A saúde como campo de batalha: doenças e artes de curar no Brasil, 1750-1822

Ricardo Cabral de Freitas André Nogueira Sobre os autores

Resumo

O artigo explora como as doenças eram pensadas e enfrentadas na América portuguesa no início da década de 1820, pouco antes da consolidação da ruptura política com Portugal que tornou o Brasil um país independente. Analisa quem foram os indivíduos chamados para tratar as doenças da população sofredora, seus saberes e terapêuticas. Para tanto, inicia-se com um recuo no tempo, enfatizando as influências das reformas do Império português sobre o saber médico na segunda metade do século XVIII. A primeira parte do artigo se dedica a explorar as complexas e multifacetadas práticas de cura na América portuguesa, resultantes das misturas entre as concepções tradicionais sobre o corpo e a doença que faziam parte das referências culturais da população local. Em seguida, analisa alguns dos embates institucionais e políticos envolvidos na consolidação da medicina científica no Brasil, especialmente após a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Apesar do prestígio político dos médicos acadêmicos, os praticantes das artes da cura contavam com amplo apoio da população, além de encontrarem mobilidade social nas brechas das relações clientelistas que marcavam a cultura política do período.

Palavras-chave:
Terapêuticas tradicionais; História da saúde pública; Brasil

Um dos primeiros e principais desafios para uma tentativa de interpretação das enfermidades e intervenções nos corpos de épocas distintas da nossa é a necessidade de entendermos as diferentes concepções de saúde e doença que norteavam os indivíduos de então, que se traduz na necessidade de historicizarmos tais doenças e suas terapêuticas. Nesse sentido, há considerável literatura que se debruça sobre a problemática dos diagnósticos e descrições das doenças e suas possibilidades de interpretação histórica. Gostaríamos, por ora, de sublinhar nossa aproximação teórico-metodológica com as considerações de autores como, entre outros, Rosenberg11 Rosenberg C. Explanning epidemics and others studies in the history of medicine. Cambridge: Cambridge University Press; 1992. e Cunningham22 Cunninghan A, Willians P. The Laboratory revolution in medicine. Cambridge: University Press; 1992., que consideram, em linhas gerais, a necessidade de percebermos as enfermidades para além de suas “meras” manifestações biológicas, pois são também fenômenos sociais, bem como advertem para os perigos analíticos das, ainda que atraentes, possibilidades de leituras diagnósticas retroativas que, no limite, poderiam beirar o anacronismo. Assim, dito de outro modo, não se pode perder de vista que os olhares sobre as enfermidades são produtos indissociáveis do universo mental de seus autores, daqueles que convivem com elas a partir das mais distintas experiências em um dado contexto temporal.

Um primeiro vetor a ser levado em consideração, valendo-nos também de alguma imaginação histórica, na falta de um termo melhor, seria o desafio e as necessidades de adequações, (res)significações e aprendizados a partir do contato com fauna e flora, clima e quadro nosológico e pessoas bem diferentes daqueles aprendidos nos hospitais, academias e leitos de enfermos no Velho Mundo. Aliás, conforme nos mostrou Buarque de Holanda33 Buarque de Holanda S. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense; 1996., para a temática mais geral da invenção/representação e construção de conceitos e preconceitos acerca das américas, os agentes que participaram das experiências coloniais se confrontaram - e produziram saberes - com diferentes facetas da alteridade, realidade que abarcaria, evidentemente, também as doenças e suas possibilidades de cura. Ou, dito em outras palavras, a especificidade da experiência colonial lusa em seu pedaço da América foi a de colocar em contato e transformar diversas tradições de saberes sobre o corpo e a doença, tanto americanas quanto europeias e africanas.

Como é sabido, para o contexto colonial da América portuguesa e europeu, em âmbito geral, deparamo-nos com a quase onipresença da influência da “teoria humoral” hipocrático-galênica para o enquadramento das diferentes enfermidades. Definindo aqui, em linhas gerais, essa longeva concepção de corpos sãos, doenças e ações terapêuticas, percebia-se o corpo humano como um microcosmo do ponto de vista diagnóstico e das terapias a serem aplicadas. A regulação das três partes principais - fígado, coração e cérebro - depende do equilíbrio entre os quatro humores primários - sangue, cólera (ou bílis amarela), fleuma e melancolia (ou bílis negra, o mais enigmático dos humores). As qualidades desses humores, por sua vez, estruturam-se por pares de oposição (seco/úmido, frio/quente, delgado/grosso, doce/amargo) e suas funções se dariam por simpatia com determinados órgãos.

Ainda de acordo com essa longeva tradição médica, as doenças “físicas e morais” procediam de uma complexa interação entre o desequilíbrio dos humores de um organismo e as influências externas que este sofria, fundamentado na relação entre microcosmo e macrocosmo. Percebe-se uma relação estreita entre as concepções de dieta, hábitos e clima. A noção de clima na tradição hipocrática era bastante ampla, tendo como aspectos primordiais a observação qualitativa da temperatura (não custa lembrar que termômetros só seriam introduzidos muito mais tarde) e dos aspectos topográficos das áreas em que atuavam os médicos. Contudo, ao longo dos séculos, outras tradições intelectuais amalgamaram ao arsenal climatológico de matriz hipocrática a observação dos movimentos de estrelas, cometas e planetas, tipos de vegetação, entre outras variáveis44 Nutton V. Humoralism. In: Bynun WF, Porter R, editors. Companion encyclopedia of the history of medicine. London and New York: Routledge; 1997. p. 281-291.. Aliás, como será discutido adiante, tal relação entre doenças versus ambiente seria atualizada e repaginada no contexto da medicina das Luzes, principalmente por intermédio do movimento conhecido como Neohipocratismo.

Do mesmo modo, a noção de dieta, em sentido hipocrático, configura-se como outro importante elemento de explicação das enfermidades e também aparecia moldando tratamentos para a recuperação dos enfermos. Para além do que era diretamente ingerido (alimentos e bebidas), eram acrescentados os trabalhos e exercícios físicos em âmbito geral (incluídos aí o coito e as moralidades nele envolvidas), os banhos, o repouso e o ócio, entre outros elementos55 Soares C. Espaços do pensamento científico da antiguidade. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; 2013..

Nessa perspectiva, conforme atestam os diferentes textos médicos produzidos durante o período, escritos tanto por médicos com formação nas universidades europeias - destacadamente a de Coimbra - como por cirurgiões e, em menor escala, por boticários, considerados oficiais mecânicos na composição dos saberes e ofícios da medicina oficial, o papel do cosmo e da natureza sobre as variações dos humores humanos, supostamente provocando enfermidades, durante muito tempo foi visto como determinante66 Abreu JLN. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011.,77 Ribeiro MM. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Hucitec; 1997.. Para ficarmos apenas com um desses exemplos, o médico João Ferreira da Rosa88 Rosa, JF. Tratado único da constituição pestilencial de Pernambuco. Lisboa: Oficina de Miguel Menescal; 1694. considerou o ar a causa da peste que grassou no Recife quando corria o ano de 1685. Assim, preferindo aqui suas próprias palavras ao explicar a “peste”: “a qualidade contagiosa dos astros, de eclipse do sol ou da lua, ou de diversos quaisquer outros aspectos de estrelas ou planetas; o que ensina Hipócrates e Galeno”88 Rosa, JF. Tratado único da constituição pestilencial de Pernambuco. Lisboa: Oficina de Miguel Menescal; 1694. (p. 243).

Ao continuarmos a desfolhar os textos médicos escritos, sobretudo por cirurgiões que narram suas experiências de cura encetadas na América portuguesa, observamos a influência das teorias humorais na nomeação, descrição e tratamento das enfermidades. Assim, doenças como “supuração do bofe”, “defluxo asmático”, “obstrução” e “encalhamento”99 Ferreira LG. Erário mineral [1735]. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; 2001.

10 Dazille JB. Observações sobre as enfermidades dos negros. Lisboa: Arco do Cego; 1801.

11 Mendes JA. Governo dos mineiros, mui necessários aos que vivem distantes de professores seis, oito, dez e mais léguas, padecendo por esta causa os seus domésticos e escravos queixas, que pela dilaçam dos remédios se fazem incuráveis, e as mais das vezes mortais. Lisboa: Antônio Rodrigues Galhardo; 1770.
-1212 Miranda JC. Prodigiosa lagoa descuberta nas Congonhas das Minas do Sabara, que tem curado a varias pessoas dos achaques, que nesta relação se expõem. Lisboa: Officina de Miguel Menescal da Costa; 1749., cujos nomes e diagnósticos tendem a causar estranhamento ao leitor atual, acusam a crença no desequilíbrio e/ou “corrupção” - outra concepção comungada entre os diversos curadores à época - dos fluidos e humores que formavam os corpos que padeciam, e não raro enfatizavam o papel determinante dos “lugares”/ambiente, emanações pútridas e corpos celestes que incidiam sobre os indivíduos sãos, tornando-os enfermos.

Na concepção da época, tanto na medicina oficial quanto no imaginário popular, as doenças eram igualmente explicadas pela ação do que hoje nomearíamos de sobrenatural. A própria definição do termo doença nesse período, presente no dicionário de Raphael Bluteau, indica a associação entre fatores de “ordem natural” e de ordem “teológica”. A doença era vista como “indisposição natural, alteração do temperamento, que ofende imediatamente alguma parte do corpo”, e ao mesmo tempo “filhas do pecado, e mães da morte”13 (p. 146).

Conforme mostrou Márcia Moisés Ribeiro77 Ribeiro MM. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Hucitec; 1997. em estudo pioneiro sobre a especificidade do que a autora nomeou de arte médica no Brasil colonial, os campos da religião e da magia se entrelaçavam ao da medicina de maneira quase indissociável, com especial força até a segunda metade do século XVIII, tanto no Velho como no Novo mundo. Assim como os clérigos, os representantes da medicina oficial, a exemplo de médicos e cirurgiões, também receitavam orações - que, não podemos perder de vista, eram uma maneira de contar e uniformizar o tempo de certos tratamentos - e exorcismos, bem como lançavam mão de terapêuticas que tornavam as fronteiras entre o natural e o sobrenatural absolutamente borradas. Ao mesmo tempo, a Igreja e a medicina oficial procuravam combater as ações dos indivíduos que não eram investidos de autoridade e chancela para realizar esses procedimentos77 Ribeiro MM. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Hucitec; 1997. (p. 89-108).

Para ficarmos com alguns exemplos desse tipo de olhar, no Erário mineral, escrito pelo cirurgião luso Gomes Ferreira99 Ferreira LG. Erário mineral [1735]. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; 2001., que atuou aproximados 25 anos em diversos espaços da América portuguesa, destacadamente as Gerais, é possível observar a consideração de que supostas feiticeiras seriam causadoras dos mais diversos achaques. Nesse sentido, no entender de Gomes Ferreira, as “doenças de feitiço” deveriam ser diagnosticadas e conhecidas em seus sinais/sintomas, juntamente com todos os demais indisposições que precisava remediar. Preferindo aqui as palavras do cirurgião:

[...] por entender que alguma mulher enganada pelo demônio ou por algumas feiticeiras, que são seus ministros, lhe aconselhara que, para conciliar a amizade do tal homem, lhe desse o sangue mensal, e como o dito sangue não tem tal virtude, ante seja tão perverso e venenoso que não só causa os ditos efeitos de loucura, fúrias, taciturnidades e outros mil sintomas tão horrendos como lastimosos [...]99 Ferreira LG. Erário mineral [1735]. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; 2001. (p. 422).

O médico luso Brás Luis de Abreu1414 Abreu BL. Portugal médico ou monarchia médico-lusitana histórica practica symbolica, ethica e política. Coimbra: Oficina de Joam Antônio; 1726., que também atuava como familiar do Santo Ofício, em tratado médico publicado em 1726, igualmente considerava a existência de feitiços no rol dos adoecimentos a serem remediados pelos representantes da medicina oficial. Em sua retórica, o doutor Abreu colocou lado a lado como “médicos feiticeiros” tanto as supostas bruxas quanto os indivíduos que se aventuravam a curar sem licença, baseando, aliás, suas considerações médicas em parte dos tratados de caça às bruxas que circulavam pela Europa:

Estas almas perdidas logo tratam de ser médicas da Universidade do Inferno; cujo ofício é somente matar e destruir por todos os caminhos o gênero humano. E para saírem com esta empresa em que o inimigo comum as indústrias, buscam e procuram com intestino ódio meninos lactantes; e nestes fazem o mais lastimoso estrago [...] como quer Martim Del Rio1414 Abreu BL. Portugal médico ou monarchia médico-lusitana histórica practica symbolica, ethica e política. Coimbra: Oficina de Joam Antônio; 1726. (p. 623).

Outra faceta dessa percepção de que enfermidades eram causadas por feitiços e feiticeiras que acreditamos que não seria difícil de ser imaginada para o cenário colonial era um olhar de desconfiança e rechaço - o que chamaríamos atualmente de eurocentrismo e preconceito - sobre as práticas culturais, inclusive seus conhecimentos terapêuticos, dos nativos e dos africanos e seus descendentes.

Assim, de acordo com Vera Marques1515 Marques VRB. Natureza em boiões. Medicinas e boticários no Brasil setecentista. São Paulo: Unicamp; 1999., comumente esses conhecimentos vindos de curadores não licenciados africanos, mestiços e, sobretudo, ameríndios eram desabonados ou “apagados” a partir de protocolos e paradigmas científicos europeus da época. A autora chama atenção para uma atitude ambígua existente nos relatos de cronistas, médicos e clérigos em relação ao saber herbário nativo: ora defendiam “o bom nível dos conhecimentos sobre a flora brasileira acumulados pelos indígenas”, ora agiam como verdadeiros críticos e detratores, em que “as curas proporcionadas pelas plantas são vistas como pura feitiçaria”1515 Marques VRB. Natureza em boiões. Medicinas e boticários no Brasil setecentista. São Paulo: Unicamp; 1999. (p. 66-70). Essa atitude de detração e desconfiança também era comum entre os jesuítas que demonizavam os conhecimentos terapêuticos dos pajés, constantemente referidos na documentação inaciana como “feiticeiros”. De modo análogo, africanos e seus descendentes, ao efetuarem terapias como curadores não licenciados, apareciam com frequência nas denúncias aos tribunais eclesiásticos (des)qualificados como “feiticeiro e curador”, pecha que não carregavam, por exemplo, os curadores não licenciados lembrados como brancos1616 Nogueira ALL. Entre cirurgiões, tambores e ervas: calunduzeiros e curadores ilegais em ação nas Minas Gerais. Rio de Janeiro: Garamond; 2016..

De maneira geral, essa crença de que pessoas poderiam manipular forças malévolas para provocar doenças por meio de feitiços, era comungada pelos mais diferentes estratos sociais que viveram na Europa, na África e no Brasil no contexto aqui discutido. Aliás, tratar as pessoas que se acreditavam enfeitiçadas não era privilégio de médicos, como Brás de Abreu e cirurgiões licenciados, como Gomes Ferreira. Havia expressiva quantidade de curadores não licenciados, por isso considerados e perseguidos como ilegais - muitos deles africanos e mestiços -, nos mais diferentes rincões da América lusa que eram vistos e solicitados como verdadeiros especialistas para remediarem as temidas e sempre presentes “doenças de feitiço”1616 Nogueira ALL. Entre cirurgiões, tambores e ervas: calunduzeiros e curadores ilegais em ação nas Minas Gerais. Rio de Janeiro: Garamond; 2016..

No âmbito das práticas terapêuticas, um dos legados mais duradouros da percepção dos corpos sãos e doentes como um repositório de humores e fluidos seriam as ações excretoras para “purgar” e reequilibrar tais humores. Assim, destacavam-se as sangrias como um dos principais expedientes terapêuticos, sendo tal recurso bastante utilizado pela medicina oficial europeia no curso do Antigo Regime.

Aliás, os profissionais licenciados para a realização da flebotomia, conhecidos como barbeiros e sangradores, encontravam-se ao rés-do-chão da hierarquia médica, tanto por exercerem ofícios mecânicos como por manusearem os degradantes excretos corporais. Além da sangria, eram responsáveis ainda pela aplicação de ventosas e sanguessugas, bem como pela realização de sarjamentos (escarificações mais superficiais na pele para expelir menores quantidades de sangue, em geral acompanhadas da aplicação de ventosas). Na América lusa, a maioria desses sangradores era de africanos e seus descendentes, contribuindo ainda mais para a mencionada aproximação e amálgama de diferentes tradições e concepções sobre o corpo e as doenças que o assolavam1717 Pimenta T. Terapeutas populares e instituições médicas na primeira metade do século XIX. In: Chalhoub S, Marques VRB, Sampaio GR, Galvão Sobrinho CR, organizadores. Artes e ofícios de curar no Brasil. São Paulo: Unicamp; 2003. p. 307-330.. Realidade que nas primeiras décadas do século XIX impressionaria os “viajantes” da Europa, que se pretendia civilizada, que circularam pelas urbes coloniais narrando e pintando barbeiros africanos com suas lancetas e chifres de animais em riste quando efetuavam suas sangrias pelas ruas.

Outro vetor que merece uma interpretação mais atenta é que por trás dessas terapias, à primeira vista bastante similares entre si, havia diferentes explicações e significados para as enfermidades e suas possibilidades de tratamentos. Entre os centro-africanos, como os “congos” e “angolas”, como eram amplamente nomeados no Brasil colonial, por exemplo, encontramos a crença de que o sangue (menga) seria o veículo condutor da alma. Nessa percepção, sangrias seriam tratamentos importantes para expulsar doenças. Alguns curadores africanos que lançavam mão da sangria também alegavam que seria tratamento eficaz para “lançar fora” os feitiços1616 Nogueira ALL. Entre cirurgiões, tambores e ervas: calunduzeiros e curadores ilegais em ação nas Minas Gerais. Rio de Janeiro: Garamond; 2016. (p. 238-247). Explicações, como é possível perceber, bem diferentes da medicina douta, ancorada na teoria dos humores.

Em resumo, é possível perceber a existência das “várias medicinas” convivendo e não raro se confrontando na América portuguesa entre os séculos XVI e XIX. Assim, para além dos representantes da medicina oficial, a exemplo de médicos, cirurgiões e boticários, havia um sem número de “negros curadores”, nativos e mestiços para remediarem a si, seus familiares e seus plantéis de escravizados. Uma medicina “mestiça”, conforme apontam Maria Cristina Wissenbach1818 Wissenbach MC. Ares e azares da aventura ultramarina: matéria médica, saberes endógenos e transmissão nos circuitos luso-afro-americano. In: Megiani AP, Algranti LM, organizadores. O império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico. São Paulo: Alameda; 2010. p. 375-393., Timothy Walker1919 Walker T. Acquisition and circulation of medical knowledge within the early modern portuguese colonial empire. In: Bleichmar D, De Vos P, Huffine K, Sheehan K, editors. Science in the Spanish and Portuguese empires 1500-1800. Stanford: Stanford University; 2009. p. 247-270., Júnia Furtado2020 Furtado J. Barbeiros, cirurgiões e médicos na Minas colonial. Rev Arq Pub Min 2005; 41:88-105. e outros2121 Dias MO. Sertões do Rio das Velhas e das Gerais: vida social numa frente de povoamento - 1710-1733. In: Ferreira LG. Erário mineral. Belo Horizonte, Rio de Janeiro: Fundação João Pinheiro/Fiocruz; 2002. p. 461-473.,2222 Almeida CBS. Medicina mestiça: saberes e práticas curativas nas Minas setecentistas. São Paulo: Annablume; 2010., e com nuances fundamentais, a depender do espaço - como no “sertão” ou no “litoral” - e do período a ser escolhido como objeto de estudo.

O mercado da cura como campo de batalha: o saber médico-científico e a regulação dos ofícios curativos

Nas primeiras décadas do século XIX, incluindo os anos que se seguiram à Independência, pouco desse cenário havia mudado. O universo das práticas de cura continuava permeado por diversas tradições terapêuticas, e a medicina de origem universitária ainda estava longe de dominar as preferências da população. Para esta, muito mais afeita às práticas curativas tradicionais longamente enraizadas na cultura popular, os médicos doutos formados na Europa geravam forte desconfiança. Embora sua terapêutica por vezes também mesclasse aspectos naturais/sobrenaturais, vários de seus métodos eram considerados pouco ortodoxos e de efeitos duvidosos, além de não raro se pautarem por lógicas terapêuticas dissonantes em relação a suas crenças sobre o funcionamento do corpo. Também é importante destacar que essas desconfianças não se restringiam apenas às classes populares. Setores das elites coloniais também partilhavam do universo curativo alternativo ao acadêmico, e mesmo que seus recursos os possibilitassem ter acesso às consultas de médicos doutos, especialmente nas zonas urbanas, era frequente que procurassem curandeiros e rezadeiras em casos considerados mais complexos e de difícil resolução2323 Chalhoub S. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras; 1996.

24 Sampaio G. Nas trincheiras da cura. As diferentes medicinas no Rio de Janeiro Imperial. Campinas: Unicamp; 2001.
-2525 Figueiredo B. A arte de curar: cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Vício da Leitura; 2002.. Tal cenário tornava a legitimação do saber médico-científico uma tarefa das mais árduas. Tratava-se de impor uma autoridade cultural e estabelecer diferenças claras entre esse saber e os populares2626 Ferreira LO. Medicina impopular: ciência médica e popular nas páginas dos periódicos científicos (1830-1840). In: Chalhoub S, Marques VRB, Sampaio GR, Galvão Sobrinho CR, organizadores. Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas: Unicamp; 2003. p. 101-122.. Nesse sentido, a proximidade crescente entre a medicina acadêmica e o poder estatal foi fator determinante.

A partir da segunda metade do século XVIII, vários estados europeus se viram diante da tarefa de manejar populações urbanas cada vez mais numerosas e socialmente complexas, sobretudo em um contexto no qual a riqueza das nações se ligava cada vez mais à aptidão de suas populações enquanto força produtiva2727 Quinlan S. The great nation in decline: sex, modernity and health crises in revolutionary France (1750-1850). Hampshire: Ashgate; 2007.. A ocupação e utilização do espaço urbano, assim como o combate à proliferação de doenças e a assistência aos desvalidos, foram alguns dos desafios que se impuseram aos estados nacionais burgueses2828 Bynum W. História da medicina. Porto Alegre: L∓ 2011. p. 78-100,2929 Rosen G. Uma história da saúde pública. São Paulo: Hucitec/Unesp; 1994. p. 113-156..

Do ponto de vista sanitário, tal cenário impunha ao poder público o abandono de sua posição tradicional, que consistia em uma atuação mais efetiva somente quando eclodiam epidemias, em favor de um modelo de atuação preventiva. Nesse sentido, o saber médico acadêmico apresentou-se como instância apta a estabelecer diretrizes administrativo-sanitárias que pudessem auxiliar o poder estatal na empreitada. Legitimado pelo Estado, o saber médico-científico procurou intervir no ordenamento sanitário dos centros urbanos, condenando espaços considerados insalubres, interferiu na organização de feiras, comércio de alimentos, regulou atividades portuárias, proibiu sepultamentos em igrejas e deslocou cemitérios para regiões afastadas das cidades3030 Carroll PE. Medical police and the history of public health. Med Hist 2002; 46(4):461-494.

31 Mantovani R. O que foi a polícia médica? Hist Cien Saude - Mang 2018; 25(2):409-427.
-3232 Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 2007. p. 79-98.. Em outra via, também colocou em prática a produção de conhecimentos sistemáticos sobre territórios, climas e doenças que pudessem auxiliar na aplicação de políticas sanitárias coordenadas, modelo do qual a Société Royale de Medicine de Paris foi um dos maiores expoentes. Contudo, não podemos perder de vista que esse processo de afirmação de saberes e práticas da medicina douta, não raro chancelada e apoiada pelo Estado e sua burocracia, estava longe de se apresentar como um processo pacífico, sendo permeado por resistências, manutenção de crenças e terapêuticas (e seus terapeutas, por óbvio) mais diretamente vinculadas às camadas populares.

Para compreendermos a forma tomada por esse processo na América portuguesa no alvorecer dos 1800, é importante remeter às relações estabelecidas entre a medicina acadêmica e o Estado português quase meio século antes. Entre as reformas implementadas no Império a partir de 1750, a reformulação dos Estatutos da Universidade de Coimbra foi um dos pontos de maior destaque. A partir desse marco, a formação oferecida na tradicional instituição lusa esteve progressivamente mais afinada com o projeto reformista do Império, o que se traduzia na formação de quadros aptos para servir ao Estado nos domínios lusitanos no além-mar3333 Fonseca FT. A dimensão pedagógica da reforma de 1772. Alguns aspectos. In: Araújo C, organizador. O marques de Pombal a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; 2014; p. 49-79.. No caso do curso de medicina, nota-se não apenas a progressiva atuação de médicos lá formados no estudo das características climatológicas e nosológicas dos domínios lusitanos, mas uma expressiva produção de manuais voltados para a população não familiarizada com os meandros dos saberes médicos-científicos. Tais obras, ao circular tanto pelo reino quanto por territórios coloniais, procuravam divulgar, em lugares onde os médicos propriamente ditos pouco chegavam, os preceitos sobre corpo, doença e higiene preconizados pela medicina lusitana reformada.

Em contrapartida, o que se nota como um dos resultados dessa aproximação de agendas é a progressiva criação de instrumentos legislativos e fiscalizatórios que, ao mesmo tempo em que tentavam regulamentar o mercado da cura no reino e no além-mar, procuravam garantir o prestígio hierárquico dos praticantes da medicina de origem acadêmica frente a cirurgiões, boticários e, com especial ênfase, praticantes das medicinas tradicionais. Quanto a esses últimos, não foram raras as situações em que a atuação legislativa tomou ares abertamente persecutórios. Entre os casos mais emblemáticos, consta o uso do aparato inquisitorial para perseguir curandeiros acusados de bruxaria3434 Walker T. Médicos, medicina popular e inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Rio de Janeiro: Fiocruz/Imprensa de Ciências Sociais; 2013., o que resultou em relativa atividade do Santo Ofício em Portugal em pleno século XVIII, período em que sua atuação já refluía em outros espaços europeus onde fora tradicionalmente presente, a exemplo da Espanha.

No entanto, não se pode perder de vista que esses esforços legislativos e persecutórios sempre tiveram alcance bem mais limitado que o pretendido. Na prática, esbarravam na escassez de médicos disponíveis ou interessados nos postos de trabalho oferecidos, em especial no além-mar. A resistência das populações locais era outro entrave, conforme já apontamos, sem mencionar os imbróglios administrativos e clientelares que movimentavam os fluxos de curadores entre a Europa e os domínios lusitanos3535 Abreu L. A institucionalização do saber médico e suas implicações sobre a rede de curadores oficiais da América Portuguesa. Tempo 2018; 24(3):493-524..

No caso específico da América portuguesa, trabalho recente de Laurinda Abreu3535 Abreu L. A institucionalização do saber médico e suas implicações sobre a rede de curadores oficiais da América Portuguesa. Tempo 2018; 24(3):493-524. mostrou que o envio de curadores pela administração imperial só toma maior relevância a partir da segunda metade do século XVII. Mesmo assim, grande parte dos cirurgiões, boticários e - em bem menor número - médicos que aportavam na colônia eram motivados por iniciativas pessoais ou serviam à Coroa em missões militares. Isso não quer dizer, no entanto, que sua presença tenha se tornado expressiva. Para se ter uma ideia, a cidade do Rio de Janeiro contava com apenas quatro médicos em 1671. Mesmo se levarmos em consideração que a cidade ainda não havia se tornado o centro administrativo da colônia naquele momento, o contingente era claramente insuficiente, conforme atestado pelas próprias autoridades locais na época3535 Abreu L. A institucionalização do saber médico e suas implicações sobre a rede de curadores oficiais da América Portuguesa. Tempo 2018; 24(3):493-524.. As constantes reivindicações das câmaras municipais pelo envio de mais profissionais de saúde eram precariamente remendadas pelo acúmulo de funções dos profissionais que aqui se encontravam. Nesse aspecto, o caso dos cirurgiões militares, frequentemente designados para cuidar da população local tanto quanto das tropas sob sua responsabilidade, foi emblemático3535 Abreu L. A institucionalização do saber médico e suas implicações sobre a rede de curadores oficiais da América Portuguesa. Tempo 2018; 24(3):493-524..

Após se transformar em sede administrativa da América portuguesa em 1763, a cidade do Rio de Janeiro tornou-se um destino mais procurado pelos profissionais da cura, embora sua expressão numérica ainda permanecesse reduzida. Ao final do século, no entanto, parte significativa das licenças concedidas tinham como titulares residentes e naturais da cidade3535 Abreu L. A institucionalização do saber médico e suas implicações sobre a rede de curadores oficiais da América Portuguesa. Tempo 2018; 24(3):493-524.. Até 1782, as permissões eram concedidas pelo cirurgião-mor e pelo físico-mor, cargos atribuídos a cirurgiões e médicos de reconhecida competência - e/ou devidamente inseridos nos círculos de sociabilidade do poder -, que se tornavam responsáveis pela aplicação de exames e fiscalização das atividades curativas locais, bem como pela produção e comércio de medicamentos nas boticas. Contudo, na prática os detentores desses cargos vitalícios acabavam utilizando-os como mercês pessoais, regulando o comércio da cura local ao sabor de interesses privados e socioprofissionais, situação particularmente dramática nas localidades mais distantes da administração central3636 Abreu L. A organização e regulação das profissões médicas no Portugal Moderno: entre as orientações da Coroa e os interesses privados. In: Cardoso A, Oliveira AB, Marques MS, organizadores. Arte médica e imagem do corpo: de Hipócrates ao final do século XVIII. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal; 2010. p. 97-122.. Diante da debilidade do modelo regulatório, os cargos de cirurgião e físico-mor foram substituídos pela Junta do Protomedicato em 1782, composta por cinco médicos e dois cirurgiões no reino. Na América portuguesa, sua presença se deu pela atuação de comissários responsáveis pela fiscalização do campo da saúde nas diferentes capitanias. Contudo, o novo órgão acabaria por sucumbir à corrupção e aos interesses privados, da mesma forma que seu antecessor, o que o levaria a ter vida curta, extinto pelo príncipe regente D. João em 1808, pouco tempo após sua chegada ao Brasil.

Como se sabe, a transferência da corte para o Rio de Janeiro significou uma inflexão fundamental na trajetória política da colônia. Pela primeira vez, e provavelmente a única, um monarca europeu atravessou o Atlântico para estabelecer a sede do poder imperial em um de seus domínios. De centro administrativo da América portuguesa, a cidade foi alçada a centro administrativo de uma monarquia pluricontinental3737 Fragoso JR, Bicalho MF, Gouvêa MF. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2001.. O novo estatuto deu origem a um amplo programa de reformas na cidade para atender às necessidades simbólicas e práticas da nova capital. No âmbito simbólico, tratava-se de apresentar o Rio de Janeiro como uma espécie de Lisboa dos trópicos, o lugar a partir do qual a monarquia lusitana recuperaria o prestígio perdido, tanto pela decadência do Império - um processo que já durava um par de séculos - quanto pela humilhação recente de ter sido forçada a abandonar a antiga capital tomada pelas tropas napoleônicas3838 Schultz K. Versalhes tropical: império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2008.. Em termos práticos, a empreitada passava por uma reformulação do espaço urbano, com abertura de novas e alargadas ruas, construção de prédios suntuosos de arquitetura europeia, além, é claro, de medidas que conferissem uma nova ordenação às práticas urbanas. Nesse ponto, o discurso médico se apresentou, mais uma vez, como instância destacada para auxiliar o poder. O clima e as doenças se tornaram objeto privilegiado de estudo, tanto por iniciativa da monarquia, que passou a financiar e incentivar trabalhos que oferecessem soluções para as questões sanitárias da capital, como por iniciativas individuais de doutos formados em Coimbra que aportavam na cidade em busca de alguma posição na Corte3939 Freitas RC. Os sentidos e as ideias: trajetória concepções médicas de Francisco de Mello Franco na ilustração luso-brasileira, 1776-1823 [tese]. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz; 2017.. Algumas das obras produzidas nesses anos receberam certo destaque historiográfico, como as Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro, escritas por Manuel Vieira da Silva, e Memória sobre o enxugo geral desta cidade do Rio de Janeiro, publicada em 1815, de José Joaquim de Santa Anna

Do ponto de vista institucional e legislativo, as artes de cura passaram por transformações significativas. A fundação das escolas médico-cirúrgicas da Bahia e do Rio de Janeiro, ambas em 1808, foram medidas de destaque para dar início à formação superior na América portuguesa, tornando-a menos dependente do envio de curadores formados na Europa. Em termos regulatórios, a extinção do Protometicato foi seguida pela criação da Fisicatura em 1808. O novo órgão trazia de volta as figuras do físico-mor e do cirurgião-mor, que, agora sediados na nova capital, voltavam a regular as práticas curativas no Império por meio de seus emissários.

Como mostrou Pimenta4040 Pimenta T. Artes de curar: um estudo a partir dos documentos da Fisicatura-mor no Brasil do começo do século XIX [dissertação]. Campinas: Unicamp; 1997., contudo, a nova configuração pouco alterou o cenário caótico deixado pelas instituições anteriores, o que contribuiria para seu encerramento em 1828, resultando em uma trajetória ainda mais curta do que a da Junta do Protomedicato. Assim como suas predecessoras, a Fisicatura não foi capaz de impor uma ordenação de cima para baixo ao complexo e multifacetado ambiente das artes curativas no Brasil. Por outro lado, se a instituição não foi capaz de garantir a supremacia do saber médico-científico no mercado da cura, atuou para conservar as hierarquias entre as diversas categorias de profissionais da cura. No topo da cadeia estariam os médicos, responsáveis por examinar, diagnosticar e prescrever tratamentos para seus pacientes; em seguida, viriam os cirurgiões, também de formação superior, teoricamente incumbidos de executar os tratamentos prescritos pelos primeiros; em terceiro lugar viriam os boticários, responsáveis pela produção e comercialização de medicamentos. Conforme mencionamos na primeira parte deste texto, a base da pirâmide era ocupada por uma miríade de categorias tradicionais, entre como parteiras, curandeiros, sangradores e barbeiros, em geral oriundos de classes sociais menos privilegiadas.

Se, à primeira vista essa organização piramidal já parecia organizar o campo curativo pela simples força da tradição, na prática ela se mostrava dramaticamente fluida. Mesmo que, no âmbito da formação universitária, a medicina e a cirurgia tivessem se aproximado ao longo do século XVIII, sobretudo por meio da introdução de cadeiras de anatomia e cirurgia nos currículos de medicina4141 Porter R. Das tripas coração. Uma breve história da medicina. Rio de Janeiro: Record; 2004., as tradicionais disputas jurisdicionais entre as duas categorias jamais foram apaziguadas. No contexto da Corte da primeira metade do século XIX, o denuncismo e as disputas de força entre ambas também se estenderam a boticários, frequentemente acusados de prescrever e aplicar remédios, e claro, aos curadores tradicionais. Estes últimos, se por um lado representavam o elo mais fraco no âmbito das disputas institucionais, por outro, a ampla adesão da população às suas medicinas garantia sua forte presença no mercado da cura1717 Pimenta T. Terapeutas populares e instituições médicas na primeira metade do século XIX. In: Chalhoub S, Marques VRB, Sampaio GR, Galvão Sobrinho CR, organizadores. Artes e ofícios de curar no Brasil. São Paulo: Unicamp; 2003. p. 307-330..

Na verdade, a esmagadora maioria deles curava ao largo dos olhos da Fisicatura, favorecendo-se da debilidade da fiscalização, e só procurando regularizar suas atividades caso se sentissem ameaçados por eventuais punições. A concessão de licenças, por sua vez, também esteve longe de corresponder a critérios estritamente médicos, tendendo a refletir o extraordinário papel exercido pelas redes clientelares na vida político-administrativa tanto do Império português quanto do Império do Brasil independente. Nesse contexto, não era raro que a sorte de um curandeiro ou de um cirurgião em busca de uma licença dependesse menos de sua competência profissional do que da força de suas relações pessoais.

Considerações finais

Como pudemos acompanhar, o capítulo das práticas curativas na história da saúde brasileira nas primeiras décadas do século XIX esteve longe de se poder definir pelo predomínio da medicina de origem universitária. No entanto, o processo de institucionalização do saber médico-científico teve marcos importantes nos anos que se seguiram à Independência. A fundação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (1829), bem como sua transformação em Academia Imperial de Medicina (1835), e a elevação da escola médico-cirúrgica do Rio de Janeiro a Faculdade de Medicina (1832), possibilitaram avanços fundamentais no que diz respeito à formação de profissionais e à criação de uma agenda sanitária para o novo país. Porém, se no plano institucional os médicos garantiam espaço crescente, nas ruas e na vida privada ainda dividiriam espaço com curadores, barbeiros, parteiras, rezadeiras e seus saberes longamente enraizados na tradição e na oralidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2022
  • Aceito
    25 Abr 2022
  • Publicado
    27 Abr 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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