Resumo
Este artigo discute a construção histórica do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF), a partir da análise de 17 documentos editados pelo Ministério da Saúde entre os anos de 2005 e 2021. Trata-se de um estudo qualitativo de revisão documental que busca compreender como as normativas, cadernos instrutivos e notas técnicas oficiais vêm dando contorno ao modo de operar das equipes do NASF. Propõe-se a divisão do processo de construção do NASF em cinco períodos: movimentos antecedentes (2003 a 2007); diretrizes do apoio (2008 a 2011); universalização do NASF (2012 a 2015); ampliação do apoio (2016 a 2018); e o desmonte do NASF? (2019 a 2021). Os resultados apontam mudanças de orientação ao longo dos anos de existência da equipe, especialmente em relação ao conceito do apoio matricial e suas duas dimensões, técnico-pedagógica e clínico assistencial. O estudo demonstra ainda os efeitos do Programa Previne Brasil sobre o NASF, que se materializaram na redução de 379 equipes nos anos de 2020 e 2021. Soma-se a esse cenário a pandemia do SARS-CoV-2, que pode reposicionar as intervenções do NASF no Sistema Único de Saúde.
Palavras-chave:
Apoio matricial; Núcleo de Apoio à Saúde da Família; Atenção primária à saúde; Pesquisa qualitativa; COVID-19
Introdução
A partir das diferentes experiências de Programa Saúde da Família que vinham sendo implementadas desde 1994, o Ministério da Saúde (MS) vai gradativamente induzindo os municípios à adoção desse modelo11 Cecilio LCO, Reis AAC. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde. Cad Saude Publica 2018; 34(8):e00056917.. A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), de 2006, avança na reorganização da atenção à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), formalizando a antiga denominação como Estratégia Saúde da Família (ESF). O consequente aumento da importância da Atenção Básica como coordenadora do cuidado, com o respectivo redirecionamento de financiamento para esse nível de atenção, trouxe aos municípios o desafio da reorganização de suas redes de saúde. Com a ESF, as equipes têm a tarefa de garantir aos usuários o cuidado de outro modo. Almeja-se que este seja realizado nos territórios, ao longo do tempo, em todas as suas necessidades, o que demanda a intervenção de mais categorias profissionais para além das equipes de Saúde da Família (eSF).
O NASF foi criado no ano de 2008 como Núcleo de Apoio à Saúde da Família, com o objetivo de aumentar a capacidade resolutiva da ESF e ampliar o cuidado ofertado aos usuários dos territórios acompanhados22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 154, de 24 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família - NASF. Diário Oficial da União 2008; 4 mar.. Organiza-se como uma equipe multidisciplinar de retaguarda especializada, que opera por meio da metodologia de apoio matricial e suas duas dimensões, técnico-pedagógico e clínico-assistencial. A maneira com que as equipes apoiadas e o NASF vão compondo suas intervenções vão engendrar diferentes arranjos e configurações da função apoio, com efeitos na produção do cuidado em saúde.
O apoio matricial propõe outros modos de organização da gestão do processo de trabalho e da clínica, que procura superar racionalidades que produzem um cuidado em saúde fragmentado e médico-centrado. Intenciona-se aproximar os especialistas do NASF das equipes apoiadas e dos usuários, com vistas ao aumento da capacidade de análise e intervenção sobre os problemas de saúde de determinado território33 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2015..
Método
O estudo selecionou 17 normativas e publicações elaboradas pelo MS, editadas de 2005 a 2021. Esses documentos foram acessados nos portais oficiais do Governo Federal, sendo produzidos para normatizar as políticas públicas de saúde do SUS ao longo das duas primeiras décadas do século XXI. Eles compõem o referencial teórico normativo e as diretrizes relativas ao processo de trabalho do NASF, demarcando e definindo o modo de atuação dos profissionais dessa equipe.
Dois objetivos foram os norteadores da análise documental44 Cellard AA. Análise documental. In: Poupart J, Deslauriers JP, Groulx LH, Laperrière A, Mayer R, Pires AP. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes; 2010. p. 295-316.,55 Mattos RA, Baptista TWF, organizadores. Caminhos para análise das políticas de saúde. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2015.: identificar a proposta organizativa do NASF e suas principais modificações ao longo de sua implementação; e refletir acerca das orientações definidas nesses documentos em relação ao processo de trabalho e ao conceito do apoio matricial.
Para efeitos de compreensão, o período da análise foi dividido de acordo com o Quadro 1. Esses períodos são produzidos e marcados como a expressão de seu tempo sócio-histórico, sendo movidos por diversos interesses - às vezes distintos ou contraditórios ao próprio SUS.
O período inicial teve como característica os movimentos reivindicatórios de diferentes sujeitos, além dos primeiros desenhos de arranjo de equipe multiprofissional; no segundo, após a criação da equipe, nota-se um esforço do MS para divulgar e difundir o apoio matricial e os outros dispositivos do apoio, com a inclusão do NASF na primeira revisão da PNAB; no terceiro momento, novos parâmetros organizativos são estabelecidos e as ferramentas de atuação são aprimoradas, com vistas à universalização do apoio; no quarto é possível verificar o aumento do número de equipes NASF (eNASF) nacionalmente, e mudanças na forma de orientação da equipe; e no quinto e último período, outros parâmetros de custeio são definidos e uma pandemia de proporções catastróficas atinge o país, impondo adequações na organização do trabalho do NASF.
Foi feito ainda o levantamento do número de eNASF registradas no Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES) - série histórica de 2008 a 2021 -, com a intenção de ilustrar numericamente os desdobramentos dos documentos analisados, se favoreceram a implantação de novas equipes ou se representaram a sua diminuição.
O Quadro 2 apresenta os 17 documentos analisados, assim como os resultados encontrados. Na segunda coluna estão agrupadas as principais incorporações, mudanças e alterações identificadas nas normativas e publicações, movimentos que foram dando conformidade ao processo de trabalho do NASF.
Resultados
1o período: 2003 a 2007 - movimentos antecedentes
Na construção de uma política pública, aspectos de ordem técnica dividem espaço com interesses ideológicos e corporativos de categorias profissionais, empreendendo, em muitos casos, um embate de poderes e saberes55 Mattos RA, Baptista TWF, organizadores. Caminhos para análise das políticas de saúde. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2015.. O NASF pode ser entendido como um arranjo organizacional que surgiu a partir desse jogo de forças, as prefeituras pedindo mais incentivos financeiros, e os conselhos profissionais buscando maior inserção no SUS66 Almeida ER. A gênese dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2016. .
Outro fator que contribui para a construção de políticas para o SUS são as experiências municipais exitosas, que tomam projeção como boas práticas. No processo de criação do NASF, é possível identificar o pioneirismo de iniciativas em alguns municípios, como Betim/MG, Brumadinho/MG, Campinas/SP, Camaragibe/PE, Contagem/MG, Florianópolis/SC, Niterói/RJ, Santos/SP e Sobral/CE66 Almeida ER. A gênese dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2016.,77 Gutiérrez AC. Núcleo de Apoio a` Saúde da Família do Território Escola Manguinhos: análise sob a perspectiva do apoio matricial [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2014..
Em 2003, o MS inicia as discussões do Núcleo de Saúde Integral, projeto para a inclusão de uma equipe multiprofissional na atenção básica. Os estudos não avançam, porém, em 2005, a proposta ganha corpo como Núcleo de Atenção Integral na Saúde da Família (NAISF)88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 1.065, de 4 de julho de 2005. Cria os Núcleos de Atenção Integral na Saúde da Família, com a finalidade de ampliar a integralidade e a resolubilidade da Atenção a` Saúde. Diário Oficial da União 2005; 4 jul.. Sugerido com a finalidade de ampliar a capacidade resolutiva da ESF, promover a integralidade da atenção e ações de promoção da saúde, a portaria de criação do NAISF foi revogada dois dias após a publicação, com a justificativa da não definição de aporte financeiro aos municípios66 Almeida ER. A gênese dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2016.. Apesar da vida curta, é possível encontrar artigos que mencionam a implantação de alguns NAISF99 Véras MMS, Quinderé PHD, Ferreira LP, Aragão JMGA, Coelho MAAA. Sistema de Informação dos Núcleos de Atenção Integral na Saúde da Família - SINAI. Saude Soci 2007; 16(1):165-171.,1010 Oliveira CO, Rocha RM, Cutulo LRA. Algumas palavras sobre o Nasf: relatando uma experiência acadêmica. Rev Bras Educ Med 2012; 36(4):574-580..
A proposta do suporte multiprofissional volta à pauta em 2007, com os debates sendo liderados por um grupo de trabalho proposto pelo MS. Após intensas discussões, o grupo entende que o modelo de equipe de referência e retaguarda especializada, centralizado na função apoio e no matriciamento, permitiria a oferta de um cuidado mais abrangente66 Almeida ER. A gênese dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2016.. No ano seguinte, é publicada a portaria no 154/2008, que cria o NASF22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 154, de 24 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família - NASF. Diário Oficial da União 2008; 4 mar..
2o período: 2008 a 2011 - diretrizes do apoio
Com a criação do NASF, o MS conseguiu compor com os principais interesses que se colocavam: definiu valores de transferência aos municípios para a implementação e manutenção das equipes; possibilitou a ampliação do escopo das intervenções das Unidades Básicas de Saúde (UBS), a partir da cogestão33 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2015. e articulação da equipe multiprofissional com os profissionais da ESF; e permitiu a expansão do mercado de trabalho para 13 áreas profissionais consideradas da saúde.
Mesmo sendo derivado da teoria Paidéia de Gastão Wagner de Sousa Campos, o conceito-chave de apoio matricial, que define o modo de articulação entre uma equipe de apoio - NASF - e as equipes de referência - ESF -, não é mencionado na portaria 154. Supõe-se que tal fato pode ter sido uma estratégia dos elaboradores para diminuir resistências à proposta nesse formato, que vinham das discussões do NAISF. À época, dois grupos disputavam politicamente os rumos da equipe a ser criada - se como uma equipe de apoio (matricial) ou um grupo de especialistas para prestar assistência direta aos usuários66 Almeida ER. A gênese dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2016.. Apesar da omissão do conceito, a educação continuada e o atendimento a casos específicos aparecem como ações a serem realizadas pelos NASF, compondo com as duas forças na mesma proposta.
A partir da expansão do número de NASF, o MS inicia o processo de qualificação dos processos de trabalho dos profissionais. O aumento na escala de equipes no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) trouxe a necessidade de discussão de como essas práticas vinham sendo desenvolvidas, em parte pela dificuldade de se operar sob a lógica do apoio matricial1111 Melo EA, Miranda L, Silva AM, Limeira RMN. Dez anos dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf): problematizando alguns desafios. Saude Debate 2018; 42(1):328-340..
Em 2009, é lançado o Cadernos de Atenção Básica (CAB) no 27 - Diretrizes do NASF. O CAB 27 é apresentado com a expectativa de que a publicação “possa realmente fortalecer a APS [Atenção Primária à Saúde] no País, por meio do aumento do conhecimento das equipes que nela atuam, sejam das equipes de SF, dos NASF, sejam da gestão em geral”1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção a` Saúde, Departamento de Atenção Básica, Núcleos de Apoio à Saúde da Família. Cadernos de Atenção Básica, número 27. Brasília: MS; 2009. (p. 8). O texto procura marcar a atuação prioritariamente numa perspectiva de trabalho compartilhado e interdisciplinar, deixando explícito que a abordagem individual direta aos usuários deveria acontecer “apenas em situações extremamente necessárias” (p. 8), buscando se afastar do modelo ambulatorial que a entrada de especialistas na ESF poderia sugerir.
O CAB 27 aponta a integralidade como a principal diretriz da equipe, pois é a partir da atenção integral aos usuários e coletivos que é possível planejar o cuidado menos fragmentado, ancorado nas necessidades peculiares de cada território. Além disso, apresenta e discute a pactuação do apoio, do apoio matricial, da clínica ampliada, do projeto terapêutico singular e do projeto de saúde no território, definidos como ferramentas tecnológicas necessárias para a organização e o desenvolvimento das ações.
Nos capítulos posteriores, a publicação apresenta as nove áreas estratégicas de atuação do NASF, com reflexões acerca do contexto dessas áreas no cenário nacional, as políticas vigentes e seus principais desafios. São discutidas formas de composição e pactuação de trabalhos conjuntos na ESF, estratégias de integração e outros meios de inserção das especialidades nas UBS.
Em 2010, o país registrou um aumento do número de usuários de crack. A “epidemia do crack”, como foi chamada pela mídia, fez com que o MS instituísse diversas medidas de enfrentamento1313 Nappo SA, Sanchez ZM, Ribeiro LA. Is there a crack epidemic among students in Brazil?: comments on media and public health issues. Cad Saude Publica 2012, 28(9):1643-1649.. Uma delas foi a criação de uma outra modalidade de NASF - NASF 3 -, voltada para a atenção integral em saúde mental, com prioridade para os usuários de crack, álcool e outras drogas em municípios com menos de 20 mil habitantes1414 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 2.843, de 20 de setembro de 2010. Cria, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família - Modalidade 3 - NASF 3, com prioridade para a atenção integral para usuários de crack, álcool e outras drogas. Diário Oficial da União 2010; 20 set.. A tipologia foi revogada na primeira revisão da PNAB em 20111515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial da União 2011; 21 out., com as equipes sendo convertidas para NASF 2. O NASF 3 retornou em 2012 com outro arranjo.
A PNAB de 2011 incorporou mudanças importantes que vinham sendo implantadas no SUS, como é o caso do NASF. No texto, há a inclusão do conceito do apoio matricial, que aparece em quatro momentos, não necessariamente associado à prática do NASF. Na 1a ocasião, está articulado à educação permanente e a processos de apoio institucional, como um dos “dispositivo[s] de apoio e cooperação horizontal”1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial da União 2011; 21 out. (p. 7). Depois, é mencionado no inciso sobre a composição de carga horária dos profissionais da ESF, que podem utilizar parte de seu horário de trabalho com atividades de educação permanente e apoio matricial. Em relação às atribuições do NASF, o apoiador deve operar compartilhando saberes e práticas em saúde, por meio de ações de apoio matricial junto às equipes vinculadas. E ao estabelecer algumas atribuições do sanitarista - categoria recém inserida na equipe -, o conceito apoio matricial é citado pela 4ª vez na PNAB. O texto indica que este profissional “pode reforçar as ações de apoio institucional e/ou matricial, ainda que as mesmas não sejam exclusivas dele”1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial da União 2011; 21 out. (p. 16).
Outras mudanças se relacionam à composição e às cargas horárias dos núcleos. Foram incluídas novas categorias profissionais, totalizando 19 profissões, que passaram a poder fazer parte de ambas as tipologias de NASF. Além de ter à sua disposição novas especialidades, os municípios têm liberdade para definir seus arranjos a partir da escolha do gestor. Também estabeleceu carga horária mínima para as equipes e a redução do número de equipes vinculadas.
Assim como no CAB 27, a PNAB reforça e o caráter coletivo e educativo das ações do NASF. Em um trecho onde são apontadas atividades a serem desenvolvidas, é citado o “atendimento conjunto ou não”, evitando o uso de “atendimento individual”. Novamente, o empenho é o de não “ambulatorizar” a conduta dos especialistas, imprimindo uma forma de atuação dirigida para a dimensão pedagógica do apoio matricial.
3o período: 2012 a 2015 - universalização do NASF
Em 2012, duas portarias foram editadas com efeitos sobre o NASF. A primeira atualizou o Piso da Atenção Básica (PAB) variável, dando um incremento de 1/3 para as equipes de NASF 2, mas mantendo os mesmos valores para o NASF 11616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 978, de 16 de maio de 2012. Define valores de financiamento do Piso da Atenção Básica variável para as Equipes de Saúde da Família, Equipes de Saúde Bucal e aos Núcleos de Apoio a` Saúde da Família, instituídos pela Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial da União 2012; 16 maio.. A segunda redefiniu os parâmetros de vinculação das duas modalidades de equipes já existentes e recriou o NASF 3, dessa vez sem vinculação às questões ligadas ao uso e abuso de drogas1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 3.124, de 28 de dezembro de 2012. Redefine os parâmetros de vinculação dos Núcleos de Apoio a` Saúde da Família (NASF) Modalidades 1 e 2 às Equipes Saúde da Família e/ou Equipes de Atenção Básica para populações específicas, cria a Modalidade NASF 3, e da´ outras providencias. Diário Oficial da União 2012; 28 dez..
Assim como nas outras modalidades, O NASF 3 pode ter em sua composição qualquer uma das 19 categorias profissionais estabelecidas na última versão da PNAB. Porém, deve acompanhar uma ou dua equipes, o que possibilita uma relação mais próxima que em outros arranjos, “configurando-se como uma equipe ampliada”1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 3.124, de 28 de dezembro de 2012. Redefine os parâmetros de vinculação dos Núcleos de Apoio a` Saúde da Família (NASF) Modalidades 1 e 2 às Equipes Saúde da Família e/ou Equipes de Atenção Básica para populações específicas, cria a Modalidade NASF 3, e da´ outras providencias. Diário Oficial da União 2012; 28 dez. (p. 3). Para as modalidades já existentes, a portaria trouxe a redução do número de equipes vinculadas: NASF 1, de cinco a nove equipes, e NASF 2, de três a quatro equipes. Essa redução foi um importante movimento do MS no sentido de qualificar o apoio prestado pelo NASF, que passou a se dedicar ao acompanhamento de menos equipes e usuários. Além disso, a criação do NASF 3 permitiu a universalização do apoio a todos os municípios brasileiros com ESF ou equipes de atenção básica para populações específicas, independentemente de sua extensão territorial ou população.
No primeiro semestre de 2013, o MS publicou duas portarias no mesmo dia. Uma aumentou os valores transferidos para o NASF 2 em 50%, além de estabelecer o montante para o NASF 3. A outra definiu o incentivo do segundo ciclo de avaliação do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB)1919 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 562, de 04 de abril de 2013. Define o valor mensal integral do incentivo financeiro do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), denominado como Componente de Qualidade do Piso de Atenção Básica Variável (PAB Variável). Diário Oficial da União 2013; 4 abr.. Neste ciclo, permitiu-se a adesão de todas as equipes da atenção básica e a realização, pela primeira vez, de processos avaliativos das equipes NASF em todo o território nacional2020 Brocardo D, Andrade CLT, Fausto MCR, Lima SML. Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF): panorama nacional a partir de dados do PMAQ. Saude Debate 2018; 42(Esp. 1):130-144.,2121 Lima RSA, Nascimento JA, Ribeiro KSQS, Sampaio J. O apoio matricial no trabalho das equipes dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família: análise a partir dos indicadores do 2º ciclo do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade. Cad Saude Colet 2019; 27(1):25-31..
Depois da definição de novos parâmetros, o MS se volta novamente para a qualificação do processo de trabalho, e em 2014 publica o Cadernos de Atenção Básica 39 - NASF - Volume 1: ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano. Se no CAB 27 o objetivo foi o de discutir as diretrizes do apoio, este segundo volume apresenta o “como fazer”. Ter sido lançado cinco anos após a implementação do NASF permitiu o acúmulo de experiências para a elaboração de um material técnico que dialogasse com a prática e que pudesse refletir sobre os principais atravessamentos na operacionalização do apoio matricial2222 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção a` Saúde, Departamento de Atenção Básica. Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Cadernos de Atenção Básica, número 39. Brasília: MS; 2014..
A publicação parte das ações que compõem a agenda dos profissionais para pensar o apoio matricial, refletindo a respeito da infraestrutura necessária e das condições para que essas atividades aconteçam. São definidos elementos estruturantes das intervenções: a reunião de matriciamento; a reunião de equipe NASF; o atendimento individual compartilhado e específico; o atendimento domiciliar compartilhado e específico; atividade coletiva compartilhada e específica; e a elaboração de materiais de apoio, rotinas, protocolos e outras ações de educação permanente.
O CAB 39 discute ainda outras ferramentas e estratégias de atuação, como o trabalho com grupos, o genograma e o ecomapa. Elas fazem parte do cardápio de atividades que os técnicos podem lançar mão, mas não devem ser limitadoras ou restritivas em relação a outras possibilidades e caminhos que venham a se colocar. Trabalhar a partir das demandas endereçadas, e com ofertas que partam dos apoiadores, a partir das situações singulares e concretas.
A publicação elenca alguns desafios do trabalho compartilhado, como a falta de formação para atuar na lógica do apoio matricial, a multiplicidade de demandas que são endereçadas aos apoiadores e o desconhecimento sobre as diferentes possiblidades de atuação do NASF. Aponta sugestões para o enfrentamento dessas questões, seja por meio de encontros e rodas de conversa para reflexão acerca dos desafios diários, ou a partir da intervenção direta dos gestores para mediar conflitos e impasses.
4o período: 2016 a 2018 - ampliação do apoio
Em 2015, foi identificado um surto de casos de crianças nascidas com microcefalia e outras malformações genéticas atribuídas ao zika vírus, especialmente na região Nordeste. Frente à emergência sanitária, o MS credenciou municípios brasileiros para implantar equipes de NASF2323 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 1.171, de 16 de junho de 2016. Credencia Municípios a receberem incentivos referentes aos Núcleos de Apoio a` Saúde da Família (NASF). Diário Oficial da União 2016; 16 jun.. A portaria trouxe como exigência que cada equipe tivesse ao menos um profissional de fisioterapia e, como recomendação, que contemplasse terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo ou psicólogo, profissionais afins da área de reabilitação. Com essas estratégias, buscou-se instrumentalizar as ESF para realizar ações de estimulação precoce e apoio psicossocial às famílias acompanhadas.
Para subsidiar o trabalho das equipes, o MS publicou “A estimulação precoce na Atenção Básica” em 2016. O guia afirma que cabe ao NASF acompanhar famílias e crianças, sendo “muito importante que ele também realize, além dos atendimentos compartilhados, atendimentos individuais específicos, de acordo com o projeto terapêutico pactuado”2424 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção a` Saúde, Departamento de Atenção Básica. A estimulação precoce na Atenção Básica: guia para abordagem do desenvolvimento neuropsicomotor pelas equipes de Atenção Básica, Saúde da Família e Núcleo de Apoio a` Saúde da Família (NASF), no contexto da síndrome congênita por Zika. Brasília: MS; 2016. (p. 16-17). O manual evidencia a dimensão clínico-assistencial do apoio matricial, o que pode ser entendido como uma mudança de direcionamento em relação à atuação do NASF até então. Nas considerações finais, a publicação reitera a orientação, sinalizando a importância da abordagem individual na estimulação precoce, e pontua que esse tipo de atuação direta não contraria os preceitos do apoio matricial.
No segundo semestre de 2017, foi publicada a última revisão da PNAB. Uma atualização acompanhada de muitas críticas, tanto em relação ao processo de construção sem a participação social, como em relação às modificações aprovadas e seus possíveis impactos no enfraquecimento do SUS e na privatização da Atenção Básica2626 Almeida ER, Sousa ANA, Brandão CC, Carvalho FFB, Tavares G, Silva KC. Política Nacional de Atenção Básica no Brasil: uma análise do processo de revisão (2015-2017). Rev Panam Salud Publica 2018; 42:e180.,2727 Giovanella L, Franco CM, Almeida PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Cien Saude Colet 2020; 25(4):1475-1481..
Em relação ao NASF, o texto traz importantes alterações. A equipe passa a ser denominada Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica - NASF-AB. Sai o conceito “apoio”, entra o adjetivo “ampliado”. Com a mudança, o NASF-AB passa a dar suporte a todos tipos de equipes, incluindo a recém-criada equipe de Atenção Básica, modelo concorrente da Saúde da Família.
Em uma leitura mais atenta, pode-se perceber que, além da troca do substantivo “apoio”, o conceito apoio matricial é retirado da política de atenção básica. No entanto, ao mesmo tempo em que é omitido enquanto conceito, os princípios do apoio matricial são afirmados nas três competências específicas definidas na legislação. No item “a”, a cogestão comparece por meio do planejamento conjunto com as equipes acompanhadas. A atribuição “b” aponta para a ampliação da clínica e consegue sintetizar a finalidade da atuação de uma equipe de apoio junto à equipe de referência - contribuir para o aumento da capacidade de análise e de intervenção e, como consequência, produzir maiores coeficientes de autonomia. No item “c”, listam-se as diferentes possibilidades e formas de atuação, como discussão de caso, atendimentos individuais, construção conjunta de projetos terapêuticos, educação permanente e discussão do processo de trabalho, formas de intervenções que estão diretamente ligadas às duas dimensões do apoio matricial - assistencial e a pedagógica.
5o período: 2019 a 2021 - o desmonte do NASF?
Os quatro períodos antecedentes podem ser caracterizados como aqueles em que se buscou a institucionalização de uma política. Todas as reinvindicações, embates e conquistas foram frutos de um longo processo de disputa de trabalhadores, usuários e gestores, e que se materializaram na consolidação do NASF. O quinto e último período, marcado por outra tomada de posição do MS em relação à equipe, e atravessado por milhares de mortes provocadas pela pandemia do SARS-CoV-2, traz algumas incertezas, por isso o subtítulo em forma de pergunta pessimista.
O Programa Previne Brasil2828 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 2.979, de 12 de novembro de 2019. Institui o Programa Previne Brasil. Diário Oficial da União 2019; 13 nov., editado em novembro de 2019, estabeleceu o novo modelo de financiamento de custeio da atenção primária à saúde (APS), um misto composto de capitação ponderada, pagamento por desempenho e incentivo para ações estratégicas. O pagamento por desempenho é aferido a partir de indicadores definidos em portaria específica, e para os anos de 2021 e 2022 serão monitoradas, entre outras, as ações multiprofissionais no âmbito da APS2929 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 3.222, de 1 de dezembro de 2019. Dispõe sobre os indicadores do pagamento por desempenho, no âmbito do Programa Previne Brasil. Diário Oficial da União 2019; 1 dez..
Sobre os incentivos às ações estratégicas, o programa não inclui o NASF, o que na prática extingui o financiamento discricionário. Além disso, revoga diversas normativas, entre elas a Seção II da Portaria de Consolidação no 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, que definia parâmetros de vinculação do NASF, como as cargas horárias dos profissionais e das equipes, e os números mínimo e máximo de equipes vinculadas.
Em resposta às críticas feitas, o MS editou a Nota Técnica 03/20203030 Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Em defesa da atenção primária e do direito universal a` saúde: pela revogação da Portaria nº 2979/19 do Ministério da Saúde [Internet]. [acessado 2021 jan 20]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2019/11/Nota_em_defesa_atencao_primaria_21_novembro_2019-1.pdf
https://www.abrasco.org.br/site/wp-conte... ,3131 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Nota Técnica no 03/2020. [acessado 2021 ago 15]. Disponível em: https://www.conasems.org.br/wp-content/uploads/2020/01/NT-NASF-AB-e-Previne-Brasil.pdf
https://www.conasems.org.br/wp-content/u... , em que assumiu a extinção dos parâmetros de conformação e de financiamento. E informou que, conforme previsto na portaria no 3.222/19, arranjos de equipe interdisciplinar poderão ser financiados por meio de pagamento por desempenho em 2021, na condição de ações multiprofissionais no âmbito da APS. A nota indica que os especialistas podem ser cadastrados junto à eSF ou à equipe de Atenção Primária (eAP), tornando-se um membro fixo e orgânico desses coletivos.
A última normativa analisada é a portaria no 37/2021, editada em substituição à de no 99/2020, que redefiniu os tipos de equipes da Atenção Primária no SCNES, incluindo a equipe 72 - Equipe do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Primária (eNASF-AP)3232 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 99, de 7 de fevereiro de 2020. Redefine registro das Equipes de Atenção Primária e Saúde Mental no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Diário Oficial da União 2020; 7 fev.,3333 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 37, de 18 de janeiro de 2021. Redefine registro das Equipes de Atenção Primária e Saúde Mental no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Diário Oficial da União 2021; 18 jan.. O código 72 reúne as três modalidades de NASF, define outro nome para o núcleo e permite novamente que novas equipes NASF sejam cadastradas no CNES, o que havia sido vedado pelo Previne Brasil. A partir de maio de 2020, os municípios iniciaram a migração para o novo código, processo ainda em curso.
Reflexo das políticas no número de equipes cadastradas no Brasil
Os dados da Tabela 1 foram agrupados de acordo com os cinco períodos de construção desta pesquisa. Eles permitem a visualização da construção histórico-política da equipe, mostrando os efeitos das políticas adotadas pelo MS desde a implantação do NASF, ora induzindo a criação de mais núcleos, como na criação do NASF 3, ora produzindo a diminuição do número de equipes, como pode ser visualizado no último período. Como referência, foram utilizados os meses de dezembro de cada ano.
Os números mostram um pequeno crescimento nos quatro primeiros anos, num período em que ainda estava sendo apresentada a proposta de trabalho do NASF. A publicação do CAB 27, os cursos oferecidos pelo MS e a inclusão da equipe na primeira revisão da PNAB de 2011 definiram as diretrizes do apoio matricial e afirmaram o NASF como uma política importante da atenção básica, induzida pelo MS.
As equipes apresentam o aumento mais expressivo a partir de 2012, ano em que foram aprovadas diversas portarias relevantes, como a 3.124, que mudou os parâmetros de vinculação dos NASF 1 e 2, e recriou o NASF 3; há uma nova definição de valores de financiamento da equipe em 2012 e 2013; um novo CAB é editado em 2014, avançando na discussão sobre os desafios e potenciais dos modos de operar do NASF.
O advento do zika vírus e a publicação da PNAB de 2017, que além da mudança no nome trouxe a ampliação do alcance para todas as equipes da atenção básica, mantiveram os rumos de crescimento e de consolidação da multiprofissionalidade, a partir do arranjo específico do NASF.
O cenário de ampliação e aposta do MS é interrompido em 2020, depois de ter alcançado o maior número de todos os tempos em janeiro de 2020, com 5.904 NASF. O início da queda no número de equipes cadastradas no SCNES ocorre junto as mudanças do Previne Brasil e a chegada da pandemia de COVID-19 no país.
Para fins de análise sobre os reflexos de dois anos de vigência do novo modelo de financiamento da atenção básica, na Tabela 2 e no Gráfico 1 estão reunidas as variações mensais dos números de equipes NASF nos anos de 2020 e 2021.
É possível observar a diminuição gradual dos cadastros a partir de fevereiro de 2020, com oscilações em alguns meses. A maior queda é vista em maio de 2020, início da migração para o novo código - NASF-AP, com 111 equipes descadastradas. Em dezembro de 2021, eram 5.525 eNASF no SCNES. Considerando os dois anos de vigência do Previne Brasil, foram descredenciadas 379 equipes de NASF.
Importante ressaltar que a Tabela 2, além da vigência do novo modelo de financiamento, reflete, a partir do mês de março de 2020, os efeitos da pandemia de COVID-19. Mensurar a influência da pandemia e das questões econômicas que tal cenário envolve, como a diminuição de investimentos e a necessidade de realocação de recursos financeiros para outros setores, produz um cenário de análise diferenciando de outros períodos.
O material suplementar do presente artigo está disponível em: https://doi.org/10.48331/scielodata.8PCFOH
Discussão
A partir dos resultados, é possível observar, nos quatro primeiros períodos, a construção e o fortalecimento do arranjo multiprofissional proposto pelo NASF. Esse processo se materializou na ampliação do número de equipes implantadas, engendrando o aumento do escopo das intervenções da Atenção Básica e contribuindo com a integralidade do cuidado aos usuários e coletivos.
Desde a publicação da portaria no 154, em 2008, até a última revisão da PNAB, verificou-se a abertura do NASF para mais profissionais de saúde; os parâmetros de vinculação foram diminuindo, aproximando apoiadores e apoiados; possibilitou-se que todos os municípios pudessem implantar suas equipes com aporte financeiro do MS, que também foram sendo incrementados; permitiu-se maiores graus de autonomia aos gestores para que pudessem moldar as equipes a partir de suas demandas, desde que observados alguns critérios de parametrização.
As orientações do CAB 27, primeiro documento norteador do NASF, buscavam marcar uma atuação direcionada para ações técnico-pedagógicas, imprimindo um novo jeito de colaboração interprofissional. Contudo, a resistência de alguns apoiadores a atender demandas assistenciais pode ter contribuído para o quadro de questionamentos feitos à equipe3434 Klein AP, d'Oliveira AFPL. O "cabo de força" da assistência: concepção e prática de psicólogos sobre o Apoio Matricial no Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Cad Saude Publica 2017; 33(1):e00158815.,3535 Tesser CD. Núcleos de Apoio à Saúde da Família, seus potenciais e entraves: uma interpretação a partir da atenção primária à saúde. Interface 2016; 21(62): 565-578..
O CAB 39 consegue avançar na discussão em relação à tensão entre atendimentos individuais e matriciamento. Em todo o texto, abordagens individuais são colocadas como uma das dimensões do apoio, sempre articulado a um plano de cuidado compartilhado, sem a utilização de ressalvas como “apenas em situações extremamente necessárias”, como visto no CAB 27. Compreende-se que a justificativa para o uso dessas expressões era a de marcar o modo de funcionamento diferente do NASF, sobretudo em relação às antigas formas de encaminhamentos. Tais movimentos se orientavam nas ações de caráter pedagógico, baseadas no compartilhamento de saberes e de educação permanente, estratégias utilizadas para produzir a ampliação do conhecimento e a autonomia dos profissionais que delas participam.
No “Manual de estimulação precoce na Atenção Básica”, a dimensão clínico assistencial toma o protagonismo das intervenções, evidenciando cada vez mais que ações clínicas diretas para os usuários não só fazem parte do escopo das ações como são imprescindíveis e complementares do apoio matricial.
Considerando as novas configurações das eNASF-AP, em que o gestor tem total liberdade para definir arranjos e composições, entende-se que essas modificações podem trazer riscos para a continuidade deste modelo de equipe multiprofissional, seja em relação aos critérios que serão utilizados em composições mais flexíveis, seja pelo fim do financiamento discricionário3636 Massuda A. Mudanças no financiamento da Atenção Primária à Saúde no Sistema de Saúde Brasileiro: avanço ou retrocesso? Cien Saude Colet 2020; 25(4):1181-1188.,3737 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad Saude Publica 2020; 36(9):e00040220..
Além disso, algumas perguntas precisam ser colocadas: como oferecer acompanhamento de qualidade sem parametrização mínima? No caso de os profissionais serem cadastrados diretamente como membros das eSF ou da eAP, não se estaria voltando ao modelo anterior à Estratégia Saúde da Família, nos moldes de ambulatórios ou centros de saúde? Que ações de matriciamento esses profissionais conseguirão sustentar no cotidiano, ou pretende-se centralizar as intervenções apenas em atendimentos diretos?
Por outro lado, o fortalecimento da dimensão clínico-assistencial em detrimento da dimensão pedagógica pode enfraquecer os processos de reformulação da clínica e da gestão que o modo de funcionamento do NASF propõe. A omissão do conceito apoio matricial da PNAB, a retirada do substantivo apoio do nome da equipe e fim do incentivo financeiro discricionário sugerem um direcionamento intencional e coordenado para o desmonte. Ao buscar espaços mais democráticos, autônomos e participativos no SUS, o apoio matricial perde espaço nas políticas de saúde do governo Bolsonaro.
Considerações finais
Este estudo conclui que, nos dois primeiros anos de vigência, o Programa Previne Brasil promoveu o desmonte do NASF, com a redução de 379 equipes, significando um retrocesso a números próximos das eNASF que estavam cadastradas em fevereiro de 2018. Parte-se do pressuposto que as portarias que vêm sendo editadas desde 2019, como as que modificaram as formas de financiamento da atenção básica e alteraram o registro das equipes no SCNES, visam, entre outras finalidades, substituir o NASF por outros tipos de equipes multiprofissionais. Cabe ressaltar que um dos indicadores de pagamento por desempenho previsto na portaria 3.222/2019 são as ações multiprofissionais na APS. Enquanto o NASF perde o custeio e equipes são descontinuadas, outros arranjos são incentivados pelo MS.
O fato de haver menos equipes atuando tem impacto direto no número de profissionais em atividade, diminuindo a capacidade de resposta do SUS frente ao cenário acumulado de milhões de pessoas infectadas pela COVID-19, além de produzir desassistência também para os indivíduos acompanhados pelas eNASF descredenciadas. No contexto de uma pandemia duradoura, com grande número de agravos e sequelas decorrentes da doença3838 Miranda DAP, Gomes SVC, Filgueiras PS, Corsini CA, Almeida NBF, Silva RA, Medeiros MIVARC, Vilela RVR, Fernandes GR, Grenfell RFQ. Long COVID-19 syndrome: a 14-months longitudinal study during the two first epidemic peaks in Southeast Brazil. Trans R Soc Trop Med Hyg 2022; trac030., a atenção básica vai precisar criar mecanismos de identificação e atenção a esses casos3939 Ruiz D. Pós-Covid-19 e a importância da ESF para o cuidado e reabilitação [Internet]. [acessado 2022 maio 10]. Disponível em: http://link.abrasco.org.br/accounts/118857/messages/803?email=mauriciomattos@gmail.com&c=1629033523&contact_id=55830&envelope_id=658
http://link.abrasco.org.br/accounts/1188... , muitos deles demandando intervenções de diferentes núcleos profissionais, renovando a potência do trabalho em equipe. Sendo assim, o NASF representa o arranjo estratégico para a abordagem multifatorial desses agravos, em conjunto com as eSF, visto que a participação de especialistas de serviço social, fisioterapia, nutrição, psicologia, fonoaudiologia e demais categorias que podem compor a equipe amplia a capacidade de resposta das unidades de saúde frente às novas e às antigas demandas dos territórios.
Sobre o fim do repasse discricionário, iniciativas como a do Programa de Financiamento da Atenção Primária à Saúde do Estado do Rio de Janeiro (PREFAPS)4040 Secretaria de Estado de Saúde. Resolução SES n° 1938 de 25 de novembro de 2019. Altera a resolução SES N° 1.846, de 9 de maio de 2019, que aprovou o Programa de Financiamento da Atenção Primária a` Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro 2019; 25 nov., que incluiu o NASF no rol de equipes financiadas no final de 2019, vêm contribuindo para a manutenção dos núcleos, fortalecendo as intervenções da ESF no cenário da pandemia. No PREFAPS, as equipes de NASF 1 e NASF 2 dos municípios fluminenses recebem incentivos financeiros mensais, chamado no programa de componente sustentabilidade. Outro incentivo - componente expansão - é pago em parcela única para novas equipes implantadas, funcionando nos mesmos moldes que eram adotados pelo MS antes do Previne Brasil.
Desde o ano de sua criação em 2008, o modo de funcionamento do NASF foi se adaptando às prerrogativas do SUS. Se no início se direcionava prioritariamente para ações de matriciamento, percebeu-se que os atendimentos diretos não eram contraditórios ao preconizado pelo apoio matricial. A busca por um equilíbrio entre as duas dimensões - pedagógica e assistencial -, tomando como pontos de partida e chegada as necessidades de usuários e coletivos, produz intervenções voltadas para a clínica ampliada e compartilhada e a cogestão do cuidado em saúde. Conseguir modular as diversas possibilidades de intervenção é fruto de uma construção diária, feita a partir da micropolítica do trabalho interprofissional. Para isso acontecer, ambas as equipes, apoiadores e apoiados, precisam estar abertos ao encontro e ao novo.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Ago 2022 - Data do Fascículo
Set 2022
Histórico
- Recebido
29 Set 2021 - Aceito
16 Maio 2022 - Publicado
18 Maio 2022