Oferta das boas práticas do parto em maternidades da Rede Cegonha segundo a Teoria de Resposta ao Item

Supply of best childbirth practices in maternity units of Rede Cegonha according to Item Response Theory

Kely Nayara dos Reis Silva Figueiredo Cleber Lopes Campelo Patrícia Maria Abreu Machado Nilza Bezerra Pinheiro da Silva Rejane Christine de Sousa Queiroz Antônio Augusto Moura da Silva Alcione Miranda dos Santos Sobre os autores

Resumo

Este estudo objetivou elaborar uma escala interpretável para mensurar o nível de oferta das boas práticas no trabalho de parto e parto em maternidades da Rede Cegonha (RC) a partir da percepção dos trabalhadores. A escala foi composta por dezessete itens relacionados às boas práticas, obtidos a partir do instrumento utilizado na pesquisa “Avaliação da atenção ao parto e nascimento em maternidades da RC”. O modelo logístico de três parâmetros da Teoria de Resposta ao Item foi utilizado para criação da escala e análise dos itens. A escala foi composta por três níveis âncoras. No primeiro nível âncora, tem-se maternidades que ofertavam adequadamente estratégias para o acolhimento e estimulando a gestante a deambular no trabalho de parto. As maternidades do segundo nível incluíram também a oferta adequada do direito a acompanhante de livre escolha da mulher, massagem, bola e diferentes posições de parto. Por fim, têm-se as maternidades do terceiro nível ofereciam também adequadamente banqueta de parto, bem como os itens já citados. Os achados deste estudo mostraram a contribuição de cada item na mensuração do nível de oferta das boas práticas de atenção ao trabalho de parto e parto e a construção de uma escala interpretativa para avaliação das maternidades da RC.

Key words:
Childbirth labor; Tocology; Maternal and child health services; Item Response Theory

Abstract

This study aimed to develop an intelligible scale to measure the level of supply of best practices in labor, childbirth and delivery in maternity units in the Rede Cegonha (RC) based on the workers’ perception. The scale consisted of seventeen items related to best practices, based on the instrument used in the “Evaluation of care during delivery and birth in maternity hospitals in the RC” research The three-parameter logistic model of Item Response Theory was used to create the scale and analyze the items. The scale consisted of three levels. In the first level, there are maternity hospitals that adequately offered strategies for welcoming and encouraging the pregnant woman to circulate during labor. The second level maternity wards also included the adequate offer of the right to a companion of choice, massage, ball and different birth positions. Finally, the third level maternity hospitals also offered an adequate delivery stool, as well as the items already mentioned. The findings of this study showed the contribution of each item in measuring the level of supply of best practices in care for labor, childbirth and delivery and the construction of an intelligible scale to assess RC maternity hospitals.

Key words:
Childbirth labor; Tocology; Maternal and child health services; Item Response Theory

Introdução

O Ministério da Saúde (MS) defende que a humanização da equipe obstétrica e neonatal é condição necessária para uma assistência adequada ao parto e ao puerpério11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília: MS; 2001.. Além do acolhimento respeitoso à parturiente, a assistência deve ser baseada em evidências científicas obedecendo a critérios de utilidade, eficácia e risco que admitam o protagonismo e autonomia da mulher no trabalho de parto11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília: MS; 2001.,22 Sousa AMM, Souza KV, Rezende EM, Martins EF, Campos D, Lansky S. Practices in childbirth care in maternity with inclusion of obstetric nurses in Belo Horizonte, Minas Gerais. Esc Anna Nery 2016; 20(2):324-331..

A Organização Mundial de Saúde (OMS), desde 1996, preconiza uma série de procedimentos a serem adotados ou evitados na assistência ao trabalho de parto e parto normais33 World Health Organization (WHO). Care in normal birth: A practical guide. Geneva: WHO; 1996.. No Brasil, esse conjunto de procedimentos recebe a denominação de “boas práticas na assistência ao trabalho de parto e parto normais”, sendo oficialmente recomendadas pelo MS desde o ano de 200011 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília: MS; 2001..

O programa da Rede Cegonha, lançado em 2011 no país, reiterou e priorizou ações relativas à adoção dessas práticas na assistência às parturientes nas maternidades44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.459, de 24 de junho de 2011. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede Cegonha. Diário Oficial da União 2011; 24 jun.. O MS defende que a incorporação das recomendações da OMS tem como consequência a redução da morbimortalidade materna e neonatal que ainda permanecem elevadas11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília: MS; 2001.,33 World Health Organization (WHO). Care in normal birth: A practical guide. Geneva: WHO; 1996.,44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.459, de 24 de junho de 2011. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede Cegonha. Diário Oficial da União 2011; 24 jun..

Para isso, buscou-se investir na qualificação das equipes de saúde e das instituições hospitalares. O não cumprimento dessa recomendação configura negligência e iatrogenia no cuidado, colocando mulheres e bebês em risco desnecessário e contribuindo para o aumento do número de mortes por causas evitáveis55 Conselho Federal de Enfermagem (CFE). Resolução nº 516, de 23 de junho de 2016. Normatiza a atuação e a responsabilidade do Enfermeiro, Enfermeiro Obstetra e Obstetriz na assistência às gestantes, parturientes, puérperas e recém-nascidos nos Serviços de Obstetrícia, Centros de Parto Normal e/ou Casas de Parto e outros locais onde ocorra essa assistência; estabelece critérios para registro de títulos de Enfermeiro Obstetra e Obstetriz no âmbito do Sistema Cofen/Conselhos Regionais de Enfermagem, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2016; jun 27..

As práticas recomendadas na condução do trabalho de parto e parto normais são categorizadas em quatro grupos. O primeiro grupo é a categoria A, referente às práticas demonstradamente úteis e que devem ser estimuladas. Na categoria B estão incluídas as práticas que são claramente prejudiciais ou ineficientes e devem ser eliminadas. Já a categoria C inclui práticas sem evidência científica suficiente para serem recomendadas e que devem ser usadas com cautela, enquanto a categoria D se refere a procedimentos utilizados frequentemente de forma inapropriada66 World Health Organization (WHO). WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: WHO; 2018..

Alguns exemplos de boas práticas de atenção ao parto e nascimento incluem o incentivo à deambulação; a oferta de líquidos e alimentos; a adoção de posições verticalizadas; presença de acompanhante; uso de métodos não farmacológicos para alívio da dor, como banho com água quente, massagens, uso de banqueta e cavalinho, bem como, técnicas de baixo custo, seguras e não invasivas que auxiliam na progressão do trabalho de parto e do bem-estar da mulher e do bebê77 Pereira SB, Diaz CMG, Backes MTS, Ferreira CLL, Backes DS. Good practices of labor and birth care from the perspective of health professionals. Rev Bras Enferm 2018; 71(Supl. 3):1313-1319..

A finalidade dessas práticas é garantir a segurança da assistência ao trabalho de parto e parto normais baseada nas melhores evidências científicas, expressas em ações mais efetivas que diminuam o número de intervenções desnecessárias e proporcionem melhores desfechos na saúde materno-infantil88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde. Diretrizes nacionais de assistência ao parto normal: versão resumida. Brasília: MS; 2017..

O Brasil vem evoluindo na busca pela melhor assistência ao parto e nascimento. Mas apesar de as boas práticas terem sido preconizadas desde 2000 pelo MS e de haver robusta evidência de sua associação com desfechos positivos na saúde materno-infantil, o processo de adoção dessas práticas ainda permanece um esforço contínuo no país, que ainda apresenta um modelo de atenção ao trabalho de parto, parto e nascimento caracterizado pelo uso excessivo de intervenções obstétricas e neonatais desnecessárias11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília: MS; 2001.,22 Sousa AMM, Souza KV, Rezende EM, Martins EF, Campos D, Lansky S. Practices in childbirth care in maternity with inclusion of obstetric nurses in Belo Horizonte, Minas Gerais. Esc Anna Nery 2016; 20(2):324-331.,99 Carmo ML, Esteves APP, Madeira RMSD, Theme Filha MM, Dias MAB, Nakamura-Pereira M, Bastos MH, Gama SGN. Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cad Saude Publica 2014; 30(Supl. 1):S17-S32..

Dados da pesquisa “Nascer no Brasil” de 2021 demonstram que 30% das maternidades estão inadequadas segundo as cinco diretrizes da RC, o acolhimento em obstetrícia, as boas práticas de atenção ao parto e nascimento, o monitoramento do cuidado e de resultados da assistência ao parto e nascimento e a gestão participativa e compartilhada, tendo menor percentual na região Norte do país1010 Bittencourt SDA, Vilela MEA, Marques MCO, Santos AM, Silva CKRT, Domingues RMSM, Reis AC, Santos GL. Atenção ao parto e nascimento em Maternidades da Rede Cegonha/Brasil: avaliação do grau de implantação das ações. Cien Saude Colet 2021; 26(3):801-821..

Esses resultados demonstram que muitas mulheres permanecem sendo submetidas a procedimentos desnecessários e muitas vezes não recebem uma assistência baseada nas recomendações da OMS e MS. Por essa razão, a implementação e adoção das boas práticas na assistência ao parto nas maternidades permanece inacabada, necessitando de maiores investigações, no intuito de auxiliar nesse processo de aprimoramento da RC e da assistência à saúde materno-infantil no nosso país.

Considerando a relevância da Teoria de Resposta ao Item (TRI) e a necessidade de mais estudos voltados para a mensuração do nível de oferta das boas práticas, o objetivo deste estudo foi criar uma escala para mensurar o nível de oferta das boas práticas no trabalho de parto e parto em maternidades da RC, a partir da avaliação dos trabalhadores da saúde, por meio da TRI, visando contribuir para o processo de consolidação das boas práticas obstétricas do trabalho de parto e parto, auxiliando no aprimoramento do programa da Rede Cegonha.

Métodos

Base de dados

Este estudo é parte da pesquisa “Avaliação da atenção ao parto e nascimento em maternidades da Rede Cegonha”, desenvolvida pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sob a coordenação do Ministério da Saúde.

A população da referida pesquisa foi estratificada por macrorregião geopolítica do Brasil. Foram selecionados todos os 606 hospitais públicos e mistos (privados conveniados ao SUS) com pelo menos 500 partos/ano em 2015, independentemente da liberação de recursos (n=582) e com menos de 500 partos/ano, mas com liberação de recursos (n=24), representando quase 50% dos partos ocorridos naquele ano no país, segundo o sistema de informação sobre nascidos vivos (SINASC). Foram entrevistados 5.022 profissionais de saúde que exerciam atividades nesses estabelecimentos.

Para o presente estudo foram incluídos apenas os profissionais de saúde presentes na ocasião das avaliações, independente do grau de instrução, e em pleno exercício de suas funções no pré-parto e/ou local de nascimento, bem como aqueles que exerciam funções no Centro de Parto Normal (CPN). Assim, a amostra final foi composta por 2.427 profissionais de saúde.

Coleta e organização dos dados

A coleta de dados da pesquisa avaliativa foi realizada entre dezembro de 2016 e outubro de 2017. Em cada maternidade selecionada, por meio de entrevistas individuais, três instrumentos foram aplicados a informantes-chave: puérperas, profissionais de saúde e gestores. Também foram utilizados como métodos de coleta de dados a extração de dados do prontuário, análise documental e observação in loco.

Para fins de avaliação na referida pesquisa, foi construída uma matriz de julgamento composta pelas cinco diretrizes da RC, que se desdobraram em dezessete dispositivos que, por sua vez, se concretizaram em sessenta itens de verificação. A validação da matriz contou com a participação de técnicos do Ministério da Saúde, do Departamento de Ciência e Tecnologia, professores da Universidade Federal do Maranhão e pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública e do Instituto Nacional da Mulher, Criança e Adolescente, da Fiocruz. Maiores detalhes da metodologia da pesquisa avaliativa estão disponíveis em Vilela et al.1111 Vilela MEA, Leal MC, Thomaz EBAF, Gomes MASM, Bittencourt SDA, Gama SGN, Silva LBRAA, Lamy ZC. Avaliação da atenção ao parto e nascimento nas maternidades da Rede Cegonha: os caminhos metodológicos. Cien Saude Colet 2021; 26(3):789-800..

A construção dos instrumentos foi fundamentada nos documentos do MS tendo como base a Política Nacional de Humanização1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria-Executiva. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Brasília: MS; 2004., a Política Nacional da Rede Cegonha88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde. Diretrizes nacionais de assistência ao parto normal: versão resumida. Brasília: MS; 2017., as normas das Boas Práticas de Atenção ao Parto e Nascimento66 World Health Organization (WHO). WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: WHO; 2018., Diretrizes de Atenção à Gestante: a operação cesariana1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Diretrizes de Atenção à Gestante: a operação cesariana. Brasília: MS; 2015. e Diretrizes de Atenção à Gestante: parto normal88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde. Diretrizes nacionais de assistência ao parto normal: versão resumida. Brasília: MS; 2017..

Aspectos éticos

A pesquisa de base para este estudo foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFMA e da ENSP/Fiocruz, sob o 56389713.5.3001.5240. Um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi lido, sendo também entregue uma via assinada aos profissionais que concordaram em participar da avaliação. Cuidados foram adotados para garantir o sigilo e a confidencialidade dos dados.

Elaboração dos itens da escala

Os itens extraídos do questionário dos trabalhadores da pesquisa avaliativa para este estudo, foram obtidos considerando a matriz de julgamento que foi constituída por blocos temáticos abrangendo informações sobre a estrutura e processo de trabalho nas maternidades1111 Vilela MEA, Leal MC, Thomaz EBAF, Gomes MASM, Bittencourt SDA, Gama SGN, Silva LBRAA, Lamy ZC. Avaliação da atenção ao parto e nascimento nas maternidades da Rede Cegonha: os caminhos metodológicos. Cien Saude Colet 2021; 26(3):789-800.. Buscou-se selecionar itens que avaliassem a qualidade das práticas relacionadas ao trabalho de parto e ao parto: o acolhimento, o estímulo à presença do acompanhante, a oferta de medidas não farmacológicas para alívio da dor e atenção ao pré-parto, parto e pós-parto em um único ambiente.

O pressuposto inicial foi de que os itens selecionados do instrumento apresentassem relação com as boas práticas de atenção ao trabalho de parto e parto, segundo diretrizes do MS, e pudessem medir um único fator dominante (traço latente). No Quadro 1 são apresentados os dezessete itens selecionados com suas respectivas alternativas de respostas.

Quadro 1
Itens extraídos e adaptados do instrumento da pesquisa dos profissionais de saúde para avaliar o nível de oferta das boas práticas de atenção ao trabalho de parto e parto pelas maternidades da RC. Brasil, 2015.

Visando buscar um panorama representativo da oferta das boas práticas de atenção ao trabalho de parto e parto, para cada item, as respostas dos profissionais de saúde foram categorizadas em duas: adequada (quando a resposta dada é considerada como prática adequada) e inadequada (resposta dada não é considerada como prática adequada e as não respostas). Considerou-se “não resposta” para as questões com respostas “não sabe informar”. A categorização para a resposta de cada questão também foi baseada na matriz de julgamento para análise do grau de implantação das ações da Rede Cegonha1010 Bittencourt SDA, Vilela MEA, Marques MCO, Santos AM, Silva CKRT, Domingues RMSM, Reis AC, Santos GL. Atenção ao parto e nascimento em Maternidades da Rede Cegonha/Brasil: avaliação do grau de implantação das ações. Cien Saude Colet 2021; 26(3):801-821..

Análise dos dados por meio da Teoria de Resposta ao Item

Neste estudo, o traço latente estimado foi o nível de oferta das boas práticas durante o trabalho de parto e parto na percepção do trabalhador. Para isto, utilizou-se a Teoria de Resposta ao Item (TRI), que considera modelos matemáticos para representar a relação entre a probabilidade de um indivíduo dar uma determinada resposta a um item como função dos parâmetros do item e do traço latente do respondente1414 Andrade DF, Tavares HR, Valle RC. Teoria da Resposta ao Item: conceitos e aplicações. São Paulo: ABE; 2000..

Considerando que as respostas para cada questão foram dicotomizadas, o traço latente foi estimado pelo modelo logístico unidimensional de três parâmetros (M3PL)1515 Mair P. Modern psychometrics with R: Springer. 1ª ed. Berlin: Springer International Publishing; 2018., o qual considera que a probabilidade da j-ésimo trabalhador responder corretamente o item i, denotada por P(Y ij =1|θ j ), é dada por:

P(Yij=1θj)=ci+(1ci)eai(θjbi)1+eai(θjbi)

Sendo Y ij uma variável dicotômica que assume o valor 1 quando o trabalhador j assinala a resposta correta para o item i e 0 caso contrário; θ j é o nível de oferta atribuído pelo trabalhador j. O parâmetro a i representa a discriminação do item i e permite identificar as maternidades em diferentes níveis do traço latente θ j , b i a dificuldade do item i e c i avalia a resposta marcada positivamente ao item i por acaso.

Quanto maior o valor de a i do item, maior o poder discriminatório, ou seja, melhor será sua capacidade de diferenciar as maternidades nos diferentes níveis de traço latente. É desejável que os itens tenham parâmetro de discriminação superior a 0,7, e itens com valores de a i ≥ 1 são considerados com poder de discriminação razoável1515 Mair P. Modern psychometrics with R: Springer. 1ª ed. Berlin: Springer International Publishing; 2018.,1616 Andrade JM, Laros JÁ, Gouveia VV. O uso da teoria de resposta ao item em avaliações educacionais: diretrizes para pesquisadores. Aval Psicol 2010; 9(3):421-435..

Para o parâmetro de dificuldade b i é desejável que esteja no intervalo de -3 a 3. Assim, a partir das definições do modelo descrito acima, temos que trabalhadores com maior percepção das boas práticas possuem maior probabilidade de assinalar a resposta adequada para um determinado item.

A TRI pressupõe que os itens avaliados medem um único fator dominante (traço latente), caracterizando assim a unidimensionalidade dos itens1515 Mair P. Modern psychometrics with R: Springer. 1ª ed. Berlin: Springer International Publishing; 2018.. Para avaliar a unidimensionalidade dos itens foi realizada uma análise de componentes principais para dados categóricos (ACP) considerando a matriz de correlações dos itens. Segundo o critério de Reckase1717 Reckase MD. Unifactor latent trait models applied to multifactor tests: Results and implications. J Educ Stat 1979; 4(3):207-230., a existência de um fator dominante pode ser admitida quando o primeiro fator compreende pelo menos 20% da variância total.

Também foi utilizado o método do gráfico scree plot para verificação da unidimensionalidade. Por meio do gráfico, os autovalores (total da variância explicada por um fator) são avaliados e, se o primeiro fator se destaca em relação aos demais, considera-se que existe uma dimensão dominante1717 Reckase MD. Unifactor latent trait models applied to multifactor tests: Results and implications. J Educ Stat 1979; 4(3):207-230.,1818 Hair JF, Black WC, Babin BJ, Anderson RE, Tatham RL. Análise multivariada de dados. 1ª ed. Porto Alegre: Bookman Editora; 2009..

Com o objetivo de verificar se ACP constitui um método adequado aos propósitos desse estudo, foi calculado o índice KMO (Kaiser - Meyer - Oklin), também conhecido como índice de adequação da amostra utilizando-se como ponto de corte 0,50151919 Field A, Miles J, Field Z. Discovering statistics using R. Thousand Oaks: Sage Publications; 2012..

A consistência interna dos itens foi avaliada por meio dos coeficientes Alfa de Cronbach, cujos valores de referência adotados são: menor que 0,6 (baixa confiabilidade); entre 0,6 e 0,7 (confiabilidade moderada) e entre 0,7 e 0,9 são considerados aceitáveis, ou seja, alta confiabilidade1818 Hair JF, Black WC, Babin BJ, Anderson RE, Tatham RL. Análise multivariada de dados. 1ª ed. Porto Alegre: Bookman Editora; 2009..

Para a estimação dos parâmetros do modelo logístico unidimensional de três parâmetros (M3PL) foi utilizado o pacote Mirt do software R2020 Chalmers RP. Mirt: A multidimensional item response theory package for the R environment. J Stat Software 2012; 48(6):1-29.. A qualidade do ajuste (goodness of fit) do modelo foi baseado nos seguintes índices recomendados por Muthén e Muthén2121 Muthén L, Muthén B. Mplus User's Guide. 7ª ed. Los Angeles: Muthén & Muthén; 2015.: RMSEA (Root Mean Square Error of Approximation) <0,08; CFI (Comparative Fit Index) e TLI (Tucker-Lewis Index) superiores a 0,90.

Construção e interpretação da escala através dos itens âncoras

A escala para mensurar o nível de oferta das boas práticas na percepção do trabalhador foi elaborada com base nos níveis âncoras. Para a construção, definiu-se primeiramente a métrica para fins de interpretação da escala, tendo como parâmetro a média do traço latente e o desvio padrão. Em seguida foram identificados os níveis âncoras2222 Beaton AE, Allen NL. Interpreting Scales Through Scale Anchoring. J Educ Stat 1992; 17(2):191-204..

Inicialmente os valores dos parâmetros dos itens foram estimados pelo M3PL em uma métrica na escala com média 0 e desvio-padrão 1. Com vistas a facilitar a interpretação dos resultados e a discussão dos resultados, foi realizada uma transformação para (20,10), ou seja, média 20 e desvio padrão 10.

Considerando a escala transformada, a escolha dos níveis âncora foi baseada no intervalo de 20±10. Após a escolha dos níveis, foi realizado o posicionamento dos itens âncora, a partir dos seguintes critérios: ter sido respondido corretamente por pelo menos 65% (0,65) dos trabalhadores com este nível de habilidade e por uma proporção menor de trabalhadores (no máximo 50%) com o nível de habilidade imediatamente anterior. Além disso, a diferença entre a proporção de trabalhadores com esses níveis de habilidade que acertam esses itens deve ser de pelo menos 30%2323 Bacharach VR, Furr RM. Bacharach. Psychometrics: An Introduction. 2ª ed. Thousand Oaks: SAGE Publications; 2013.. A interpretação de cada nível foi realizada de acordo com os itens contidos em cada nível âncora a partir dos critérios descritos acima.

Resultados

Dos 2.427 profissionais de saúde entrevistados, 79,6% eram do sexo feminino, 67,1% possuíam especialização e/ou residência, 48,37% possuíam 5 anos ou mais tempo de trabalho, 37,29% entre 1 e 4 anos, 7,25% menos de 1 ano. Com relação à categoria profissional, entre os trabalhadores que fazem parte da equipe mínima do Centro de Parto Normal (CPN) para o atendimento à mulher e ao recém-nascido no momento do parto e do nascimento, em conformidade com a Rede Cegonha, 26,59% eram enfermeiros obstetras, 41% obstetrizes e 19,58% técnicos. Os médicos obstetras corresponderam a 30,5% da amostra. Entre as macrorregiões incluídas, 29,1% e 35,8% das maternidades estavam nas regiões Nordeste e Sudeste, respectivamente.

Com relação ao percentual das boas práticas, as respostas dos profissionais de saúde (Tabela 1) apresentaram baixo percentual em relação às práticas de atenção ao parto e parto nos seguintes itens: “A maternidade sempre oferece OUTROS métodos não farmacológicos para o manejo da dor?” (26%), “Com que frequência oferece cavalinho?” (31,69%) e “Com que frequência oferece banqueta?” (35,76%). Já nos itens “Você considera que os profissionais de saúde utilizam linguagem compreensível e adequada ao perfil da usuária e ao momento?” (92,54%) e “A gestante é estimulada a movimentar-se e deambular durante o trabalho de parto?” (92,54%) obtivemos o maior percentual de respostas adequadas.

Tabela 1
Distribuição das frequências relativas dos 17 itens selecionados do instrumento dos trabalhadores da Pesquisa “Avaliação da atenção ao parto e nascimento em maternidades da Rede Cegonha”. Brasil, 2015.

Na análise da consistência interna da escala, obteve-se valor do coeficiente alfa de Cronbach de 0,82, sendo considerada alta confiabilidade. A unidimensionalidade do conjunto de dezessete itens foi avaliada de acordo com os critérios adotados (ACP e o gráfico scree plot).

Conforme o gráfico apresentado na Figura 1, tem-se uma grande diferença entre o primeiro e o segundo autovalor (2,932) e uma pequena diferença entre o segundo e o terceiro autovalor (0,508), indicando unidimensionalidade2323 Bacharach VR, Furr RM. Bacharach. Psychometrics: An Introduction. 2ª ed. Thousand Oaks: SAGE Publications; 2013..

Figura 1
Scree Plot representando a análise da unidimensionalidade dos 17 Itens.

A Tabela 2 apresenta o resultado da extração dos autovalores da ACP. Observa-se que a primeira componente representa aproximadamente 27% da variância total, sendo a variância das demais componentes inferiores a 20%. O índice de KMO foi igual a 0,89, indicando que a amostra é adequada para realização da ACP.

Tabela 2
Extração dos autovalores por meio dos componentes principais.

Na avaliação do ajuste do M3PL com os 17 itens foram evidenciados índices estatisticamente aceitáveis para boa adequação dos dados e valores consistentes de ajuste: RMSEA=0,040 (IC95%=0,0037-0,044); CFI=0,9730 e TLI=0,9632, comprovando que os 17 itens são capazes de mensurar o nível de oferta das boas práticas.

Na Tabela 3 são apresentados os parâmetros de discriminação e dificuldade para cada item, estimados a partir do modelo M3PL unidimensional. A maioria dos itens apresentou bom poder de discriminação, com exceção do item “Com que frequência o partograma é utilizado para acompanhamento da evolução do trabalho de parto, norteando condutas obstétricas?” (a i =0,75). O item “Com que frequência oferece bola Bobath?”, apresentou o maior poder de discriminação (a i =3,76).

Tabela 3
Estimativas dos parâmetros de discriminação (a i ) e de dificuldade (b i ) dos 17 itens extraídos da Pesquisa “Avaliação da atenção ao parto e nascimento em maternidades da Rede Cegonha”. Brasil, 2015.

O item “A gestante é estimulada a movimentar-se e deambular durante o trabalho de parto?” (b i = 3,52) apresentou o maior valor para o parâmetro de dificuldade, indicando que discriminou maternidades com maior nível de oferta das boas práticas daquelas com menor nível de oferta.

A Tabela 4 apresenta a distribuição dos itens âncora quanto ao nível de oferta das boas práticas ao parto e nascimento nas maternidades da RC. As maternidades do primeiro nível de oferta (nível 10), possuíam estratégias definidas para o acolhimento às usuárias e sempre as estimulavam a se movimentar e deambular durante o trabalho de parto. A porcentagem de trabalhadores que responderam que tais práticas eram oferecidas adequadamente pelas maternidades foi de 64% (0,64) e 85% (0,85), respectivamente.

Tabela 4
Distribuição dos itens âncora quanto ao nível de oferta das boas práticas ao parto e nascimento nas maternidades da RC. Brasil, 2015.

As maternidades no segundo nível, além dos itens do nível 10, garantiam à gestante o direito ao acompanhante de livre escolha durante todo o tempo em que a mulher estava internada para o parto, ofereciam muitas vezes massagem e a bola Bobath como medidas não farmacológicas para o alívio da dor, além de propiciar condições para que o parto acontecesse em outras posições que não a deitada. Destaca-se que 89% (0,89) dos trabalhadores entrevistados relataram que a maternidade proporcionava adequadamente condições para que o parto acontecesse em outras posições, que não a deitada.

Foi encontrado apenas um item âncora nas maternidades incluídas no nível 30 da escala. Nestas, além dos itens dos níveis anteriores, 79% (0,79) dos trabalhadores afirmaram que a banqueta de parto era oferecida muitas vezes como medida não farmacológica para o alívio da dor.

A interpretação final da escala está proposta na Tabela 5. Nela estão identificados os sete itens âncora e a descrição dos três níveis âncora em que se encontram. A escala reuniu medidas importantes relacionadas aos itens de acolhimento, direito ao acompanhante de livre escolha, uso de métodos não farmacológicos para alívio da dor, deambulação e escolha da posição durante o parto, conforme as diretrizes das boas práticas88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde. Diretrizes nacionais de assistência ao parto normal: versão resumida. Brasília: MS; 2017..

Tabela 5
Interpretação dos níveis da escala proposta para medir a oferta das boas práticas ao parto e nascimento, segundo os itens âncora. Brasil, 2015.

Discussão

Este estudo utilizou dados da pesquisa “Avaliação da atenção ao parto e nascimento em maternidades da RC” para criar uma escala de medida, tendo como método a TRI, para avaliar o nível de oferta das boas práticas durante o trabalho de parto e parto (traço latente) nas maternidades da RC, através de uma amostra representativa de seus trabalhadores.

Os resultados da análise confirmam que a escala final (Tabela 5) mede apenas o traço latente proposto por este estudo, além de expor diferenças importantes entre os níveis de oferta das boas práticas de atenção ao trabalho parto e parto nas maternidades da RC.

No primeiro nível da escala (nível 10), o acolhimento às usuárias e o estímulo à movimentação e deambulação durante o trabalho de parto são práticas ofertadas de modo adequado pelas maternidades que se encontram nesse nível, portanto, estão demonstradamente bem consolidadas no nível mais elementar de oferta da escala, com destaque para a deambulação. Em conformidade com os achados desse nível, observamos uma alta frequência de respostas adequadas nos itens correspondentes a essas práticas. Dos trabalhadores entrevistados, 81,62% relataram a oferta adequada do acolhimento e 92,54% para deambulação.

Outro fato que chama atenção para o nível 10 da escala é ausência de outras boas práticas sendo ofertadas de forma adequada, tais como o uso dos métodos não farmacológicos para alívio da dor (massagem, bola Bobath e banqueta), a presença do acompanhante em tempo integral na maternidade e condições para que o parto acontecesse em outras posições que não a deitada. Esse resultado aponta para a necessidade de investigação das possíveis dificuldades encontradas por essas maternidades e de um maior estímulo a essas práticas.

A literatura confirma que há dificuldades em relação ao oferecimento adequado dos métodos não farmacológicos para alívio da dor em geral, e até o desconhecimento de alguns desses métodos pelas equipes, não sendo utilizados rotineiramente na grande maioria dos serviços obstétricos. Por outro lado, as maternidades com boa adesão às boas práticas fazem uso contínuo das diversas técnicas não farmacológicas para alívio da dor, apesar de ainda não existirem fortes evidências que apoiem essa recomendação2424 Silva BL, Neri DT, Ferreira ES, Oliveira JAA, Pereira LR. Métodos não farmacológicos durante trabalho de parto: percepção das mulheres. Rev Recien 2018; 8(24):54-64.

25 Aragão HT, Vieira SS, Fernandes ÉTS, Silva GM. Trabalho de parto e os métodos não farmacológicos para alívio da dor: Revisão Integrativa [Internet]. In: International Nursing Congress. Universidade Tiradentes; 2017 maio 9-12. Disponível em: https://eventos.set.edu.br/cie/article/view/6204/2353.
https://eventos.set.edu.br/cie/article/v...

26 Mielke KC, Gouveia HG, Gonçalves CA. A prática de métodos não farmacológicos para o alívio da dor de parto em um hospital universitário no Brasil. Av Enferm 2019; 37(1):47-55.
-2727 Henrique AJ, Gabrielloni MC, Cavalcanti ACV, Melo PS, Barbieri M. Hidroterapia e bola suíça no trabalho de parto: ensaio clínico randomizado. Acta Paul Enferm 2016; 29(6):686-692..

De acordo com esse estudo, maternidades de nível baixo (nível 10) também não proporcionaram à gestante a oferta adequada de outras posições durante o trabalho de parto e parto. Com relação ao posicionamento da gestante, sabe-se que a posição litotômica no momento do parto aumenta a ocorrência da instrumentalização em partos vaginais, dor na região perineal e frequência cardíaca fetal oscilante. Portanto, a mulher deve ser encorajada a escolher, dentre as diversas posições existentes, uma que lhe seja mais confortável2828 Rocha BD, Zamberlan C, Pivetta HMF, Santos BZ, Antunes BS. Posições verticalizadas no parto e a prevenção de lacerações perineais: revisão sistemática e metanálise. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03610..

No próximo nível da escala, o nível 20, encontramos a oferta adequada dos itens do nível anterior, acrescidos de itens relacionados ao acompanhante, uso da massagem e da bola como métodos não farmacológicos para o alívio da dor, e ao posicionamento durante o trabalho de parto e parto. Portanto, a maior quantidade de informação está na parte central da escala, pois foi o nível com o maior número de itens com boa discriminação.

A bola suíça foi o destaque nas maternidades de nível 20, com o maior percentual de trabalhadores que afirmaram essa boa prática sendo ofertada de modo adequado. Esse recurso auxilia na redução da dor e no desconforto das mulheres no pré-parto, serve de apoio durante o banho morno e incentiva a adoção da mobilidade e posições verticais durante o trabalho de parto, além de serem excelentes auxiliares na dilatação, abreviando o trabalho de parto2929 Silva JSSA, Ribeiro JN, Corrêa LP. Bola suíça no trabalho de parto: Revisão de literatura. Braz J Develop 2019; 5(12):32867-32876.. Não sem razão, também encontramos nesse nível a oferta adequada de outras posições para o parto, que muitas vezes são facilitadas pelo uso da bola3030 Silva LM, Oliveira SMJV, Silva FMB, Alvarenga MB. Uso da bola suíça no trabalho de parto. Acta Paulista Enferm 2011; 24(5):656-662..

As maternidades do nível 20 ofertavam adequadamente condições para que o parto ocorresse em outras posições que não a deitada, e essa escolha era acompanhada das condições para que o parto acontecesse em qualquer posição que a mulher desejasse, incluindo a tradicional litotômica. O profissional deve encorajar e orientar quanto às diversas posições, especialmente as verticalizadas como de cócoras, lateral ou quatro apoios, e o uso da banqueta como auxiliar88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde. Diretrizes nacionais de assistência ao parto normal: versão resumida. Brasília: MS; 2017.,2828 Rocha BD, Zamberlan C, Pivetta HMF, Santos BZ, Antunes BS. Posições verticalizadas no parto e a prevenção de lacerações perineais: revisão sistemática e metanálise. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03610.,3131 Miller S, Abalos E, Chamillard M, Ciapponi A, Colaci D, Comandé D, Diaz V, Geller S, Hanson C, Langer A, Manuelli V, Millar K, Morhason-Bello I, Castro CP, Pileggi VN, Robinson N, Skaer M, Souza JP, Vogel JP, Althabe F. Beyond too little, too late and too much, too soon: a pathway towards evidence-based, respectful maternity care worldwide. Lancet 2016; 388(10056):2176-2192..

A oferta adequada da presença do acompanhante também foi encontrada no segundo nível da escala, evidenciando o processo de transição dessas maternidades na direção da consolidação desse direito. A legislação beneficia as parturientes com o direito à presença de um acompanhante de livre escolha durante todo o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do SUS3232 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.418, de 2 de dezembro de 2005. Regulamenta, em conformidade com o art. 1º da Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005, a presença de acompanhante para mulheres em trabalho de parto, parto e pós-parto imediato nos hospitais públicos e conveniados com o Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União 2005; 2 dez..

Atualmente, mesmo com a legislação vigente, ainda há instituições que negam ou impõem restrições inadequadas a essa oferta, especialmente nos centros de parto normal de maternidades públicas do país, apesar dos vários benefícios dessa prática para melhores desfechos perinatais3333 Lansky S, Friche AAL, Silva AAM, Campos D, Bittencourt DAS, Carvalho ML, Frias PG, Cavalcante RS, Cunha AJLA. Pesquisa Nascer no Brasil: perfil da mortalidade neonatal e avaliação da assistência à gestante e ao recém-nascido. Cad Saude Publica 2014; 30(Supl. 1):S192-S207.,3434 Leal MDC, Gama SGN, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(Sup. 1):e00078816.. Diniz et al.3535 Diniz CSG, d'Orsi E, Domingues RMSM, Torres JA, Dias MAB, Schneck CA, Lansky S, Teixeira NZF, Rance S, J Sandall. Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto: dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30:S140-S53. constataram que 24,5% das mulheres não tiveram acompanhante em nenhum momento do parto, 75,5% tiveram algum tipo de acompanhante durante a internação, sendo que apenas 18,8% tiveram acompanhante contínuo e 56,7% acompanhante parcial. Entre as razões dadas para este fato, a principal foi o não cumprimento institucional da legislação, “nenhum tipo de acompanhante era permitido no hospital” (52%).

A oferta de massagem também foi encontrada com uma boa adequação no segundo nível da escala. A massagem pode ser realizada pela equipe de enfermagem ou pelo acompanhante. Este é um fato interessante, pois nesse mesmo nível a presença do acompanhante foi permitida em tempo integral e de livre escolha da mulher. O acompanhante pode e deve realizar essa prática à parturiente auxiliando a equipe de enfermagem na oferta desse e de outros métodos não farmacológicos para alívio da dor3636 Mortazavi SH, Khaki S, Moradi R, Heidari K, Vasegh Rahimparvar SF. Effects of massage therapy and presence of attendant on pain, anxiety and satisfaction during labor. Arch Gynecol Obstet 2012; 286(1):19-23.,3737 Zwelling E, Johnson K, Allen J. How to Implement Complementary Therapies for Laboring Women. MCN Am J Matern Child Nurs 2006; 31(6):364-370..

No último nível da escala, além de todas as outras boas práticas ofertadas adequadamente nos níveis anteriores, as maternidades ofertavam também a banqueta durante o trabalho de parto, sendo um diferencial para as maternidades que possuíram esse alto nível de oferta. As maternidades com nível de oferta inferior poderiam até ter a banqueta à disposição, mas segundo os seus trabalhadores, nem sempre eram oferecidas a mulher. Vê-se a importância de um direcionamento claro da equipe à gestante, orientando todo o processo e a utilização de todos os recursos disponíveis para que o parto ocorra da melhor forma possível.

Os achados deste estudo acrescentam ainda que, independentemente do nível de oferta, os principais recursos utilizados adequadamente para a melhor condução do trabalho de parto e parto nas maternidades da RC foram a deambulação e a bola Bobath devido ao alto percentual de respostas adequadas (85% e 89% respectivamente), ao contrário do estudo de Silva et al.2424 Silva BL, Neri DT, Ferreira ES, Oliveira JAA, Pereira LR. Métodos não farmacológicos durante trabalho de parto: percepção das mulheres. Rev Recien 2018; 8(24):54-64., que constatou que os cuidados de enfermagem menos utilizados foram a deambulação, a postura de agachamento, uso da bola Bobath e do banquinho/banqueta meia-lua.

Com relação à limitação desse estudo, podemos citar a participação exclusiva das maternidades com plano de ação da RC. Podemos dizer, no entanto, que com a participação exclusiva dessas maternidades amplia-se a possibilidade de se analisar as repercussões das boas práticas no SUS após implantação da RC, visto que estas representam os partos realizados na rede pública.

Podemos citar ainda o uso de uma amostra representativa dos trabalhadores de saúde dessas instituições, bem como a participação de 606 hospitais públicos e mistos das regiões de saúde de todas as unidades federativas do Brasil como pontos fortes desse estudo.

A utilização da TRI também pode ser considerada uma vantagem na construção de uma escala para a mensuração do nível de oferta das boas práticas segundo a percepção dos trabalhadores, visto que pode vir a ser aproveitada em avaliações futuras, devido a sua capacidade de interpretar o significado de cada um dos níveis de oferta que apresenta, proporcionando um panorama do que tem sido ofertado de modo adequado e com maior destaque nas maternidades da RC, desde aquelas que estão em níveis mais baixos de implantação dessas boas práticas até as que se encontram no nível mais elevado.

Outra vantagem de se utilizar escalas construídas por meio da TRI é que esse método garante a estimação dos parâmetros de discriminação e dificuldade independente do grupo de respondentes representado. Isso possibilita que futuramente essa avaliação seja comparada em populações com características diversas, sem que as medidas sejam influenciadas por essas diferenças, mesmo para um grande número de respondentes3838 Sartes LMA, Souza-Formigoni MLO. Avanços na psicometria: da Teoria Clássica dos Testes à Teoria de Resposta ao Item. Psicol Reflex Crit 2013; 26(2):241-250..

Considerações finais

Em revisão de literatura não foram encontradas escalas para mensurar o nível de oferta das boas práticas do parto. Assim, a escala proposta constitui uma metodologia inovadora para avaliar a oferta das boas práticas na percepção dos trabalhadores, que poderá servir para a implementação de políticas públicas na atenção ao trabalho de parto e parto no país, bem como estimular outros estudos na incorporação de novos itens na escala apresentada, ampliando a investigação do traço latente e contribuindo para a redução de danos à gestante, ao bebê e às famílias.

Referências

  • 1
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília: MS; 2001.
  • 2
    Sousa AMM, Souza KV, Rezende EM, Martins EF, Campos D, Lansky S. Practices in childbirth care in maternity with inclusion of obstetric nurses in Belo Horizonte, Minas Gerais. Esc Anna Nery 2016; 20(2):324-331.
  • 3
    World Health Organization (WHO). Care in normal birth: A practical guide. Geneva: WHO; 1996.
  • 4
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.459, de 24 de junho de 2011. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede Cegonha. Diário Oficial da União 2011; 24 jun.
  • 5
    Conselho Federal de Enfermagem (CFE). Resolução nº 516, de 23 de junho de 2016. Normatiza a atuação e a responsabilidade do Enfermeiro, Enfermeiro Obstetra e Obstetriz na assistência às gestantes, parturientes, puérperas e recém-nascidos nos Serviços de Obstetrícia, Centros de Parto Normal e/ou Casas de Parto e outros locais onde ocorra essa assistência; estabelece critérios para registro de títulos de Enfermeiro Obstetra e Obstetriz no âmbito do Sistema Cofen/Conselhos Regionais de Enfermagem, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2016; jun 27.
  • 6
    World Health Organization (WHO). WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: WHO; 2018.
  • 7
    Pereira SB, Diaz CMG, Backes MTS, Ferreira CLL, Backes DS. Good practices of labor and birth care from the perspective of health professionals. Rev Bras Enferm 2018; 71(Supl. 3):1313-1319.
  • 8
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde. Diretrizes nacionais de assistência ao parto normal: versão resumida. Brasília: MS; 2017.
  • 9
    Carmo ML, Esteves APP, Madeira RMSD, Theme Filha MM, Dias MAB, Nakamura-Pereira M, Bastos MH, Gama SGN. Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cad Saude Publica 2014; 30(Supl. 1):S17-S32.
  • 10
    Bittencourt SDA, Vilela MEA, Marques MCO, Santos AM, Silva CKRT, Domingues RMSM, Reis AC, Santos GL. Atenção ao parto e nascimento em Maternidades da Rede Cegonha/Brasil: avaliação do grau de implantação das ações. Cien Saude Colet 2021; 26(3):801-821.
  • 11
    Vilela MEA, Leal MC, Thomaz EBAF, Gomes MASM, Bittencourt SDA, Gama SGN, Silva LBRAA, Lamy ZC. Avaliação da atenção ao parto e nascimento nas maternidades da Rede Cegonha: os caminhos metodológicos. Cien Saude Colet 2021; 26(3):789-800.
  • 12
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria-Executiva. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Brasília: MS; 2004.
  • 13
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Diretrizes de Atenção à Gestante: a operação cesariana. Brasília: MS; 2015.
  • 14
    Andrade DF, Tavares HR, Valle RC. Teoria da Resposta ao Item: conceitos e aplicações. São Paulo: ABE; 2000.
  • 15
    Mair P. Modern psychometrics with R: Springer. 1ª ed. Berlin: Springer International Publishing; 2018.
  • 16
    Andrade JM, Laros JÁ, Gouveia VV. O uso da teoria de resposta ao item em avaliações educacionais: diretrizes para pesquisadores. Aval Psicol 2010; 9(3):421-435.
  • 17
    Reckase MD. Unifactor latent trait models applied to multifactor tests: Results and implications. J Educ Stat 1979; 4(3):207-230.
  • 18
    Hair JF, Black WC, Babin BJ, Anderson RE, Tatham RL. Análise multivariada de dados. 1ª ed. Porto Alegre: Bookman Editora; 2009.
  • 19
    Field A, Miles J, Field Z. Discovering statistics using R. Thousand Oaks: Sage Publications; 2012.
  • 20
    Chalmers RP. Mirt: A multidimensional item response theory package for the R environment. J Stat Software 2012; 48(6):1-29.
  • 21
    Muthén L, Muthén B. Mplus User's Guide. 7ª ed. Los Angeles: Muthén & Muthén; 2015.
  • 22
    Beaton AE, Allen NL. Interpreting Scales Through Scale Anchoring. J Educ Stat 1992; 17(2):191-204.
  • 23
    Bacharach VR, Furr RM. Bacharach. Psychometrics: An Introduction. 2ª ed. Thousand Oaks: SAGE Publications; 2013.
  • 24
    Silva BL, Neri DT, Ferreira ES, Oliveira JAA, Pereira LR. Métodos não farmacológicos durante trabalho de parto: percepção das mulheres. Rev Recien 2018; 8(24):54-64.
  • 25
    Aragão HT, Vieira SS, Fernandes ÉTS, Silva GM. Trabalho de parto e os métodos não farmacológicos para alívio da dor: Revisão Integrativa [Internet]. In: International Nursing Congress. Universidade Tiradentes; 2017 maio 9-12. Disponível em: https://eventos.set.edu.br/cie/article/view/6204/2353
    » https://eventos.set.edu.br/cie/article/view/6204/2353
  • 26
    Mielke KC, Gouveia HG, Gonçalves CA. A prática de métodos não farmacológicos para o alívio da dor de parto em um hospital universitário no Brasil. Av Enferm 2019; 37(1):47-55.
  • 27
    Henrique AJ, Gabrielloni MC, Cavalcanti ACV, Melo PS, Barbieri M. Hidroterapia e bola suíça no trabalho de parto: ensaio clínico randomizado. Acta Paul Enferm 2016; 29(6):686-692.
  • 28
    Rocha BD, Zamberlan C, Pivetta HMF, Santos BZ, Antunes BS. Posições verticalizadas no parto e a prevenção de lacerações perineais: revisão sistemática e metanálise. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03610.
  • 29
    Silva JSSA, Ribeiro JN, Corrêa LP. Bola suíça no trabalho de parto: Revisão de literatura. Braz J Develop 2019; 5(12):32867-32876.
  • 30
    Silva LM, Oliveira SMJV, Silva FMB, Alvarenga MB. Uso da bola suíça no trabalho de parto. Acta Paulista Enferm 2011; 24(5):656-662.
  • 31
    Miller S, Abalos E, Chamillard M, Ciapponi A, Colaci D, Comandé D, Diaz V, Geller S, Hanson C, Langer A, Manuelli V, Millar K, Morhason-Bello I, Castro CP, Pileggi VN, Robinson N, Skaer M, Souza JP, Vogel JP, Althabe F. Beyond too little, too late and too much, too soon: a pathway towards evidence-based, respectful maternity care worldwide. Lancet 2016; 388(10056):2176-2192.
  • 32
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.418, de 2 de dezembro de 2005. Regulamenta, em conformidade com o art. 1º da Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005, a presença de acompanhante para mulheres em trabalho de parto, parto e pós-parto imediato nos hospitais públicos e conveniados com o Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União 2005; 2 dez.
  • 33
    Lansky S, Friche AAL, Silva AAM, Campos D, Bittencourt DAS, Carvalho ML, Frias PG, Cavalcante RS, Cunha AJLA. Pesquisa Nascer no Brasil: perfil da mortalidade neonatal e avaliação da assistência à gestante e ao recém-nascido. Cad Saude Publica 2014; 30(Supl. 1):S192-S207.
  • 34
    Leal MDC, Gama SGN, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(Sup. 1):e00078816.
  • 35
    Diniz CSG, d'Orsi E, Domingues RMSM, Torres JA, Dias MAB, Schneck CA, Lansky S, Teixeira NZF, Rance S, J Sandall. Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto: dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30:S140-S53.
  • 36
    Mortazavi SH, Khaki S, Moradi R, Heidari K, Vasegh Rahimparvar SF. Effects of massage therapy and presence of attendant on pain, anxiety and satisfaction during labor. Arch Gynecol Obstet 2012; 286(1):19-23.
  • 37
    Zwelling E, Johnson K, Allen J. How to Implement Complementary Therapies for Laboring Women. MCN Am J Matern Child Nurs 2006; 31(6):364-370.
  • 38
    Sartes LMA, Souza-Formigoni MLO. Avanços na psicometria: da Teoria Clássica dos Testes à Teoria de Resposta ao Item. Psicol Reflex Crit 2013; 26(2):241-250.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2021
  • Aceito
    15 Set 2021
  • Publicado
    17 Set 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br