Práticas de promoção da saúde como resistência e contraconduta à governamentalidade neoliberal

Fernanda Carlise Mattioni Roberta de Pinho Silveira Camilo Darsie de Souza Cristianne Maria Famer Rocha Sobre os autores

Resumo

Esse artigo tem como objetivo analisar as práticas de Promoção da Saúde (PS), realizadas na Atenção Primária em Saúde (APS), capazes de se constituírem como ações de resistência e contraconduta à governamentalidade neoliberal. Realizamos uma pesquisa de campo, descritiva e exploratória, de abordagem qualitativa, no contexto da APS de um município do sul do Brasil. Foram entrevistados 23 trabalhadores. Os resultados apontam possibilidades a serem exploradas para potencializar a PS na APS: o fortalecimento das atividades formativas no âmbito das unidades de saúde; a problematização dos Determinantes Sociais da Saúde; os métodos de fomento à participação; a coletivização das demandas em saúde; a valorização e reforço das conquistas e das ações coletivas; o resgate da cultura e de hábitos comunitários locais; e, o advocacy pela PS na APS.

Palavras-chave:
Promoção da Saúde; Atenção Primária em Saúde; Políticas de Saúde

Introdução

A racionalidade neoliberal contemporânea se constitui como algo que vai além de uma teoria econômica. Seus pressupostos e mecanismos de funcionamento se alastraram por todos os domínios da vida, de modo que a lógica empresarial, em que se destaca a hipervalorização de sujeitos capazes de atingirem o máximo desempenho, por meio de processos de autogestão, além de se sobressair cada vez mais no âmbito das relações de trabalho, alcança as relações pessoais, sanitárias, estéticas, educacionais, entre outras11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016..

O modus operandi do capitalismo atual, cujas bases se desenvolveram ao longo de todo o século XX - e se sedimentaram nas duas primeiras décadas século XXI - utiliza tecnologias que subjetivam sujeitos por meio de recursos que modulam seus desejos e vontades. Deste modo, as pessoas não precisam ser coagidas a produzirem em maior escala ou a assumirem determinados modos de vida considerados mais adequados. O processo de subjetivação inscrito na racionalidade neoliberal tem como efeito sujeitos que encontram satisfação e prazer em sucessos alcançados por meio de altos índices de desempenho11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016..

Desde o século XV, foram desenvolvidas medidas que possibilitaram o desenvolvimento do capitalismo. A partir do século XVIII, o método empregado para balizar comportamentos deixou de ser algo individualizado - operado por meio de tecnologias disciplinadoras - e passou a se constituir por investidas sobre o conjunto da população, por meio de um emaranhado de dispositivos, inclusive disciplinares, que engendram subjetividades alinhadas aos interesses da mais valia da máquina capitalista, sem a necessidade do uso de práticas violentas.

Essa complexa trama, que buscou racionalizar os problemas e organizar a vida da população, foi chamada por Michel Foucault de biopolítica. E do encontro - ou funcionamento articulado - das técnicas de condução de condutas (exercidas sobre os outros) e as técnicas de si mesmo, chamou de governamentalidade22 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2008..

O sistema capitalista, atualmente, no mundo ocidental e no Brasil, está organizado por uma governamentalidade neoliberal, cujo funcionamento contempla mecanismos de subjetivação que enaltecem o desempenho individual e responsabilizam o sujeito pela obtenção de sucesso nos diferentes âmbitos da vida11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016..

O campo da saúde não permaneceu imune às investidas dessa racionalidade. Desde a constituição do conceito contemporâneo de Promoção da Saúde (PS), estiveram em disputa diferentes racionalidades que podem ser identificadas nos documentos técnico-legais que se referem ao tema e nas práticas realizadas em diferentes cenários. Assim, a PS pode ser caracterizada, ao menos, por duas vertentes na atualidade. Uma que emerge de abordagens comportamentais, voltadas unicamente para a mudança de hábitos e adoção de estilos de vida considerados saudáveis e outra que contempla práticas intersetoriais direcionadas à transformação dos Determinantes Sociais de Saúde (DSS)33 Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Promoção da saúde e qualidade de vida: uma perspectiva histórica ao longo dos últimos 40 anos (1980-2020). Cien Saude Colet 2020; 25(12):4723-4735..

Apesar dos princípios da PS contemplarem ações que visam resistir aos preceitos totalizantes, a literatura44 Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Bittencourt LSB, Rocha CMF. Health Promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. American Journal Health Promotion 2021; 35(6):845-852. aponta que muitas práticas de PS se inscrevem majoritariamente na racionalidade da governamentalidade neoliberal. Ou seja, as abordagens visam a mudança de hábitos e comportamentos individuais, a partir da compreensão de que os sujeitos são capazes de se responsabilizarem por suas condições de saúde e, deste modo, apresentarem bons - ou os tão almejados “melhores” - resultados ligados aos seus desempenhos e escolhas.

No entanto, assim como temos práticas que sustentam o status quo, é possível identificar outras que operam na lógica das resistências (caracterizadas pelo tensionamento e pela transformação das práticas governamentalizadoras) e das contracondutas (condutas diferentes daquelas inscritas na governamentalidade)22 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2008..

Nesse sentido, o objetivo desse texto é a analisar de práticas de Promoção da Saúde (PS), desenvolvidas no âmbito da Atenção Primária em Saúde (APS), capazes de se constituírem como ações de resistência e contraconduta às práticas inscritas na governamentalidade neoliberal.

Métodos

Realizamos pesquisa de campo, descritiva e exploratória, de abordagem qualitativa e inspiração genealógica, no contexto da APS, em Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul que possui, atualmente, 1,4 milhão de habitantes (IBGE, 2020)55 Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE). Dados sociodemográficos [Internet]. [acessado 2021 jan 25]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/.
https://www.ibge.gov.br...
. A pesquisa foi desenvolvida nas Unidades de Saúde (US) do Serviço de Saúde Comunitária (SSC) do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), uma das maiores instituições hospitalares do Brasil, cujo acionista majoritário é o Ministério da Saúde.

A escolha do SSC/GHC se deve ao fato de ser um espaço privilegiado para a realização de práticas de PS, conforme orientam a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)6 e a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS)77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.426, de 11 de novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União 2014; 11 nov.. Além disso, por ser um serviço de referência na cidade, no Estado e no país, e ter financiamento próprio, independente da gestão municipal, não vem sofrendo, em demasia, as consequências do desmantelamento e do desfinanciamento decorrentes da revisão das diretrizes fundantes da APS, ocorrida em 2017, que enfraquece os princípios de inclusão e equidade, especialmente pelas dúvidas geradas em relação aos limites de gestores e à cobertura dos territórios de atendimento88 Fausto MCR, Rizzoto MLF, Giovanella L, Seidl H, Bousquat A, Almeida PF, Tomasi E. O futuro da Atenção Primária à Saúde no Brasil. Saude Debate 2018; 42(n. esp. 1):12-14.. Outro aspecto a considerar é que, por pertencer a uma mesma estrutura organizacional (GHC), tem características semelhantes, no que se refere à composição das equipes e à organização do processo de trabalho.

O SSC/GHC é a referência para a população da Zona Norte do município (cerca de 100 mil habitantes) e é composto, atualmente, por doze Unidades de Saúde (US), 39 equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF), quatro Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), uma equipe de Consultório na Rua, três Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), sendo um CAPS Infantil (CAPSi), um CAPS Álcool e Drogas III (CAPS AD III) e um CAPS destinado a cuidados de usuários, adultos, portadores de transtornos mentais graves (CAPS II).

Os dados da pesquisa foram produzidos através de entrevistas semiestruturadas com trabalhadores das doze US, que correspondem à totalidade das equipes de ESF e dos NASFs. Os núcleos profissionais dos participantes (e o respectivo número de participantes) foram: Serviço Social (6), Enfermagem (5), Psicologia (4), Agente Comunitário de Saúde (ACS) (3), Medicina (2), Odontologia (2), Nutrição (1), totalizando 23 participantes.

A produção dos dados ocorreu, por meio de entrevistas gravadas e transcritas, no período de fevereiro a maio de 2020. A escolha dos participantes se deu pelo método “bola de neve”, ou seja, primeiro foram contatados informantes-chaves, nomeados como sementes99 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Tematicas 2014; 44(23) 203-220., e, a partir desses, foram indicados outros participantes que estivessem diretamente envolvidos com as práticas de PS no SSC/GHC.

A problematização dos dados foi realizada através de técnicas inspiradas na pesquisa genealógica, que traz visibilidade para as tensões, disputas, discursos, práticas e relações de poder. A genealogia é o estudo das formas de poder: “[…] na sua multiplicidade, nas suas diferenças, na sua especificidade, na sua reversibilidade: estudá-las, portanto, como relações de força que se entrecruzam, que remetem umas às outras, convergem ou, ao contrário se opõem [...]”1010 Foucault M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1997.(p.71). A tarefa do genealogista consiste em analisar os possíveis efeitos dos discursos e das práticas, a fim de encontrar as condições de possibilidade das quais emergiram as formações discursivas, bem como os poderes que estão em jogo nesse processo1111 Deleuze G. Conversações. São Paulo: 34; 2005..

Assim, para alcançar o objetivo pretendido, adotamos os seguintes passos analíticos: leitura das entrevistas transcritas e dos principais documentos técnico-legais referentes à APS55 Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE). Dados sociodemográficos [Internet]. [acessado 2021 jan 25]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/.
https://www.ibge.gov.br...
,1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 648, de 28 de março de 2006. Institui a Política Nacional da Atenção Básica. Diário Oficial da União 2006; 28 mar.,1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Redefine a Política Nacional da Atenção Básica. Diário Oficial da União 2011; 21 out. e à Promoção da Saúde no Brasil66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Redefine a Política Nacional da Atenção Básica. Diário Oficial da União 2017; 21 set.,1414 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 687, de 30 de março de 2006. Institui a Política Nacional de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União 2006; 30 mar.. A partir de análises sustentadas pelo referencial teórico de Michel Foucault, de autores contemporâneos que atualizam suas teorizações e de referenciais da Saúde Coletiva, da PS e da APS, descrevemos as ações que articulam potencialidades para emergência de resistências e contracondutas, diante da racionalidade neoliberal.

Durante toda a pesquisa foram observados os procedimentos éticos exigidos para estudos com seres humanos no Brasil1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de Saúde (CNS). Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial da União 2013; 13 dez.. Para preservar o anonimato dos participantes da pesquisa, eles foram identificados com codinomes - por eles escolhidos - que remetem a expressões artísticas. A realização da pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Grupo Hospitalar Conceição, de acordo com os números de protocolo CAAE 16078319.7.0000.5347 e CAAE 16078319.7.3001.5530, respectivamente.

Resultados

Os relatos dos participantes da pesquisa apontam possibilidades a serem exploradas como caminhos para potencializar a PS na APS. São eles: 1) o fortalecimento das atividades formativas no âmbito do serviço de saúde; 2) a problematização dos DSS e os métodos de fomento à participação; 3) a coletivização das demandas em saúde; 4) a valorização e reforço das conquistas e das ações coletivas; 5) o resgate da cultura e de hábitos comunitários locais; e, 6) o advocacy.

A oferta das atividades formativas, que caracteriza o SSC/GHC como “serviço-escola”, se apresenta como potencialidade para a PS, pois se trata de um campo para a Residência em Medicina de Família e Comunidade, a Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade, os estágios de graduação e os cursos técnicos da área da saúde. De acordo com os relatos a seguir, a proximidade com o ensino em saúde estimula a criação de novas práticas e fortalece a continuidade das práticas existentes:

A realização de um projeto de extensão da Universidade foi fundamental para a criação e continuidade da oficina de Escrita Criativa. (Criatividade)

A Residência em Saúde, tanto da Medicina quanto a Multiprofissional, contribuem muito para a realização das práticas de Promoção da Saúde. (Pérola)

Percebemos a importância de práticas de formação que favoreçam o aprendizado em serviço, pois, ao mesmo tempo, os estudantes e residentes desenvolvem habilidades para trabalhar no SUS e os serviços se qualificam por meio do constante processo reflexivo proposto às equipes no percurso pedagógico dos cursos para os quais são campo de formação1616 Silva LB. Residência Multiprofissional em Saúde no Brasil: alguns aspectos da trajetória histórica. Rev Katalysis 2018; 21(1):200-209..

Considerando projetos relacionados ao aprendizado em serviço, entendemos que a realização de estratégias pedagógicas nos cenários de prática aproxima docentes, estudantes, usuários e profissionais. Assim, ocorrem movimentos de formação e de reflexão acerca de práticas profissionais que se aliam às políticas públicas de saúde1717 Pizzinato A, Gustavo AS, Santos BRL, Ojeda BS, Ferreira E, Thiesen FV, Creutzberg M, Altamirano M, Paniz O, Corbellini VL. A integração ensino-serviço como estratégia na formação profissional para o SUS. Rev Bras Educ Med 2012; 36(1 Supl. 2):170-177..

Outra potencialidade se refere à construção de espaços para a problematização das condições que interferem na saúde das pessoas - os Determinantes Sociais de Saúde - com a utilização de linguagem e métodos acessíveis aos participantes, resgatando características que se perderam ao longo dos anos:

Tornar o Conselho de Saúde um espaço de ampliação da consciência, para as pessoas entenderem que uma Emenda Constitucional, que congela os investimentos em Saúde e Educação, vai se materializar na perda de direitos para elas, de coisas palpáveis nas suas vidas. Que isso pode precarizar ainda mais o seu atendimento de saúde. […] Um nó crítico é a questão de como comunicamos, traduzimos para a comunidade, para as pessoas que estão passando fome e sem trabalho. (Capoeira)

A utilização de metodologias capazes de subverter processos individualizantes, predominantes na sociedade atual, parece ser um dos maiores desafios para a PS. Uma forma de aproximação da comunidade, potente para estimular processos reflexivos, é apontada a seguir:

A arte pode ser um recurso potente para mobilizar as pessoas para a participação. É uma forma de traduzir as questões para as pessoas, utilizando a sua linguagem. (Capoeira)

Assim, estimular processos criativos e reflexivos, junto às comunidades, utilizando dinâmicas capazes de envolver e estimular a participação pode ser uma prática transformadora. A crítica convida as pessoas à problematização de suas condições, bem como de suas condutas em relação às questões que dizem respeito à PS. Tais posturas se opõem à vertente neoliberal, colocando em movimento contracondutas à produção de padrões de comportamento que se dá por meio de regras, normas e parâmetros já determinados por governos e corpo técnico da saúde.

No entanto, ressalta-se que o exercício reflexivo da crítica, na perspectiva de Foucault1818 Foucault M. Ditos e escritos II: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2008., não prevê um processo capaz de gerar a transcendência ou uma emancipação definitiva dos sujeitos. Pelo contrário, significa manter uma atitude reflexiva e crítica constante, referente aos processos individuais e coletivos da vida1818 Foucault M. Ditos e escritos II: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2008.. As problematizações podem ser definidas como “o conjunto das práticas discursivas ou não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento1919 Foucault M. Ditos e Escritos V: Ética, sexualidade, política. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2014.(p.236).

Nessa perspectiva, o ato de problematizar não deve ser encarado como uma metodologia, mas como um modo de agir diante do objeto que está posto em questão, para promover um trabalho do pensamento. Significa, ainda, compreender que verdades são construções e só existem por meio da criação de discursos que estabelecem uma relação com o que é considerado verdadeiro (ou falso) em dado momento histórico2020 Traversini CS, Milani J, Steffen KF. Potências e desafios da relação entre cegueira epistemológica e problematização para a pesquisa com a escola. Educ Cult Contemp 2018; 39:196-214.. Assim, a problematização, no sentido abordado, pressupõe a manutenção de atitudes reflexivas e de uma crítica constante referente aos processos individuais e coletivos1818 Foucault M. Ditos e escritos II: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2008.,2121 Veiga-Neto A. Foucault e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica: 2003..

O caráter permanente da problematização proposta por Foucault1818 Foucault M. Ditos e escritos II: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2008. pode ser uma atitude mais eficiente no enfrentamento das práticas contrárias ao contexto coletivo. Na medida em que o processo reflexivo se mantém, há mais chances de serem observadas as investidas do poder hegemônico e de se adotar posturas de resistência e contraconduta diante dele. Ou seja, constituir forças capazes de resistirem à conduta prescrita por meio de uma prática de governamentalidade, ou ainda, adotar uma conduta diferente da esperada (contraconduta) pela prática de governamentalidade55 Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE). Dados sociodemográficos [Internet]. [acessado 2021 jan 25]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/.
https://www.ibge.gov.br...
.

Outro aspecto que aponta para as práticas de PS como possibilidade de luta coletiva e transformação dos sujeitos foi destacado por um participante:

Sempre que se consegue promover o encontro entre as pessoas, a atividade impacta na vida delas, porque alguma experiência ela leva. Mesmo que uma dúvida ou uma experiência seja manifestada individualmente, quando ela é coletivizada, algo diferente pode ser produzido, porque o problema deixa de ser individual. O encontro proporciona a produção de afetos e também de identidades. A aproximação entre os vizinhos, o reconhecimento de fragilidades em comum e a possibilidade de buscar soluções coletivas. (Vibração)

A coletivização das demandas individuais, por meio dos espaços de encontro e problematização, parece ser o efeito mais próximo a uma abordagem da PS voltada aos DSS, na APS. A racionalidade neoliberal contemporânea possui um alcance que ultrapassa os limites do funcionamento econômico do sistema capitalista. A lógica da responsabilização individual, dos sujeitos como empresários de si mesmos, capazes de fazerem a gestão de suas próprias vidas e a competição em todos os níveis de convivência se espraiou para todas as dimensões sociais e permeia as relações estabelecidas em todos os âmbitos11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.,2222 Chamayou G. A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário. São Paulo: Ubu; 2020..

No campo técnico-político da PS, a racionalidade neoliberal também ocupou espaços, na medida em que, sob a influência de organismos financeiros internacionais, incorporou práticas de saúde voltadas à responsabilização e culpabilização dos indivíduos, reforçando a ideia do gerenciamento individual de riscos e a fragilizando ações voltadas aos DSS.

Diante desse cenário, práticas de PS são capazes de resgatar o caráter coletivo das demandas em saúde, bem como a necessidade de corresponsabilização no enfrentamento dos fatores que causam os problemas de saúde. Além disso, podem frisar o papel do Estado como provedor de políticas públicas, representando pontos de resistência em um campo no qual são operados discursos que subjetivam na direção de fazer-se acreditar que a responsabilidade pelo cuidado da saúde é individual.

Assim, a coletivização das demandas tem potência para construir outros modos de produzir saúde no contexto da APS, de maneira abrangente, na qual os sujeitos passam a entender a saúde como produto dos DSS e a considerar que a responsabilidade pela mudança das condições de vida não é individual, já que envolve o protagonismo do Estado e da sociedade, como dimensões articuladas.

Frente à individualização das responsabilidades pela saúde, a valorização e o reforço das conquistas públicas, fruto das ações coletivas, também pode se constituir como um caminho para aproximar a PS de estratégias que alcancem mudanças nos índices relacionados aos DSS. As comunidades cujas US fizeram parte da pesquisa possuem um histórico de lutas coletivas para garantia de recursos locais:

Todos os recursos que existem na comunidade foram conquistas da organização comunitária. O posto de saúde, o galpão de reciclagem, a escola infantil. Então, acho que é potente resgatar essa história para trabalhar esse senso de luta comunitária com as pessoas. (Capoeira)

Ressaltar a potência da organização coletiva, reativando a memória de transformações consideradas positivas no contexto da comunidade, pode ser um caminho alternativo às práticas individualizantes. Além disso, aparece como estratégia de PS o resgate de hábitos e da cultura local. Diante da homogeneização proposta pela governamentalidade neoliberal, que busca moldar os modos de viver11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.,2323 Foucault M. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes; 2008. e que também ocupa posição hegemônica nas práticas de PS, o fortalecimento de hábitos locais pode representar uma ação de resistência e contraconduta frente a práticas medicalizantes, individualizantes e de consumo:

O resgate da cultura da comunidade, de suas raízes, pode ser potente para a Promoção da Saúde. A comunidade em que eu atuo foi reassentada. Eles foram retirados de um lugar em que existia um espaço amplo, onde existiam hortas, plantavam árvores, tinham pátio. No reassentamento, não tem esse espaço. Tem muito concreto, é muito árido. Então tentamos fazer esses mutirões de plantio de árvores para tentar resgatar essa característica da comunidade e para deixar o espaço menos árido. (Capoeira)

O ato de privilegiar a cultura local e garantir espaços para os saberes populares está previsto na Política Nacional de Educação Popular em Saúde quando propõe práticas político-pedagógicas para orientar as ações voltadas para a “[...] promoção, proteção e recuperação da saúde, a partir do diálogo entre a diversidade de saberes, valorizando os saberes populares, a ancestralidade, o incentivo à produção individual e coletiva de conhecimentos [...]”2424 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde. Diário Oficial da União 2013; 19 nov.(p.16).

O resgate de práticas ancestrais e tradicionais pode se constituir como resistência à homogeneização dos modos de viver propostos pela governamentalidade neoliberal. Estudo sobre práticas educativas na APS ratifica esse argumento, demonstrando que as práticas de saúde, capazes de resgatar a cultura ancestral da comunidade, reforçam o seu protagonismo coletivo2525 Mano MAM. Da casa pra horta, da horta pra rua: processos educativos em práticas sociais em um território de remoção [tese]. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria; 2021..

Por fim, a noção de advocacy pela saúde33 Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Promoção da saúde e qualidade de vida: uma perspectiva histórica ao longo dos últimos 40 anos (1980-2020). Cien Saude Colet 2020; 25(12):4723-4735. pode ser adaptada ao advocacy pela PS no contexto da APS:

Acho que o que faz com que as atividades de controle social nunca tenham parado em nosso território é o perfil da equipe. Muitos profissionais estão engajados no processo e estimulam a população a participar. Conversam sobre a importância de participar. Os ACS, que tem relação direta com a comunidade, se envolvem muito com isso aqui no território. Vai ter uma quebra, uma dificuldade muito grande em relação a isso sem elas. (Teatro)

Tal como o advocacy pela saúde, que busca defender a estruturação de políticas públicas intersetoriais capazes de criar ambientes favoráveis à saúde33 Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Promoção da saúde e qualidade de vida: uma perspectiva histórica ao longo dos últimos 40 anos (1980-2020). Cien Saude Colet 2020; 25(12):4723-4735., o advocacy pela PS é algo que, se protagonizado pelos trabalhadores e usuários, pode ampliar os movimentos das comunidades na defesa de práticas de saúde menos individuais e biomédicas, se constituindo enquanto prática coletiva:

Os profissionais precisariam ter mais conhecimento das possibilidades no âmbito coletivo. A maioria acha que toda atividade coletiva é grupo de convivência e que só o atendimento individual pode ter resultados em um processo terapêutico. (Mosaico)

Para tanto, é necessário que as equipes tenham persistência nos processos iniciados, a fim de que se instituam espaços legítimos de discussão e reflexão junto às comunidades, capazes de serem reconhecido no que se refere à potência de seus resultados junto aos gestores da saúde:

O grupo precisa de persistência. Os profissionais têm que manter o grupo, mesmo que com poucos participantes. Ele precisa acontecer para se instituir e mais pessoas passarem a participar. (Brincar)

A partir dos relatos expostos, é possível identificar que as possibilidades para a ampliação do escopo das práticas PS na APS se inserem em um campo heterogêneo de forças. Neste contexto, certos saberes instituídos (ou racionalidades) podem tensionar as práticas existentes (ou comumente utilizadas) para fortalecer práticas de PS alinhadas à racionalidade neoliberal que, muitas vezes, individualizam e culpabilizam as pessoas e, ao mesmo tempo, desresponsabilizam o Estado de garantir acesso aos serviços de saúde, de forma gratuita, universal, equânime, participativa, tal como preconizado no SUS.

Por outro lado, ainda, outros saberes também podem ser fortalecidos e explorados para que promovam ações de resistência e contraconduta, visando o fortalecimento do SUS como construção permanente e coletiva. Buscamos, aqui, dar visibilidade aos elementos que potencializam práticas que ampliam o escopo da PS na APS, relatadas pelos próprios trabalhadores e que podem ser estratégicas diante de um cenário cada vez mais excludente e precarizado, que é imposto pelo neoliberalismo (e suas práticas de austeridade fiscal) na contemporaneidade.

Discussão

Conforme descrito na introdução, a racionalidade neoliberal contemporânea se reveste de um caráter conservador11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.,2222 Chamayou G. A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário. São Paulo: Ubu; 2020., cujas características se opõem aos princípios de cidadania, “bem comum” ou “bem público”, presentes no contexto das sociedades democráticas de direito11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.: “é o que se vê em especial pelo questionamento prático de direitos até então ligados à cidadania, a começar pelo direito à proteção social, que foi historicamente estabelecido como consequência lógica da democracia política”11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.(p.374). A reforma gerencial da ação pública afeta diretamente a possibilidade da população acessar os recursos sociais no que diz respeito a emprego, saúde e educação, acentuando as desigualdades, reforçando a lógica da exclusão e a produção de “subcidadãos” e “não cidadãos”11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.(p.375).

As investidas, para induzir mudanças no modelo de atenção adotado no contexto da APS brasileira, por meio da PNAB66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Redefine a Política Nacional da Atenção Básica. Diário Oficial da União 2017; 21 set. e da precarização das políticas públicas de saúde, se alinha à lógica que compreende usuários do SUS como empresários de si mesmos. Assim, considera-se e educa-se para que usuários do sistema público de saúde se entendam como os únicos provedores de condições de vida que convergem com a produção de bons índices de saúde. De acordo com esse modelo, espera-se que as pessoas recebam informações sobre suas condições de saúde e sejam responsáveis por fazerem a gestão de suas práticas de cuidado, obtendo os “melhores” resultados possíveis, utilizando-se, inclusive, de mecanismos de automonitoramento2626 Lupton D. Health promotion in the digital era: a critical commentary. Health Promo Int 2014; 30(1):174-183..

Cabe destacar, no entanto, que a expansão desta forma de relação entre usuários e serviços de saúde tende a produzir desfechos que, muitas vezes, são desastrosos (para não dizer pior): a autogestão da saúde, através do automonitoramento, muitas vezes por meio de tecnologias com custo financeiro elevado (dispositivos eletrônicos). Deste modo, ao contrário de gerar as desejadas “melhorias”, a autogestão tende a imprimir a lógica da competitividade (com os outros, mas sobretudo consigo mesmo), na medida em que a vida passa a exigir o controle e o alcance de metas nas atividades mais corriqueiras: contagem de calorias, de passos, de frequência cardíaca, entre tantas medidas possíveis2626 Lupton D. Health promotion in the digital era: a critical commentary. Health Promo Int 2014; 30(1):174-183..

A corrida para atingir metas - impostas pelos próprios sujeitos, sob influência dos parâmetros de saúde estabelecidos e divulgados amplamente nos serviços de saúde e nas mídias digitais - gera processos de autocompetitividade que podem se traduzir em frustração e ansiedade. Afinal, vivemos em tempos de máxima cobrança individual, inclusive em relação à produção e controle da própria de saúde2727 Castiel LD, Xavier C, Moraes DR. A procura de um mundo melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016..

Essa equação, porém, não pode ser equilibrada, caso os DSS não sejam incluídos no processo de construção da saúde. Sabe-se que a abordagem que considera comportamentos individuais como único fator relacionado às condições de saúde não é capaz de produzir cuidados integrais - que alcancem diferentes dimensões da vida -, como preconiza o conceito ampliado de saúde33 Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Promoção da saúde e qualidade de vida: uma perspectiva histórica ao longo dos últimos 40 anos (1980-2020). Cien Saude Colet 2020; 25(12):4723-4735..

A ideia de saúde equilibrada exige condições de dignidade. Moradia, renda, transporte público, boas condições ambientais e garantia de trabalho são apenas alguns elementos necessários para uma vida saudável. Na racionalidade neoliberal, no entanto, a responsabilidade por prover tais condições também é inteiramente delegada aos sujeitos11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.,2222 Chamayou G. A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário. São Paulo: Ubu; 2020.. Realizar orientações relativas à adoção de hábitos saudáveis para quem não possui as condições mais elementares de vida, incorre em práticas de Promoção da Saúde cínicas, em que os serviços de saúde orientam o que deve ser feito, sem considerar as reais condições para a adoção dos comportamentos sugeridos2727 Castiel LD, Xavier C, Moraes DR. A procura de um mundo melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016..

Podemos apontar dois desfechos possíveis como resultado da utilização desta racionalidade no contexto dos serviços de saúde. Nas classes sociais com melhores níveis de renda, parece prevalecer o sofrimento que advém de uma vida baseada na competição consigo mesmo, em todas as esferas da vida (trabalho, saúde, relações sociais e afetivas, entre outros) e suas frustrações correspondentes, quando o máximo desempenho não é atingido. Como resposta a tais adoecimentos, um vasto mercado de psicotrópicos atua em um intenso processo de medicalização das pessoas11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.,2828 Carvalho SR. Nosso "futuro psiquiátrico" e a (bio)política da Saúde Mental: diálogos com Nikolas Rose (Parte 4). Interface (Botucatu) 2020; 24:e190732..

Em relação às populações mais empobrecidas economicamente, os efeitos são ainda piores. Além de viverem em condições de precariedade, com a privação de condições elementares à vida, as pessoas também são subjetivadas pela lógica do empresariamento de si. Assim, arcam com o sofrimento advindo das condições de miserabilidade, ao mesmo tempo em que são subjetivadas na direção de acreditarem que tais condições são causadas por suas próprias condutas e, portanto, entendem que sair de uma situação de miséria, “subcidadania”11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016. ou “não cidadania”11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016. é apenas uma questão de força de vontade ou mérito pessoal2929 Sandel M. A tirania do mérito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2020..

Na atual conjuntura brasileira, em que 23,3 milhões de pessoas (11,2% da população)3030 Fundação Getúlio Vargas. Qual foi o impacto da crise sobre a pobreza e a distribuição de renda? [Internet]. 2021 [acessado 2021 jun 10]. Disponível em: https://cps.fgv.br/Pobreza-Desigualdade.
https://cps.fgv.br/Pobreza-Desigualdade...
vivem abaixo da linha da pobreza e 10% da população concentra 41,9% de toda a renda do país3030 Fundação Getúlio Vargas. Qual foi o impacto da crise sobre a pobreza e a distribuição de renda? [Internet]. 2021 [acessado 2021 jun 10]. Disponível em: https://cps.fgv.br/Pobreza-Desigualdade.
https://cps.fgv.br/Pobreza-Desigualdade...
, além de todos os adoecimentos relacionados às iniquidades sociais, a população que vive em situação de pobreza extrema também sofre com o adoecimento psíquico gerado pela frustração e ansiedade de não conseguir alcançar melhores condições de vida2828 Carvalho SR. Nosso "futuro psiquiátrico" e a (bio)política da Saúde Mental: diálogos com Nikolas Rose (Parte 4). Interface (Botucatu) 2020; 24:e190732..

Ao assumir os atributos da racionalidade neoliberal, a Promoção da Saúde se caracteriza como estratégia biopolítica de controle dos corpos, através da modulação de comportamentos. No entanto, os discursos presentes nas práticas de PS, descritos nos resultados aqui apresentados, podem ser compreendidos como expressões de resistência e contraconduta às práticas inscritas na perspectiva da governamentalidade neoliberal. Em um campo de saber-poder em que predominam práticas que induzem ao individualismo, à culpabilização e à meritocracia, encontramos relatos que escampam dessa vertente, que incitam a resistência e, principalmente, que propõem condutas diferentes das ditadas pela racionalidade prevalente nas sociedades ocidentais.

Fortalecer o caráter formativo (serviço-escola) dos serviços de saúde, problematizar os DSS e os métodos de fomento à participação, coletivizar as demandas em saúde, valorizar e reforçar as conquistas e as ações coletivas, resgatar a cultura e os hábitos comunitários locais e promover o advocacy pela PS na APS são práticas que fortalecem os princípios de cidadania e participação. Ainda que sob grande influência das subjetividades presentes no Movimento Sanitário Brasileiro, cujas bases se sustentam em uma sociedade democrática de direito, tais enunciados podem representar mais do que a reivindicação pelo retorno de um antigo modo de funcionamento social.

Concordamos com aqueles e aquelas11 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.,3131 Brown W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Filosófica Politeia; 2019. que defendem que vivemos em tempos de falência das democracias liberais, de modo que, além de estratégias biopolíticas, que visam a manutenção da vida, em sociedades como a brasileira, os processos de exclusão e desigualdades promovem também a morte de grupos populacionais desprovidos de qualquer proteção social3232 Dall'Alba R, Rocha CF, Silveira RP, Dresch LSC, Vieira LA, Germanò MA. COVID-19 in Brazil: far beyond biopolitics. Lancet 2021; 397(10274):579-580.. Nesse caso, emerge a noção de necropolítica3333 Mbembe A. Necropolítica. 3ª ed. São Paulo: N1-edições; 2018., ou seja, uma política que faz morrer uma parte da população que não é desejável ou que é considerada inútil ao sistema econômico.

Diante desse cenário, visualizamos potencialidades nas manifestações apresentadas no texto, especialmente no sentido da construção de processos de subjetivação que não se inscrevam na racionalidade neoliberal. Por meio da potência do encontro entre usuários do SUS, trabalhadores e estudantes, que favorecem o fortalecimento dos espaços de discussão e problematização, acreditamos ser possível a coprodução de subjetividades que promovam ações de resistência e contraconduta.

Essa perspectiva se alinha à proposta de constituição de uma governamentalidade do “bem comum”, na qual os sujeitos se coproduzem em relações horizontais, dialógicas, respeitosas, solidárias e amorosas. A finalidade não é o desempenho, tampouco a competitividade, mas a produção de sujeitos solidários, cooperativos, interessados no cuidado de si e no cuidado do outro. Pretende-se, com o resgate do “bem comum”, responder a um anseio generalizado por novas formas de vida em que todas as pessoas possam se realizar como seres humanos num mundo sustentável e ecologicamente preservado3434 Dardot P, Laval C. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo; 2017..

Em nível local, a construção desta nova governamentalidade, voltada ao “bem comum”, pressupõe que as práticas realizadas nas comunidades sejam capazes de favorecer o caráter coletivo em lugar do individual. Além disso, devem ser capazes de resgatar a potência que reside no enfrentamento à doença e na busca por soluções coletivas e corresponsáveis. O fortalecimento de tais práticas, em cenários de formação de trabalhadores para o SUS, tende a potencializar a construção de valores coletivos e solidários, que poderão multiplicá-los em seus novos espaços de trabalho.

Reconhecemos, assim, que as práticas de Promoção da Saúde podem ser capazes de ativar resistências e contracondutas diante da lógica da governamentalidade neoliberal. Apenas o efeito de diminuir a responsabilização individual e a culpabilização, inclusive das populações mais desfavorecidas e excluídas, poderá provocar mudanças no cenário atual. A manutenção desse exercício de encontro e produção de subjetividades, como práticas de PS na APS, que almeje uma sociedade mais justa, cooperativa, solidária e sustentável, nos parece, ser o mais relevante, possível e desejável que podemos aspirar.

Considerações finais

A possibilidade da emergência de uma governamentalidade que não esteja inscrita na racionalidade neoliberal parece ser a grande potencializadora dos discursos presentes nas práticas de PS que se colocam como ativadoras de resistências e contracondutas a uma das vertentes da PS, que tem como intenção modular comportamentos, responsabilizar e culpabilizar as pessoas por suas condições de saúde.

Na contramão da história atual, a pesquisa realizada - seguindo o quanto indicado pelos participantes - aponta que as ações de PS podem ser capazes de produzir subjetividades que promovam o caráter coletivo e solidário do fazer em saúde.

Ainda que a pesquisa tenha sido realizada em um cenário muito particular - um serviço de saúde público, totalmente financiado pelo Ministério da Saúde, relativamente bem organizado e histórica e coletivamente construído como uma referência para as estratégias de APS no Brasil (e isto possa representar a maior limitação desse estudo) -, nossa intenção, ao publicizar e problematizar seus resultados, é mostrar alternativas existentes e possíveis a favor da vida, diante do cenário de exclusões e mortes presente em nosso país na atualidade.

Referências

  • 1
    Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a capacidade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.
  • 2
    Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2008.
  • 3
    Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Promoção da saúde e qualidade de vida: uma perspectiva histórica ao longo dos últimos 40 anos (1980-2020). Cien Saude Colet 2020; 25(12):4723-4735.
  • 4
    Mattioni FC, Nakata PT, Dresch LC, Rollo R, Bittencourt LSB, Rocha CMF. Health Promotion practices and Michel Foucault: a scoping review. American Journal Health Promotion 2021; 35(6):845-852.
  • 5
    Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE). Dados sociodemográficos [Internet]. [acessado 2021 jan 25]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/.
    » https://www.ibge.gov.br
  • 6
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Redefine a Política Nacional da Atenção Básica. Diário Oficial da União 2017; 21 set.
  • 7
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.426, de 11 de novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União 2014; 11 nov.
  • 8
    Fausto MCR, Rizzoto MLF, Giovanella L, Seidl H, Bousquat A, Almeida PF, Tomasi E. O futuro da Atenção Primária à Saúde no Brasil. Saude Debate 2018; 42(n. esp. 1):12-14.
  • 9
    Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Tematicas 2014; 44(23) 203-220.
  • 10
    Foucault M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1997.
  • 11
    Deleuze G. Conversações. São Paulo: 34; 2005.
  • 12
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 648, de 28 de março de 2006. Institui a Política Nacional da Atenção Básica. Diário Oficial da União 2006; 28 mar.
  • 13
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Redefine a Política Nacional da Atenção Básica. Diário Oficial da União 2011; 21 out.
  • 14
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 687, de 30 de março de 2006. Institui a Política Nacional de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União 2006; 30 mar.
  • 15
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de Saúde (CNS). Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial da União 2013; 13 dez.
  • 16
    Silva LB. Residência Multiprofissional em Saúde no Brasil: alguns aspectos da trajetória histórica. Rev Katalysis 2018; 21(1):200-209.
  • 17
    Pizzinato A, Gustavo AS, Santos BRL, Ojeda BS, Ferreira E, Thiesen FV, Creutzberg M, Altamirano M, Paniz O, Corbellini VL. A integração ensino-serviço como estratégia na formação profissional para o SUS. Rev Bras Educ Med 2012; 36(1 Supl. 2):170-177.
  • 18
    Foucault M. Ditos e escritos II: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2008.
  • 19
    Foucault M. Ditos e Escritos V: Ética, sexualidade, política. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2014.
  • 20
    Traversini CS, Milani J, Steffen KF. Potências e desafios da relação entre cegueira epistemológica e problematização para a pesquisa com a escola. Educ Cult Contemp 2018; 39:196-214.
  • 21
    Veiga-Neto A. Foucault e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica: 2003.
  • 22
    Chamayou G. A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário. São Paulo: Ubu; 2020.
  • 23
    Foucault M. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes; 2008.
  • 24
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde. Diário Oficial da União 2013; 19 nov.
  • 25
    Mano MAM. Da casa pra horta, da horta pra rua: processos educativos em práticas sociais em um território de remoção [tese]. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria; 2021.
  • 26
    Lupton D. Health promotion in the digital era: a critical commentary. Health Promo Int 2014; 30(1):174-183.
  • 27
    Castiel LD, Xavier C, Moraes DR. A procura de um mundo melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016.
  • 28
    Carvalho SR. Nosso "futuro psiquiátrico" e a (bio)política da Saúde Mental: diálogos com Nikolas Rose (Parte 4). Interface (Botucatu) 2020; 24:e190732.
  • 29
    Sandel M. A tirania do mérito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2020.
  • 30
    Fundação Getúlio Vargas. Qual foi o impacto da crise sobre a pobreza e a distribuição de renda? [Internet]. 2021 [acessado 2021 jun 10]. Disponível em: https://cps.fgv.br/Pobreza-Desigualdade
    » https://cps.fgv.br/Pobreza-Desigualdade
  • 31
    Brown W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Filosófica Politeia; 2019.
  • 32
    Dall'Alba R, Rocha CF, Silveira RP, Dresch LSC, Vieira LA, Germanò MA. COVID-19 in Brazil: far beyond biopolitics. Lancet 2021; 397(10274):579-580.
  • 33
    Mbembe A. Necropolítica. 3ª ed. São Paulo: N1-edições; 2018.
  • 34
    Dardot P, Laval C. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo; 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Set 2021
  • Aceito
    25 Abr 2022
  • Publicado
    27 Abr 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br