“Há algo de afrontoso na depressão. A maioria dos demônios - a maioria das formas de angústia - apoia-se na escuridão da noite...A depressão apresenta-se ao fulgor total do sol, não se sentindo desafiada pelo reconhecimento...”
Solomon (2018, p. 280)
A presença de sintomas depressivos coincide com a história da humanidade apresentando nomenclaturas particulares ao conhecimento advindo do movimento histórico, social e cultural de cada época11 Cordás TA, Emilio MS. História da Melancolia. Porto Alegre: Artmed; 2017.. Com distintas explicações que variam desde castigos dos deuses, obra do demônio até, mais recentemente, fatores genéticos, fisiológicos, bioquímicos e ambientais a depressão sempre foi e continua sendo não apenas debilitante, mas também um grande desafio para seus portadores e para profissionais de saúde.
Ao longo das últimas décadas, transformações ocorreram em ritmo acelerado nas sociedades e nota-se grande vulnerabilidade ao desenvolvimento de sintomas depressivos. Entre essas transformações pode-se citar o fracasso dos sistemas de normas e crenças (familiar, religioso, político e social) e o aumento do consumo, do imediatismo e do efêmero. As relações interpessoais e a comunicação também sofreram alterações significativas com sobreposição da relação tempo-espaço e sua consequente sensação de simultaneidade22 Bauman Z. Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press; 2000.,33 Lipovetsky G. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla; 2004.. A velocidade dessas alterações e a alienação das pessoas somadas à necessidade de adaptação instantânea têm favorecido o adoecimento psíquico e sintomas como, por exemplo, ansiosos e depressivos passaram a se tornar cada vez mais frequentes.
A preocupação com o adoecimento da população não é recente, Steel et al.44 Steel Z, Marnane C, Iranpour C, Chey T, Jackson JW, Patel V, Silove D. The global prevalence of common mental disorders: a systematic review and meta-analysis 1980-2013. Int J Epidemiol 2014; 43(2):476-493. apresentaram uma revisão que incluiu levantamentos publicados desde 1980 até 2013, em 63 países e apontam que 29,2% da população adulta apresentou alguma experiência relacionada à transtornos mentais em algum momento de sua vida. Em 2001, a Organização Mundial da Saúde (OMS)55 World Health Organization (WHO). The World Health Report. Mental Health: New understanding, new hope. Geneva: WHO; 2001. apresentou documento apontando que transtornos mentais e de comportamento representam 12% da carga total de doenças no mundo. No Brasil, Nunes et al.66 Nunes MA, Pinheiro AP, Bessel M, Brunoni AR, Kemp AH, Benseñor IM, Chor D, Barreto S, Schmidt MI. Common mental disorders and sociodemographic characteristics: baseline findings of the Brazilian Longitudinal Study of Adult Health (ELSA-Brasil). Braz J Psychiatry 2016; 38(2):91-97. verificaram que 26,8% dos indivíduos adultos apresentaram algum sintoma relacionado a morbidades psiquiátricas e Campos et al.77 Campos JADB, Martins BG, Campos LA, Marôco J, Saadiq RA, Ruano R. Early psychological impact of the COVID-19 pandemic in Brazil: a national survey. J Clin Med 2020; 9(9):2976. apontam que 31,2% da população brasileira relataram apresentar algum diagnóstico de transtorno mental ao longo de sua vida (n=12.196) e Munhoz et al.88 Munhoz TN, Nunes BP, Wehrmeister FC, Santos IS, Matijasevich A. A nationwide population-based study of depression in Brazil. J Affect Disord 2016; 192:226-233. apontam uma prevalência de depressão de 4,1% (n=60.202). Frente a esse cenário, a OMS55 World Health Organization (WHO). The World Health Report. Mental Health: New understanding, new hope. Geneva: WHO; 2001. e Razzouk99 Razzouk D. Why should Brazil give priority to depression treatment in health resource allocation? Epidemiol Serv Saude 2016; 25(4):845-848. alertam para os impactos econômicos, sociais e individuais que esses sintomas representam a seus portadores e à sociedade. Essas estatísticas e os impactos decorrentes da depressão tornam essa questão um importante desafio para a saúde coletiva.
Apesar da vasta literatura que aborda questões relacionadas à depressão, poucos relatos referentes ao impacto dessa na vida das pessoas são tão potentes como o realizado por Solomon1010 Solomon A. O demônio do meio-dia: Uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras; 2018. em seu livro O demônio do meio-dia - uma anatomia da depressão. Trata de um texto autobiográfico com ampla sustentação na literatura e em relatos de diversas naturezas de pessoas que sofrem de depressão. O autor apresenta um retrato vívido e corajoso construído de dentro para fora, ou seja, a partir de sua experiência.
O autor narra em 12 capítulos não apenas seu ponto de vista enquanto “portador de depressão”, mas também um grande conhecimento adquirido ao longo dos anos como professor e pesquisador da área de Psicologia. São abordados aspectos como colapso (Capítulo 2, p. 38-96), tratamento (Capítulo 3, p. 97-129), vício (Capítulo 6, p. 207-231), suicídio (Capítulo 7, p. 232-271), estigma social relacionado à saúde mental (Capítulo 8, p. 272-320), medicalização entre outros. Tem-se nessa obra, portanto, algo ímpar, uma narrativa construída do ponto de vista do sujeito de pesquisa e do pesquisador simultaneamente e talvez esse fato a torne tão particular e impactante.
Os pensamentos e sentimentos do portador de depressão frente a diferentes situações, dentro ou fora de um colapso, são expostos sem barreiras, de forma honesta e intensa. O leitor que já vivenciou sintomas depressivos certamente se identificará com a obra (ou com parte dela) e aquele que nunca vivenciou tal situação terá a oportunidade de perceber a seriedade e o impacto dessa condição na vida de seus portadores. A perspectiva de escrita escolhida pelo autor e seu alto nível de sustentação teórica, faz dessa obra uma referência importante tanto para profissionais de cuidado quanto para portadores de depressão.
A narrativa desvela a luta incessante e os desafios impostos a cada amanhecer aos portadores de depressão no enfrentamento de cada dia. Situações corriqueiras são redesenhadas a partir do olhar de quem sofre e ao leitor é apresentado um retrato inesperado de desespero e canalização de energia para vencer cada pequeno desafio que se apresenta como, por exemplo, levantar da cama, se vestir ou atender ao telefone (“me sentia esmagado pelos recados na minha secretária eletrônica e me fixei nisso: via os telefonemas, geralmente de amigos, como um peso terrível”, p.44).
Os sintomas das síndromes depressivas são vividamente explorados, Solomon1010 Solomon A. O demônio do meio-dia: Uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras; 2018. apresenta uma narrativa que contempla sintomas afetivos e de humor (“a primeira coisa que vai embora é a felicidade. Não é possível ter prazer em nada”, p.20; “a depressão poderá irromper em fúria”, p.173), alterações ideativas (“...tendência geral de autodestruição entre aqueles para quem é certo que o futuro será sombrio...”, p.215), alterações da volição e da psicomotricidade (“tenho a sensação...de ter morrido algumas semanas atrás mas meu corpo ainda não entendeu”, p.155), alterações da esfera instintiva e neurovegetativa (“esse é um dos legados da depressão: já não sei como minhas saúde mental e física se enfrentam...”, p.431; “travar guerra contra a depressão é lutar contra si mesmo”, p.36), alterações da autovaloração (“Sempre tive a sensação, mesmo quando garoto, de não me enquadrar no resto do mundo...”, p.188; “...É sempre um choque a discrepância entre minha percepção de mim mesmo e como sou percebido pelo mundo...”, p.191) e alterações cognitivas (“parte da tristeza e da desilusão da depressão é que nós simplesmente não nos damos conta da lenta perda de nós mesmos”, p.468).
As ações governamentais e as políticas públicas voltadas ao cuidado relacionado à saúde mental da população também são expostas e questionadas pelo autor (“Estamos cegos para as proporções epidêmicas da depressão porque a realidade é tão raramente expressa”, p.349; “Não importa o que você diga sobre sua depressão, as pessoas não acreditam...”, p.350; “Nossa avaliação dos sistemas de prestação de serviços médicos simplesmente não é orientada pelo resultado”, p.360;“A ideia de oferecer uma força de serviço social para facilitar a transição do desespero a um alto nível de funcionalidade ainda não pegou entre os círculos do governo”, p.364).
A partir da descrição realizada acima pode-se ter uma pincelada do relato potente e completo da vivência do autor. Conforme as descrições são realizadas, em seu curso, pode-se notar o enquadramento da depressão nos referencias da saúde coletiva tanto no que se refere ao processo saúde/doença das populações propriamente dito quanto no processo social. Solomon1010 Solomon A. O demônio do meio-dia: Uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras; 2018. apresenta elementos intrínsecos e extrínsecos da depressão e seu enquadramento e impacto na sociedade e nas práticas de saúde. O autor busca apresentar sua compreensão em relação ao papel social para o acolhimento das necessidades e problemas relacionados à depressão, bem como, busca apresentar relatos de estratégias para enfrentá-la.
Outro aspecto a ser relatado, é que Solomon1010 Solomon A. O demônio do meio-dia: Uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras; 2018. apresenta de forma clara e direta as dificuldades e o sofrimento e aponta como primeiro passo de enfrentamento a aceitação e a busca por ajuda. Para o autor a depressão é apresentada como uma condição crônica semelhante a qualquer outra como, por exemplo, o diabetes ou a hipertensão. O autor ressalta que cabe a cada um aceitar e entender os aspectos relacionados à depressão bem como buscar adequação de estilo de vida e tratamento que sejam adequados para lidar com cada tipo de sintoma e/ou transtorno depressivo e que possam minimizar o sofrimento e diminuir a probabilidade de ocorrência de um colapso.
Apesar de apontar o importante espaço dos medicamentos para tratamento da depressão, Solomon1010 Solomon A. O demônio do meio-dia: Uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras; 2018. apresenta um posicionamento muito claro em relação à banalização de sintomas (“pessoas que supõem que a alegria é seu direito inato engolem uma montanha de comprimidos numa tentativa fútil de aliviar os desconfortos suaves que acontecem a todos...”, p.26) e ao processo de medicalização (“o Prozac não resolve a não ser que o ajudemos...”, p.29) e aconselha que as pessoas “devem encontrar ajuda enquanto ainda estão fortes o bastante para fazê-lo...”(p.23) e aponta o caminho da psicoterapia e alteração do estilo de vida como alternativas não apenas viáveis mas fundamentais para acolhimento das demandas e orientação para prevenção ou minimização e/ou tratamento de sintomas (“com cuidado certo e apoio estou começando a definir a doença, em vez de deixar que ela me defina”, p.190; “a melhor maneira de tratar a depressão é falar sobre ela”, p.401) antes que os mesmos se estabeleçam ou se agravem (“A depressão foi longe demais quando, apesar de uma ampla margem de segurança, você não consegue mais se equilibrar.”, p.28).
No Epílogo o autor1010 Solomon A. O demônio do meio-dia: Uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras; 2018. se despede de forma encorajadora e cheio de esperança e ressalta que as “pessoas que procuram ajuda têm muito mais probabilidade de estar no controle de seus demônios do que aquelas que não procuram”(p.462).
Essa leitura pode ser um bom começo... Recomendo ainda, a leitura crítica e reflexiva dessa obra aos profissionais da área de saúde mental, pois, certamente a análise dos relatos apresentados por Solomon1010 Solomon A. O demônio do meio-dia: Uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras; 2018. em confronto com a literatura e as diferentes teorias e abordagens psicológicas poderá fornecer subsídios relevantes para a prática de cuidado tanto individual quanto coletivo.
Referências
- 1Cordás TA, Emilio MS. História da Melancolia. Porto Alegre: Artmed; 2017.
- 2Bauman Z. Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press; 2000.
- 3Lipovetsky G. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla; 2004.
- 4Steel Z, Marnane C, Iranpour C, Chey T, Jackson JW, Patel V, Silove D. The global prevalence of common mental disorders: a systematic review and meta-analysis 1980-2013. Int J Epidemiol 2014; 43(2):476-493.
- 5World Health Organization (WHO). The World Health Report. Mental Health: New understanding, new hope. Geneva: WHO; 2001.
- 6Nunes MA, Pinheiro AP, Bessel M, Brunoni AR, Kemp AH, Benseñor IM, Chor D, Barreto S, Schmidt MI. Common mental disorders and sociodemographic characteristics: baseline findings of the Brazilian Longitudinal Study of Adult Health (ELSA-Brasil). Braz J Psychiatry 2016; 38(2):91-97.
- 7Campos JADB, Martins BG, Campos LA, Marôco J, Saadiq RA, Ruano R. Early psychological impact of the COVID-19 pandemic in Brazil: a national survey. J Clin Med 2020; 9(9):2976.
- 8Munhoz TN, Nunes BP, Wehrmeister FC, Santos IS, Matijasevich A. A nationwide population-based study of depression in Brazil. J Affect Disord 2016; 192:226-233.
- 9Razzouk D. Why should Brazil give priority to depression treatment in health resource allocation? Epidemiol Serv Saude 2016; 25(4):845-848.
- 10Solomon A. O demônio do meio-dia: Uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras; 2018.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
27 Maio 2022 - Data do Fascículo
Jun 2022