Resumo
Como política pública, práticas integrativas e complementares estão disponíveis no sistema público de saúde no Brasil desde 2006. Este texto, de caráter qualitativo e baseado em dados secundários da literatura e de documentos oficiais, tem o objetivo de compreender a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, a partir da sua presença por variados espaços da sociedade. Contornando a comparação entre o documento e a prática da política, propõe-se um caminho teórico e metodológico que possibilite novas percepções sobre a política em situações concretas. Aplicando a teoria ator-rede e a abordagem do agenciamento, as análises permitem perceber a política como um emaranhado de ações que faz surgir múltiplas realidades e versões contextuais da política, dependendo dos atores com os quais se associa. Desse modo, os resultados apontam para complexidade escondida por trás da aparente singularidade, revelando a pluralidade de atores que constituem essas realidades e demonstrando a dependência da política com relação à ação de outros atores para que ela se torne realidade. Seguindo esse caminho, é possível gerar novos elementos que contribuam para a análise da política na prática, somando-se aos estudos que enfatizam a comparação entre o documento e a prática.
Key words:
Complementary therapies; Public health policy; Medical anthropology
Abstract
Integrative and complementary therapies have been available in the public health system in Brazil as a public policy since 2006. This text of a qualitative nature based on secondary data from the literature and official documents has the aim of understanding the National Policy of Integrative and Complementary Practices from its presence in varied spaces in society. Bypassing the comparison between the theory and practice of the policy, a theoretical and methodological path is proposed to enable new perceptions about policy in practice. By applying the actor-network theory and the negotiation approach, the analysis enables us to perceive the policy as a combination of actions that gives rise to multiple realities and contextual versions of policy, depending on the actors involved. Thus, the results point to complexity hidden behind apparent singularity, revealing the plurality of actors that constitute these realities and demonstrating that the policy is dependent on the actions of other actors for it to become a reality. Following this analytical path, it is possible to generate new elements that contribute to the analysis of the policy in practice, adding to the studies that emphasize the comparison between theory and practice.
Key words:
Complementary therapies; Public health policy; Medical anthropology
Introdução
A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde (PNPIC)11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 971, de 3 de maio de 2006. Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2006; 4 maio., instituída em 2006, inseriu o Brasil no grupo dos quase 100 países que possuem algum dispositivo jurídico voltado às terapêuticas não biomédicas22 World Health Organization (WHO). WHO Global Report on Traditional and Complementary Medicine 2019. Geneva: WHO; 2019.. Desde 2006, a quantidade de PICs reconhecidas pela PNPIC aumentou significativamente, de 4, na Portaria que instituiu a política11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 971, de 3 de maio de 2006. Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2006; 4 maio., para 29, a partir de 201833 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.600, de 17 de julho de 2006. Aprova a constituição do Observatório das Experiências de Medicina Antroposófica no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2006; 18 jul.
4 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União 2017; 28 mar.-55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 702, de 21 de março de 2018. Altera a Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir novas práticas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares - PNPIC. Diário Oficial da União 2018; 22 mar.. O relatório de monitoramento mais recente, produzido pela Coordenação Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do Ministério da Saúde, apontou que, no SUS, em 2019, foram ofertadas práticas integrativas e complementares (PICs) em 4.296 municípios brasileiros em todas as unidades da federação, o que representa 77% do total de municípios brasileiros66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Relatório de Monitoramento Nacional das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde nos Sistemas de Informação em Saúde. Brasília: MS; 2020..
Além da significativa oferta de PICs no sistema público de saúde e do aumento na quantidade de PICs reconhecidas, atualmente, também se destaca o interesse da academia pelo tema, sendo o Brasil o 5º país que mais desenvolveu pesquisas sobre “medicina integrativa e complementar” no período entre 2009 e 201877 Ding Z, Li F. Publications in Integrative and Complementary Medicine: A Ten-Year Bibliometric Survey in the Field of ICM. Evid Based Complement Alternat Med 2020; 2020:4821950..
Diante desse contexto, de caráter qualitativo e integrando um estudo em nível de doutorado, este texto se baseia em dados secundários extraídos da literatura e de documentos oficiais, procurando compreender a PNPIC a partir da sua distribuição por variados espaços da sociedade. Argumenta-se que, tomando a política como um ator numa rede de relações e seguindo as suas ações, é possível perceber e compreender a existência de múltiplas versões de PNPIC surgindo nos variados espaços onde exerce influência e é influenciada.
Nesse sentido, a partir da teoria ator-rede88 Latour B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34; 1994.
9 Latour B. Reagregando o social. Salvador: EdUFBA, Bauru: Edusc; 2012.
10 Law J, Afdal G, Asdal K, Lin W, Moser I, Singleton V. Modes of Syncretism: notes on noncoherence. Common Knowledge 2014; 20(1):172-192.
11 Law J, Singleton V. ANT, multiplicity and policy, Critical Policy Stud 2014; 8(4):379-396.-1212 Mol A. Actor-Network Theory: sensitive terms and enduring tensions. Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie Sonderheft 2010; 50:253-269. e da abordagem do agenciamento (assemblage)1313 Savage G. What is policy assemblage? Territory Politics Governance 2020; 8(3):319-335.
14 Shore C, Wright S. Introduction. Conceptualising Policy: Technologies of Governance and the Politics of Visibility. In: Shore C, Wright S, Però D, editores. Policy Worlds: Anthropology and the Analysis of Contemporary Power. New York: Bherghahn Books; 2011.-1515 Mellaard A, van Meijl T. Doing policy: enacting a policy assemblage about domestic violence. Critical Policy Studies 2017; 11(3):330-348., propõe-se dois modos de perceber a política institucionalizada: o primeiro é perceber o documento da política como fruto de um processo de interação (associação) entre atores, cujo resultado é uma versão que veio à tona silenciando outras versões possíveis; o segundo, tendo em vista a PNPIC como uma versão e que pode ser contestada, o olhar se direciona para o modo como outros atores se engajam nela e o que fazem dela (fazendo surgir versões), ao invés de tentarmos compreender como a política influencia pessoas e instituições.
Contornando um caminho comparativo entre o documento da política e a prática da política, cuja tendência é a de apontar falhas, lacunas ou sucesso e elaborar proposições de ajustes, propõe-se um caminho teórico e metodológico ainda a ser trilhado nas análises da PNPIC e das PICs, possibilitando novas percepções sobre a política que podem contribuir na compreensão da política em situações concretas (na prática).
Contribuição às análises da PNPIC
Até o momento, pode-se dizer que há dois tipos de literatura sobre a PNPIC. Um tipo que procura analisar como está sendo a execução da política e que, geralmente, tende a apontar discrepâncias ou paralelismos entre o documento institucionalizado (o texto da política) e as variadas realidades encontradas pelo país, como, por exemplo, apontando para a pouca compreensão ou afinidade por parte dos gestores ou dos profissionais de saúde com relação à PNPIC1616 Thiago SC, Tesser CD. Percepção de médicos e enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família sobre terapias complementares. Rev Saude Publica 2011; 45(2):249-257.
17 Dalmolin IS, Heidemann ITSB, Freitag VL. Práticas integrativas e complementares no Sistema Único de Saúde: desvelando potências e limites. Rev Esc Enferm USP 2019; 53:1-8.
18 Santos FAZ, Sousa IMC, Gurgel IGD, Bezerra AFB, Barros NF. Política de práticas integrativas em Recife: análise da participação dos atores. Rev Saude Publica 2011; 45(6):1154-1159.-1919 Santos MC, Tesser CD. Um método para implantação e promoção de acesso às Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde. Cien Saude Colet 2012; 17(11):3011-3024.. Outro tipo é constituído por estudos que procuram compreender o processo que culminou na institucionalização da política, resgatando e analisando documentos governamentais, dados extraídos da literatura e entrevistas com pessoas-chaves.
Alguns desses estudos procuram analisar esse processo a partir de teorias que propõem a existência de ciclos de política2020 Silva GKF. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS: trajetória e coalizões de interesse [dissertação]. Recife: Fundação Oswaldo Cruz; 2017.
21 Silva GKF, Sousa IMC, Cabral MEGS, Bezerra AFB, Guimarães MBL. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares: trajetória e desafios em 30 anos do SUS. Physis 2020; 30(1):1-25.-2222 Bulsing M. Um estudo sobre o surgimento da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS [dissertação]. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria; 2013.. Embora inspiradas por diferentes autores, essas teorias corroboram uma análise de política pública a partir de um fluxo que segue: estabelecimento de problema, planejamento de estratégias de resolução, formulação de dispositivo jurídico-administrativo, execução, avaliação e, se necessário, reajuste.
Propõe-se, em contraste, outra possibilidade de compreensão da PNPIC, acrescentando duas percepções até então inexploradas. A primeira é uma percepção mais fluida sobre a política em situações concretas, abrindo a possibilidade de apreender como a PNPIC vem contribuindo para a constituição de realidades plurais1414 Shore C, Wright S. Introduction. Conceptualising Policy: Technologies of Governance and the Politics of Visibility. In: Shore C, Wright S, Però D, editores. Policy Worlds: Anthropology and the Analysis of Contemporary Power. New York: Bherghahn Books; 2011.,1515 Mellaard A, van Meijl T. Doing policy: enacting a policy assemblage about domestic violence. Critical Policy Studies 2017; 11(3):330-348., tais como, possibilitar: que o profissional administre certa terapêutica na clínica; estabelecimento e/ou fortalecimento de conflitos entre categorias profissionais; incremento de capital político; existência de especialidades profissionais e acadêmicas; estabelecimento de objetos de pesquisa. Assim, a PNPIC fomenta e fortalece a existência de realidades que seriam distintas sem ela, como, por exemplo: PICs, conflitos acerca da legitimidade profissional para executar certas ações de saúde, arregimentação de eleitorado em torno de determinada demanda, ampliação das possibilidades de atuação profissional e de formação acadêmica, campos/áreas de pesquisa.
Como consequência, ao invés de tomar o documento da política como algo a ser implementado, a segunda é percebê-lo como uma versão da política (PNPIC como dispositivo jurídico, que é diferente da versão de PNPIC como objeto de pesquisa ou como terapêutica, por exemplo) que é apropriada por outros atores nas situações concretas1515 Mellaard A, van Meijl T. Doing policy: enacting a policy assemblage about domestic violence. Critical Policy Studies 2017; 11(3):330-348.. No processo de apropriação, ocorre uma tradução (ressignificação)1010 Law J, Afdal G, Asdal K, Lin W, Moser I, Singleton V. Modes of Syncretism: notes on noncoherence. Common Knowledge 2014; 20(1):172-192.,1111 Law J, Singleton V. ANT, multiplicity and policy, Critical Policy Stud 2014; 8(4):379-396. da política que vem à realidade em uma possibilidade diferente do que estava previsto no dispositivo, como a PNPIC enquanto capital político - para citar o caso mais recente acerca da troca da Coordenação Nacional de PICs.
Desse modo, é possível encontrar a PNPIC em vários espaços sociais, como, por exemplo: gerenciamento de políticas públicas; atendimento ambulatorial e hospitalar; processos de fomento e disponibilização de recursos; pesquisas; discussões internacionais sobre saúde; mundo político; documentos da própria PNPIC e de políticas estaduais e municipais; ações de saúde privada; cruzamento com outras políticas, como de educação e econômicas; programas e/ou outras políticas de saúde, como de educação permanente; formação profissional; relatórios de acompanhamento; sistemas de informação de saúde; discussões das categorias profissionais; instituições não governamentais, como associações e sociedades profissionais; instituições privadas, como academias de yoga; etc.
Compreendendo a PNPIC como um ator que se relaciona com outros atores nas situações concretas e seguindo os caminhos onde ocorrem essas interações, desvenda-se uma cartografia que demonstra a característica multilocal e as múltiplas versões como a política está sendo feita. Se a multilocalização é fácil de compreender devido à diversidade de espaços onde ela emerge, compreender a multiplicidade de versões requer uma abordagem teórica e metodológica etnográfica que permite olhar por trás das aparências e das singularidades com as quais a PNPIC emerge em cada um desses contextos. Este referencial teórico vem da teoria ator-rede e da abordagem do agenciamento.
A teoria ator-rede foi empregada na análise das PICs e da PNPIC por poucos autores2323 Tesser CD. Epistemologia contemporânea e saúde: a luta pela verdade e as práticas terapêuticas [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2004.
24 Toniol R. Do espírito na saúde. Oferta e uso de terapias alternativas/complementares nos serviços de saúde pública no Brasil [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015.-2525 Santos MA. Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde do Brasil: inusitadas mediações. Pesqu Praticas Psicos 2016; 11(1):176-184. e, seguindo o caminho iniciado por eles, a novidade da presente proposta é aprofundar a aplicação da teoria ator-rede no sentido de evidenciar: a) a heterogeneidade material dos atores (humanos e não humanos) que compõem a PNPIC, b) a qualidade da interação entre eles, c) a multiplicidade de versões que emergem dessa associação, e d) os processos sincréticos que fazem emergir uma política que esconde essa pluralidade. Quanto à abordagem do agenciamento, ainda não foi utilizada nas análises sobre a PNPIC.
Buscando chamar atenção para a pluralidade de realidades que surgem a partir da associação da PNPIC com outros atores, bem como para o modo como eles atuam nos contextos em que estão inseridos, a abordagem aqui proposta pode contribuir com novos elementos para se compreender as diferenças da política na prática, que já vêm sendo apontadas pela literatura.
Apresentando a teoria ator-rede e a abordagem do agenciamento
A teoria ator-rede tem origem no campo de estudos “Ciência, Tecnologia e Sociedade”, no início dos anos 198088 Latour B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34; 1994.,99 Latour B. Reagregando o social. Salvador: EdUFBA, Bauru: Edusc; 2012.,1212 Mol A. Actor-Network Theory: sensitive terms and enduring tensions. Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie Sonderheft 2010; 50:253-269. e, a despeito de ser conhecida pelo termo “teoria”, corresponde a uma forma de perceber a realidade99 Latour B. Reagregando o social. Salvador: EdUFBA, Bauru: Edusc; 2012.,1111 Law J, Singleton V. ANT, multiplicity and policy, Critical Policy Stud 2014; 8(4):379-396.,1212 Mol A. Actor-Network Theory: sensitive terms and enduring tensions. Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie Sonderheft 2010; 50:253-269., partindo do pressuposto de que a realidade é um fenômeno constantemente em construção, sendo constituída pela associação das práticas (ações/performances) dos atores envolvidos. Para se compreender a realidade, portanto, é preciso analisar a ação dos atores a partir da etnografia simétrica, a qual considera atores humanos e não humanos como igualmente relevantes na constituição da realidade, o que permite desvendar uma teia de relações e delimitar um enquadramento analítico denominado rede sociotécnica88 Latour B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34; 1994..
Como mencionado, o presente artigo enfatiza a análise da PNPIC a partir da heterogeneidade de atores, da relacionalidade entre eles, da multiplicidade de realidades que resultam dessas interações (versões contextuais) e dos processos sincréticos que tornam as realidades aparentemente singulares e escondem a multiplicidade de materiais, relações e versões que estão envolvidas na constituição da realidade1010 Law J, Afdal G, Asdal K, Lin W, Moser I, Singleton V. Modes of Syncretism: notes on noncoherence. Common Knowledge 2014; 20(1):172-192.,1111 Law J, Singleton V. ANT, multiplicity and policy, Critical Policy Stud 2014; 8(4):379-396..
Por sua vez, a abordagem do agenciamento (assemblage) corresponde à aplicação da teoria ator-rede, avançando nesse método de análise sobre processos políticos e vem firmando seu espaço no campo de análise de políticas públicas1313 Savage G. What is policy assemblage? Territory Politics Governance 2020; 8(3):319-335.,1414 Shore C, Wright S. Introduction. Conceptualising Policy: Technologies of Governance and the Politics of Visibility. In: Shore C, Wright S, Però D, editores. Policy Worlds: Anthropology and the Analysis of Contemporary Power. New York: Bherghahn Books; 2011.,2626 Clarke J, Bainton D, Lendvai N, Stubss P. Making policy move: Towards a politics of translation and assemblage. Bristol: Policy Press; 2015.. Embora ainda não esteja presente nos estudos brasileiros, este tipo de abordagem já vem sendo utilizada em análises de políticas de saúde por pesquisadores estrangeiros2727 Michael M, Rosengarten M. Medicine: Experimentation, Politics, Emergent Bodies. Body Soc 2012; 18(3&4):1-17.
28 Savage G, Lewis S. The phantom national? Assembling national teaching standards in Australia's federal system. J Educ Policy 2018; 33(1):118-142.-2929 Singleton V, Mee S. Critical compassion: Affect, discretion and policy-care relations. Sociol Rev Monographs 2017; 65(2):130-149.. A opção por agenciamento para traduzir o termo assemblage, deve-se ao fato de se compreender, por um lado, que condiz com o sentido que a abordagem traz, ao passo em que enfatiza a diferença desejada, neste texto, em relação à teoria ator-rede que evidencia a associação e a arregimentação de atores para a rede. Assim, agenciamento, refere-se aos processos que envolvem associação de atores e agenciamentos (inserção de novos) dando ênfase aos movimentos de constituição da política.
Nessa proposta teórica e metodológica, a política pública deixa de ser algo estanque que deve ser implementado, para ser um emaranhado de ações (ator) que influencia e é influenciado por outros atores, sendo constantemente traduzido (ressignificado) quando é apropriado por outros atores em variados contextos - por gestores, pesquisadores, público-alvo, instituições, etc. Nesse sentido, a política institucionalizada é percebida como uma versão dentre outras que emergem na realidade, emergida a partir de um processo em que outras versões foram silenciadas.
Por exemplo, revisitando as conclusões de Silva2020 Silva GKF. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS: trajetória e coalizões de interesse [dissertação]. Recife: Fundação Oswaldo Cruz; 2017. sobre as reuniões do Conselho Nacional de Saúde e relendo as atas dessas reuniões3030 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de Saúde (CNS). Ata da 159ª Reunião, de 18, 19 e 20 de outubro de 2005. Brasília: MS, CNS; 2005.
31 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de Saúde (CNS). Ata da 160ª Reunião, de 8, 9 e 10 de novembro de 2005. Brasília: MS, CNS; 2005.
32 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de Saúde (CNS). Ata da 161ª Reunião, de 14 e 15 de dezembro de 2005. Brasília: MS, CNS; 2005.-3333 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de Saúde (CNS). Ata da 165ª Reunião, de 10 e 11 de maio de 2006. Brasília: MS, CNS; 2005., percebeu-se que as associações entre as ações (performances) dos atores fizeram emergir uma versão multiprofissional da PNPIC, silenciando a versão médico-centrada que tinha sido elaborada como a versão “original” pelo grupo de trabalho encarregado de elaborar a minuta da política que foi debatida pelos conselheiros. Na medida em que é uma versão possível, o documento aprovado está constantemente sendo contestado por outros atores, conforme será apresentado mais adiante.
A teoria ator-rede e a abordagem do agenciamento na análise da PNPIC
Perceber a PNPIC como ator num fluxo de relações abre a possibilidade de percebê-la como uma entidade que não possui uma identidade permanente, o que enseja três percepções fundamentais para se analisar a política pública.
A primeira, diz respeito à transformação no tempo e no espaço. Se tomarmos a política institucionalizada de 2006 e compará-la com o documento atual, salta aos olhos as alterações com relação à quantidade de PICs reconhecidas, de 4 para 5, ainda em 200611 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 971, de 3 de maio de 2006. Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2006; 4 maio.,33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.600, de 17 de julho de 2006. Aprova a constituição do Observatório das Experiências de Medicina Antroposófica no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2006; 18 jul., depois para 19 em 201744 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União 2017; 28 mar., até as 29 atuais em 201855 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 702, de 21 de março de 2018. Altera a Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir novas práticas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares - PNPIC. Diário Oficial da União 2018; 22 mar.. Assim, numa perspectiva temporal, tomando-se a quantidade e os tipos de terapêuticas reconhecidas, a identidade da PNPIC de 2006 foi sendo alterada.
Percebidas como resultados de entrelaçamentos de ações de variados atores, cada uma dessas alterações, nos respectivos momentos em que emergiram na realidade, representam uma versão que silenciou aquela que, até então, era considerada a política. A inserção de novos atores no processo de debates, tais como, a Portaria nº 971/200611 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 971, de 3 de maio de 2006. Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2006; 4 maio. que instituiu a PNPIC com 4 PICs (Medicina Tradicional Chinesa-Acupuntura, Homeopatia, Plantas Medicinais e Fitoterapia e Termalismo Social/Crenoterapia) e o documento emitido pela Associação Médica de Antroposofia e endereçado ao Ministério da Saúde, afirmando que a entidade não se opõe ao uso de vacinas2020 Silva GKF. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS: trajetória e coalizões de interesse [dissertação]. Recife: Fundação Oswaldo Cruz; 2017., influenciou a ação do ministério que, em resposta, efetuando a primeira alteração na política, emitiu a Portaria nº 1.600/200633 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.600, de 17 de julho de 2006. Aprova a constituição do Observatório das Experiências de Medicina Antroposófica no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2006; 18 jul., inserindo a antroposofia como a quinta PIC reconhecida pela PNPIC. Esse é um exemplo de entrelaçamento de ações que, segundo a abordagem do agenciamento, vai definindo o silenciamento de uma versão, no caso, mais restritiva, em prol de uma versão que amplia a quantidade de PICs ofertada no SUS.
Atentar-se para esse processo de disputas entre versões é importante por, ao menos, duas razões. Seguindo as ações e o modo como a política se relaciona com outros atores em situações concretas, a primeira importância é que a versão contestadora e vencedora pode restringir ou ampliar as possibilidades de surgimento de realidades, tais como: oferta de consultas antroposóficas, ministração de terapias e medicamentos antroposóficos, procura por tais procedimentos, contratação de profissionais com essa especialidade, aumento de formação acadêmica e profissional na área, impacto nos recursos financeiros voltados à saúde pública, impacto na estrutura física da unidade de atendimento, disputas e conflitos entre profissionais e categorias profissionais, uso de espaço físico que seria disponível para outra PIC, etc. A outra razão, diz respeito à segunda percepção sobre a política, a qual trata da questão da identidade contextual da política.
A segunda percepção fundamental sobre a política, por consequência, está em reconhecer que a identidade (as versões que emergem) da PNPIC depende do contexto em que está inserida, então não faz sentido acreditar na existência de ou procurar uma identidade permanente que a represente e sirva de comparativo entre o correto e o desvio. Parafraseando o antropólogo Clifford Geertz em relação ao Islã, o objetivo “não é definir religião [PNPIC], mas encontrá-la”3434 Geertz C. Observando o Islã. Rio de Janeiro: Zahar; 2014..
Ao invés de procurar por uma identidade fixa (essência), é preciso treinar o olhar para compreender como e por que as manifestações são diferentes, tentando desvendar o que existia (quais atores) em um contexto que não há no outro ou se algum ator atua de modo diferente em contextos diferentes, buscando descobrir as condições que possibilitam as versões. Essa abordagem contorna a procura pelo erro, pela falha ou pelo desentendimento, como, por exemplo, pela falta de sensibilidade e/ou interesse de gestores e profissionais pelas PICs; ou a procura pelo acerto, pelo exemplo a ser seguido ou por propostas que, geralmente, são pontuados por outros pesquisadores que objetivaram compreender a PNPIC. Abre-se, assim, novas possibilidades de análises e compreensão, somando-se às conclusões das pesquisas que enfatizam a abordagem comparativa entre o documento e a prática.
O que alguns estudos podem considerar desvios ou acertos em relação à política do documento, para a abordagem do agenciamento representam manifestações da política que emergem devido à apropriação da política por variados atores, nos variados espaços sociais. É isso que ocorre quando a política se desloca de um âmbito para outro (do gabinete para a unidade de atendimento, por exemplo) e é quando fica mais perceptível a capacidade criativa de sua existência em contribuir (ampliando ou restringindo possibilidades) na constituição de realidades.
A terceira percepção, decorrente das anteriores, é perceber que a PNPIC não é “coisa que é”, “sempre será” ou “será por um tempo” e que faz outros agirem, mas perceber que só ganha existência devido ao entrelaçamento (associação) de e com outras entidades. Por isso, destituindo-a de um superpoder para influenciar os demais atores3535 Cloatre E. Law and ANT (and its Kin): Possibilities, Challenges, and Ways Forward. J Law Soc 2018; 45(4):646-663., é possível percebê-la como entidade que não possui o poder de moldar por si só a realidade ou é desobedecida ou distorcida por aqueles que a colocam em prática, pois, juntamente com os demais atores, contribui na constituição da realidade. Em outras palavras, para surgir na realidade, a política depende da ação de outros atores, haja vista, também, que a própria política, enquanto documento, só emerge na realidade como resultado de um emaranhado de ações de atores.
Partindo do pressuposto de que a PNPIC é influenciada e influencia os demais, deve-se identificar quem são os demais atores e como atuam. Para tanto, é preciso seguir a ação da política institucionalizada percebendo-a como um fio condutor que conecta as demais entidades e as versões que emergem nos variados contextos.
Política institucionalizada como ator e uma versão vencedora
Na abordagem aqui proposta, políticas “não são simplesmente ferramentas governamentais instrumentais - elas são atores que têm agência e que mudam conforme entram em relação com outros atores, objetos e instituições em novos domínios”1414 Shore C, Wright S. Introduction. Conceptualising Policy: Technologies of Governance and the Politics of Visibility. In: Shore C, Wright S, Però D, editores. Policy Worlds: Anthropology and the Analysis of Contemporary Power. New York: Bherghahn Books; 2011.(p.20).
Uma das vantagens deste caminho analítico é que a aparente singularidade de uma política pública, por exemplo, dá lugar à compreensão de que ela ganha vida a partir de variadas versões contextuais, dependendo do entrelaçamento de atores e de suas ações, uma vez que a própria política é percebida como um ator nas teias de relações que a fazem vir à tona.
Mais importante do que definir um conceito de ator, que é o elemento central nesse tipo de abordagem, é preciso ter em mente que ele ou ela intervém na realidade a partir de ações. Assim, “a questão da teoria ator-rede não é de onde as atividades dos atores vêm, mas para onde elas vão: os efeitos são cruciais”1212 Mol A. Actor-Network Theory: sensitive terms and enduring tensions. Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie Sonderheft 2010; 50:253-269.(p.255).
A ênfase da análise recai, portanto, sobre o que as ações dos atores fazem, sobre suas consequências e como fazem emergir uma realidade, ao invés de procurar compreender o que elas são. Isto está relacionado ao conceito de ontologia política utilizado por Mol3636 Mol A. Ontological Politics. A Word and some questions. In: Law J, Hassard J, editors. Actor Network Theory and After. Hoboken: Blackwell/The Sociological Review; 1999. p. 74-89. para se referir à instabilidade da realidade. Ao conceito de ontologia que faz referência à essência da realidade “como ela é”, a autora acrescenta o termo política para denotar o caráter não acabado, não essencializado e não externo à realidade, destacando que o surgimento da realidade é inerente à intervenção dos atores. Assim, os atores atuam no sentido de fazer da realidade “como ela deveria ser” e, ao fazerem emergir determinada realidade, ampliam ou restringem as novas possibilidades de sua própria ação, das ações de outras entidades e, consequentemente, o surgimento de novas versões da realidade.
Essa é uma percepção mais empírica da realidade, pois, “TAR [teoria ator-rede] está nos mostrando que as realidades, o que existe no mundo, são feitas de práticas”1111 Law J, Singleton V. ANT, multiplicity and policy, Critical Policy Stud 2014; 8(4):379-396.(p.384). Por isso é importante revelar e analisar os atores envolvidos, suas ações, as traduções que realizam na efetivação de suas ações e os sincretismos que surgem nos processos de emergência da PNPIC como algo singular na realidade, desvelando a pluralidade que reside por trás da aparente singularidade.
Sobre as traduções, pode-se citar a denominação “práticas integrativas e complementares” dada pela PNPIC, ao invés de “Medicina Tradicional e Complementar” (MTC) ou “Medicina Alternativa e Complementar” utilizados pela OMS (2019), e que está permeada de novo significado e conceituação2424 Toniol R. Do espírito na saúde. Oferta e uso de terapias alternativas/complementares nos serviços de saúde pública no Brasil [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015..
No que tange aos sincretismos, um exemplo é a interação entre o reconhecimento de certas terapêuticas que poderiam ter impacto benéfico sobre o bem-estar da pessoa e o SUS como política pública, constituindo um movimento sincrético que resultou na PNPIC, braço da política pública de saúde nacional, que emerge na realidade com aparência de um fenômeno singular - escondendo as versões silenciadas pelo caminho.
Vista a partir da teoria de agenciamento, a PNPIC se configura como uma realidade múltipla3737 Mol A. The Body Multiple: Ontology in Medical Practice. Durham: Duke University Press; 2002. (pode emergir de maneiras diferentes), complexa (devido aos vários atores envolvidos e aos entrelaçamentos entre suas ações) e contextual (cada versão que emerge diz respeito ao respectivo contexto) que emerge dos entrelaçamentos das ações que os atores efetivam quando intervêm nos contextos onde são inseridos, ao invés de objetos estáveis e externos que definem ou determinam ações a serem implementadas.
Como processos em movimento e multilocalizados1515 Mellaard A, van Meijl T. Doing policy: enacting a policy assemblage about domestic violence. Critical Policy Studies 2017; 11(3):330-348., característico das políticas públicas, a PNPIC pode emergir no contexto de gestão como recursos humanos e financeiros, emergir como um dever do Estado e direito do cidadão no contexto de cidadania, emergir como uma porta que dá acesso a possibilidades terapêuticas para o paciente, emergir como ameaça à saúde dos pacientes3838 Conselho Federal de Medicina (CFM). Nota à população e aos médicos. Tema: Incorporação de práticas alternativas pelo SUS [Internet]. 2018 [acessado 2018 jun 20]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/praticas_integrativas.pdf.
https://portal.cfm.org.br/images/PDF/pra... , emergir como respaldo para formação acadêmica e profissional, emergir como objeto de pesquisa na academia, etc.
Seguir políticas públicas como fluxos de movimento traz a questão de como conceituar política e seus movimentos e não percebê-la a partir de um processo linear, desde o estabelecimento do problema às ruas1414 Shore C, Wright S. Introduction. Conceptualising Policy: Technologies of Governance and the Politics of Visibility. In: Shore C, Wright S, Però D, editores. Policy Worlds: Anthropology and the Analysis of Contemporary Power. New York: Bherghahn Books; 2011.:
uma política encontra expressão através de sequências de eventos; ela cria novos espaços semânticos e sociais, novos tipos de relações, novos sujeitos políticos e novas redes de significado [...] políticas não são simplesmente forças externas, generalizadas e restritivas, nem estão confinadas nos textos. Antes, elas são produtivas, performativas e continuamente contestadas1414 Shore C, Wright S. Introduction. Conceptualising Policy: Technologies of Governance and the Politics of Visibility. In: Shore C, Wright S, Però D, editores. Policy Worlds: Anthropology and the Analysis of Contemporary Power. New York: Bherghahn Books; 2011.(p.1).
São produtivas porque, ao interagirem com outros atores nos variados contextos, podem resultar em múltiplas versões e possibilidades de exercerem influência na realidade, como, por exemplo, emergir como capital político ou como ameaça à saúde de pacientes3838 Conselho Federal de Medicina (CFM). Nota à população e aos médicos. Tema: Incorporação de práticas alternativas pelo SUS [Internet]. 2018 [acessado 2018 jun 20]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/praticas_integrativas.pdf.
https://portal.cfm.org.br/images/PDF/pra... - para citar versões inesperadas no texto da política.
O caráter performático diz respeito a como essas múltiplas versões atuam nos determinados contextos, como, por exemplo, a política como dispositivo jurídico. Uma versão, fomentou (performou) a constituição de instituições, atualmente, importantes para compreendermos a PNPIC, como Observatório Nacional de Saberes e Práticas Tradicionais, Integrativas e Complementares (ObservaPICs), Consórcio Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa (CABSIN) ou Rede de Atores Sociais em PICs em Saúde (RedePics).
Outra versão de PNPIC como dispositivo jurídico, age (performa) possibilitando a oferta de PICs no SUS, ao passo em que restringe outras terapêuticas por não reconhecê-las como PICs. Vale ressaltar que esta versão é muito contestada por unidades da federação e municípios que vêm institucionalizando políticas locais e regionais inserindo terapêuticas não reconhecidas como PICs pela PNPIC ou inseriram terapêuticas que somente depois foram reconhecidas pela PNPIC, como reiki, bioenergética e yoga, por exemplo3939 Distrito Federal. Secretaria de Estado de Saúde. Política Distrital de Práticas Integrativas em Saúde: PDPIS. Brasília: Fepecs; 2014.
40 Espírito Santo. Secretaria de Estado da Saúde. Política de Práticas Integrativas e Complementares do Estado do Espírito Santo: homeopatia, fitoterapia/plantas medicinais e medicina tradicional chinesa/acupuntura. Vitória: Secretaria de Estado da Saúde; 2013.-4141 Minas Gerais. Secretaria de Estado da Saúde. Política Estadual de Práticas Integrativas e Complementares/MG - PEPIC. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Saúde; 2009..
A versão jurídica ainda performa de outra forma no contexto das categorias profissionais. Em 2006, quando da publicação da portaria 971 que instituiu a PNPIC11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 971, de 3 de maio de 2006. Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2006; 4 maio., o conselho federal e alguns regionais de medicina emitiram comunicados preocupados com a política, questionando, basicamente: o caráter multiprofissional que permite que profissionais não médicos realizem diagnósticos, prescrição e ministração de atos que deveriam ser restritos aos médicos e questionando o reconhecimento de algumas terapêuticas sem comprovação científica. Eles tomaram a mesma atitude em relação às portarias de 2017 e 201844 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União 2017; 28 mar.,55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 702, de 21 de março de 2018. Altera a Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir novas práticas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares - PNPIC. Diário Oficial da União 2018; 22 mar. que ampliaram as terapêuticas reconhecidas como PICs3838 Conselho Federal de Medicina (CFM). Nota à população e aos médicos. Tema: Incorporação de práticas alternativas pelo SUS [Internet]. 2018 [acessado 2018 jun 20]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/praticas_integrativas.pdf.
https://portal.cfm.org.br/images/PDF/pra... ,4242 Conselho Federal de Medicina (CFM). Saúde não é moeda de negociação política [Internet]. 2006 [acessado 2018 maio 10]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/artigos/saude-nao-e-moeda-de-negociacao-politica/.
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43 Conselho Federal de Medicina (CFM). Efeito placebo nos postos de saúde [Internet]. 2018 [acessado 2018 jun 20]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/artigos/efeito-placebo-nos-postos-de-saude/.
https://portal.cfm.org.br/artigos/efeito...
44 São Paulo. Conselho Regional de Medicina (CRM). Nota Oficial das Entidades Médicas faz sérios alertas sobre a Port. MS nº 971 [Internet]. 2006 [acessado 2018 jun 20]. Disponível em: https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Noticias&id=1167.
https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Not... -4545 Paraná. Conselho Regional de Medicina (CRM). Portaria 971 gera reação das entidades médicas pelos riscos à saúde e à vida [Internet]. 2006 [acessado 2018 jun 20]. Disponível em: https://www.crmpr.org.br/Portaria-971-gera-reacao-das-entidades-medicas-pelos-riscos-a-saude-e-a-vida-11-915.shtml.
https://www.crmpr.org.br/Portaria-971-ge... . Por outro lado, conselhos de outras categorias profissionais, como de enfermagem e de fisioterapia e terapia ocupacional, emitiram notas afirmando sua importância para a saúde da população4646 Conselho Federal de Enfermagem (CFE). Cofen manifesta apoio às Práticas Integrativas e Complementares [Internet]. 2018 [acessado 2018 jun 20]. Disponível em: www.cofen.gov.br/cofen-manifesta-apoio-as-praticas-integrativas-e-complementares_61201.html/ print/.
www.cofen.gov.br/cofen-manifesta-apoio-a... ,4747 São Paulo. Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional da 3ª região. As PIC - Práticas Integrativas e Complementares como campo de atuação profissional no SUS [Internet]. 2017 [acessado 2018 jun 20]. Disponível em: www.crefito3.org.br/dsn/noticias.asp?codnot=2740.
www.crefito3.org.br/dsn/noticias.asp?cod... .
Tanto a tradução (ressignificação) do dispositivo jurídico pelos estados e municípios, quanto a apresentação de outra versão para a PNPIC pelos conselhos de medicina, são exemplos de processos contestatórios da versão vencedora do documento, propondo outros modos de como a política deveria ser: uma versão que abre possibilidades para outras terapêuticas não reconhecidas pela PNPIC ou, diferentemente, questionando terapêuticas que não teriam comprovação científica ou que deveriam ser restritas ao profissional médico. Tais contestações podem influenciar ao ponto de modificarem a versão vencedora, tal como ocorreu com os estados e municípios ofertando reiki, yoga, bioenergética e hipnose antes da política nacional tê-las incorporado. Outras, como as dos conselhos de medicina que contestam a partir de ações judiciais, notas técnicas, pareceres e outras normas profissionais, ainda não obtiveram êxito.
Ressalta-se que todas as contestações decorrem das possibilidades permitidas pela versão vencedora.
Num processo linear, com uma política de âmbito nacional, espera-se que as unidades da federação e os municípios instituam suas próprias normas regionais e locais corroborando-a. Do mesmo modo, ao inserir todos os profissionais de saúde que atuam no SUS como potenciais ministrantes de tais terapêuticas11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 971, de 3 de maio de 2006. Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2006; 4 maio.,4848 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS: atitude de ampliação de acesso. 2ª ed. Brasília: MS; 2006.,4949 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 145, de 11 de janeiro de 2017. Altera procedimentos na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais do SUS para atendimento na Atenção Básica. Diário Oficial da União 2017; 13 jan., espera-se que as categorias profissionais atuem regulamentando essas ações profissionais. A linearidade não ocorre em nenhum dos casos, pois, somente 12 (doze) unidades da federação possuem política para PICs - embora todos ofertem PICs em suas respectivas redes de atenção à saúde estadual -, e nem todos os municípios, incluindo as capitais, instituíram este tipo de norma, enquanto que alguns deles não respeitam as restrições da política nacional e reconhecem outras terapêuticas3939 Distrito Federal. Secretaria de Estado de Saúde. Política Distrital de Práticas Integrativas em Saúde: PDPIS. Brasília: Fepecs; 2014.,4141 Minas Gerais. Secretaria de Estado da Saúde. Política Estadual de Práticas Integrativas e Complementares/MG - PEPIC. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Saúde; 2009.. No caso das categorias profissionais, o posicionamento do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) é o de que o assistente social não possui formação específica para atuar aplicando essas terapêuticas, embora o Ministério da Saúde autorize4949 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 145, de 11 de janeiro de 2017. Altera procedimentos na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais do SUS para atendimento na Atenção Básica. Diário Oficial da União 2017; 13 jan.,5050 Conselho Federal de Serviço Social (CFESS). A inserção de assistentes sociais em Práticas Integrativas e Complementares no âmbito da saúde/SUS. Brasília: CFESS; 2019..
Por isso, para a abordagem do agenciamento, “apropriação”, é mais adequado do que implementação porque “segue as transformações a cada vez que uma política é transferida para um novo domínio, seguindo também, além das agências do instrumento político, a agência de outros atores envolvidos”1515 Mellaard A, van Meijl T. Doing policy: enacting a policy assemblage about domestic violence. Critical Policy Studies 2017; 11(3):330-348.(p.342). Isso permite revelar a não linearidade e a complexidade através das quais uma política ganha vida na realidade. Como política pública, ela não ocorre dentro dos limites de uma única organização, mas são “distribuídas ao longo de diferentes locais e requerem emergir publicamente para ganhar vida, gerar ações”1515 Mellaard A, van Meijl T. Doing policy: enacting a policy assemblage about domestic violence. Critical Policy Studies 2017; 11(3):330-348.(p.341).
Um exemplo, e que já foi mencionado, é quando a ação da PNPIC como legislação influencia na legitimação da oferta de PICs como prática terapêutica no SUS, influenciando a emergência de PICs como formação e especialização profissionais pelo próprio SUS, via UNASUS (Universidade Aberta do SUS), e a emergência de outros cursos de formação, aulas, consultas, dentre outros, que funcionam em paralelo à ação governamental, fundamentando um mercado a partir da legitimação dessas práticas pela política pública.
Heterogeneidade, relacionalidade, multiplicidade e sincretismos
Abordar dessa maneira amplia a compreensão sobre a gama de entidades que atuam no fluxo de relações que dão vida à realidade, aprofundando na compreensão de como a realidade é feita. A heterogeneidade material que constitui a PNPIC pode ser percebida pela diversidade de entidades (atores) que entrelaçam suas ações, como, por exemplo: documentos; pessoas (gestores, pacientes, profissionais, pesquisadores); estrutura física; objetos como agulhas, tapetes, óleos; instituições; pesquisas; arranjos políticos; recursos financeiros; diagnósticos; doenças; etc.
A relacionalidade diz respeito a como essas entidades efetivam e entrelaçam suas ações com as demais, tais como: a performance do documento possibilita e restringe a oferta de PICs pelo SUS, ao passo em que define os profissionais que podem executá-la; a performance da estrutura física delimita qual PICs pode ser ofertada na unidade de saúde, na modalidade coletiva ou individual; os estudos epidemiológicos podem contribuir com aumento ou restrição de oferta de práticas; dentre outros.
Quanto à multiplicidade: a depender do entrelaçamento das ações efetivadas em cada contexto, versões da política podem emergir na realidade, tais como: no contexto profissional, fundamenta o surgimento de especialidades; na clínica, pode emergir como benefícios terapêuticos para o paciente ou terapia complementar à alopática; na unidade de saúde, pode emergir como um dos serviços terapêuticos de política pública ofertado e que ocupa determinado espaço físico; na gestão, pode emergir como demanda por recursos humanos e financeiros; na academia, surge como objeto de pesquisa; no meio jurídico, como disputas profissionais; na pandemia, como ameaça à saúde ou terapia adjuvante, dentre tantas outras.
Na interação entre as versões que são emergidas, podem ocorrer tipos de articulações que fazem emergir novos fenômenos que aparentam unicidade, naturalidade e estabilidade, tais como o sincretismo em que a yoga como benefícios terapêuticos da clínica, entrelaçada à yoga enquanto uma atividade concebida pela biomedicina como não principal para intervir sobre as reclamações do paciente, faz emergir uma yoga como terapêutica adjuvante, complementar, no SUS.
As várias versões que emergem resultam do fato de que a realidade é feita de modo “histórico, cultural e materialmente localizado”3636 Mol A. Ontological Politics. A Word and some questions. In: Law J, Hassard J, editors. Actor Network Theory and After. Hoboken: Blackwell/The Sociological Review; 1999. p. 74-89.(p.75), assim, os fenômenos podem emergir diferentemente no tempo e no espaço. Como consequência, a realidade não é fixa e nem imutável, mas está à mercê do entrelaçamento de coletivos humanos e não humanos.
Na ontologia política da realidade, como mencionado, a ação das entidades segue em direção a “como deve ser a realidade” e não são baseadas em “como a realidade é”3636 Mol A. Ontological Politics. A Word and some questions. In: Law J, Hassard J, editors. Actor Network Theory and After. Hoboken: Blackwell/The Sociological Review; 1999. p. 74-89.. Por exemplo: tomando o caso da acupuntura, uma das PICs previstas na PNPIC, ela não era um serviço de saúde pública no Brasil, mas atores (pesquisadores, gestores, profissionais de saúde, pacientes, doenças, prática clínica, agentes políticos, documentos, etc.) entrelaçaram suas ações e interviram no surgimento de uma versão de acupuntura como mensurável, quantificável, plausível politicamente, visando a emersão de constituir parte de política pública de saúde e fazendo-a emergir como uma PICs.
Como aponta Toniol2424 Toniol R. Do espírito na saúde. Oferta e uso de terapias alternativas/complementares nos serviços de saúde pública no Brasil [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015., “é preciso muito trabalho e empenho de leis, portarias, agentes estatais e regulações para transformar uma ‘terapia alternativa/complementar’ em ‘prática integrativa e complementar’”2424 Toniol R. Do espírito na saúde. Oferta e uso de terapias alternativas/complementares nos serviços de saúde pública no Brasil [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015.(p.24).
Deve-se atentar que as versões que emergem não são organizadas ou cumulativas, pois, dependendo do contexto, uma prescinde da outra para ser feita. Cada uma delas, com efeito, não é uma versão permanente com a qual os atores precisam se relacionar, cada qual são versões efêmeras e podem coexistir simultaneamente, tanto em um mesmo contexto, quanto em contextos distintos. São efêmeras porque, no fazer a realidade, o que importa é como elas surgem no contexto e como esta versão atua, influencia, o fluxo de relações.
Voltando ao exemplo da acupuntura. Num contexto de discussão epistemológica (congresso científico), nem uma versão quantitativa nem uma terapêutica poderá emergir, haja vista que o “dever ser” da acupuntura neste contexto, por exemplo, pode ser a epistemologia Oriental ou Ocidental.
Outro aspecto relevante da multiplicidade é que os atores envolvidos podem agir diferentemente dependendo do contexto em que estão inseridos. Um gestor, por exemplo, que também é um profissional de saúde que aplica técnicas de saúde, em determinado contexto pode ser aquele que está aplicando a acupuntura no paciente, performando uma acupuntura como terapêutica. E, neste momento, a versão da acupuntura quantificável (oferta/demanda/custos) que baseia análises de gestão, não interfere em sua ação como profissional porque esta versão mensurável não emerge na realidade, dado que as entidades envolvidas, o paciente e o gestor, não mais como gestor, mas neste momento como profissional autorizado à aplicar acupuntura, juntamente com as outras entidades que compõem o contexto (clínica, vestimentas, enfermidade, paciente, etc.), fazem emergir uma outra realidade, a versão da acupuntura que busca o bem-estar por meio de uma atividade de relação direta com o paciente, diferentemente da atividade gestão-profissionais própria da gestão.
Considerações finais
Apresentando um caminho teórico e metodológico para analisar a PNPIC, pretendeu-se contribuir com o aprofundamento da compreensão de como a política é efetivada em situações concretas5151 Baker T, McGuirk P. Assemblage thinking as methodology: commitments and practices for critical policy research. Territory Politics Governance 2017; 5(4):425-442.. Acrescentando um caminho ainda a ser explorado pela literatura, enfatizou-se a potencialidade da PNPIC em contribuir na constituição de realidades plurais. Para isso, foi proposto perceber a política como um ator que interage com outros atores nos variados contextos em que é possível perceber sua presença. O documento da política, nesse sentido, é tomado como uma das versões possíveis pelas quais a PNPIC pode emergir na realidade e que, ao ser apropriado por outros atores nas situações concretas passa por ressignificação e pode ser contestado. Isso pode resultar em silenciamento do texto atual, emergindo outra versão do documento.
Procurou-se demonstrar que perceber a PNPIC como conjunto de ações e seguir os fluxos de movimentos que a faz emergir na realidade, revela a complexidade que se esconde por trás da sua aparente naturalidade, singularidade e estabilidade, permitindo compreender a pluralidade de atores que constituem essas realidades, demonstrando a intrínseca dependência da ação de outros atores para que a política venha à tona. Desse modo, argumentou-se ser possível gerar mais elementos que contribuam para a análise da PNPIC na prática, somando-se aos estudos que enfatizam a comparação entre o documento e a prática da política.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
27 Maio 2022 - Data do Fascículo
Jun 2022
Histórico
- Recebido
20 Fev 2021 - Aceito
25 Out 2021 - Publicado
27 Out 2021