Acesso aos benefícios e programas governamentais e insegurança alimentar nas áreas rurais e urbanas do Nordeste brasileiro

Poliana de Araújo Palmeira Juliana Bem-Lignani Rosana Salles-Costa Sobre os autores

Resumo

O trabalho analisa a insegurança alimentar (IA) nas áreas urbana e rural da região Nordeste do Brasil e sua associação com fatores sociais e o acesso a benefícios/programas governamentais. Foram avaliados dados sobre IA da Pesquisa de Orçamentos Familiares (2017-2018), considerando variáveis socioeconômicas e o acesso a benefícios/programas governamentais de transferência de renda (Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, Cartão Alimentação e Cesta de Alimentos). Modelos de regressão logística multinomial tendo IA como desfecho foram utilizados para avaliar a relação com os programas governamentais. Metade das famílias se encontrava em IA, sendo maior a prevalência e gravidade nos domicílios rurais. A composição da família por ao menos um indivíduo aposentado reduziu significativamente a probabilidade de ocorrência dos níveis mais severos da IA. O acesso à Cesta de Alimentos (em dinheiro) e ao Bolsa Família associou-se como fator de proteção para a IA grave na área rural; na área urbana, o benefício Cartão Alimentação foi o principal fator de proteção. Programas de transferência de renda e o acesso a benefícios sociais contribuíram para o enfrentamento da IA, destacando a relevância da manutenção e ampliação dessas iniciativas para populações vulnerabilizadas.

Palavras-chave:
Segurança alimentar e nutricional; Transferência de renda; Programas governamentais

Introdução

A segurança alimentar e nutricional (SAN) “consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”11 Brasil. Lei nº 11.346, de 15 de novembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial 2006; 15 nov.. No Brasil, o acesso à alimentação adequada e saudável é um direito constitucional, sendo dever do Estado o desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais para assegurar a SAN da população. A insegurança alimentar (IA), medida que dialoga com a SAN nos estudos populacionais, expressa pela incerteza ou privação no acesso aos alimentos suficientes e de qualidade em uma população, permanece entre os mais importantes problemas sociais e de saúde pública a serem enfrentados no Brasil e no mundo22 Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). Global strategic framework for food security and nutrition 2017 [Internet]. [acessado 2022 May 19]. Available from: https://www.csm4cfs.org/wp-content/uploads/2016/02/CFS_OEWG_GSF_2017_05_10_01_Updated_GSF_EN.pdf
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3 Trudell JP, Burnet ML, Ziegler BR, Luginaah I. The impact of food insecurity on mental health in Africa: a systematic review. Social Science & Medicine 2021; 278:113953.

4 Oliveira KHD, Almeida GM, Gubert MB, Moura AS, Spaniol AM, Hernandez DC, Pérez-Escamilla R, Buccini G. Household food insecurity and early childhood development: systematic review and meta-analysis. Matern Child Nutr 2020; 16(3):e12967.
-55 Roncarolo F, Potvin L. Food insecurity as a symptom of a social disease: Analyzing a social problem from a medical perspective. Can Fam Physician 2016; 62(4):291-292..

A erradicação da fome e da má nutrição em todas as suas formas é um dos objetivos traçados pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) na Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável66 Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), International Fund for Agricultural Development (IFAD), United Nations International Children's Emergency Fund (UNICEF), World Food Program (WFP), World Health Organization (WHO). The state of food security and nutrition in the world 2020. Transforming food systems for affordable healthy diets. Rome: FAO; 2020.. A partir da aplicação de escalas de percepção da IA, nos últimos três relatórios sobre o estado de IA no mundo, a FAO alertou países sobre o risco de retorno da fome e atribuiu a persistência das taxas de IA a fatores como condições socioeconômicas, desaceleração econômica e eventos climáticos adversos77 Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), International Fund for Agricultural Development (IFAD), United Nations International Children's Emergency Fund (UNICEF), World Food Program (WFP), World Health Organization (WHO). The state of food security and nutrition in the world. Safeguarding against economic slowdowns and downturns. Rome: FAO; 2019.

8 Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), International Fund for Agricultural Development (IFAD), United Nations International Children's Emergency Fund (UNICEF), World Food Program (WFP), World Health Organization (WHO). the state of food security and nutrition in the world: bulding climate resilience for food security and nutrition. Rome: FAO; 2018.
-99 Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), International Fund for Agricultural Development (IFAD), United Nations International Children's Emergency Fund (UNICEF), World Food Program (WFP), World Health Organization (WHO). the state of food security and nutrition in the world 2017. Building resilience for peace and food security. Roma: FAO; 2017.. Em números absolutos, 2 bilhões de pessoas em 2019 sofriam com a IA no mundo, sendo 205 milhões na América Latina e Caribe66 Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), International Fund for Agricultural Development (IFAD), United Nations International Children's Emergency Fund (UNICEF), World Food Program (WFP), World Health Organization (WHO). The state of food security and nutrition in the world 2020. Transforming food systems for affordable healthy diets. Rome: FAO; 2020.. Após o início da a pandemia de COVID-19, a FAO estimou aumento entre 83 e 132 milhões de pessoas que irão vivenciar a IA como um resultado direto da pandemia1010 High Level Panel of Expertes (HLPE). Impacts of COVID-19 on food security and nutrition: developing effective policy responses to address the hunger and malnutrition pandemic. HLPE issues paper 2020. [cited 2022 may 19]. Available from: https://www.fao.org/3/cb1000en/cb1000en.pdf
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No Brasil, estudos nacionais também documentaram uma década de redução nos níveis de IA em todo o território nacional entre 2003 e 20141111 Cabral CS, Lopes AG, Lopes JM, Vianna RP. Food security, income, and the Bolsa Familia program: a cohort study of municipalities in Paraiba State, Brazil, 2005-2011. Cad Saude Publica 2014; 30(2):393-402.

12 Gubert MB, Santos SMC, Santos LMP, Pérez-Escamilla R. A Municipal-level analysis of secular trends in severe food insecurity in Brazil between 2004 and 2013. Global Food Security 2017; 14:61-67.
-1313 Palmeira PA, Salles-Costa R, Pérez-Escamilla R. Effects of family income and conditional cash transfers on household food insecurity: evidence from a longitudinal study in Northeast Brazil. Public Health Nutr 2020; 23(4):756-767., bem como apontaram os riscos de aumento da IA no país como resultado do desmonte das políticas de SAN e sociais, somado às crises política e econômica nos últimos cinco anos1414 Costa NS, Santos MO, Carvalho CPO, Assunção ML, Ferreira HS. Prevalence and factors associated with food insecurity in the context of the economic crisis in Brazil. Current Developments in Nutrition 2017; 1(10): e000869.,1515 Sousa LRM, Segall-Correa AM, Ville AS, Melgar-Quinonez H. Food security status in times of financial and political crisis in Brazil. Cad Saude Publica 2019; 35(7):e00084118.. No contexto de crise sanitária atual, dados do inquérito nacional que avaliou o efeito da pandemia da COVID-19 na IA no Brasil mostraram que mais de 50% dos brasileiros foram classificados em algum nível de IA e 19,1 milhões convivem com a experiência de fome, sendo a prevalência da IA maior na região Nordeste e mais grave entre famílias rurais, de baixa renda e cuja pessoa de referência é mulher, preta ou parda e de baixa escolaridade1616 Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN). VIGISAN - Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: Rede PENSSAN; 2021..

Este cenário, marcado pelo retorno do quadro de fome e IA no Brasil, coloca em evidência estudos sobre o tema, visando contribuir para o monitoramento nos níveis de IA no Brasil, com destaque para a população em vulnerabilidade social. Destaca-se também a necessidade de estudos que explorem a associação entre IA e o acesso a benefícios e programas governamentais, de forma a contribuir para o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento da fome e da IA. Diante do exposto, foram objetivos deste estudo analisar fatores socioeconômicos e demográficos associados à IA nas áreas urbana e rural da região Nordeste do Brasil e estimar a associação da IA com o acesso a benefícios e/ou programas governamentais em dinheiro, com base em dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018 (POF 2017-2018).

Método

Tipo de estudo e amostragem

Foram analisados dados da POF 2017-2018, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre julho de 2017 e julho de 2018. A POF 2017-2018 adota um plano amostral por conglomerado em dois estágios, com estratificações geográfica (regiões brasileiras e situação urbano/rural) e estatística (variável renda domiciliar, segundo o Censo Demográfico 2010) das chamadas unidades primárias de amostragem correspondentes aos setores censitários do Censo Demográfico 2010. Essa amostra foi estruturada de forma a possibilitar a análise de resultados por região brasileira (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul) e por situação urbana e rural. Os dados foram coletados em domicílio por entrevistadores treinados e há um rigoroso controle de qualidade dos dados1717 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018 - primeiros resultados. Rio de Janeiro: IBGE; 2019.. Mais informações sobre a amostra e a coleta dos dados estão disponíveis no site do IBGE1818 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 2021. [acessado 2021 jun 3]. Available from: https://www.ibge.gov.br
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. Para este estudo, foram utilizadas 19.150 unidades primárias de amostragem localizadas na região Nordeste do Brasil, que no formato expandido alcançam um tamanho populacional de 17.848.855 domicílios.

Insegurança alimentar

O desfecho de interesse neste estudo foi a IA mensurada por meio da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA). A EBIA é uma escala adaptada do instrumento americano Household Food Security Survey Module, e validada nos estudos de base populacionais no Brasil desde 20031919 Perez-Escamilla R, Segall-Correa AM, Kurdian Maranha L, Sampaio MMF, Marin-Leon L, Panigassi G. An adapted version of the U.S. Department of Agriculture Food Insecurity module is a valid tool for assessing household food insecurity in Campinas, Brazil. J Nutr 2004; 134(8):1923-1928.. A concepção teórica deste instrumento considera privação alimentar como um fenômeno progressivo e vivenciado no nível domiciliar, e nos casos mais severos no nível individual. A EBIA avalia o acesso aos alimentos em dimensões que incluem o medo de sofrer com a privação de alimentos, a redução da qualidade e/ou quantidade de alimentação acessada pela família e a fome2020 Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Conceptualizing and measuring food and nutrition security. Cien Saude Colet 2011; 16(1):187-199..

A POF 2017-20182121 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de orçamentos familiares: 2017-2018 - análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2020. utilizou a versão atualizada da EBIA contendo 14 itens dicotômicos (sim/não), que avaliam a privação da alimentação da família nos últimos três meses. Desses itens, sete são exclusivos para famílias com ao menos um morador com idade até 18 anos no domicílio. Baseado no somatório de respostas afirmativas da EBIA, a classificação da IA das famílias é realizada em níveis de gravidade, a saber: (1) segurança alimentar (SA) - quando respondeu negativamente às questões da escala, o que caracteriza que não houve o medo ou o receio entre os membros da família de sofrerem privação de alimentos nos três meses que antecederam à pesquisa; (2) IA leve - preocupação de sofrer privação alimentar em um futuro próximo; (3) IA moderada - quando há restrição na qualidade da alimentação; e (4) IA grave - quando houve a experiência de fome entre adultos e/ou crianças do domicílio2121 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de orçamentos familiares: 2017-2018 - análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2020..

Variáveis relacionadas às iniquidades sociais para IA

Em acordo com a disponibilidade de informações nos microdados da POF 2017-2018, foram selecionadas 12 variáveis de exposição, incluindo quatro programas e/ou benefícios governamentais: (1) Bolsa Família (programa de transferência condicionada de renda direcionado a famílias com renda abaixo da linha da pobreza2222 Brasil. Ministério da Cidadania. Site do Ministério da Cidadania. [acessado 2021 jun 3]. Disponível em: https://www.gov.br/cidadania/pt-br
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); (2) Benefício de Prestação Continuada (BPC) (benefício social no valor de um salário mínimo para pessoas com deficiência que apresentem impedimentos físico, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo ou para idosos a partir de 65 anos, em ambos os caos a renda da família deve ser inferior a 1/4 de salário mínimo2222 Brasil. Ministério da Cidadania. Site do Ministério da Cidadania. [acessado 2021 jun 3]. Disponível em: https://www.gov.br/cidadania/pt-br
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), (3) Cartão Alimentação (auxílio, tíquete ou benefício em dinheiro para compra de alimentos, geralmente vinculado ao trabalho formal) e (4) Cesta de Alimentos (benefício em dinheiro). Essas informações foram retiradas do módulo de rendimento individual da POF 2017-2018, na seção sobre programas de transferência de renda, aposentadorias, pensões, auxílios e outros rendimentos, e se referem ao acesso nos últimos 12 meses.

Covariáveis relacionadas às inequidades para IA foram identificadas para caracterização dos domicílios, sendo elas: sexo, raça/cor e escolaridade do responsável do domicílio, número de moradores do domicílio, renda mensal familiar per capita, presença de aposentados no domicílio, situação do domicílio - próprio pago/pagando ou alugado/cedido ou outra situação e acesso diário à água2323 Lignani JB, Palmeira P, Antunes MML, Salles-Costa R. Relationship between social indicators and food insecurity: a systematic review. Rev Bras Epidemiol 2020; 23:E200068..

Análise de dados

Foram realizadas análises descritivas da situação de IA e demais variáveis de exposição da população em subamostras de domicílios localizados na área urbana e rural da região Nordeste. Foram aplicados testes de qui-quadrado de Pearson para explorar a associação da IA e variáveis explicativas de interesse no grupo de famílias residentes nas regiões urbana e rural. Todas as variáveis que se associaram à IA com nível de significância até 20% (p-valor até 0,20) foram selecionadas para o modelo multivariado.

As análises consideraram a razão de prevalência como estimador, uma vez que o desfecho estudado, IA do domicílio, foi categorizado em quatro níveis (SA - desfecho de referência, IA leve, moderada e grave). Foram realizados em separado modelos de regressão para as áreas urbana e rural, incluindo as variáveis socioeconômicas e demográficas selecionadas. Para verificar a associação do acesso aos benefícios/programas governamentais e a IA foram desenvolvidos modelos de regressão logística multinomial separadamente para cada um dos benefícios/programas, com ajuste para variáveis socioeconômicas e demográficas. Investigou-se também a interação entre as variáveis renda mensal familiar per capita e de acesso aos benefícios/programas governamentais. Como resultado, foi incluído um termo de interação nos modelos aplicados para os programas Bolsa Família e BPC. Para Cartão Alimentação e Cesta de Alimentos, o ajuste foi realizado com a inclusão da variável renda no modelo, sem o termo de interação. Todos os modelos especificados foram testados para colinearidade.

As análises foram desenvolvidas no software Stata-IC, versão 15.02424 Stata-IC. Stata. 15.0 ed. College Station, TX: Stata Corporation; 2021.. Em todas as análises foi utilizado o módulo survey para amostra expandida, com intervalos de confiança (IC) de 95% e nível de significância de 5% para verificação de associação estatística entre as variáveis.

De acordo com a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), pesquisas que utilizam dados secundários disponíveis e de domínio público que não identifiquem os participantes da pesquisa, caso deste estudo, não necessitam de aprovação pelo Comitê de Ética local do Sistema CEP -CONEP.

Resultados

A Tabela 1 apresenta a prevalência de SA e IA na região Nordeste segundo localização urbana ou rural do domicílio. Observou-se que metade dos domicílios da região Nordeste foi classificado em algum grau de IA (49,7%), sendo maior a prevalência entre aqueles localizados na área rural (57,9%), quando comparada à urbana (47,8%). A IA também apresentou maior gravidade em famílias rurais, das quais 16,8% e 8,9% foram classificados em IA moderada e grave, respectivamente.

Tabela 1
Características socioeconômicas, demográficas e de acesso a benefícios/programas governamentais em domicílios urbanos e rurais do Nordeste, Brasil, 2017-2018.

Ao comparar as características socioeconômicas e demográficas das famílias segundo área de moradia, verificou-se maior vulnerabilidade social no meio rural (Tabela 1). Comparando os dados dos domicílios segundo área de moradia, tanto na área urbana como na rural, a maioria das famílias era composta por até quatro moradores (urbana: 71,4%; rural: 68,2%), cujo responsável autodeclarou raça/cor da pele como preta ou parda (urbana: 73,9%; rural: 79,5%). Na área urbana, 52% dos responsáveis pelos domicílios são do sexo masculino enquanto na rural sobe para 62,3%. A escolaridade do responsável também se diferenciou segundo a localização dos domicílios, sendo significativamente maior entre os da área urbana no Nordeste brasileiro (mais de quatro anos de estudo: 74,6%). Observou-se um percentual maior de famílias que habitam casa própria na região rural (83%), quando comparada com a urbana (72,6%). Com relação à renda, 41,6% e 20,2% das famílias declararam renda inferior a 1/2 salário-mínimo nas regiões rural e urbana, respectivamente. Na maioria dos domicílios, em ambas as áreas, foi referida a ausência de um aposentado na composição familiar (urbana: 68,4%; 61,3%) e acesso diário a água (urbana: 66,2%; rural: 58,3%).

Quanto ao acesso aos benefícios/programas governamentais estudados, 45,7% das famílias rurais acessaram o Bolsa Família, enquanto na área urbana foram 24,2%. A proporção de famílias que referiram ter recebido Cesta de Alimentos (em dinheiro), Cartão Alimentação e BPC foi inferior a 10% em ambas as áreas de moradia estudadas.

Na área urbana, todas as variáveis pesquisadas apresentaram associação com a IA na análise bivariada, enquanto na área rural não foi observada associação entre a IA e o acesso a água e ao BPC (tabelas 2 e 3).

Tabela 2
Distribuição da situação de segurança e insegurança alimentar por características socioeconômicas, demográficas e de acesso à programas governamentais em domicílios da região urbana. Nordeste, Brasil, 2017-2018.
Tabela 3
Distribuição da situação de segurança e insegurança alimentar por características socioeconômicas, demográficas e de acesso à programas governamentais em domicílios rurais. Nordeste, Brasil, 2017-2018

Analisando a associação das variáveis de estudo com os níveis de IA segundo a localização dos domicílios, na área urbana todas as variáveis do responsável pelo domicílio (sexo, anos de estudo e raça/cor da pele), a renda familiar e o acesso diário a água e casa própria foram fatores de exposição associados à IA, em todos os níveis de gravidade. Na área rural, apenas o sexo do responsável e a renda da família se associaram significativamente com os níveis de IA. Essas informações podem ser observadas na Tabela 4.

Tabela 4
Razão de prevalência (RP) da insegurança alimentar por características socioeconômicas, demográficas e de acesso à programas governamentais entre famílias residentes nas áreas rural e urbana do Nordeste, Brasil, 2017-2018.

A composição da família por ao menos um indivíduo aposentado foi associada à IA como um fator de proteção, ou seja, na redução da probabilidade de a família ser classificada em IA, em todos os níveis de gravidade, para domicílios urbanos e rurais (Tabela 5). Receber o benefício Cesta de Alimentos e participar do Bolsa Família foi associado como fator de proteção para a IA grave na área rural. Na área urbana, o recebimento do benefício Cartão Alimentação foi associado como fator de proteção para a IA em todos os níveis de gravidade. Entre os domicílios urbanos, o Bolsa Família foi um fator protetor para IA leve e moderada.

Tabela 5
Razão de prevalência (RP)* para insegurança alimentar e gravidades e acesso a programas governamentais entre famílias residentes nas áreas rural e urbana do Nordeste, Brasil, 2017-2018.

Discussão

O primeiro objetivo deste estudo foi analisar a situação de IA em domicílios da região Nordeste do Brasil segundo área de moradia, urbana ou rural. Os resultados apontaram maior proporção de IA (+10,1%) na área rural, quando comparada com a urbana. Os percentuais de IA moderada/grave na região urbana (18,8%) e na região rural (25,7%) foram superiores aos resultados observados na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE de 2013, quando foram registrados índices de 12,5% nos domicílios urbanos em IA moderada/grave e 20,1% nos domicílios rurais2525 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: Segurança Alimentar 2013. Rio de Janeiro: IBGE; 2014..

Estudo realizado entre novembro e dezembro de 2020 no Brasil apontou que apenas 26,9% dos domicílios pesquisados no Nordeste estavam classificados em SA2626 Galindo E, Teixeira MA, Arau´jo M, Motta R, Pessoa M, Mendes L, Rennó L. Efeitos da pandemia na alimentac¸a~o e na situac¸a~o da seguranc¸a alimentar no Brasil. Working Paper Series Food for Justice 2021; Working Paper 4.. No mesmo período, o I Inquérito Nacional sobre IA no cenário da COVID-19, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e SAN, com amostra representativa de 2.180 domicílios, documentou índices alarmantes de IA moderada/grave, alcançando 34,9% e 29,3% dos domicílios rurais e urbanos no Nordeste, respectivamente1616 Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN). VIGISAN - Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: Rede PENSSAN; 2021.. Esses resultados corroboram o aumento da gravidade da IA no Brasil revelado nos dados da POF 2017-2018.

A redução da IA no Brasil entre 2003 e 2014 foi atribuída ao desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais relacionadas com a SAN, sendo o aumento da vulnerabilidade da população nordestina à fome e IA em 2018 uma possível consequência do desmonte de tais políticas pública1515 Sousa LRM, Segall-Correa AM, Ville AS, Melgar-Quinonez H. Food security status in times of financial and political crisis in Brazil. Cad Saude Publica 2019; 35(7):e00084118.. Pesquisadores avaliaram o investimento do governo federal em 19 programas governamentais relacionados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e observaram redução de 84,6% no orçamento para programas relacionados à SAN entre 2014 e 20172727 Souza LEPF, Barros RD, Barreto ML, Katikireddi SV, Hone TV, Sousa RP, Leyland A, Rasella D, Millett CJ, Pescarini J. The potential impact of austerity on attainment of the Sustainable Development Goals in Brazil. BMJ Global Health 2019; 4(5):e001661.. Entre 2014 e 2018, Vasconcelos e Machado2828 Vasconcelos F, Machado M, Madeiros M, Neves J, Recine E, Pasquim E. Public policies of food and nutrition in Brazil: from Lula to Temer. Rev Nutr 2019; 32:e180161. registraram redução relevante no orçamento de programas federais (Cestas Básicas, -67%, Programa de Aquisição de Alimentos, -67%). Outros estudos observaram que os programas como Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) (-71%) e Água para Todos (-94%) também são de relevância para a SAN, sobretudo no contexto de vulnerabilidade rural no Nordeste brasileiro2929 Palmeira P, Araújo Mattos R, Pérez-Escamilla R, Salles-Costa R. Multisectoral government programs and household food insecurity: evidence from a longitudinal study in the semiarid area of northeast, Brazil. Food Security 2020; 13:525-538.,3030 Cherol CCS, Ferreira AA, Salles-Costa R. Governmental programmes associated with food insecurity among communities of descendants of enslaved blacks in Brazil. Public Health Nutr 2020: 24(10):3136-3146..

Essa redução no orçamento expressa que pautas relacionadas ao direito humano à alimentação adequada e à SAN3131 Santarelli M, David G, Burity V, Rocha N. Informe Dhana 2019: autoritarismo, negação de direitos e fome. Brasília: FIAN Brasil; 2019., progressivamente vem perdendo espaço na agenda governamental. Outro exemplo emblemático foi a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional no primeiro dia de governo do presidente Jair Bolsonaro, em 20193232 Ribeiro CIR. A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a agenda de alimentação e nutrição. Cad Saude Publica 2019; 35(2): e00009919., também como resultado da implementação de medidas de austeridade fiscal que têm reduzido o investimento federal em políticas de saúde, educação e proteção social2727 Souza LEPF, Barros RD, Barreto ML, Katikireddi SV, Hone TV, Sousa RP, Leyland A, Rasella D, Millett CJ, Pescarini J. The potential impact of austerity on attainment of the Sustainable Development Goals in Brazil. BMJ Global Health 2019; 4(5):e001661.,2828 Vasconcelos F, Machado M, Madeiros M, Neves J, Recine E, Pasquim E. Public policies of food and nutrition in Brazil: from Lula to Temer. Rev Nutr 2019; 32:e180161.,3333 Malta M. Human rights and political crisis in Brazil: public health impacts and challenges. Glob Public Health 2018; 13(11):1577-1584.

34 Paes-Sousa R, Schramm JMA, Mendes LVPM. Fiscal austerity and the health sector: the cost of adjustments. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4375-4384.
-3535 Silva WP, Barbosa EP. Austeridade e neoliberalismo no Brasil pós-golpe. Sítio Novo 2020; 4(3):336-347..

Em continuidade ao esvaziamento das políticas públicas sociais e universais no Brasil, diante da pandemia de COVID-19, as ações do governo brasileiro para mitigar os efeitos econômicos e sociais da crise sanitária foram estabelecidas tardiamente e se constituíram essencialmente em ações emergenciais de acesso a renda e alimentos3636 Alpino TM, Santos CRB, Barros DC, Freitas C. COVID-19 e (in)segurança alimentar e nutricional: ações do Governo Federal brasileiro na pandemia frente aos desmontes orçamentários e institucionais. Cad Saude Publica 2020; 36(8):e00161320., ou seja, ações limitadas frente às repercussões do contexto pandêmico para a SAN no Brasil3737 Ribeiro-Silva R, Pereira M, Campello T, Aragão E, Guimarães JM, Ferreira AJF, Barreto ML, Santos SMC. Implicações da pandemia COVID-19 para a segurança alimentar e nutricional no Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(9):3421-3430..

Além do aumento no número de famílias em IA, este estudo também ressalta a manutenção de disparidades percentuais entre as regiões, pois os índices de IA moderada/grave na região rural foram maiores do que na urbana nas pesquisas realizadas anteriormente pelo IBGE2525 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: Segurança Alimentar 2013. Rio de Janeiro: IBGE; 2014.. Em revisão sistemática que reuniu 11 estudos de diagnóstico da IA em áreas rurais do Brasil (2008-2017), os autores apontaram prevalências de IA e IA grave que variaram de 32,2% a 88,8% e 3% a 39,5%, respectivamente3838 Trivellato PT, Morais DC, Lopes SO, Miguel ES, Franceschini SCC, Priore SE. Insegurança alimentar e nutricional em famílias do meio rural brasileiro: revisão sistemática. Cienc Saude Colet 2019; 24(3):865-874.. Os autores destacaram também que a maioria expressiva dos estudos observou resultados de IA superiores aos da PNAD 2013, e esses resultados podem ser atribuídos a dificuldades na implementação de políticas públicas no meio rural.

A maior exposição à IA entre famílias rurais é um retrato histórico da desigualdade social e geográfica, que se revela no Brasil por meio de disparidades no desenvolvimento econômico, social e humano entre os territórios urbano e rural. No Nordeste, a vulnerabilidade da região está concentrada no semiárido, território que corresponde a 20% das terras brasileiras e se localiza no interior do país. Formado majoritariamente por municípios de pequeno porte, o semiárido apresenta condições climáticas de seca persistente, pobreza e baixa infraestrutura que elevam os desafios para superação da IA3939 Pérez-Marin AM, Rogé P, Altieri MA, Forero LFU, Silveira L, Oliveira VM, Domingues-Leiva BE. Agroecological and Social Transformations for Coexistence with Semi-Aridity in Brazil. Sustainability 2017; 9:990..

Todos os fatores socioeconômicos e demográficos estudados foram associados com IA leve, moderada ou grave. Em ambas as regiões, a baixa renda familiar se destacou como importante fator de exposição à IA. O risco de estar em IA grave foi seis e cinco vezes maior entre famílias com renda per capita menor que 1/4 de salário-mínimo, quando comparado a famílias com renda superior a 1/2 salário-mínimo, nas regiões rural e urbana, respectivamente.

Essa relação entre o montante da renda familiar e a IA já foi amplamente explorada na literatura científica1313 Palmeira PA, Salles-Costa R, Pérez-Escamilla R. Effects of family income and conditional cash transfers on household food insecurity: evidence from a longitudinal study in Northeast Brazil. Public Health Nutr 2020; 23(4):756-767.,2323 Lignani JB, Palmeira P, Antunes MML, Salles-Costa R. Relationship between social indicators and food insecurity: a systematic review. Rev Bras Epidemiol 2020; 23:E200068.. Em adição ao debate da renda familiar, os resultados também apontaram a presença do aposentado no domicílio como um fator de proteção para a IA em todos os níveis de gravidade em ambas as regiões. Alguns estudos indicam a vulnerabilidade à IA entre idosos que residem sozinhos ou cuja família depende economicamente da aposentadoria para suprir as necessidades da casa4040 Tognon FAB, Follador FAC, Mello GR, Almeida LEFD, Vieira AP, Frigo EP. Seguranc¸a alimentar: um estudo com idosos. Revista Espacios 2017; 38(19):25., enquanto outros corroboram esta pesquisa e destacam que a presença do aposentado na família pode representar acesso a uma renda estável e segurança econômica4141 Rosa TE, Mondini L, Gubert MB, Sato GS, Benício MHA. Segurança alimentar em domicílios chefiados por idosos, Brasil. Rev Bras Geriatr Gerontol 2012; 15(1):69-77.,4242 Men F, Tarasuk V. Severe food insecurity associated with mortality among lower-income Canadian adults approaching eligibility for public pensions: a population cohort study. BMC Public Health 2020; 20:1484..

Nesse sentido, a IA não guarda relação apenas com o tamanho da renda das famílias, mas também com sua estabilidade4343 Tarasuk V. Implications of a basic income guarantee for household food insecurity. Thunder Bay: Northern Policy Institute; 2017.,4444 Li N, Dachner N, Tarasuk V. The impact of changes in social policies on household food insecurity in British Columbia, 2005-2012. Prev Med 2016; 93:151-158.. Ou seja, é possível que as famílias convivam com a privação no acesso a alimentos como resultado da instabilidade de empregos e informalidade no trabalho, sendo a aposentadoria no contexto familiar uma fonte de renda segura e um fator protetor para a IA. Especialmente no contexto rural, Lopes e Medeiros4545 Lopes MR, Medeiros M, Tecchio A. A aposentadoria rural e a construção da autonomia feminina no território Quilombola de Porto Alegre, Pará. Raízes 2020; 40(2):347-365. estudaram a importância da previdência social rural entre mulheres de uma comunidade quilombola no Pará e encontraram que a aposentadoria se operacionaliza como um veículo que supre além das necessidades básicas e proporciona investimento na produção agrícola e aumento da autonomia de escolhas, inclusive alimentares, pelas mulheres.

As análises desse estudo apontaram também que, entre os domicílios da região urbana do Nordeste do país, todos os fatores socioeconômicos e demográficos estudados foram associados como fator de risco para IA em algum nível de gravidade, fato não observado na área rural da região. Nesse sentido, cabe destacar que a ausência de associação entre o acesso a água e os níveis de IA pode ser justificada em função da grande escassez de água enfrentada na região.

Outro objetivo da presente pesquisa foi estimar a associação da IA com o acesso a benefícios e/ou programas governamentais em dinheiro. Um resultado que se destaca é o baixo percentual de domicílios brasileiros que acessaram os programas/benefícios estudados: Bolsa Família (28,7%), Cesta de Alimentos (0,9%), Cartão Alimentação (6,2%) e BPC (5,4%), o que vai ao encontro do debate sobre o desmonte das políticas públicas de SAN e de proteção social no Brasil. Estudos descrevem um Estado pouco propositivo com relação à implementação de iniciativas governamentais para a SAN e um processo de estagnação e redução de alocação de recursos federais em programas sociais e de alimentação antes2727 Souza LEPF, Barros RD, Barreto ML, Katikireddi SV, Hone TV, Sousa RP, Leyland A, Rasella D, Millett CJ, Pescarini J. The potential impact of austerity on attainment of the Sustainable Development Goals in Brazil. BMJ Global Health 2019; 4(5):e001661.,2828 Vasconcelos F, Machado M, Madeiros M, Neves J, Recine E, Pasquim E. Public policies of food and nutrition in Brazil: from Lula to Temer. Rev Nutr 2019; 32:e180161.,4646 Salvador ES. O desmonte do financiamento da seguridade social em contexto de ajuste fiscal. Serv Soc Soc 2017; 130:426-446. e durante a pandemia de COVID-194747 Nalesso A, Rizzotti M, Mustafa S. Desmonte da Protenção Social: uma análise da implementação do auxílio emergencial. Temporalis 2021; 19(37):219-236.

48 Carvalho CA, Viola PCAF, Sperandio N. How is Brazil facing the crisis of food and nutrition security during the COVID-19 pandemic? Public Health Nutr 2021; 24(3):561-564.
-4949 Neves JA, Machado ML, Oliveira LDA, Moreno YMF, Medeiros MAT, Vasconcelos FAG. Unemployment, poverty, and hunger in Brazil in Covid-19 pandemic times. Rev Nutr 2021; 34:e200170..

Nossos achados também reforçam a relevância dos programas governamentais de renda para a melhoria do acesso a alimentos, dada a associação inversa entre IA e acesso ao Bolsa Família, à Cesta de Alimentos e ao Cartão Alimentação. Foram observadas diferenças entre as famílias residentes nas regiões urbana e rural. Na primeira, o Cartão Alimentação apresentou efeito protetor para todos os níveis de gravidade da IA, e o Bolsa Família para a IA leve e moderada. Já na região rural, o Bolsa Família foi um fator protetor para IA leve, moderada e grave, e o Cesta de Alimentos para a IA grave.

Por um lado, esses resultados expressam a necessidade urgente de implementação e fortalecimento de programas de transferência de renda nos contextos urbano e rural, de outro destacam ainda mais as disparidades socioeconômicas entre as regiões. Ou seja, no contexto social e de custo de vida da região urbana, os benefícios provenientes de programas como Bolsa Família e Cesta de Alimentos possivelmente são insuficientes para se configurarem como fator de proteção à IA grave, enquanto na região rural, em um contexto de maior vulnerabilidade e instabilidade no acesso a renda, o Bolsa Família se configurou como fator de proteção à IA. O Cartão Alimentação, benefício em dinheiro para compra de alimentos, em geral vinculado ao trabalho formal, foi associado como fator de proteção para IA apenas na região urbana. Nesse sentido, acredita-se que esse resultado se fez presente neste estudo em função da maior disponibilidade de acesso ao trabalho formal na área urbana, quando comparada com a região rural.

São escassos os estudos que avaliam a associação entre IA e acesso aos programas governamentais. De nosso conhecimento, não existem estudos sobre IA e BPC, Cartão Alimentação e a oferta de Cesta de Alimentos em dinheiro. Com relação ao Bolsa Família, outros pesquisadores já relataram a associação entre o programa e a IA, revelando tanto a focalização do programa em famílias vulneráveis3030 Cherol CCS, Ferreira AA, Salles-Costa R. Governmental programmes associated with food insecurity among communities of descendants of enslaved blacks in Brazil. Public Health Nutr 2020: 24(10):3136-3146.,5050 Palmeira PA, Bem-Lignani J, Maresi VA, Mattos RA, Interlenghi GS, Salles-Costa R. Temporal changes in the association between food insecurity and socioeconomic status in two population-based surveys in Rio de Janeiro, Brazil. Social Indicators Research 2019; 144(13):1349-1365. como o efeito protetor para a IA1313 Palmeira PA, Salles-Costa R, Pérez-Escamilla R. Effects of family income and conditional cash transfers on household food insecurity: evidence from a longitudinal study in Northeast Brazil. Public Health Nutr 2020; 23(4):756-767.. Os resultados do presente estudo apontaram que cerca de 70% das famílias titulares de direito do Bolsa Família nas regiões urbanas e rurais estão em IA, indicando que o programa alcança as famílias mais vulneráveis e que, para uma resposta mais eficiente na superação da IA, possivelmente seria necessário adotar valores mais elevados de transferência de renda.

Limitações

Este estudo apresenta limitações que precisam ser discutidas. Não foram considerados os critérios de elegibilidade dos programas/benefícios estudados na população, assim, parte das famílias que não acessaram os programas estudados poderiam estar fora dos critérios de elegibilidade, atribuindo viés de seleção. No entanto, como pontos positivos, foi realizada análise ajustada por outros fatores sociais e econômicos e incluído um fator de interação com a renda, visando a redução de vieses.

Outra limitação se refere ao próprio instrumento de coleta de dados da POF. Os benefícios Cartão Alimentação e Cesta de Alimentos estão incluídos no módulo referente a outros rendimentos da família, ou seja, outra fonte de recursos monetários disponível para a família além da renda do trabalho. Nessa seção, está contemplado um conjunto de variáveis que se referem a benefícios governamentais, incluindo as variáveis nomeadas como Cartão Alimentação e Cesta de Alimentos. Porém, não há especificação sobre o setor ou o nível de governo que oferta o benefício, dessa forma, não podemos afirmar que o Cartão Alimentação é iniciativa do Programa Nacional de Alimentação do Trabalhador ou um benefício trabalhista de iniciativa privada, bem como se o Cesta de Alimentos é de fato uma iniciativa governamental ou não. Apesar disso, com base nos resultados, podemos afirmar que o recebimento de recursos adicionais na família, para o qual sugere-se a utilização com compra de alimentos, é uma iniciativa que contribui para melhorar o acesso a alimentos.

Em conclusão, esta pesquisa corrobora a permanência elevada de IA na população da região Nordeste do Brasil, assim como a maior vulnerabilidade à fome na região rural. Programas relacionados à transferência de renda e ao acesso a renda estável por meio da aposentadoria contribuíram para o enfrentamento da IA no Brasil, especialmente em regiões de vulnerabilidade. Esses resultados colocam mais uma vez em evidência a necessidade de iniciativas de transferência de renda como estratégia para enfrentamento da IA e reforçam a urgência da manutenção e ampliação de programas de acesso a alimentos e transferência de renda como estratégia para redução da insegurança alimentar.

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  • Financiamento

    Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Auxílio à Pesquisa - APQ 1 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jul 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2021
  • Aceito
    16 Fev 2022
  • Publicado
    18 Fev 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br