Resumo
Neste artigo são apresentados conflitos envolvendo farmacêuticos e médicos, especialmente aqueles ligados à Inspetoria de Higiene, na cidade de Salvador, na última década do século XIX, tema ainda pouco trabalhando pela historiografia. A intenção é discutir como a regulamentação criada ainda no governo imperial para controlar as práticas de cura em geral e o trabalho dos farmacêuticos em particular acabou limitando a atuação desses últimos. Ao considerar injustas as prescrições impostas pelas autoridades sanitárias, por cercearem sua atuação ao mesmo tempo em que favoreciam embusteiros, diversos farmacêuticos lutaram para adquirir autonomia diante do que consideravam autoritarismo dos médicos. Tais conflitos revelam o quanto o estabelecimento da ciência médica como hegemônica no país foi um processo turbulento, mesmo entre os pares de profissões supostamente aliadas. O início da República, contexto permeado por debates e transformações ocorridos com a queda da monarquia, a abolição da escravidão e as dificuldades iniciais para o estabelecimento do poder, foi marcado fortemente pela presença dos médicos, que atuavam junto com militares e juristas para impor uma nova organização social. Essa presença se verificou na forte influência do pensamento racializado que caracterizou as políticas públicas.
Palavras-chave:
Farmácia; Salvador; Bahia; Regulamento sanitário; Higienismo
Introdução
Ao longo da segunda metade do século XIX, práticas de cura muito diversas conviviam com a medicina acadêmica nas diferentes vilas e cidades do Brasil. Curandeiros, feiticeiros, beatas, parteiras, sangradores, boticários e muitos outros “não diplomados” se colocavam ao lado de médicos científicos na disputa por tratamentos e pela preferência de todos os tipos de doentes. Os médicos, porém, reagiram contra essa situação: alguns grupos, ligados às faculdades de medicina, lutaram arduamente para melhorar a condição de suas instituições de formação e atuação, buscando também maior prestígio e influência junto às autoridades do governo e maiores possibilidades de combater a concorrência. Em 1850, foi criada a Junta Central de Higiene Pública - transformada em Inspetoria Geral de Higiene em 1886 -, com o objetivo de, entre outras atividades, controlar as epidemias e também limitar a presença das formas de cura não regulamentadas por faculdades de medicina. Porém, mesmo com essa conquista de mais espaço junto às instâncias de poder político, as artes de cura não oficiais eram abundantes e contavam, muitas vezes, com a preferência dos pacientes. Ao mesmo tempo, era muito difícil implementar no dia a dia as medidas indicadas pelos médicos nos Regulamentos da Higiene Pública22 Sampaio GR. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas: Editora da Unicamp; 2001..
Na Cidade da Bahia, como Salvador era chamada no século XIX, não era diferente. Apesar da presença da mais antiga faculdade de medicina do Brasil, cujos professores, respeitados nacional e internacionalmente, participavam ativamente da política e da vida social da cidade e do país, pululavam pelas ruas do Centro e pelos bairros afastados, além de curandeiros e receitistas, muitos líderes religiosos que tratavam das enfermidades e dos males do corpo e do espírito de seus fiéis. Pais e mães de santo de religiões de origem africana eram respeitados e seguidos de perto por trabalhadores, negros em sua maioria, mas também por senhoras brancas, homens de negócio, gente da polícia e da política - e ao mesmo tempo combatidos, denunciados em textos de jornais e perseguidos pelas autoridades e pela polícia33 Sampaio G, Albuquerque W. De que lado você samba: raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição. Campinas: Editora da Unicamp; 2021.
4 Castillo LE, Parés LN. Marcelina da Silva e seu mundo: novos dados para uma historiografia do candomblé ketu. Afro-Ásia 2007; 36(2007):111-151.
5 Luhning A. Acabe com esse santo, Pedrito vem aí'. Mito e realidade da perseguição policial ao candomblé baiano entre 1920 e 1942". Revista USP 1995/1996; (28):194-220.
6 Pereira FLJ. Modernizar as cidades, civilizar os costumes: repressão a espíritas e candomblés na Bahia republicana (1920-1940) [dissertação]. Bahia: PPGH/UFBA; 2020.-77 Parés LN. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Editora da Unicamp; 2020..
Havia também praticantes de formas de cura que se anunciavam como científicos, embora não tivessem diplomas emitidos por faculdades de medicina: espíritas, médiuns, homeopatas, hidropatas, entre outros, em geral homens brancos e letrados que se apresentavam ao público com promessas de cura para achaques, dores, doenças e infortúnios. A imposição das mãos estava em alta, assim como o apelo ao “sobre o natural”, em uma época de inovações e crença nas promissoras possibilidades da ciência88 Rocha RR. Curas maravilhosas: curadores itinerantes no Brasil Republicano (1898-1905) [tese]. Salvador: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia; 2020.. Os próprios médicos acadêmicos se dedicaram a pesquisas e investigações sobre esse mundo misterioso, que fascinava a tantos deles. Foi o caso de Virgílio Damásio, importante líder republicano, que escreveu a respeito da eletricidade e seus efeitos em doenças99 Dicionário Histórico Biográfico da Primeira República (1889-1930). Virgílio Damásio. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2015. [acessado 2022 jan 14]. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/dicionario-primeira-republica; ou do prestigiado psiquiatra Juliano Moreira, que investigou, com colegas como Alfredo Britto e Nina Rodrigues, o transe, utilizando muitas vezes a hipnose para tentar descobrir as origens do fenômeno psicológico para além de motivações religiosas1010 Rodrigues N. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional; Ed. UFRJ; 2006.. Este último médico também se tornou famoso por seu estudo do candomblé de origem nagô, inclusive no que dizia respeito a práticas de cura realizadas pelos líderes - muitos dos quais ele admirava, apesar de seu professado racismo e etnocentrismo. Alguns anos depois, o médico Adolfo Rabello Leite, que era também farmacêutico, apresentou uma tese para se doutorar pela Faculdade de Medicina da Bahia sobre a relação entre a matéria e os fenômenos espíritas1111 Leite AR. Relação entre a matéria e os fenômenos espíritas [tese]. Bahia: Universidade Federal da Bahia; 1905.,1212 Isaia AC. Bezerra de Menezes e Gonc¸alves de Magalha~es: muito ale´m do ce´rebro. Tentativas de enfrentamento ao materialismo cienti´fico do se´culo XIX. Revista Brasileira de Histo´ria 2020; 40(84):267-288..
A grande presença e força desses variados agentes de cura, muitos também ligados a formas específicas de crença, chamados indistintamente de criminosos e charlatães pela maioria dos médicos acadêmicos, gerou uma verdadeira “cruzada anticharlatanismo” nas últimas décadas do século XIX, que se intensificou no início do período republicano. O estabelecimento da Inspetoria de Higiene Pública em 1886 tornou ainda mais institucionalizada a perseguição às medicinas não oficiais. Tendo como atribuições a fiscalização do exercício da medicina e da farmácia, o estudo das epidemias, epizootias e moléstias reinantes, o serviço de vacinação e seu estudo, os socorros sanitários, a polícia sanitária, a organização das estatísticas demógrafo-sanitárias, a inspetoria buscou também promover a organização e o aperfeiçoamento do Código Farmacêutico brasileiro1313 Inspetoria de Higiene Pública. Dicionário da Administração Pública Brasileira/ Período Imperial/MAPA/AN. Inspetoria de Higiene Pública. [acessado 2022 jan 15]. Disponível em: http://mapa.an.gov.br/index.php/dicionario/administracao-imperial
http://mapa.an.gov.br/index.php/dicionar... .
Isso representou uma mudança significativa na maneira como eram produzidos, controlados e comercializados os medicamentos no país. Mais do que isso, causou um impacto imenso no dia a dia de farmacêuticos que exerciam suas atividades de maneira bastante livre em diversas localidades do Brasil e, não raro, faziam as vezes de médicos e contavam com o apoio de pacientes de diversas classes sociais, bem como de autoridades municipais, como prefeitos e vereadores. Neste artigo, pretendo apresentar alguns conflitos envolvendo farmacêuticos e médicos, especialmente aqueles ligados à Inspetoria de Higiene, na cidade de Salvador na última década do século XIX, tema ainda pouco trabalhado1414 Pimenta TS, Costa EA. O exercício farmacêutico na Bahia da segunda metade do século XIX. História, Ciências, Saúde -Manguinhos 2008; .15(4):1013-1023.
15 Velloso VP. Assistência farmacêutica: discursos e práticas na capital do Império do Brasil (1850-1880). Varia História 2010; 26: 373-394.-1616 Velloso V. Farmácia na Corte imperial (1851-1887): práticas e saberes[tese]. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz; 2007. pela historiografia. Em um contexto de grandes transformações ocorridas com o final do Império, a extinção definitiva da escravidão e o início da República, a presença dos médicos atuando junto com militares e juristas no início do novo governo tem um sentido ainda mais marcante, com forte influência do pensamento racializado que caracterizou as políticas públicas, e a organização excludente e autoritária da sociedade.
Conflitos: farmácia ou botica?
Em outubro de 1889, apareceu na Gazeta Médica da Bahia a seguinte declaração:
Os atos pelos quais o governo provincial entendeu de justiça prover os recursos interpostos, há mais de ano e meio, por dois farmacêuticos desta cidade, aos quais a Inspetoria de Higiene [...] intimou formalmente a requererem licença em 24 horas para continuarem a ter abertas as suas oficinas, exigem de nós algumas breves considerações, não só pela novidade do conflito entre eles e a autoridade sanitária superior da província, como porque a recente decisão presidencial estabeleceu um precedente que fecha de vez as portas a quaisquer questões da mesma natureza que possam de futuro surgir no país sobre idêntico assunto.
O zelo e a constante vigilância da Junta de Higiene em relação ao exercício irregular da farmácia, de acordo com a legislação vigente, em prol das garantias daqueles que têm a pesada responsabilidade deste exercício, são de certo muito para louvar; mas os vexames que lhes são impostos por virtude de interpretação errônea do regulamento sanitário, não podem deixar de produzir sobre os prejudicados, e em geral sobre todos os espíritos retos e sãos, o que produzem todas as injustiças [...] - a resistência legal ou a submissão resignada em uns, e a reprovação tácita ou expressa em outros1717 Interesses Profissionais. Gazeta Médica da Bahia 1889; out., n. 4; p. 21..
No ocaso do Império - outubro de 1889, um mês antes do golpe que instituiu a República no país - encontramos este texto publicado no principal periódico médico da Bahia. Com o título “Interesses Profissionais”, o artigo tratava de recursos impetrados por dois importantes farmacêuticos da cidade, Euclides Emílio Pires Caldas e Manoel Hermelino Ribeiro, havia “mais de ano e meio”1818 "Euclides Emílio Pires Caldas" e "Manoel Hermelino Ribeiro" in Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial da Bahia; 18 diez. del Corral FS, Souza MLA, Negrão OL. Do boticário ao farmacêutico: o ensino de farmácia na Bahia de 1815 a 1949. Salvador: EDUFBA; 2009.. Eles haviam solicitado revisão, pela presidência da província, de uma decisão da Inspetoria de Higiene da Bahia que consideraram extremamente injusta: a exigência de que os farmacêuticos apresentassem, em 24 horas, uma licença para que pudessem manter suas tradicionais farmácias abertas.
Logo no início do texto, já se anuncia que o governo provincial acolhera os recursos, apesar da demora, tendo defendido os farmacêuticos, garantindo a reparação do erro e ainda a proteção de toda a classe de futuras decisões conflituosas da Inspetoria. O autor fazia um claro enaltecimento ao “eminente colega, o Sr. Conselheiro Almeida Couto”, então presidente da província, que com seu “caráter justiceiro” conseguira “fechar de vez as portas” para novos casos da mesma natureza que pudessem aparecer em função da “interpretação errônea do regulamento sanitário” que a Inspetoria costumava fazer, devido à sua conhecida “tibieza e negligência”. Apesar de reconhecer a importância da vigilância exercida pelo órgão, controlando o “exercício irregular da farmácia”, afirmava que tais erros eram muito vexatórios aos farmacêuticos profissionais, que afinal tinham a “pesada responsabilidade” do exercício da profissão.
O fato imediato por trás da contenda era a exigência da licença em prazo tão curto, mas se somava a outras regras que vinham sendo impostas aos farmacêuticos ao longo dos anos. Desde o decreto sanitário de 1850, com a justificativa de melhorar o estado sanitário “da capital e de outras povoações do Império”, o governo já criava mecanismos para inspecionar as boticas e “lojas de drogas”, por meio de visitas dos membros da Junta Central de Higiene, que tinha autoridade para multar e até mesmo fechar estabelecimentos que vendiam remédios1919 Brasil. Decreto nº 598, De 14 de setembro de 1850. Coleção de Leis do Império do Brasil - 1850, p. 299. V.1 pt. I (Publicação Original). [acessado 2022 jan 20]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/legislacao
https://www.camara.leg.br/legislacao... . O Regulamento de 1886, por sua vez, que criava a Inspetoria Geral de Higiene, era mais detalhado e bastante específico em relação à regulamentação e fiscalização do exercício das farmácias, exigindo, entre outras obrigações, a matrícula de todos os farmacêuticos na Inspetoria de suas respectivas províncias, junto com a apresentação de seus títulos. Atrelava também a venda de remédios a receitas de médicos - farmacêuticos não poderiam vender remédios sem receitas, a não ser aqueles “de uso ordinário e inofensivo”, presentes em uma tabela “elaborada pelo governo”; o controle das substâncias vendidas passava a ser bem mais rigoroso. Ficava “expressamente proibido” o “exercício simultâneo da medicina e da farmácia”, ainda que o médico possuísse diploma de farmacêutico - algo que, por sinal, era bem comum durante todo o Império; o dr. Silva Lima, por exemplo, prestigiado médico da Bahia que atuava em diversas sociedades médicas, inclusive a Academia Nacional de Medicina, anunciava nos jornais tanto seu consultório quanto sua farmácia2020 Edler FC. A Escola Tropicalista Baiana: um mito de origem da medicina tropical no Brasil. História, Ciências, Saúde-Manguinhos 2002; 9(2):527-568.. Com o Regulamento de 1886, passava a ser proibida a associação entre “médico e farmacêutico para a exploração da indústria da farmácia”. Havia apenas uma exceção: caso um médico estivesse estabelecido “em lugar onde não haja farmácia”, ele poderia fornecer medicamentos para o tratamento de seus pacientes, se estes residirem a três quilômetros, pelo menos, de distância da farmácia mais próxima, e se for urgente a administração dos medicamentos; sem que lhe assista, em qualquer hipótese, o direito de ter farmácia aberta ao publico2121 Brasil. Decreto nº 9.554, de 3 de fevereiro de 1886. Coleção de Leis do Império do Brasil, 1886; v.1. p. 57. [acessado 2022 jan 20]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/legislacao
https://www.camara.leg.br/legislacao... .
No artigo publicado na Gazeta Médica, diversos desses pontos eram mencionados. O autor afirmava que todos os farmacêuticos tiveram que “se munir de novas licenças” para que tivessem autorização de manter suas farmácias abertas. Mesmo que já tivessem licenças, teriam que obter novas, “sob o pretexto nugatório de se regularizar a respectiva escrituração”, afirmou o autor do artigo da Gazeta. Alguns se submeteram e “satisfizeram essa formalidade, que a todos pareceu singular”, dizia o autor do texto, mostrando que já em 1886 havia uma insatisfação da classe farmacêutica com a regulamentação. Porém, a gota d’água veio mesmo em 1887, quando a Inspetoria teria “perdido o tom amigável” e, assumindo o “caráter autoritário”, teria se dirigido aos farmacêuticos “de modo imperativo por um edital em que se lhes marcava o prazo de 30 dias para se proverem de licenças”.
Para os farmacêuticos, muitas dessas determinações eram abusivas, e seria natural que gerassem resistência ou reprovação, embora alguns se resignassem e aceitassem as novas medidas. Por outro lado, haveria no regulamento certas “garantias e privilégios” que beneficiavam “especuladores leigos”, impunemente usurpando os direitos dos profissionais sérios - daí as manifestações veementes de tantos farmacêuticos em diferentes momentos pela imprensa.
O autor se referia, nesse ponto, à polêmica questão dos remédios secretos, que causou muitas contendas no campo dos profissionais de saúde. Referia-se, também, à gigantesca lista de substâncias que os farmacêuticos eram, desde 1886, obrigados a manter em seus estabelecimentos, a partir de umas “célebres e inexequíveis tabelas de medicamentos, utensílios e rótulos” que haviam se tornado obrigatórias para todas as farmácias como condição necessária para que se mantivessem abertas. No entender dos farmacêuticos, era impossível para qualquer um ter todas aquelas substâncias em seus estabelecimentos, tanto por seu número exagerado quanto pelo altíssimo custo, e isso favoreceria as lojas que existiam sem licença. Segundo regulamento de 1886, alguns “práticos” poderiam dirigir estabelecimentos de farmácia em determinadas localidades, desde que não houvesse “profissional habilitado” por perto. Mas com as dificuldades impostas às farmácias sérias, a previsão dos farmacêuticos era de que muitas delas desapareceriam, ficando o mercado aberto para os tais “especuladores leigos”. Sem a obrigatoriedade de conter tantas substâncias, as lojas que vendiam drogas, boticas informais, ou mesmo as farmácias não regulamentadas (pois muitas não tinham licenças mas continuavam abertas), acabariam vendendo livremente os mais variados remédios, inclusive aqueles sem aprovação da Inspetoria de Higiene, que eram diariamente anunciados nos jornais - os chamados “remédios secretos”, assim denominados por não terem suas fórmulas divulgadas. Como eram “secretos”, não podiam ser vendidos por farmacêuticos regularizados, e acabavam sendo comercializados por profissionais não habilitados ou em situação não regular com a Inspetoria. Era o caso, por exemplo do “Elixir e linimento anti beribérico”, do “farmacêutico Floriano Serpa”, ou do “Quinoidine Duriez”, um remédio secreto francês indicado para febres, enxaquecas e nevralgias que era vendido na loja de Galdino Fernandez da Silva, ou mesmo do “remédio infalível” contra erisipela, varíola e reumatismo, entre tantos outros que apareciam com frequência nos jornais (Figura 1).
Em geral, governo da província se colocava a favor das recomendações dos órgãos de higiene. Afinal, eram médicos originários do mesmo grupo, atuantes na Faculdade de Medicina da Bahia, com alguns interesses comuns bem claros, apesar das disputas internas. Para os representantes da corporação que se aventuravam por órgãos do governo, tratava-se de melhorar as condições da Faculdade de Medicina e, ao mesmo tempo, controlar e acabar com o abuso dos chamados “charlatães”, que tanto prestígio tinham junto a indivíduos das mais variadas origens sociais. Por isso, as restrições eram maiores a cada novo regulamento da Higiene Pública, especialmente após períodos de epidemias, em que sérias ameaças surgiam para a vida dos habitantes das cidades e para o funcionamento do comércio e o movimento do porto, fundamental para a economia de toda a Bahia.
No caso do controle dos medicamentos e da atuação dos farmacêuticos, porém, havia um grande empecilho. O combate aos chamados embusteiros, especuladores, charlatães, entre vários outros nomes que os profissionais formados por faculdades atribuíam aos seus concorrentes, era bem mais direto quando se tratava dos curandeiros africanos, ou dos curadores que apelavam ao sobrenatural. Simplesmente era proibido, de acordo com os regulamentos da Higiene Pública, o exercício da atividade de cura por profissionais não habilitados por faculdades de medicina do Império ou com diplomas validados por aquelas instituições. Já no caso daqueles que fabricavam remédios, ou, ainda pior, dos que os comercializavam, era bem mais complicado regular.
O regulamento dizia que era proibido exercer a farmácia a quem não tivesse diploma oficial, mas abria diversas brechas para que isso fosse burlado. Além disso, limitar a venda de remédios famosos, como aqueles que vinham do exterior, principalmente da França, país que era referência para a produção de remédios - no próprio Regulamento de 1886 se estabelecia que os farmacêuticos deveriam seguir a Farmacopéia Francesa -, era quase impossível. Além de importante para a medicina e a farmácia que eram feitas no Brasil, a França era o grande exemplo para intelectuais, símbolo da civilização e do avanço científico para os homens brancos e endinheirados do lado de cá do Atlântico. Certamente, para a maioria dos donos de estabelecimentos comerciais, proibir a venda dos “remédios secretos” era indesejável. No embate entre a “phamácia profissão”, no sentido de ciência e arte de fabricar medicamentos, e a “pharmácia indústria”, significando apenas o comércio lucrativo, por mais que os farmacêuticos formados protestassem, o lucro falava mais alto. A indústria dos específicos milagrosos, xaropes magníficos e outras panaceias universais, tal qual emplastros Brás Cubas e afins, crescia e se multiplicava no país, onde a ciência, claudicante, vacilava e perdia vidas para pestes bubônicas, amarelas, coléricas e pustulentas; onde sisudos doutores brancos de bigodes brilhosos perdiam clientes para líderes religiosos negros como o famoso pai de santo Joaquim, de São Lázaro, que teria impedido a chegada, em Salvador, com suas prescrições e poderes, de um dos surtos de cólera que devastou o Sudeste do Brasil no finalzinho dos oitocentos2222 Sampaio G, Albuquerque W. Santo Gonocô e pai ojú. In: Sampaio G, Albuquerque W. De que lado você samba: raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição. Campinas: Editora da Unicamp; 2021. Cap.6.
Médicos e política
O acolhimento das solicitações dos farmacêuticos pela autoridade provincial gerou uma declaração, no manifesto publicado no periódico médico, de apoio a um médico de prestígio - o dr. Almeida Couto, então presidente da província. Apesar de nem sempre contrariar as decisões da Inspetoria, afinal era o presidente da província que nomeava os delegados de higiene locais, naquele caso ele colocara algum limite ao avanço inevitável da política ainda mais agressiva em relação à saúde pública que se anunciava com os ares republicanos. Em pleno outubro de 1889, não era novidade para ninguém que a monarquia estava com os dias contados. Em 13 de maio de 1888, era finalmente extinta a escravidão no Brasil, e os ricos cafeicultores e escravistas em geral retiravam definitivamente seu apoio ao decadente governo imperial, permeado de crises políticas2323 Grinberg K, Sales R. O Brasil Imperial (v.2). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010..
Ao mesmo tempo, crescia a influência dos médicos na política, sendo que muitos dos doutores de prestígio da Faculdade de Medicina eram republicanos confessos. Quanto mais sucesso obtinham na implementação das várias imposições do Regulamento, mais espaço conquistavam dentro das esferas de poder. Nesse sentido, era interessante aos farmacêuticos manifestarem seu apoio a um dos últimos bastiões do governo imperial entre os médicos: o dr. Almeida Couto. Líder político respeitado e poderoso entre a elite baiana, quatro vezes deputado, duas vezes presidente da província da Bahia e uma vez da província de São Paulo, era membro do Partido Liberal e defendeu até o final o governo de D. Pedro II. Naqueles anos de crise do Império, afastou-se politicamente de colegas da faculdade, como Virgílio Damásio e Manuel Vitorino Pereira, e mesmo de seu genro e protegido, Raimundo Nina Rodrigues, que compunha a Inspetoria de Higiene da Bahia, e manteve-se no cargo no início do governo republicano.
Em julho daquele ano, quando a Faculdade de Medicina em peso se preparava para receber Silvia Jardim, líder republicano que foi a Salvador para proferir palestras e defender a mudança de governo, Almeida Couto foi para outro local e recebeu, com honras oficiais, o conde d’Eu, marido da princesa Isabel, que também desembarcava na cidade e pretendia organizar o terceiro reinado com seus aliados políticos. Couto chegou a ser acusado de aliciar membros da guarda negra para atacar Jardim; no dia de seu desembarque, a caminho da Faculdade de Medicina, o republicano acabou passando maus momentos na subida da ladeira do Taboão, recebido a pedradas e perseguido por capoeiras que gritavam “morra Silva Jardim, viva a monarquia”. O episódio ficou conhecido como “massacre do Taboão” e gerou grande antipatia dos estudantes da faculdade em relação ao professor Almeida Couto, a ponto de cancelarem o convite já feito para ser paraninfo da cerimônia de formatura daquele ano.
Se as posições políticas de Almeida Couto o distanciaram de médicos importantes da Faculdade de Medicina, levando-o também a se afastar do grupo que compunha a Inspetoria de Higiene, ao dar razão aos recursos de farmacêuticos importantes como Euclides Emílio Pires Caldas e Manoel Hermelino Ribeiro, ele também marcava um posicionamento político bem claro. Recrutava o apoio de toda a classe farmacêutica nesse ato, buscando aliados de peso no apagar das luzes do governo imperial. Como autoridade máxima da província e aliado do imperador, Almeida Couto sabia muito bem da ameaça republicana que pairava no ar. Convivendo com os colegas da Faculdade de Medicina, conhecia de perto a força dos republicanos no seu entorno. Possivelmente por esse motivo, resolveu se colocar contra uma medida polêmica dos higienistas naquele momento tão crítico. Afinal, quanto mais poder conquistavam, mais forte ficariam seus adversários num provável governo republicano, que se mostrava mais próximo a cada dia. Além de dar um golpe no órgão da Higiene da Bahia, buscando o enfraquecimento de seus oponentes políticos, Almeida Couto também mirava o forte apoio popular que os farmacêuticos sempre tiveram, receitando diversos remédios sem receita, atendendo doentes em momentos de desespero e aflição, e muitas vezes assistindo uma população que sofria e tinha dificuldades para ser atendida por médicos caros e, não raro, ineficazes em seus tratamentos.
Almeida Couto era um político bastante popular. Frequentador do teatro São João, tinha sido, na juventude, membro de uma importante sociedade abolicionista - a Sociedade Abolicionista Dois de Julho. Quando faleceu, foi uma grande comoção: as ruas centrais da cidade foram tomadas por todo o tipo de gente, aglomerada para se despedir do antigo presidente da província. Era 1895 e já vigia a República, permeada de médicos. As disputas ocorridas entre ele e seus colegas no final do Império, porém, não tiveram lá muito impacto: logo no início do novo governo, Almeida Couto foi eleito senador estadual; em 1893, seis anos depois de ter ficado ao lado dos farmacêuticos aqui mencionados, tornou-se intendente de Salvador. Coincidência ou não - provavelmente não - sua volta à política se deu após a saída de seus desafetos do governo do estado, os doutores Virgílio Damásio e Manuel Vitorino, primeiros governadores da Bahia no período republicano. Almeida Couto era, acima de tudo, um médico importante e respeitado, e o apoio que tinha da população baiana deve ter pesado para que o governador Severino Vieira o escolhesse para ser a autoridade máxima na capital do estado.
A República dos médicos contra o império das boticas
Com a chegada da República, ficava claro que os médicos estavam dando muitas das cartas no jogo da política, enquanto os farmacêuticos ficavam cada vez mais limitados. Desde 1887, quando a Inspetoria passou a apertar os prazos e as exigências de licenças, aumentando a lista de emolumentos obrigatórios nos estabelecimentos registrados, ficava mais difícil para os farmacêuticos exercerem suas atividades, mantendo abertos seus estabelecimentos, especialmente aqueles que não contavam com padrinhos poderosos. Por outro lado, a presença majoritária de médicos nos órgãos sanitários do governo, como o Conselho Geral de Saúde Pública, de 1892, composto por Silva Lima, Nina Rodrigues, Antônio Pacífico Pereira, Jacome Baggi, Eduardo Gordilho Costa, Alfredo Alvim, Lidio Mesquita e só um farmacêutico (não por acaso, o mesmo Euclides Pires Caldas, protegido de Almeida Couto, que certamente se aliara aos médicos, diferentemente da maioria de seus colegas), mostrava que a “farmácia profissão” e a medicina não eram “profissões aliadas”, como afirmara o autor do texto publicado na Gazeta Médica anteriormente citado - ou ao menos não tão aliadas assim. Ao contrário, aos farmacêuticos caberia, cada vez mais, apenas fornecer remédios prescritos por doutores, aviar receitas por eles indicadas, e jamais atuar junto aos pacientes como faziam, de maneira livre, antes da existência da Junta Central de Higiene. Ou mesmo após a criação da Junta, em diversas localidades, quando cuidavam de parturientes, receitavam medicamentos para febres, enfim, acudiam doentes diversos que os procuravam. Era preciso impor o domínio médico, entendiam os doutores, para que a ciência prosperasse, o país saísse do atraso, as doenças fossem vencidas, o povo se libertasse do atraso colonial e das tradições religiosas e culturais fortemente ligadas à África, continente de origem da maior parte da população brasileira.
Ao longo do Segundo Reinado, e mesmo no final do Império, havia muitos farmacêuticos que não se submetiam ao regulamento, não pagavam as taxas, não tiravam a licença. Suas reclamações e insatisfações permeavam os jornais, protestando contra multas, novas taxas, fiscalizações repentinas. Além disso, os remédios secretos continuavam fazendo muito sucesso entre o público, e eram anunciados livremente. Alguns médicos importantes, como o dr. Silva Lima, membro do Conselho de Saúde Pública do estado, continuava anunciando sua farmácia nos jornais - talvez daí viesse a denúncia dos “privilégios” para alguns, que apareceu no artigo já citado. Mesmo assim, a pressão dos higienistas para a vigilância das farmácias crescia conforme sua influência aumentava no início do período republicano. O próprio Nina Rodrigues, membro do Conselho de Saúde e expoente da medicina legal no Brasil, que divulgava as teses do racismo científico pelo país, reconhecera anos antes, em um estudo realizado no Maranhão, a importância de um farmacêutico que fazia as vezes de médico para os leprosos. Tratava-se do sr. Theodoro J. D’Abreu Sobrinho, que “com notável humanidade não só lhes servia de médico como fornecia os medicamentos”2424 Nina Rodrigues R. Contribuição para o estudo da lepra no estado do Maranhão (1888). Gazeta Médica da Bahia 1888; em setembro e novembro de 1888.. Agora, nos anos 1890, era implacável com seus colegas na implementação de novos regulamentos de higiene na Bahia, deixando cada vez mais restritas as possibilidades de atuação dos farmacêuticos.
O caso excepcional ocorrido em 1877, quando o presidente da província se colocou ao lado de dois farmacêuticos contra a Inspetoria, foi citado em 1893 por farmacêuticos que solicitavam o direito de manter seus estabelecimentos abertos. Eles tomaram o cuidado de citar apenas Manoel Hermelino Riberio, e não Euclides Pires Caldas, agora membro do Conselho de Saúde. O Conselho, porém, não cedeu: continuou negando o pedido de manutenção de uma licença antiga, obtida no período imperial, e ainda cassou as licenças daqueles droguistas que tinham laboratórios e farmácias abertos2525 Parecer aprovado na comissão de 5/02/1893, publicado na Gazeta Médica da Bahia na edição 27, de 1895..
Os higienistas continuaram se fortalecendo nesse início de República, defendendo fervorosamente o federalismo, instituído pela Constituição Federal de 1891. Por esse princípio, cabia aos estados e municípios decidirem sobre questões relativas a diversos assuntos locais, como a saúde. Quando avaliavam pedidos que vinham com aprovação do Rio de Janeiro, os membros do Conselho sempre afirmavam sua importância, mostrando que só teriam valor as licenças e autorizações concedidas pelo estado.
Com o passar dos anos, as autoridades sanitárias se depararam com novos problemas para implementar as medidas de higiene. Um deles foi a sobreposição de legislação, surgida com o Código Sanitário, que trazia a dificuldade de punir crimes que eram previstos e definidos no Código Penal, como o próprio charlatanismo, do que diversos droguistas foram acusados2626 Batista R, Silva MELN. A atuação de Antônio Luis Cavalcanti de Albuquerque de Barros Barreto na Reforma Sanitária da Bahia (1924-1930). Revista Brasileira de História 2021; 40(84):313-337.,2727 Santos CA. Medidas sanitárias de que a Bahia precisa': as delegacias de saúde e a reforma sanitária em Salvador (1921-1930)". Revista de História e Estudos Culturais 2021; 18(2):269-299.. Já ia longe, porém, os tempos de defensores de Lombroso como Nina Rodrigues, com sua perseguição a práticas de cura dos mestiços, e de Pacífico Pereira, autor de longos textos contra o charlatanismo - época em que, apesar da perseguição generalizada, havia também muita discussão sobre a liberdade do exercício da medicina e das artes de curar, conduzida inclusive pelos primeiros republicanos, adeptos do positivismo2828 Weber BT. Identidade e corporação médica no sul do Brasil na primeira metade do século XX. Varia História 2010; 26(44):421-435.. O que prevaleceu, porém, foi a repressão, o combate ao diferente e a violência, encontrando novas formas para se disseminar, principalmente contra os trabalhadores negros e pobres. A perseguição aos diversos praticantes das artes de curar tomava novas formas, assim como outros proibicionismos apareciam2929 Souza JEL. Sonhos da diamba, controles do cotidiano: uma história da criminalização da maconha no Brasil republicano. Salvador: EDUFBA; 2015. 30. Saad L. Fumo de negro: a criminalização da maconha no pós-abolição. Salvador: EDUFBA; 2019., em um caminho marcado pela constante perpetuação do racismo, do autoritarismo e de políticas públicas violentas ao longo da história de nossa breve República.
Agradecimentos
A Beatriz Jesus Rocha dos Santos e Anderson Souza Costa, bolsistas de Iniciação Científica (PIBIC/UFBA) sob minha orientação, pelo auxílio na coleta de fontes aqui utilizadas.
Referências
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- 26Batista R, Silva MELN. A atuação de Antônio Luis Cavalcanti de Albuquerque de Barros Barreto na Reforma Sanitária da Bahia (1924-1930). Revista Brasileira de História 2021; 40(84):313-337.
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Financiamento
A pesquisa que resultou neste texto é financiada pelo CNPq, com bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ2).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Ago 2022 - Data do Fascículo
Set 2022
Histórico
- Recebido
21 Fev 2022 - Aceito
06 Abr 2022 - Publicado
08 Abr 2022