou pelo paciente. Deste modo, seguiremos analisando esta história clínica, aprofundando a partir dela outros aspectos das consultas terapêuticas.

O caso de Iiro: uma releitura à luz do apoio matricial

A entrevista de Iiro ocorreu em uma visita de Winnicott ao Hospital Lastenlinna, em Kupio (Finlândia), realizada em 1964 “sob os auspícios” da Organização Mundial de Saúde. Embora se trate da consulta de uma criança, consideramos encontrar neste relato diretrizes técnicas e éticas que possibilitam pensar a dimensão clínica do apoio matricial no SUS para diversas faixas etárias e modalidades de sofrimento. Para tanto, discutiremos quatro momentos do caso, que dialogam também com diferentes dimensões do apoio matricial: (a) a demanda da equipe de saúde; (b) a escuta do paciente; (c) o contato com a família; (d) a intervenção junto à equipe e os desdobramentos do caso.

A demanda e participação da equipe de saúde

Logo no início da história clínica verificamos uma especial afinidade com o apoio matricial, visto que o objetivo relatado por Winnicott1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984. na visita era o de contribuir com a compreensão e manejo clínico de um caso, para que os próprios profissionais do hospital pudessem seguir o acompanhamento do paciente. De acordo com o autor, os participantes da atividade foram médicos, enfermeiros, psicólogo, assistente social, além da diretora do hospital. Esta equipe selecionou o caso de Iiro (9 anos), internado na divisão ortopédica devido ao quadro de sindactilia, condição congênita na qual os dedos de suas mãos e de seus pés apresentavam uma união visível. Além disso, os integrantes da equipe também referiram outros sintomas inespecíficos de Iiro que lhes chamavam a atenção, como confusões, dores de cabeça e no abdômen.

De acordo com Winnicott1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984., a criança era bem conhecida dos profissionais do hospital e, devido à sindactilia, ela era acompanhada “quase permanentemente” desde o seu nascimento. Segundo Winnicott, devido ao fato de ele não falar finlandês, assim como de a criança não falar inglês, a consulta teve a participação da Assistente Social Helka Asikainen, integrante da equipe hospitalar que já possuía conhecimentos sobre o caso. Em seu relato, o autor salienta que Asikainen “se mostrou uma ótima intérprete”, facilitando a comunicação de Winnicott com Iiro e com sua mãe. Conforme abordaremos ao longo do artigo, consideramos que Asikainen exerceu um papel amplo de “tradução”, para além da questão do idioma.

A escuta do paciente

Apesar de a mãe de Iiro também se encontrar no hospital, Winnicott1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984. propõe consultar primeiramente a criança. Esta escolha é compatível com sua posição explicitada em um artigo, no qual afirma que “[é] direito do paciente ser o paciente, e se o genitor não consegue cooperar com este arranjo, precisa-se de fato considerar se a pessoa enferma não será de fato o genitor, antes da criança”1313 Winnicott DW. O valor da consulta terapêutica. In: Winnicott C, Davis M, Shepherd R, editores. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed; 1994. p. 244-248.(p.246). Consideramos encontrar neste enunciado uma posição ética de escutar primordialmente a pessoa sobre quem advém a queixa, seja criança ou adulto, contribuição de grande valia para o apoio matricial do SUS no âmbito da estratégia saúde da família.

Winnicott utiliza com Iiro um recurso que emprega muito amiúde em suas consultas terapêuticas. Logo no começo da consulta, o psicanalista convida o paciente para o “jogo do rabisco”, explicando a ele: “Fecharei os olhos e farei um risco a esmo no papel; você o transformará em alguma coisa e depois será sua vez e você fará o mesmo e eu transformarei seu traço em alguma coisa”1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984.(p.20). É interessante notar que Winnicott se aproxima através do brincar, elemento relacionado em seu pensamento à sustentação de “espaço e tempo”2323 Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.. Além disso, retomando a importância de o profissional se ajustar ao lugar de “objeto subjetivo”, consideramos que a escolha deste jogo na consulta indica para uma adaptação sensível que permita a Iiro encontrar-criar Winnicott - assim como o jogo propõe que o paciente crie (n)os rabiscos ofertados.

Ao iniciar seu rabisco, Iiro desenha um pé de pato, referência que surpreende Winnicott1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984. pela correlação evidente com a sindactilia. Contudo, ao invés de realizar interpretações diretas ao material apresentado, o profissional sustenta o processo para que a confiança e comunicação possam ser estabelecidas entre eles. Deste modo, é interessante notar que, “em sua rodada”, Winnicott não faz um rabisco, mas desenha igualmente um pé de pato, a fim de “testar a situação”, o que o permite certificar-se de que eles estavam “falando a mesma língua” e que, assim, ele poderia sustentar a expressão da criança.

Podemos verificar que nos primeiros desenhos Winnicott não busca cumprir as regras do jogo do rabisco “à risca”, pois seu objetivo primordial é o de viabilizar a comunicação com Iiro. Este aspecto levanta um ponto importante: embora diversos instrumentos sejam sugeridos no apoio matricial (p.ex. familiograma e ecomapa2424 Chiaverini DH, Gonçalves DA, Ballester D, Tófoli LF, Chazan LF, Almeida N, Fortes S. Guia prático de matriciamento em saúde mental. Brasília: MS/CEPESC; 2011.) é fundamental que seu uso sirva prioritariamente para a comunicação com o paciente, cuidando para que não se torne um procedimento rígido, que tenha um fim em si mesmo.

Na sequência, Winnicott1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984. e Iiro prosseguem no jogo do rabisco, produzindo conjuntamente imagens de patos, cisnes, assim como um rabisco que, para o autor, se assemelhava à mão do paciente. Além disso, ao longo da primeira sequência de desenhos, Winnicott identifica uma hesitação de Iiro em olhar para as suas próprias mãos, mas o profissional intencionalmente não realiza interpretações sobre estes fatos. Depois de uma série de rabiscos conjuntos, o paciente desenha novamente algo semelhante a uma mão deformada e, ao ser perguntado por Winnicott sobre o que estava pensando, a criança se surpreende com sua própria produção.

Ao discutir esta história clínica, Tosta2525 Tosta RM. Consultas terapéuticas: fenómenos curativos y salud. Rev Latinoam Psicopatol Fundam 2017; 20(4):762-775. ressalta que a consulta de Iiro é perpassada pela espera e pela surpresa: por um lado, a surpresa de Winnicott demonstra que ele não possui uma ideia preconcebida sobre a criança ou o processo; por outro, a surpresa de Iiro diante de suas próprias expressões indica a superação de conteúdos que estavam dissociados. Estes elementos constituem aportes interessantes para a atuação no SUS, pois desvelam a importância de que os serviços busquem proporcionar - mesmo diante da grande demanda - o espaço e o tempo necessários para que o próprio paciente possa vivenciar o processo por meio de settings específicos, como a consulta conjunta.

Depois da criação partilhada de uma dezena de desenhos e da constatação de estar efetivamente se comunicando com o paciente, Winnicott1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984. expressa identificar em um dos rabiscos da criança o formato de sua própria mão. Esta intervenção permite a Iiro verbalizar que passou por diversas cirurgias, assim como ter consciência de que enfrentaria novos procedimentos médicos. A criança também revela seu desejo de tocar flauta e fazer outras atividades incompatíveis com sua condição, além de declarar que foi ela mesma que escolheu passar pelas operações, expressão neste momento acolhida e não questionada pelo profissional.

É interessante notar que Winnicott aguarda o próprio movimento de Iiro indicar - por meio de seus desenhos - o momento certo de uma nova verbalização pelo profissional. Na sequência do jogo, o autor identifica rabiscos do paciente que podem se relacionar a uma representação de si no início da vida e declara:

[Você] está me dizendo que gosta de você mesmo com seus pés e mãos ligados e que precisa que as pessoas o amem da maneira como era quando nasceu. Já crescido você quer tocar piano, flauta e fazer trabalhos manuais, e assim concorda em continuar a ser operado, mas a coisa principal é “ser amado como é e do modo como nasceu”1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984.(p.31).

Logo, assim como as trocas de rabiscos feitas no papel, Winnicott faz uso dos elementos comunicados por Iiro em sua intervenção, permitindo então que ele possa se expressar. Como resposta, o paciente revela que sua mãe também vivia com sindactilia, o que naquele contexto, significava para Winnicott que a criança precisava lidar com essa condição não apenas para si mesma, mas também no que se referia à sua mãe. É importante salientar que a descoberta do lugar da mãe no caso clínico não fez com que o profissional interrompesse a consulta de Iiro para entrevistá-la. Este aspecto, de grande valor para o apoio matricial, indica para a importância de que a intervenção com cada integrante da família possa ser vivida, conforme enfatizado por Safra2626 Safra G. A clínica em Winnicott. Nat Humana 1999; 1(1):91-101., como uma “experiência completa”.

Desta forma, Winnicott prossegue a consulta com alguns rabiscos até que Iiro desenhou novamente um pato, figura que o autor considerou ser, naquele contexto, “uma reafirmação de amor [de Iiro] por si mesmo”1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984.(p.33). Além disso, podemos considerar que o psicanalista aguardou até o momento em que o próprio paciente indicou estar preparado para se despedir2626 Safra G. A clínica em Winnicott. Nat Humana 1999; 1(1):91-101.. Este elemento parece ser um balizador importante para que as intervenções pontuais e/ou breves no apoio matricial possam ter maior potência, exigindo por sua vez uma flexibilidade tanto do profissional como do serviço em que ele está inserido.

A partir dos aspectos aqui discutidos, passemos para mais um elemento fundamental para nosso estudo: a entrevista com a mãe de Iiro.

O contato com a família

A comunicação com a família - considerando quem e como será feita - é pensada por Winnicott1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984. à luz da entrevista com o paciente (sobre quem advém a queixa). Além da entrevista com a criança ter desvelado a pertinência de conversar com a mãe no mesmo dia, a genitora também manifestou interesse em conversar com o profissional.

De modo semelhante à consulta anterior, Winnicott e Asikainen sustentaram “espaço e tempo” para que mãe de Iiro encontrasse oportunidade para se comunicar e, assim, entrar em contato com aspectos de sua relação com seu filho. Segundo o autor1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984., a mãe pôde expressar livremente seus sentimentos, verbalizando que rejeitou a criança quanto esta nasceu. Ela acrescentou que, para lidar com sua culpa, tornou Iiro seu filho “predileto”, mas passou a tentar “consertar os dedos” da criança.

Algumas observações de Winnicott1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984. sinalizam a existência de um vínculo prévio de Asikainen com a família do paciente e indicam que o psicanalista considerou as informações obtidas por esta profissional, salientando que a mãe de Iiro pôde tomar consciência de aspectos “novos” acerca de sua relação com o filho. Em nossa perspectiva, este elemento contribui com a ideia de que o trabalho conjunto no apoio matricial possa fazer uso de informações já colhidas pelo profissional matriciando, mantendo a abertura para se surpreender com os novos elementos emergentes na escuta.

Por fim, o caso de Iiro também permite reflexões sobre as intervenções feitas junto à equipe de saúde, tema que abordaremos na seção seguinte.

A intervenção junto à equipe e os desdobramentos da consulta

Ao final do relato, Winnicott declara que discutiu o caso com a equipe do hospital, que estava “à espera de que [ele] falasse sobre uma criança que todos já conheciam”1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984.(p.35). De acordo com o autor, um dos elementos que inquietava um dos médicos locais - a complacência do paciente em relação às cirurgias -, não foi inicialmente apresentada na demanda inicial. Contudo, podemos entender que Winnicott também sustentou “espaço e tempo” em seu momento com a equipe, cujo resultado foi, segundo o autor, a adoção de uma atitude mais realística acerca das expectativas de “correção dos pés e mãos” de Iiro. Neste sentido, podemos pressupor que houve uma mudança, tanto por parte da família como da equipe de saúde, na relação dos cuidadores com Iiro, compreendendo melhor os limites das cirurgias e possíveis fatores iatrogênicos do excesso de intervenções médicas.

Ao avaliar os desdobramentos da intervenção de Winnicott junto à equipe, consideramos que esta possibilitou a ampliação da perspectiva dos profissionais para fatores subjetivos e psíquicos, assim como preconizado no apoio matricial. Além disso, sem a pretensão de que os profissionais da equipe se tornassem “especialistas” em saúde mental, entendemos que Winnicott partiu de um interesse técnico (“mostre-nos o que você faz”) para transmitir uma resposta ética (“como eu me comunico e me relaciono com os pacientes”), um balizador interessante para o apoio matricial junto às equipes.

Nos últimos parágrafos de seu relato, Winnicott declara sobre o status do caso após cinco anos da entrevista: “[...]. Talvez seja também de interesse o fato de a entrevista com esse menino não ter sido perdida para ele. [Iiro] continuou a manter contato comigo por cartas devidamente traduzidas por Asikainen e me manda fotografias com seu cachorro ou pescando com seus amigos no lago”1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984.(p.35). Assim, na perspectiva de Winnicott, Iiro pôde fazer uso da “potencial presença” do psicanalista para se manter saudável em seu cotidiano. Seguindo a interface entre este caso e o apoio matricial, podemos considerar que Winnicott conciliou uma modalidade de cuidado para o paciente e sua família com a realização de um trabalho junto à equipe que seguiria o acompanhamento do caso.

Além dos elementos já discutidos, levantamos ainda dois aspectos sobre o lugar ocupado por Asikainen no caso de Iiro. Em primeiro lugar, entendemos que ela se manteve, em alguma medida, como referência para Iiro e sua família naquele contexto institucional e social, considerando que ela seguiu intermediando a troca de cartas entre a criança e o psicanalista. Em segundo lugar, à luz do apoio matricial, entendemos que a tradução feita pela assistente social pode ser compreendida para além do idioma: assim como o matriciador, Winnicott é requisitado pela equipe sobre um saber acerca da vida psíquica e emocional, mas não “fala a língua da criança”, o que a nosso ver inclui seu desconhecimento dos códigos sociais, comunitários e institucionais daquele contexto; por outro lado, de forma semelhante ao profissional de referência no território, Asikainen tem um conhecimento sobre o contexto e sobre a família, conseguindo “traduzir” muito do mundo singular de Iiro.

A discussão do lugar de Asikainen na entrevista de Iiro nos conduz a uma questão mais abrangente e fundamental para pensar possíveis interfaces entre a clínica de Winnicott, o apoio matricial e as intervenções conjuntas: a participação de outros profissionais de saúde nas consultas terapêuticas.

Reflexões sobre a participação de outros profissionais nas consultas de Winnicott

Nesta seção, procuraremos tensionar o texto winnicotiano, que faz raras menções à presença de outros profissionais nas consultas terapêuticas, com relatos de pessoas que testemunharam seu trabalho e alguns escritos que contextualizam sua prática clínico-institucional. Abordaremos agora algumas dessas referências, pensando suas possíveis relações com atividades conduzidas de forma partilhada entre o matriciador e um ou mais integrantes das equipes de referência. Para tanto, consideraremos dois eixos salientados nas consultas conjuntas2424 Chiaverini DH, Gonçalves DA, Ballester D, Tófoli LF, Chazan LF, Almeida N, Fortes S. Guia prático de matriciamento em saúde mental. Brasília: MS/CEPESC; 2011. no SUS: (a) o assistencial, ou seja, o cuidado oferecido pela equipe ao paciente; (b) o formativo, ou seja, o possível intercâmbio de saberes entre o profissional matriciador e o integrante da equipe de referência.

A dimensão assistencial e o cuidado em equipe

Nas compilações de artigos de Winnicott, identificamos brevíssimas alusões sobre a participação de assistentes sociais e de “visitantes” em quatro de suas consultas terapêuticas1616 Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago; 1984.,2323 Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975. (Rosemary, Ada, Lily, e o “menino dos cordões”). Estas referências são curtas e de pouco destaque no texto do autor, o que torna difícil saber qual era o papel destes profissionais na condução dos casos. Contudo, alguns de seus escritos oferecem pistas de compreensão.

Em seus textos sobre o funcionamento da Clínica Infantil em Paddington Green, Winnicott2727 Winnicott DW. Atendimento de caso com crianças mentalmente perturbadas. In: A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes; 2013. p. 177-193.,2828 Winnicott DW. Memorandum on Organizational Aspects of Child Care at Paddington Green Children's Hospital (Psychology Department). In: The Collected Works of D W Winnicott - Vol. 6, 1960-1963. Oxford: Oxford University Press; 2016. p. 179-186. indica que trabalhava de forma cooperativa com assistentes sociais, delegando a estes o acompanhamento de alguns casos, enquanto se mantinha em uma posição de retaguarda e responsabilidade técnica. Deste modo, embora não seja explicitado pelo autor, podemos levantar como hipótese que a participação de assistentes sociais nas entrevistas acima citadas se dava em um contexto de condução conjunta dos casos, o que permite estabelecer uma nova afinidade com o apoio matricial e sua lógica de corresponsabilização entre profissionais.

Contudo, o fato de os assistentes sociais citados por Winnicott comporem a “equipe de referência” dos casos não seria suficiente para compreender a sua presença no próprio setting da entrevista clínica. Neste sentido, levantamos como hipótese adicional que a participação destes profissionais nas consultas poderia se dar também em uma perspectiva formativa, ou seja, de intercâmbio de saberes. Para embasar nossa hipótese, abordaremos alguns relatos de pessoas que participaram das consultas terapêuticas com Winnicott.

A dimensão formativa e o intercâmbio de saberes

Embora Winnicott não traga muitos detalhes sobre a razão de outros profissionais se fazerem presentes no setting das consultas terapêuticas, identificamos alguns testemunhos dos próprios participantes destas entrevistas. Alguns destes relatos são de psicanalistas em formação que desejavam conhecer o manejo clínico de Winnicott nestas consultas2929 Milner M. The Suppressed Madness of Sane Men. Hove/New York: Brunner-Routledge; 1987.,3030 Khan MMR. Introdução. In: Winnicott DW. Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2000. p. 11-54.. Além disso, a médica e psicanalista Susanna Isaacs-Elmhirst3131 Isaacs-Elmhirst S. Foreword. In: Kahr B. D W Winnicott: a bibliographical portrait. London: Karnac; 1996. p. XV-XXII. - que trabalhou com Winnicott em Paddington Green - acrescenta que a participação de profissionais de dentro e de fora do hospital nas consultas terapêuticas era bastante frequente. Desta forma, podemos presumir que Winnicott considerava que a presença de profissionais em suas entrevistas - fossem eles psicanalistas ou não - possuía uma dimensão formativa.

Dentre os exemplos de profissionais que atuaram em Paddington Green, o relato de dois colegas médicos que participam de consultas com Winnicott dialogam de modo especial com a problemática do apoio matricial. John Davis3232 Davis J. Winnicott as physician. Winnicott Stud 1993; 7:95-7. enfatiza ter aprendido com Winnicott a importância de ouvir, ao invés de “interrogar” durante a consulta, o que o possibilitou perceber ainda que o instrumento mais importante, tanto para diagnóstico como para terapêutica, é o próprio profissional de saúde. Peter Tizard3333 Tizard JPM. Donald Winnicott. The President's view of a Past President. J R Soc Med 1981; 74(4):267-274., por sua vez, destaca ter aprendido com Winnicott a importância de considerar mais o que as crianças e famílias tinham a dizer, incluindo-as como partes ativas de suas consultas

É interessante salientar que tanto os relatos de Davis como o de Tizard acerca dos aprendizados advindos da participação em consultas com Winnicott enfatizam a importância de escutar e dar lugar ao paciente. A partir deste elemento, podemos depreender uma consequência ética de grande valia para nossa discussão: nas consultas de Winnicott, mesmo com a presença de mais de um profissional, o paciente não se tornaria um objeto de estudo, mas estaria no lugar de sujeito, sendo convocado para o “desenho conjunto” de seu projeto terapêutico. Consideramos este um elemento de fundamental importância, a fim de que a expectativa “formativa” do apoio matricial não torne o paciente um mero objeto de aprendizagem.

Considerações finais

O nosso objetivo ao longo do trabalho foi o de revisitar as Consultas Terapêuticas do psicanalista Donald Winnicott, buscando identificar nesta estratégia clínica subsídios para a sustentação técnica e ética do apoio matricial e das consultas conjuntas no SUS. Neste contexto, salientamos que o apoio matricial - assim como outras políticas de saúde - não devem esposar uma abordagem teórica em detrimento de outra, mas permitir que cada profissional possa efetivar o que está preconizado na política pública por meio de seu próprio referencial teórico-clínico. É justamente neste sentido que as consultas terapêuticas de Winnicott - consideradas em seu contexto institucional e histórico - contribuem para a superação dos “obstáculos epistemológicos” dos profissionais matriciadores, especialmente aqueles com afinidade com a psicanálise.

Contudo, para além dos aportes específicos ao profissional psicanalista, é possível identificar nas contribuições de Winnicott alguns aspectos técnicos que podem ser transversalizados para diferentes abordagens teórico-clínicas. Deste modo, destacamos algumas interfaces interessantes para profissionais de diferentes perspectivas no diálogo com o autor: (a) a prioridade da escuta direta do “paciente”, ou seja, aquele sobre quem advém a queixa; (b) a importância de sustentar o “espaço e tempo” para que o paciente possa se comunicar e ter uma experiência significativa; (c) o uso de instrumentos de entrevista à luz do “brincar partilhado”, para além de sua aplicação objetiva para coleta de dados; e (d) a importância da equipe e da rede como parte do “ambiente de suporte”, que antecede a entrevista e acompanha longitudinalmente o cuidado do paciente.

Por fim, consideramos também serem relevantes alguns aspectos éticos presentes nas Consultas Terapêuticas de Winnicott para profissionais matriciadores de diferentes abordagens. Neste sentido, destacamos a importância da abertura para outros saberes da equipe, especialmente em relação aos profissionais do território que podem “traduzir” de modo especial o mundo do paciente e de suas famílias. Além disso, salientamos ser fundamental considerar o paciente como sujeito (e não como objeto), permitindo que este seja ativo no “desenho” de seu próprio diagnóstico e projeto terapêutico.

Deste modo, entendemos que, apesar da prática de Winnicott ter sido realizada em um contexto institucional e sócio-histórico que possui diferenças em relação ao SUS, o movimento de “encontrar-criar” interfaces com o seu pensamento possibilita grandes contribuições para a técnica e ética do apoio matricial e das intervenções conjuntas na contemporaneidade.

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  • Financiamento

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Maio 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2020
  • Aceito
    05 Jul 2021
  • Publicado
    07 Jul 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br