A pandemia da Sars-CoV-2, também conhecida como COVID-19, iniciada nos primeiros meses do ano de 2020, desvelou não somente a fragilidade dos sistemas de saúde ao redor do mundo, mas também desnudou as já conhecidas desigualdades sociais que assolam grande parte da população brasileira e, ainda, boa parcela da população mundial11 Minayo MCS, Freire NP. Pandemia exacerba desigualdades na Saúde. Cien Saude Colet 2020; 25(9):3555-3556.,22 Santos JAF. Covid-19, causas fundamentais, classe social e território. Trab Educ Saude 2020; 18(3):e0028011..
As Ciências Humanas e Sociais debruçam-se para compreenderem a pandemia para além das ciências médicas tradicionais. Para além dos números, busca-se esclarecer a natureza e a dinâmica do processo da pandemia ao nível global33 Carrara S. As ciências humanas e sociais entre múltiplas epidemias. Physis 2020; 30(2):e300201.. A pandemia da COVID-19 apresenta-se enquanto expressão de um movimento maior, a partir do qual pode-se apreender particularidades que permitem, sob o prisma do materialismo histórico, tecer correlações com a universalidade social vigente44 Souza DO. A pandemia de COVID-19 para além das Ciências da Saúde: reflexões sobre sua determinação social. Cien Saude Colet 2020; 25(Supl. 1):2469-2477..
Hoje a COVID-19 é uma doença em escala global, mas isso não a torna um fenômeno universal para todos aqueles que a vivenciam. As Ciências Sociais e Humanas em Saúde, em especial, tecem elucidações sobre a magnitude do processo saúde-doença, sendo imprescindível para se pensar, de forma situada, os efeitos da pandemia no contexto social, levando em consideração os pressupostos da Saúde Coletiva55 Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A importância das Ciências Humanas na pesquisa e combate às pandemias [Internet]. 2020 [acessado 2020 dez 20]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/a-importancia-das-ciencias-humanas-na-pesquisa-e-combate-as-pandemias.
https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/a... .
O livro A cruel pedagogia do vírus foi lançado em abril de 2020, pela editora Boitempo, escrito por Boaventura de Sousa Santos, Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em Portugal. Nele, o autor debate os impactos da pandemia evidenciando, sobretudo, a ineficiência do sistema econômico e financeiro vigente, somada à fragilidade do Estado em respostas às diversas desigualdades sociais que se acentuam em momentos de crise.
Uma particularidade desse livro é a possibilidade de ser lido de modo não linear ou em sequência, possibilitando inúmeras entradas e até sua leitura por capítulos. Assim, é possível ler o capítulo final e, sem problemas, voltar a um capítulo anterior. Para fins didáticos, a obra está organizada em cinco capítulos.
No capítulo inicial, “Vírus: tudo o que é sólido desmancha no ar”, o debate existente nas Ciências Sociais sobre o conhecimento e a qualidade das instituições, em momentos de crise, é discutido frente ao ordenamento neoliberal, mas se analisado também sob a ótica da Saúde Coletiva, a mercantilização da saúde e o período de austeridade das políticas públicas, vivenciados nos últimos anos antes da pandemia, revelam que a falta de investimento em áreas prioritárias, como a saúde e a educação, tem refletido na gestão e no combate ao vírus.
Dadas as condições de anormalidade, como a pandemia da COVID-19, novos conhecimentos são produzidos e começam a circundar as instituições da sociedade. Esses conhecimentos não seriam facilmente observados em períodos de “normalidade” e, consequentemente, não seriam também perceptíveis nos grupos sociais afetados.
A situação de crise, vivenciada durante a pandemia, claramente não é contraposta a uma situação de normalidade. Nos últimos 40 anos, à medida que o neoliberalismo se expandia, e continua em expansão, como uma versão dominante do capitalismo, o mundo tem vivenciado um permanente estado de crise. Deste modo, a pandemia veio apenas agravar a situação de conflito que a população mundial tem estado à mercê. Outro ponto importante é a constatação que em muitos países os serviços públicos de saúde, e até mesmo os privados, estavam bem mais preparados dez ou vinte anos atrás, e que possivelmente teriam uma resposta mais profícua para o enfrentamento da pandemia, comparado às ações atuais que têm sido realizadas globalmente.
No capítulo dois, “A trágica transparência do vírus”, os debates culturais, políticos e ideológicos estão distantes e com um alto grau de opacidade em relação ao cotidiano da vida dos cidadãos. A pandemia é apresentada como uma alegoria. Para James Clifford66 Clifford J. Sobre a alegoria etnográfica. In: Gonçalves JRS, organizador. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; 2011. p. 63-99., uma alegoria opera simultaneamente como descrição de eventos e como meio de realizar afirmações culturais ou até mesmo ideológicas. O vírus, definido como infinitamente pequeno no livro, não pode ser maior que outro ser invisível nomeado como todo-poderoso e disforme que, mesmo ubiquamente controla tudo e todos, os mercados, e que, apesar de existirem de forma onipresente no modelo capitalista no decorrer dos últimos anos, têm papel fundamental nas tomadas de decisão sobre o bem-estar comum da população.
Diante da velocidade na qual os eventos acontecem, o ser humano e toda a vida não humana, interdependentes, são iminentemente frágeis, sendo alvos constantes dos mercados capitalistas onipresentes. Desde o século XVII, o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado são os principais modos de dominação na sociedade. Para o capitalismo todos os seres humanos são iguais, mas como existem diferenças naturais entre os seres humanos, a igualdade entre inferiores não pode coincidir com a igualdade entre os superiores, como afirmam o colonialismo e o patriarcado. Estes modos de dominação presentes na sociedade são importantes para compreendermos a ascensão social para alguns em detrimento de muitos. A gravidade da pandemia da Sars-CoV-2 não se sobrepõe aos efeitos deletérios do capitalismo, desvelando, assim, desigualdades e fragilidades que são intrínsecos a um sistema econômico neoliberal.
No capítulo três, “A Sul da quarentena”, o “Sul” não é designado como um espaço geográfico, mas como um espaço-tempo político, social e cultural, sendo uma metáfora da aflição humana, injusta, causada pela vigorosa exploração capitalista, pela discriminação racial e pela discriminação sexual. O processo de encontrar-se em qualquer quarentena é sempre um processo discriminatório e segue uma linha verticalizada dentro das sociedades contemporâneas, mas para alguns grupos sociais específicos, torna-se ainda mais difícil. Historicamente, esses grupos sociais são marginalizados e o processo de quarentena só propiciou a reafirmação desses locais e a manutenção desses mesmos locais pelo sistema capitalista imposto na atualidade.
Grupos sociais como as mulheres, a comunidade LGBTQIAP+, os trabalhadores precários, os informais, definidos como autônomos, os trabalhadores de rua, as populações em situação de rua, os moradores das periferias das grandes cidades, os internados em campos para refugiados, os imigrantes internacionais sem documentos, as populações deslocadas internamente, as pessoas com deficiência e os idosos vivenciam a invisibilidade que a pandemia foi formando na medida em que o números de casos alastrava-se no mundo, ou seja, esses grupos sociais já vivenciavam condições de vulnerabilidade muito antes da pandemia.
Fica perceptível o abismo da desigualdade social, política e econômica existente entre estes grupos e os grupos socialmente privilegiados. A quarentena não só torna mais visíveis estas desigualdades, como reforça a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento desses grupos. Assimetricamente, na sociologia das ausências, tornam-se mais invisíveis em face do pânico vivido, que se apodera daqueles que não estão habituados ao sofrimento.
No quarto capítulo, “A intensa pedagogia do vírus: as primeiras lições”, na tentativa de produzir reflexões e respostas são apresentadas seis lições apreendidas no antes, no durante e, sobretudo, no que vem a ser o pós-pandemia e os seus profundos reflexos sociológicos no mundo contemporâneo em que vivemos. Lição 1: o tempo político e midiático condiciona o modo como a sociedade contemporânea apercebe-se dos riscos que corre; lição 2: as pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga; lição 3: enquanto modelo social, o capitalismo não tem futuro; lição 4: a extrema direita e a direita hiperneoliberal ficam definitivamente descritas (espera-se); lição 5: o colonialismo e o patriarcado estão vivos e reforçam-se nos momentos de crise aguda; lição 6: o regresso do Estado e da comunidade.
No quinto e último capítulo, “O futuro pode começar hoje”, a pandemia e a quarentena estão revelando que algumas alternativas são possíveis para que as sociedades possam adaptar-se aos novos modos de viver, quando se torna necessário e é sentido como correspondendo ao bem comum das sociedades. No entanto, o regresso à “normalidade” não será igual para todos. Como já discutido, a pandemia desvelou o enorme abismo das desigualdades sociais que existe na sociedade. Estar no mesmo mar não significa que todos estão no mesmo barco11 Minayo MCS, Freire NP. Pandemia exacerba desigualdades na Saúde. Cien Saude Colet 2020; 25(9):3555-3556..
Dessa forma, a retomada à “normalidade”, tão almejada pelos políticos neoliberais e de extrema direita, na atualidade, será dificultada, tendo em vista que a pobreza e a extrema pobreza aumentarão. A única alternativa possível é o movimento de uma nova articulação, que pressuponha uma virada epistemológica, cultural e ideológica que sustente as soluções políticas, econômicas, sociais e garanta a continuidade da vida humana no planeta.
Nos últimos anos, estamos vivendo em quarentena; uma quarentena política, cultural e ideológica de um capitalismo fechado sobre si próprio e das discriminações raciais e sexuais. Estamos vivenciando uma quarentena dentro de uma outra quarentena. Estaremos mais livres de quarentenas provocadas por pandemias quando conseguirmos vencer a pandemia do capitalismo, através da capacidade de idealizarmos o planeta como a nossa casa comum.
Os dados e números gerados durante a pandemia podem ser universais, mas os fenômenos e experiências que eles descrevem não são. A internacionalização da ciência e da saúde, a partir do fim do século XIX até a sua aposta na transnacionalização por meio da Saúde Global, acostumou-nos com o cruzamento e com a atenuação das fronteiras e escalas.
No campo da Saúde Coletiva, é valido refletir sobre a existência de estruturas objetivas no mundo social, que podem dirigir ou coagir as ações e as representações dos seus agentes, definidos, aqui, como a pandemia da COVID-19 e a sua inter-relação social no mundo contemporâneo. Entretanto, os agentes podem transformar ou conservar tais estruturas ou ao menos desejar mudanças. O fato é que tais estruturas são construídas socialmente; os agentes incorporam a estrutura social ao mesmo tempo em que a produzem, legitimam e reproduzem77 Bourdieu P. O poder simbólico. 15ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil; 2011..
Referências
- 1Minayo MCS, Freire NP. Pandemia exacerba desigualdades na Saúde. Cien Saude Colet 2020; 25(9):3555-3556.
- 2Santos JAF. Covid-19, causas fundamentais, classe social e território. Trab Educ Saude 2020; 18(3):e0028011.
- 3Carrara S. As ciências humanas e sociais entre múltiplas epidemias. Physis 2020; 30(2):e300201.
- 4Souza DO. A pandemia de COVID-19 para além das Ciências da Saúde: reflexões sobre sua determinação social. Cien Saude Colet 2020; 25(Supl. 1):2469-2477.
- 5Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A importância das Ciências Humanas na pesquisa e combate às pandemias [Internet]. 2020 [acessado 2020 dez 20]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/a-importancia-das-ciencias-humanas-na-pesquisa-e-combate-as-pandemias
» https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/a-importancia-das-ciencias-humanas-na-pesquisa-e-combate-as-pandemias - 6Clifford J. Sobre a alegoria etnográfica. In: Gonçalves JRS, organizador. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; 2011. p. 63-99.
- 7Bourdieu P. O poder simbólico. 15ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil; 2011.
Financiamento
Chamada MCTIC/CNPq/FNDCT/MS/SCTIE/Decit Nº 07/2020 - Pesquisas para enfrentamento da COVID-19, suas consequências e outras síndromes respiratórias agudas graves. Projeto intitulado: “Avaliação da operacionalização da Prevenção e Controle da Doença do Coronavírus pelos aspectos comportamentais no uso dos Equipamentos de Proteção Individual - enfoque nos profissionais de saúde”. Processo número 402325/2020-6.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Jun 2022 - Data do Fascículo
Jul 2022