Percepção e atitude do cirurgião-dentista diante do atendimento emergencial a mulheres em situação de violência: uma revisão de escopo

Silvilene Giovane Martins Pereira Andrea Maria Duarte Vargas Aline Araujo Sampaio Carlos José de Paula Silva Bárbara da Silva Mourthé Matoso Efigênia Ferreira e Ferreira Sobre os autores

Resumo

Avaliar por meio de uma revisão de escopo estudos que abordam a percepção e atitude do cirurgião-dentista diante do atendimento a mulheres em situação de violência. Utilizando os descritores women violence, dentist attendence ou dentist care, foram identificados 473 artigos, sendo incluídos 13, ao final da seleção. Embora a necessidade de capacitação tenha sido predominante, ela não é suficiente. Existe uma fragilidade em se compreender a violência como problema de saúde, de entender o papel do profissional na solução desse problema, os fatores que podem contribuir com seu crescimento ou seu controle. Os resultados revelaram que o cirurgião-dentista apresentou maior dificuldade do que os outros profissionais no enfrentamento e exigem um amplo aprendizado. O reconhecimento dos referidos casos pelo cirurgião-dentista exige a incorporação de medidas educativas que provoquem mudanças culturais, desconstrução de normas de gênero e a desnaturalização desse fenômeno social.

Palavra-chave:
Violência contra mulheres; Cirurgião-dentista; Revisão escopo

Introdução

A Declaration on the Elimination of Violence against Women11 United Nations. Declaration on the Elimination of Violence against Women. Proclaimed by General Assembly Resolution [Internet]. 1993 [cited 2020 mar 18]. Available from: https://www.refworld.org/docid/3b00f25d2c.html.
https://www.refworld.org/docid/3b00f25d2...
, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em seu artigo 1º, define violência contra as mulheres como “qualquer ato de violência baseado no gênero do qual resulte, ou possa resultar, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo as ameaças de tais atos, a coação ou a privação arbitrária de liberdade, que ocorra, quer na vida pública, quer na vida privada”.

Configura-se como um fenômeno que vem tomando proporções alarmantes no mundo, sendo considerada internacionalmente como problema de saúde pública e de violação dos direitos humanos das mulheres. Um estudo liderado pela WHO22 World Health Organization (WHO). Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence 2013 [Internet]. [cited 2020 mar 18]. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/85239.
https://apps.who.int/iris/handle/10665/8...
, considerando dados de 80 países, mostrou que cerca de 30% das mulheres sofreram violência física e/ou sexual por parceiro íntimo ao menos uma vez na vida. No Brasil, em consonância com o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), em 2017, do total de notificações de violência, 71,8% compreenderam mulheres33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Sistema de Infomação Hospitalar [Internet]. [acessado 2020 mar 18]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sinannet/cnv/violebr.def.
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht...
. O gênero é um dos determinantes sociais mais significativos nos resultados de saúde, entretanto, a comunidade global de saúde é amplamente cega quanto ao gênero44 Heise L, Greene ME, Opper N, Stavropoulos M, Harper C, Nascimento M, Zewdie D. Gender inequality and restrictive gender norms: framing the challenges to health. Lancet 2019; 393(10189):2440-2454..

Há consenso na literatura de que as mulheres em situação de violência estão presentes no sistema de saúde, porém, na maioria dos casos, a violência em si não será detectada pelos profissionais de saúde em sua prática55 Plichta SB. Interactions Between Victims of Intimate Partner Violence Against Women and the Health Care System: Policy and Practice Implications. Trauma Violence Abuse 2007; 8(2):226-239.. Nesse sentido, tanto o profissional quanto o sistema de saúde e as instituições de ensino que os capacitam, são imprescindíveis no enfrentamento da violência contra mulheres66 Garcia-MC, Hegarty K, D'Oliveira AF, Koziol-mclain J, Colombini gf. The health-systems response to violence against women. Lancet 2015; 385(9977):1567-1579.,77 Sawyer S, Coles J, Williams A, Williams B. A systematic review of intimate partner violence educational interventions delivered to allied health care practitioners. Med Educ 2016; 50(11):1107-1121., a partir do cuidado.

Em hospitais de pronto socorro ou pronto atendimento, cirurgiões bucomaxilofaciais compõem o quadro clínico, para atendimento de pacientes com traumas na região de crâneo, face e pescoço e por isso, convivem diariamente com mulheres em situação de violência88 Pereira SGM, Silva CJP, Pitchon A, Naves MD, Melo EM, Ferreira EF. O evento de violência urbana e o serviço de emergência SUS: profissionais de saúde diante da dor do usuário. Rev Med Minas Gerais 2016; 26 (Supl. 8): 168-173..

O trauma maxilofacial pode levar à desfiguração da face e as lesões são traumáticas nas dimensões biológica, social e emocional, ocorrendo com maior frequência em mulheres99 Rodrigues LG, Barbosa KGN, Silva CJP, Alencar GP, D'avila S, Ferreira EF, Ferreira RC. Trends of maxillofacial injuries resulting from physical violence in Brazil. Dent Traumatol 2020; 36(1):69-75.,1010 Le BT, Dierks EJ, Ueck BA, Homero LD, Potter BF. Maxillofacial injuries associated with domestic violence. J Oral Maxillofac Surg 2001; 59(11):1277-1283., sobretudo nos casos de violência interpessoal. Não raro observa-se o pouco conhecimento e habilidade no acolhimento, na integralidade e na escuta, desses profissionais1111 Love C, Gerbert B, Caspers N, Bronstone A, Perry D, Bird W. Dentists' attitudes and behaviors regarding domestic violence. The need for an effective response. J Am Dent Assoc 2001; 132(1):85-93.

12 Hendler TJ, Sutherland SE. Domestic violence and its relation to dentistry: a call for change in Canadian dental practice. J Can Dent Assoc 2007; 73(7):617.
-1313 D'Oliveira AFPL, Schraiber LB. Violence against women: between critical path and assistance multisectoral networks. J Med 2013; 92(2), 134-140..

A literatura evidencia que dentre os profissionais de saúde, o cirurgião-dentista apresenta boa chance de identificar os casos de mulheres em situação de violência, uma vez que o exame odontológico envolve a avaliação da cavidade oral e estruturas adjacentes, e o trauma maxilofacial é uma das principais lesões observadas em atendimentos desses casos. Porém, constata-se uma grande dificuldade deste profissional ver, identificar e lidar com casos de violência, quando no atendimento99 Rodrigues LG, Barbosa KGN, Silva CJP, Alencar GP, D'avila S, Ferreira EF, Ferreira RC. Trends of maxillofacial injuries resulting from physical violence in Brazil. Dent Traumatol 2020; 36(1):69-75.

10 Le BT, Dierks EJ, Ueck BA, Homero LD, Potter BF. Maxillofacial injuries associated with domestic violence. J Oral Maxillofac Surg 2001; 59(11):1277-1283.

11 Love C, Gerbert B, Caspers N, Bronstone A, Perry D, Bird W. Dentists' attitudes and behaviors regarding domestic violence. The need for an effective response. J Am Dent Assoc 2001; 132(1):85-93.

12 Hendler TJ, Sutherland SE. Domestic violence and its relation to dentistry: a call for change in Canadian dental practice. J Can Dent Assoc 2007; 73(7):617.

13 D'Oliveira AFPL, Schraiber LB. Violence against women: between critical path and assistance multisectoral networks. J Med 2013; 92(2), 134-140.

14 Connor PD, Nouer SS, Mackey SN, Banet MS, Tipton NG. Dental students and intimate partner violence: measuring knowledge and experience to institute curricular change. J Dent Educ 2011; 75(8):1010-1019.

15 Alalyani WS, Alshouib EN. Dentists awareness and action towards domestic violence patients A cross-sectional study among dentists in Western Saudi Arabia. Saudi Med J 2017; 38(1):82-88.

16 Lea SJ, Quinn B, Reynolds PA. The Role and Education of Dental Care Professionals in Identifying Domestic Violence: Report of an Audience Participation Exercise and Round Table Discussion. Tech Know Learn 2017; 22:219-226.

17 Parish CL, Pereyra MR, Abel SN, Siegel K, Pollack HA, Metsch LR. Intimate partner violence screening in the dental setting: Results of a nationally representative survey. J Am Dent Assoc 2018; 149(2):112-121.
-1818 McAndrew M, Pierre GC, Kojanis LC. Effectiveness of an online tutorial on intimate partner violence for dental students: a pilot study. J Dent Educ 2014; 78(8):1176-1181..

Os casos de mulheres em situação de violência impõem imensa carga sobre o sistema e profissionais de saúde. No contexto prolongado que se observou, com a pandemia de COVID-19, os obstáculos podem ter sido ainda maiores. Por um lado, existe o aumento da violência provocado pela mudança do modo de vida em decorrência da pandemia e por outro, um menor acesso aos serviços de atenção à saúde, agravado pela maior demanda, o que aumenta os desafios da assistência à violência contra mulheres1919 Hall KS., Samari G, Garbers S, Casey S, Diallo DD, Orcutt M, Moresky R. Centring sexual and reproductive health and justice in the global COVID-19 response. Lancet 2020; 395(10231):1175-1177.

20 Peterman A, Potts A, O'Donnell M, Thompson K, Shah N, Oertelt-prigione S, Nicole G. Pandemics and Violence Against Women and Children [Internet]. Washington, D.C.; 2020 [cited 2020 mar 18]. Available from: https://www.cgdev.org/sites/default/files/pandemics-and-vawg-april2.pdf.
https://www.cgdev.org/sites/default/file...
-2121 World Health Organization (WHO). Oral health Achieving better oral health as part of the universal health coverage and non communicable disease agendas towards 2030 Report by the Director-General. Executive Board 148th Session Provisional Agenda [Internet]. 2020 [cited 2020 mar 18]. Available from: https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/EB148/B148_8-en.pdf.
https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/...
.

Considerando o papel do atendimento em saúde, no reconhecimento e cuidado nesses casos, é de fundamental importância a realização de pesquisas que permitam a ampliação do conhecimento sobre esse fenômeno, sobretudo com relação à atuação do cirurgião-dentista.

Nesse contexto, o objetivo desta revisão de escopo foi mapear o que tem sido produzido na literatura sobre o cuidado prestado pelo cirurgião-dentista (CD), nos serviços emergenciais de saúde, quando do atendimento às mulheres em situação de violência.

Métodos

A metodologia de scoping review foi eleita para este estudo, uma vez que é uma abordagem que visa mapear a produção científica que sustenta uma área do conhecimento. Esse mapeamento deve incluir estudos relevantes em um campo de interesse e a finalidade de reconhecer as evidências produzidas2222 Arksey H, O'Malley L. Scoping studies: towards a methodological framework. Int J Soc Res Methodol 2005; 8(1):19-32.,2323 Peters MDJ, Godfrey C, McInerney P, Munn Z, Tricco AC, Khalil, H. Chapter 11: Scoping Reviews (2020 version). In: Aromataris E, Munn Z, editors. JBI Manual for Evidence Synthesis [Internet]. JBI; 2020 [cited 2020 mar 18]. Available from: https://jbi-global-wiki.refined.site/space/MANUAL.
https://jbi-global-wiki.refined.site/spa...
.

Esse tipo de revisão é apropriado para identificar lacunas do conhecimento, para esclarecer conceitos-chave sobre um determinado tópico ou mesmo, em alguns casos, sintetizar evidências de forma mais eficaz e rigorosa. Detém características semelhantes a uma revisão sistemática, como sistematização, transparência e reprodutibilidade e de modo concomitante, reconhece a natureza e extensão das evidências científicas associadas ao tema pesquisado2222 Arksey H, O'Malley L. Scoping studies: towards a methodological framework. Int J Soc Res Methodol 2005; 8(1):19-32.,2323 Peters MDJ, Godfrey C, McInerney P, Munn Z, Tricco AC, Khalil, H. Chapter 11: Scoping Reviews (2020 version). In: Aromataris E, Munn Z, editors. JBI Manual for Evidence Synthesis [Internet]. JBI; 2020 [cited 2020 mar 18]. Available from: https://jbi-global-wiki.refined.site/space/MANUAL.
https://jbi-global-wiki.refined.site/spa...
.

No decurso da investigação, foi utilizado o protocolo do Instituto Joanna Brigs para revisões de escopo (JBI)2222 Arksey H, O'Malley L. Scoping studies: towards a methodological framework. Int J Soc Res Methodol 2005; 8(1):19-32. e os estudos foram selecionados com base no fluxograma recomendado por este protocolo.

A questão da pesquisa foi construída usando a estratégia População, Conceito e Contexto (PCC), conforme sugerido pelo protocolo JBI2323 Peters MDJ, Godfrey C, McInerney P, Munn Z, Tricco AC, Khalil, H. Chapter 11: Scoping Reviews (2020 version). In: Aromataris E, Munn Z, editors. JBI Manual for Evidence Synthesis [Internet]. JBI; 2020 [cited 2020 mar 18]. Available from: https://jbi-global-wiki.refined.site/space/MANUAL.
https://jbi-global-wiki.refined.site/spa...
: P - população (cirurgiões-dentistas); C - conceito (atitude do cirurgião-dentista quando em atendimento a mulheres em situação de violência); C - contexto (atendimento de traumas bucomaxilofaciais em hospitais de urgência, a mulheres em situação de violência).

Com base no PCC, elaborou-se a seguinte questão de pesquisa: “O que tem sido produzido na literatura científica sobre as atitudes do cirurgião-dentista, em atendimentos clínico-emergenciais, a mulheres em situação de violência?”.

A estratégia de busca bibliográfica foi construída pela combinação dos descritores, tendo como base os elementos da pergunta de pesquisa (PCC): women violence AND dentist attendence OR dentist care AND dentist atitude, usando operadores booleanos “AND” e “OR”.

A busca eletrônica foi realizada em quatro bases de dados e a estratégia foi a mesma nas referidas bases: PubMed - Medline Ovid - Web of Science e SCOPUS. A identificação dos estudos foi realizada em novembro de 2019. Esses registros foram exportados usando EndNoteX7 e duplicatas foram excluídas, iniciando por software e concluídas com identificação manual.

Não foram estabelecidas restrições quanto ao desenho, data de publicação ou idioma dos estudos, sendo identificados artigos a partir de 1962.

A primeira seleção considerou títulos e resumos. Os artigos foram selecionados por dois revisores (SGMP e EFF), obtendo-se boa concordância entre eles (Kappa de Cohen=0,775). Em seguida, os artigos completos dos documentos selecionados foram analisados por três pesquisadores (SGMP, EFF e AMDV). Para a inclusão dos textos selecionados, os pesquisadores optaram pelo consenso. O fluxograma representativo da seleção dos artigos, da busca inicial à inclusão dos selecionados encontra-se demonstrado na Figura 1.

Figura 1
Fluxograma da seleção dos artigos, identificação do estudo e processo de inclusão (PRISMA - ScR).

Os critérios de inclusão que determinaram a seleção dos estudos foram informados pela questão e objetivo da pesquisa. As revisoras discutiram cada um dos critérios acordados nas reuniões da equipe. Os seguintes critérios de inclusão foram definidos: 1. Artigos cujos resumos estavam disponíveis; 2. Amostra/população que pelo menos incluísse o cirurgião-dentista; 3. O tema deveria ser o atendimento a mulheres em situação de violência, sem definição do tipo de violência; 4. Ênfase no atendimento e comportamento do cirurgião-dentista.

Para a elaboração do quadro-síntese dos achados, foram definidas as seguintes categorias (1) autor, país, ano de publicação; (2) objetivo; (3) aspectos metodológicos, (4) resultados. Os estudos incluídos, ao final da seleção, foram publicados no período de 2000 a 2018.

Resultados

Nesta revisão de escopo, foram incluídos 13 artigos. Oito foram estudos transversais, dois estudos qualitativos, duas revisões de literatura e uma análise documental. No que se refere ao país de origem dos estudos, as publicações foram produzidas em sete países diferentes, com maior concentração de publicação nos Estados Unidos (7 estudos). Sete artigos têm como população os cirurgiões-dentistas ou estudantes de odontologia, exclusivamente. Os outros avaliam profissionais de saúde, todos incluindo o cirurgião-dentista. Em relação ao idioma, todos os estudos foram publicados em inglês. O Quadro 1 apresenta a síntese dos artigos selecionados.

Quadro 1
Síntese dos artigos selecionados na revisão de escopo.

Discussão

Os estudos incluídos objetivaram discutir a percepção e as atitudes no cuidado dispensado por profissionais de saúde às mulheres em situação de violência. Entre os 13 incluídos, três abordam somente questões do atendimento e os outros dez discutem mais a educação, capacitação ou treinamento. Abarcaram a necessidade de se identificar habilidades e competências dos profissionais, mas não foram muito além do conhecimento técnico-biológico.

É reforçada a ideia de educação, experiência clínica, treinamento e qualificação, como solução para o problema de identificação, o primeiro desafio a ser enfrentado1111 Love C, Gerbert B, Caspers N, Bronstone A, Perry D, Bird W. Dentists' attitudes and behaviors regarding domestic violence. The need for an effective response. J Am Dent Assoc 2001; 132(1):85-93.,1515 Alalyani WS, Alshouib EN. Dentists awareness and action towards domestic violence patients A cross-sectional study among dentists in Western Saudi Arabia. Saudi Med J 2017; 38(1):82-88.,2424 Goff HW, Byrd TL, Shelton AJ, Parcel GS. Health care professionals' skills, beliefs, and expectations about screening for domestic violence in a border community. Fam Community Health 2001; 24(1):39-54.. Os próprios profissionais solicitam mais treinamento, sobretudo os cirurgiões dentistas2525 Goff HW, Byrd TL, Shelton AJ, Parcel GS Preparedness of health care practitioners to screen women for domestic violence in a border community. Health Care Women International 2003; 24:135-148.. Métodos mais eficientes de aprendizagem são testados2525 Goff HW, Byrd TL, Shelton AJ, Parcel GS Preparedness of health care practitioners to screen women for domestic violence in a border community. Health Care Women International 2003; 24:135-148. ou se discute a validade de protocolos, como solução para as falhas observadas55 Plichta SB. Interactions Between Victims of Intimate Partner Violence Against Women and the Health Care System: Policy and Practice Implications. Trauma Violence Abuse 2007; 8(2):226-239..

Somente um dos estudos foi desenvolvido no Brasil2626 Garbin S, Rovida S, Tania Adas TC, Alves AI, Isper GJ. Perceptions and attitudes of public health service dentists in the face of family violence in 24 municipalities in the state of Sao Paulo, Brazil, 2013-2014. Epidemiol Serv Saude 2016; 25(1):179-186., com 111 cirurgiões-dentistas e apresenta resultados semelhantes aos já comentados. Os resultados apontam como causa da inoperância, frente à violência, o desconhecimento da legislação existente, do processo de identificação e notificação, ou mesmo da existência de formulários para o processo. Mas afirmam a necessidade de intervenção, apesar de se julgarem não responsáveis por essas atividades1111 Love C, Gerbert B, Caspers N, Bronstone A, Perry D, Bird W. Dentists' attitudes and behaviors regarding domestic violence. The need for an effective response. J Am Dent Assoc 2001; 132(1):85-93. e tendo, pelas condutas clínicas de sua prática, grandes possibilidades de fazer a identificação e reconhecer a violência.

Em um dos estudos avaliados, uma revisão sistemática77 Sawyer S, Coles J, Williams A, Williams B. A systematic review of intimate partner violence educational interventions delivered to allied health care practitioners. Med Educ 2016; 50(11):1107-1121. os autores questionam a fragilidade dos seus resultados, o que consideramos também no presente estudo. Alguns apresentaram o método pouco claro, composição amostral indefinida, análises insuficientes.

Mas os aspectos apontados no presente estudo, ainda que como hipóteses, devem ser considerados. Em outros estudos1111 Love C, Gerbert B, Caspers N, Bronstone A, Perry D, Bird W. Dentists' attitudes and behaviors regarding domestic violence. The need for an effective response. J Am Dent Assoc 2001; 132(1):85-93.,1212 Hendler TJ, Sutherland SE. Domestic violence and its relation to dentistry: a call for change in Canadian dental practice. J Can Dent Assoc 2007; 73(7):617.,1717 Parish CL, Pereyra MR, Abel SN, Siegel K, Pollack HA, Metsch LR. Intimate partner violence screening in the dental setting: Results of a nationally representative survey. J Am Dent Assoc 2018; 149(2):112-121., com objetivos que os afastaram do presente trabalho, estes problemas são apontados. Contraditoriamente, em um dos estudos1414 Connor PD, Nouer SS, Mackey SN, Banet MS, Tipton NG. Dental students and intimate partner violence: measuring knowledge and experience to institute curricular change. J Dent Educ 2011; 75(8):1010-1019., 20% dos participantes (n=309) relatou experiência própria com a violência interpessoal e em outro2424 Goff HW, Byrd TL, Shelton AJ, Parcel GS. Health care professionals' skills, beliefs, and expectations about screening for domestic violence in a border community. Fam Community Health 2001; 24(1):39-54., a violência foi considerada justificável.

A revisão de escopo permitiu refletir sobre a construção da percepção do CD sobre a violência contra mulheres que não ocorre isoladamente e está incorporada em todos os aspectos da experiência humana e acadêmica deste profissional. Bons resultados no cuidado a essas mulheres podem levar ao reconhecimento e ao enfrentamento do fenômeno.

A capacitação é necessária e premente. Valida este achado o primeiro documento de caráter mundial da Organização Mundial da Saúde2626 Garbin S, Rovida S, Tania Adas TC, Alves AI, Isper GJ. Perceptions and attitudes of public health service dentists in the face of family violence in 24 municipalities in the state of Sao Paulo, Brazil, 2013-2014. Epidemiol Serv Saude 2016; 25(1):179-186. sobre o tema, recomendando que seja contemplado no currículo do profissional de saúde as questões de gênero, a fim de garantir uma atenção integral à saúde. Mas, outros aspectos poderiam, sendo compreendidos, facilitar o reconhecimento da violência, desnudando o problema para seu enfrentamento.

O primeiro ponto a ser considerado, não comentado em nenhum dos estudos se refere às normas de gênero. Dados globais apontam associações entre normas de gênero e saúde2727 Heise L, Greene ME, Opper N, Stavropoulou M, Harper C, Nascimento M, Zewdie D; Gender Equality, Norms, and Health Steering Committee. Gender inequality and restrictive gender norms: framing the challenges to health. Lancet 2019; 393(10189):2440-2454.

28 Weber AM, Cislaghi B, Meausoone V, Abdalla S, Mejía-Guevara I, Loftus P, Hallgren E, Seff I, Stark L, Victora CG, Buffarini R, Barros AJD, Domingue BW, Bhushan D, Gupta R, Nagata JM, Shakya HB, Richter LM, Norris SA, Ngo TD, Chae S, Haberland N, McCarthy K, Cullen MR, Darmstadt GL, Gender Equality, Norms and Health Steering Committee. Gender norms and health: insights from global survey data. Lancet 2019; 393(10189):2455-2468.
-2929 Heymann J, Levy J, Bose B, Ríos-Salas V, Equality NA. Improving health with programmatic, legal, and policy approaches to reduce gender inequality and change restrictive gender norms. Lancet 2019; 393(10190):2522-2534.. As normas de gênero “são as regras faladas e não faladas das sociedades sobre os comportamentos aceitáveis de meninas e meninos, mulheres e homens - como eles devem agir, parecer e até mesmo pensar ou sentir”, ou seja, é o meio social determinando e/ou influenciando os sujeitos e podem contribuir para iniquidades em saúde ao longo da vida.

Mulheres em situação de violência geralmente vivem a violência de gênero, normas patriarcais e machistas favorecem a violência de gênero, que é construída a partir da desigualdade entre homens e mulheres, nas relações interpessoais, sendo naturalizada e reproduzida por gerações2929 Heymann J, Levy J, Bose B, Ríos-Salas V, Equality NA. Improving health with programmatic, legal, and policy approaches to reduce gender inequality and change restrictive gender norms. Lancet 2019; 393(10190):2522-2534.,3030 Hay K, McDougal L, Percival V, Henry S, Klugman J, Wurie H, Raven J, Shabalala F, Fielding-Miller R, Dey A, Dehingia N, Morgan R, Atmavilas Y, Saggurti N, Yore J, Blokhina E, Huque R, Barasa E, Bhan N, Kharel C, Silverman JG, Raj A, Gender Equality, Norms, and Health Steering Committee. Disrupting gender norms in health systems: making the case for change. Lancet 2019; 393(10190):2535-2549..

As mulheres enfrentam muitas vezes a violência institucional por parte de profissionais de saúde, que reproduzem a discriminação existente na sociedade, nos serviços de saúde. Da mesma forma, informações inadequadas e atitudes não acolhedoras e cheias de julgamento moral são frequentes nos percursos relatados nas investigações2727 Heise L, Greene ME, Opper N, Stavropoulou M, Harper C, Nascimento M, Zewdie D; Gender Equality, Norms, and Health Steering Committee. Gender inequality and restrictive gender norms: framing the challenges to health. Lancet 2019; 393(10189):2440-2454.,3131 Zorjan S, Smrke U, Šprah L. The Role of Attitudes to, and the Frequency of, Domestic Violence Encounters in the Healthcare Professionals’ Handling of Domestic Violence Cases. Zdr Varst 2017; 56(3):166-171..

Neste seguimento, esta revisão demonstrou que a formação de recursos humanos e as práticas profissionais dos CDs ainda são limitadas para tais procedimentos e que esta limitação se inicia na graduação, posto que o tema violência contra mulheres é dificilmente introduzido nas matrizes curriculares e na educação continuada, e ainda reflete negativamente nas práticas profissionais77 Sawyer S, Coles J, Williams A, Williams B. A systematic review of intimate partner violence educational interventions delivered to allied health care practitioners. Med Educ 2016; 50(11):1107-1121.,1111 Love C, Gerbert B, Caspers N, Bronstone A, Perry D, Bird W. Dentists' attitudes and behaviors regarding domestic violence. The need for an effective response. J Am Dent Assoc 2001; 132(1):85-93.

12 Hendler TJ, Sutherland SE. Domestic violence and its relation to dentistry: a call for change in Canadian dental practice. J Can Dent Assoc 2007; 73(7):617.
-1313 D'Oliveira AFPL, Schraiber LB. Violence against women: between critical path and assistance multisectoral networks. J Med 2013; 92(2), 134-140.,3131 Zorjan S, Smrke U, Šprah L. The Role of Attitudes to, and the Frequency of, Domestic Violence Encounters in the Healthcare Professionals’ Handling of Domestic Violence Cases. Zdr Varst 2017; 56(3):166-171.. É importante destacar que esta limitação também pode advir de atitudes pessoais que levam ao não reconhecimento da violência, as quais refletem normas de gênero, aspectos culturais, estigmas e valores do profissional de saúde cirurgião-dentista44 Heise L, Greene ME, Opper N, Stavropoulos M, Harper C, Nascimento M, Zewdie D. Gender inequality and restrictive gender norms: framing the challenges to health. Lancet 2019; 393(10189):2440-2454.,66 Garcia-MC, Hegarty K, D'Oliveira AF, Koziol-mclain J, Colombini gf. The health-systems response to violence against women. Lancet 2015; 385(9977):1567-1579.,3131 Zorjan S, Smrke U, Šprah L. The Role of Attitudes to, and the Frequency of, Domestic Violence Encounters in the Healthcare Professionals’ Handling of Domestic Violence Cases. Zdr Varst 2017; 56(3):166-171.

32 World Health Organization (WHO). Department of Gender, Women's Health (GWH). Integrating gender into the curricula for health professionals. Geneva: GWH; 2006.

33 Kiss L, d'Oliveira AF, Zimmerman C, Heise L, Schraiber LB, Watts C. Brazilian policy responses to violence against women: government strategy and the help-seeking behaviors of women who experience violence. Health Hum Rights 2012; 14(1):E64-E77.

34 El Tantawi M, Gaffar B, Arheiam A, AbdelAziz W, Al-Batayneh OB, Alhoti MF, Al-Maweri S, Dama MA, Zaghez M, Hassan KS, Al-Sane M, AbdelSalam M, Sabbah W, Owais AI, Abdelgawad F, Aldhelai TA, El Meligy OAES, AlHumaid J, Al-Harbi F. Dentists' intention to report suspected violence: a cross-sectional study in eight Arab countries. BMJ Open 2018; 8(3):e019786.
-3535 Brasil. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União; 2006.. Certifica este resultado um estudo realizado com uma amostra aleatória de 321 dentistas da lista nacional da American Dental Association (ADA) que constatou que a maioria dos entrevistados (71%) não recebeu qualquer tipo de educação relacionada à violência contra mulheres no curso de graduação e (77%) em cursos de educação continuada e ainda 61% relataram que gostariam de ter mais formação nesta área88 Pereira SGM, Silva CJP, Pitchon A, Naves MD, Melo EM, Ferreira EF. O evento de violência urbana e o serviço de emergência SUS: profissionais de saúde diante da dor do usuário. Rev Med Minas Gerais 2016; 26 (Supl. 8): 168-173..

Nesta perspectiva, além do dever ético advindo da formação profissional, todo CD tem o dever legal de atuar de acordo com as orientações normativas específicas e inerentes à função que exerce no enfrentamento desta violência1111 Love C, Gerbert B, Caspers N, Bronstone A, Perry D, Bird W. Dentists' attitudes and behaviors regarding domestic violence. The need for an effective response. J Am Dent Assoc 2001; 132(1):85-93.,2424 Goff HW, Byrd TL, Shelton AJ, Parcel GS. Health care professionals' skills, beliefs, and expectations about screening for domestic violence in a border community. Fam Community Health 2001; 24(1):39-54.. Mundialmente, firmam-se compromissos de enfrentamento da violência contra mulheres, estabelecidos em convenções, declarações e tratados internacionais.

No Brasil, no campo jurídico, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006)3535 Brasil. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União; 2006. é considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica, e importante avanço pois conceitua essa violência como baseada no gênero, além de articular elementos de repressão e prevenção da violência e a responsabilização dos agressores3535 Brasil. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União; 2006..

Anteriormente, a Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003 já estabelecia a “notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados”3636 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Diário Oficial da União; 2003.. E a própria Lei nº 11.340/2006, resultado da movimentação de grupos feministas, motivados por um trágico ato de violência, desferido pelo parceiro íntimo (da Maria da Penha), vem sendo revisada e aperfeiçoada.

Em 2019 destacam-se três dessas alterações3737 Brasil Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 13.931, de 10 de dezembro de 2019. Altera a Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003, para dispor sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita de violência contra a mulher. Diário Oficial da União; 2019., em setembro, outubro e dezembro: sobre a responsabilidade do agressor em ressarcir custos relacionados aos serviços de saúde prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS); a prioridade para procedimentos judiciais da vítima de violência doméstica; e a notificação compulsória, mesmo em casos de suspeita de violência contra mulheres. A notificação compulsória é competência legal dos profissionais de saúde que, por desconhecerem a legislação, não a consideram.

Neste sentido, depreende-se que o reconhecimento da violência contra mulheres pelo CD advém do dever legal, ética profissional e do reconhecimento pessoal. Lado outro, ficou demonstrado também nesta revisão que a legislação, por si só, não é capaz de impor ao CD o reconhecimento da violência contra mulheres e provocar mudanças reais nas práticas de saúde, visto que, foi demonstrado que esses profissionais aceitam a violência e a consideram como uma questão social, comportamental ou psicológica, em vez de um problema de saúde1212 Hendler TJ, Sutherland SE. Domestic violence and its relation to dentistry: a call for change in Canadian dental practice. J Can Dent Assoc 2007; 73(7):617.,1313 D'Oliveira AFPL, Schraiber LB. Violence against women: between critical path and assistance multisectoral networks. J Med 2013; 92(2), 134-140.,2424 Goff HW, Byrd TL, Shelton AJ, Parcel GS. Health care professionals' skills, beliefs, and expectations about screening for domestic violence in a border community. Fam Community Health 2001; 24(1):39-54..

Face ao que acima é exposto, verifica-se aspecto importante e que ainda não fora investigado por nenhum dos estudos dessa revisão, qual seja, a relação entre o dever legal imposto por meio de lei, constitucionalmente estabelecido, e a ação voluntária de cada ser individualmente considerado. De maneira análoga, tal relação não passa desapercebida entre pacientes e cirurgião-dentista que em suas práxis quotidianas se veem diante de casos de violência contra mulheres. Tais relações colocam em conflito o dever legal de agir e a ação espontânea, individualmente considerada, a que está sujeito esse mesmo CD. Nesse contexto indaga-se: como obrigar a cumprir uma ação volitiva não constante na legislação?

Esse questionamento é importante para que se possa investigar medidas que traduzam efetividade ao que é previsto no corpo de lei, visto que todo atendimento de uma norma posta é antecedido por uma ação gratuita, decisão de atendimento da norma ou não, compatibilizando legislação e ação humana. Noutro dizer, deve-se conciliar legislação que traz em seu âmago a compulsoriedade versus o poder de escolha e a volitividade dada ao CD de reconhecer ou não os casos observados contra mulheres em sua prática profissional. Entende-se que a primeira se alcança por força de lei, porém a segunda ainda nos é obscura pois é, atinente ao particularismo das liberdades, experiências e interesses pessoais, pertencentes ao poder de escolha, discernimento pessoal e a bagagem pessoal de vida que cada ser carrega em si, produto do meio familiar, profissional, educacional e social no decorrer de sua vida.

Daí termos formulado a indagação: “como compatibilizarmos ação volitiva com ação compulsória, mas, igualmente lícitas?”. Para que se lance luz sobre esse questionamento, entendemos que sem o cumprimento da ação volitiva de admitir os casos de violência, não se alcança a ação obrigatória de cumprir-se os deveres legais postos pela profissão. Contudo, é gritante perceber que o reconhecimento da violência contra mulheres, antes mesmo de qualquer dispositivo legal e da formação acadêmica, depende do olhar mais sensível, apurado e desprendido de qualquer sentimento bloqueador de empatia com o próximo para que, seja percebido pelo CD o fenômeno da violência sofrido pela mulher e constatado física e subjetivamente nos atendimentos. Por fim, porém não menos merecedor de crédito, é a observação de que a formação mais completa, humana e sensível do profissional dentista perpassa por sua percepção de mundo e subjetividade com que vê o próximo como elemento de íntima ligação e empatia3838 Brasil. Presidência da República. Subchefia para Assuntos jurídicos. Lei nº 13.871, de 17 de setembro de 2019. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para dispor sobre a responsabilidade do agressor pelo ressarcimento dos custos relacionados aos serviços de saúde prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) às vítimas de violência doméstica e familiar e aos dispositivos de segurança por elas utilizados. Diário Oficial da União; 2019..

Dessa maneira, consonante a Teoria Sociocultural de Vigotski3939 Vygotsky LS. Psicologia da Arte. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes; 1999., as diferentes funções psicológicas que o indivíduo desenvolve são construídas pela compreensão das percepções do mundo que o rodeia. Noutro dizer, o pensamento lógico, a recordação dialética ao transcorrer do desenvolvimento humano, passa por conhecimentos externos e transforma-se em interno. Desta forma, o entendimento dos símbolos, eventos e situações vivenciadas no dia a dia até o surgimento da consciência em si mesma, bem como a construção das opiniões e conceitos lógicos do universo em que se vive, por meio das experiências de cada indivíduo são primordiais para a compreensão de como se dá a construção da percepção do mundo. É fundamental evidenciar que Vygotsky menciona que no funcionalismo do pensamento estão incluídas, também, as emoções. A maneira como se pensa, atribuída pelo meio em que se vive, abarca ainda, essencialmente, os sentimentos e emoções de cada pessoa humana3838 Brasil. Presidência da República. Subchefia para Assuntos jurídicos. Lei nº 13.871, de 17 de setembro de 2019. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para dispor sobre a responsabilidade do agressor pelo ressarcimento dos custos relacionados aos serviços de saúde prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) às vítimas de violência doméstica e familiar e aos dispositivos de segurança por elas utilizados. Diário Oficial da União; 2019..

Nesta perspectiva, depreende-se que a formação e a prática profissional do CD ancoradas no modelo biomédico, impede uma relação dialógica entre o CD e as mulheres em situação de violência3737 Brasil Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 13.931, de 10 de dezembro de 2019. Altera a Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003, para dispor sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita de violência contra a mulher. Diário Oficial da União; 2019.. Ademais, conforme identificado nos estudos incluídos nesta revisão, as normas de gênero que contribuem para as iniquidades em saúde são perpetuadas ao perpassar da vida e moldam poderosamente as atitudes dos indivíduos com resultados diretos na formação e na prática profissional e com consequências negativas, importantes para a saúde no decorrer da vida44 Heise L, Greene ME, Opper N, Stavropoulos M, Harper C, Nascimento M, Zewdie D. Gender inequality and restrictive gender norms: framing the challenges to health. Lancet 2019; 393(10189):2440-2454.,66 Garcia-MC, Hegarty K, D'Oliveira AF, Koziol-mclain J, Colombini gf. The health-systems response to violence against women. Lancet 2015; 385(9977):1567-1579.,99 Rodrigues LG, Barbosa KGN, Silva CJP, Alencar GP, D'avila S, Ferreira EF, Ferreira RC. Trends of maxillofacial injuries resulting from physical violence in Brazil. Dent Traumatol 2020; 36(1):69-75.,1010 Le BT, Dierks EJ, Ueck BA, Homero LD, Potter BF. Maxillofacial injuries associated with domestic violence. J Oral Maxillofac Surg 2001; 59(11):1277-1283.

11 Love C, Gerbert B, Caspers N, Bronstone A, Perry D, Bird W. Dentists' attitudes and behaviors regarding domestic violence. The need for an effective response. J Am Dent Assoc 2001; 132(1):85-93.

12 Hendler TJ, Sutherland SE. Domestic violence and its relation to dentistry: a call for change in Canadian dental practice. J Can Dent Assoc 2007; 73(7):617.
-1313 D'Oliveira AFPL, Schraiber LB. Violence against women: between critical path and assistance multisectoral networks. J Med 2013; 92(2), 134-140.,2727 Heise L, Greene ME, Opper N, Stavropoulou M, Harper C, Nascimento M, Zewdie D; Gender Equality, Norms, and Health Steering Committee. Gender inequality and restrictive gender norms: framing the challenges to health. Lancet 2019; 393(10189):2440-2454.

28 Weber AM, Cislaghi B, Meausoone V, Abdalla S, Mejía-Guevara I, Loftus P, Hallgren E, Seff I, Stark L, Victora CG, Buffarini R, Barros AJD, Domingue BW, Bhushan D, Gupta R, Nagata JM, Shakya HB, Richter LM, Norris SA, Ngo TD, Chae S, Haberland N, McCarthy K, Cullen MR, Darmstadt GL, Gender Equality, Norms and Health Steering Committee. Gender norms and health: insights from global survey data. Lancet 2019; 393(10189):2455-2468.

29 Heymann J, Levy J, Bose B, Ríos-Salas V, Equality NA. Improving health with programmatic, legal, and policy approaches to reduce gender inequality and change restrictive gender norms. Lancet 2019; 393(10190):2522-2534.
-3030 Hay K, McDougal L, Percival V, Henry S, Klugman J, Wurie H, Raven J, Shabalala F, Fielding-Miller R, Dey A, Dehingia N, Morgan R, Atmavilas Y, Saggurti N, Yore J, Blokhina E, Huque R, Barasa E, Bhan N, Kharel C, Silverman JG, Raj A, Gender Equality, Norms, and Health Steering Committee. Disrupting gender norms in health systems: making the case for change. Lancet 2019; 393(10190):2535-2549.,3838 Brasil. Presidência da República. Subchefia para Assuntos jurídicos. Lei nº 13.871, de 17 de setembro de 2019. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para dispor sobre a responsabilidade do agressor pelo ressarcimento dos custos relacionados aos serviços de saúde prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) às vítimas de violência doméstica e familiar e aos dispositivos de segurança por elas utilizados. Diário Oficial da União; 2019.,3939 Vygotsky LS. Psicologia da Arte. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes; 1999..

Mas mesmo em um cenário ideal, onde os CD estariam capacitados e habilitados ao exercício do cuidado para mulheres em situação de violência, com uma visão de mundo que os permitisse compreender o problema, isto não bastaria. Este é um dos problemas complexos que não poderão ser resolvidos sem uma equipe interdisciplinar. A competência, gerada a partir da fragmentação do saber, não consegue solucionar completamente este problema. É fundamental que equipes se organizem, para o atendimento adequado, a prevenção, o controle e o enfrentamento, objetivando a qualidade de vida dessas mulheres.

Considerações finais

Observou-se nos estudos analisados, uma homogeneidade nos achados, com destaque maior para a ausência de capacitação destes profissionais. Por outro lado, alguns pesquisadores identificaram uma ausência de compromisso/sensibilidade social, o desconhecimento da clínica ampliada, a clínica centrada no sujeito. Mesmo diante de um quadro claro da necessidade de se considerar a pessoa em seu contexto social, isto não ocorre. E a prática do cuidado se distancia do legal e do ético.

Outros aspectos, embora importantes não foram contemplados. O reconhecimento dos casos de violência contra mulheres pelo CD exige a incorporação de medidas educativas que provoquem mudanças culturais. Envolvendo o desenvolvimento de ações que visem à desconstrução dos estereótipos, a transformação das normas de gênero e desnaturalização desse fenômeno social pelo profissional CD, ademais por toda sociedade.

Referências

  • 1
    United Nations. Declaration on the Elimination of Violence against Women. Proclaimed by General Assembly Resolution [Internet]. 1993 [cited 2020 mar 18]. Available from: https://www.refworld.org/docid/3b00f25d2c.html
    » https://www.refworld.org/docid/3b00f25d2c.html
  • 2
    World Health Organization (WHO). Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence 2013 [Internet]. [cited 2020 mar 18]. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/85239
    » https://apps.who.int/iris/handle/10665/85239
  • 3
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Sistema de Infomação Hospitalar [Internet]. [acessado 2020 mar 18]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sinannet/cnv/violebr.def
    » http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sinannet/cnv/violebr.def
  • 4
    Heise L, Greene ME, Opper N, Stavropoulos M, Harper C, Nascimento M, Zewdie D. Gender inequality and restrictive gender norms: framing the challenges to health. Lancet 2019; 393(10189):2440-2454.
  • 5
    Plichta SB. Interactions Between Victims of Intimate Partner Violence Against Women and the Health Care System: Policy and Practice Implications. Trauma Violence Abuse 2007; 8(2):226-239.
  • 6
    Garcia-MC, Hegarty K, D'Oliveira AF, Koziol-mclain J, Colombini gf. The health-systems response to violence against women. Lancet 2015; 385(9977):1567-1579.
  • 7
    Sawyer S, Coles J, Williams A, Williams B. A systematic review of intimate partner violence educational interventions delivered to allied health care practitioners. Med Educ 2016; 50(11):1107-1121.
  • 8
    Pereira SGM, Silva CJP, Pitchon A, Naves MD, Melo EM, Ferreira EF. O evento de violência urbana e o serviço de emergência SUS: profissionais de saúde diante da dor do usuário. Rev Med Minas Gerais 2016; 26 (Supl. 8): 168-173.
  • 9
    Rodrigues LG, Barbosa KGN, Silva CJP, Alencar GP, D'avila S, Ferreira EF, Ferreira RC. Trends of maxillofacial injuries resulting from physical violence in Brazil. Dent Traumatol 2020; 36(1):69-75.
  • 10
    Le BT, Dierks EJ, Ueck BA, Homero LD, Potter BF. Maxillofacial injuries associated with domestic violence. J Oral Maxillofac Surg 2001; 59(11):1277-1283.
  • 11
    Love C, Gerbert B, Caspers N, Bronstone A, Perry D, Bird W. Dentists' attitudes and behaviors regarding domestic violence. The need for an effective response. J Am Dent Assoc 2001; 132(1):85-93.
  • 12
    Hendler TJ, Sutherland SE. Domestic violence and its relation to dentistry: a call for change in Canadian dental practice. J Can Dent Assoc 2007; 73(7):617.
  • 13
    D'Oliveira AFPL, Schraiber LB. Violence against women: between critical path and assistance multisectoral networks. J Med 2013; 92(2), 134-140.
  • 14
    Connor PD, Nouer SS, Mackey SN, Banet MS, Tipton NG. Dental students and intimate partner violence: measuring knowledge and experience to institute curricular change. J Dent Educ 2011; 75(8):1010-1019.
  • 15
    Alalyani WS, Alshouib EN. Dentists awareness and action towards domestic violence patients A cross-sectional study among dentists in Western Saudi Arabia. Saudi Med J 2017; 38(1):82-88.
  • 16
    Lea SJ, Quinn B, Reynolds PA. The Role and Education of Dental Care Professionals in Identifying Domestic Violence: Report of an Audience Participation Exercise and Round Table Discussion. Tech Know Learn 2017; 22:219-226.
  • 17
    Parish CL, Pereyra MR, Abel SN, Siegel K, Pollack HA, Metsch LR. Intimate partner violence screening in the dental setting: Results of a nationally representative survey. J Am Dent Assoc 2018; 149(2):112-121.
  • 18
    McAndrew M, Pierre GC, Kojanis LC. Effectiveness of an online tutorial on intimate partner violence for dental students: a pilot study. J Dent Educ 2014; 78(8):1176-1181.
  • 19
    Hall KS., Samari G, Garbers S, Casey S, Diallo DD, Orcutt M, Moresky R. Centring sexual and reproductive health and justice in the global COVID-19 response. Lancet 2020; 395(10231):1175-1177.
  • 20
    Peterman A, Potts A, O'Donnell M, Thompson K, Shah N, Oertelt-prigione S, Nicole G. Pandemics and Violence Against Women and Children [Internet]. Washington, D.C.; 2020 [cited 2020 mar 18]. Available from: https://www.cgdev.org/sites/default/files/pandemics-and-vawg-april2.pdf
    » https://www.cgdev.org/sites/default/files/pandemics-and-vawg-april2.pdf
  • 21
    World Health Organization (WHO). Oral health Achieving better oral health as part of the universal health coverage and non communicable disease agendas towards 2030 Report by the Director-General. Executive Board 148th Session Provisional Agenda [Internet]. 2020 [cited 2020 mar 18]. Available from: https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/EB148/B148_8-en.pdf
    » https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/EB148/B148_8-en.pdf
  • 22
    Arksey H, O'Malley L. Scoping studies: towards a methodological framework. Int J Soc Res Methodol 2005; 8(1):19-32.
  • 23
    Peters MDJ, Godfrey C, McInerney P, Munn Z, Tricco AC, Khalil, H. Chapter 11: Scoping Reviews (2020 version). In: Aromataris E, Munn Z, editors. JBI Manual for Evidence Synthesis [Internet]. JBI; 2020 [cited 2020 mar 18]. Available from: https://jbi-global-wiki.refined.site/space/MANUAL
    » https://jbi-global-wiki.refined.site/space/MANUAL
  • 24
    Goff HW, Byrd TL, Shelton AJ, Parcel GS. Health care professionals' skills, beliefs, and expectations about screening for domestic violence in a border community. Fam Community Health 2001; 24(1):39-54.
  • 25
    Goff HW, Byrd TL, Shelton AJ, Parcel GS Preparedness of health care practitioners to screen women for domestic violence in a border community. Health Care Women International 2003; 24:135-148.
  • 26
    Garbin S, Rovida S, Tania Adas TC, Alves AI, Isper GJ. Perceptions and attitudes of public health service dentists in the face of family violence in 24 municipalities in the state of Sao Paulo, Brazil, 2013-2014. Epidemiol Serv Saude 2016; 25(1):179-186.
  • 27
    Heise L, Greene ME, Opper N, Stavropoulou M, Harper C, Nascimento M, Zewdie D; Gender Equality, Norms, and Health Steering Committee. Gender inequality and restrictive gender norms: framing the challenges to health. Lancet 2019; 393(10189):2440-2454.
  • 28
    Weber AM, Cislaghi B, Meausoone V, Abdalla S, Mejía-Guevara I, Loftus P, Hallgren E, Seff I, Stark L, Victora CG, Buffarini R, Barros AJD, Domingue BW, Bhushan D, Gupta R, Nagata JM, Shakya HB, Richter LM, Norris SA, Ngo TD, Chae S, Haberland N, McCarthy K, Cullen MR, Darmstadt GL, Gender Equality, Norms and Health Steering Committee. Gender norms and health: insights from global survey data. Lancet 2019; 393(10189):2455-2468.
  • 29
    Heymann J, Levy J, Bose B, Ríos-Salas V, Equality NA. Improving health with programmatic, legal, and policy approaches to reduce gender inequality and change restrictive gender norms. Lancet 2019; 393(10190):2522-2534.
  • 30
    Hay K, McDougal L, Percival V, Henry S, Klugman J, Wurie H, Raven J, Shabalala F, Fielding-Miller R, Dey A, Dehingia N, Morgan R, Atmavilas Y, Saggurti N, Yore J, Blokhina E, Huque R, Barasa E, Bhan N, Kharel C, Silverman JG, Raj A, Gender Equality, Norms, and Health Steering Committee. Disrupting gender norms in health systems: making the case for change. Lancet 2019; 393(10190):2535-2549.
  • 31
    Zorjan S, Smrke U, Šprah L. The Role of Attitudes to, and the Frequency of, Domestic Violence Encounters in the Healthcare Professionals’ Handling of Domestic Violence Cases. Zdr Varst 2017; 56(3):166-171.
  • 32
    World Health Organization (WHO). Department of Gender, Women's Health (GWH). Integrating gender into the curricula for health professionals. Geneva: GWH; 2006.
  • 33
    Kiss L, d'Oliveira AF, Zimmerman C, Heise L, Schraiber LB, Watts C. Brazilian policy responses to violence against women: government strategy and the help-seeking behaviors of women who experience violence. Health Hum Rights 2012; 14(1):E64-E77.
  • 34
    El Tantawi M, Gaffar B, Arheiam A, AbdelAziz W, Al-Batayneh OB, Alhoti MF, Al-Maweri S, Dama MA, Zaghez M, Hassan KS, Al-Sane M, AbdelSalam M, Sabbah W, Owais AI, Abdelgawad F, Aldhelai TA, El Meligy OAES, AlHumaid J, Al-Harbi F. Dentists' intention to report suspected violence: a cross-sectional study in eight Arab countries. BMJ Open 2018; 8(3):e019786.
  • 35
    Brasil. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União; 2006.
  • 36
    Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Diário Oficial da União; 2003.
  • 37
    Brasil Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 13.931, de 10 de dezembro de 2019. Altera a Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003, para dispor sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita de violência contra a mulher. Diário Oficial da União; 2019.
  • 38
    Brasil. Presidência da República. Subchefia para Assuntos jurídicos. Lei nº 13.871, de 17 de setembro de 2019. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para dispor sobre a responsabilidade do agressor pelo ressarcimento dos custos relacionados aos serviços de saúde prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) às vítimas de violência doméstica e familiar e aos dispositivos de segurança por elas utilizados. Diário Oficial da União; 2019.
  • 39
    Vygotsky LS. Psicologia da Arte. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes; 1999.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2021
  • Aceito
    26 Maio 2022
  • Publicado
    28 Maio 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br