Discriminação social em adultos com deficiência auditiva nos serviços de saúde brasileiro: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde

Rafaela Soares Rech Alexandre Baumgarten Camila Mello dos Santos Alexandre Fávero Bulgarelli Bárbara Niegia Goulart Sobre os autores

Resumo

O artigo tem como objetivo estimar a prevalência de discriminação social autorreferida em pessoas com deficiência auditiva nos serviços de saúde brasileiros, verificando fatores associados à discriminação. Estudo transversal de base populacional, com dados de um inquérito epidemiológico domiciliar realizado ponderadamente em todo o território brasileiro no ano de 2013. A amostra final deste estudo compreendeu 1.464 adultos com perda auditiva autorreferida. Utilizou-se regressão de Poisson com variância robusta para cálculo de razões de prevalência (RP) brutas e ajustadas para a investigação das prevalências de discriminação autorreferida nos serviços de saúde e seus respectivos intervalos de confiança de 95%. A prevalência de discriminação em adultos com deficiência auditiva nos serviços de saúde brasileiros foi de 15%. Indivíduos de cor/raça preta e que relataram que a perda auditiva limita as suas atividades de vida diária apresentaram maior associação com discriminação. Pessoas com deficiência auditiva de cor/raça preta e que apresentam limitação nas atividades da vida diária em decorrência da perda auditiva relataram maior discriminação nos serviços de saúde. Estratégias de enfrentamento à discriminação de profissionais da área da saúde devem ser implementadas para que esse cenário seja modificado.

Palavras-chave:
Perda auditiva; Preconceito; Discriminação social; Sistema Único de Saúde; Estudos transversais

Introdução

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que 1,1 bilhão de pessoas no mundo desenvolverão perda auditiva11 World Health Organization (WHO). World report on disability. Geneva: WHO; 2011.,22 Organização Mundial da Saúde (OMS). CIF: Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. São Paulo: EDUSP; 2004.. No Brasil, 1,1% da população tem perda auditiva, destes, 21% apresentam limitação intensa ou muito intensa das atividades da vida diária33 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde [Internet]. 2015. p. 2015. [citado 2020 jul 13]. Disponível em: https://memoria.ebc.com.br/noticias/2015/08/ibge-62-da-populacao-tem-algum-tipo-de-deficiencia
https://memoria.ebc.com.br/noticias/2015...
. A perda auditiva em adultos está associada ao declínio cognitivo, à depressão e à redução do status funcional, especialmente em indivíduos que não foram avaliados adequadamente ou reabilitados. A deficiência auditiva é considerada uma das mais impactantes deficiências relacionadas aos prejuízos na vida social44 Nordvik Ø, Laugen Heggdal PO, Brännström J, Vassbotn F, Aarstad AK, Aarstad HJ. Generic quality of life in persons with hearing loss: a systematic literature review. MC Ear Nose Throat Disord 2018; 18:1..

A perda auditiva é um importante fator para a restrição de atividades sociais, ocasionando prejuízos, restrições e até mesmo exclusão social55 Mick P, Kawachi I, Lin FR. The association between hearing loss and social isolation in older adults. Otolaryngol Head Neck Surg 2014; 150(3):378-384.. A exclusão social pode ser compreendida como discriminação, pois a mesma pode ser entendida como exposição a uma experiência social que leva a pessoa a um efeito discriminatório e a condições estressantes. A partir desse pressuposto, entende-se que a discriminação é um construto social que reflete a ideia de injustiça66 Bastos JL, Faerstein E, Celeste RK, Barros AJ. Explicit discrimination and health: development and psychometric properties of an assessment instrument. Rev Saude Publica 2012; 46(2):269-278.. Desse modo, a discriminação social é o processo em que o membro de um grupo, definido por determinada característica, é tratado de maneira diferente por fazer parte deste grupo77 Krieger N. A glossary for social epidemiology. J Epidemiol Community Health 2001; 55(10):693-700..

A discriminação social pode ser observada como qualquer manifestação discriminatória em relação à dissociação explícita de julgamento ou preconceito implícito em relação a alguém. Entende-se que essas manifestações mundiais são geralmente expressas por atrasos de consulta, negligência de comunicação, recusa de tratamento, atitude hostil em relação a algum paciente e até mesmo por assédio nos serviços de saúde88 FitzGerald C, Hurst S. Implicit bias in healthcare professionals: a systematic review. BMC Med Ethics 2017; 18(1):19.. As pessoas podem passar por tais manifestações discriminatórias sofrendo de acordo com diferentes características, como sexo, idade, aparência física, raça, cor da pele, etnia e classe social, entre outras características adquiridas socialmente66 Bastos JL, Faerstein E, Celeste RK, Barros AJ. Explicit discrimination and health: development and psychometric properties of an assessment instrument. Rev Saude Publica 2012; 46(2):269-278.. Nesse contexto, a discriminação social de indivíduos com perda auditiva é um importante tema a ser estudado e pouco explorado na literatura.

Entender que existe um contexto permeando a discriminação social nos serviços de saúde e que características pessoais como a deficiência auditiva podem vir a potencializar ou impor barreiras é relevante para profissionais, gestores e pesquisadores da saúde. Assim, o objetivo do presente estudo foi estimar a prevalência de discriminação social em pessoas com deficiência auditiva nos serviços de saúde brasileiros, analisando seus possíveis fatores associados.

Método

Trata-se de um estudo transversal, com dados secundários de um inquérito epidemiológico domiciliar de base populacional, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), feita em todo o território brasileiro no ano de 201399 Szwarcwald CL, Malta DC, Pereira CA, Vieira ML, Conde WL, Souza Júnior PR, Damacena GN, Azevedo LO, Azevedo E Silva G, Theme Filha MM, Lopes Cde S, Romero DE, Almeida WS, Monteiro CA. Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil: concepção e metodologia de aplicação. Cien Saude Colet. 2014;19(2):333-342.. Realizada pelo Ministério da Saúde em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a PNS tem como objetivo caracterizar a situação de saúde e os estilos de vida da população, bem como a atenção à sua saúde, quanto ao acesso e uso dos serviços, às ações preventivas, à continuidade dos cuidados e ao financiamento da assistência99 Szwarcwald CL, Malta DC, Pereira CA, Vieira ML, Conde WL, Souza Júnior PR, Damacena GN, Azevedo LO, Azevedo E Silva G, Theme Filha MM, Lopes Cde S, Romero DE, Almeida WS, Monteiro CA. Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil: concepção e metodologia de aplicação. Cien Saude Colet. 2014;19(2):333-342..

Na PNS, o plano amostral empregado foi a amostragem conglomerada em três estágios, com estratificação das unidades primárias. Os setores censitários, ou conjunto de setores, formam as unidades primárias de amostragem (UPA), os domicílios são as unidades de segundo estágio e os moradores com 18 anos ou mais de idade definem as unidades de terceiro estágio. Dentro de cada domicílio selecionado, um morador com 18 anos ou mais de idade foi selecionado para responder ao questionário específico, por amostragem aleatória simples da lista de moradores construída no momento da entrevista1010 Holman JA, Drummond A, Hughes SE, Naylor G. Hearing impairment and daily-life fatigue: a qualitative study. Int J Audiol 2019; 58(7):408-416.. Foram definidos pesos amostrais para as UPA, para os domicílios e todos os seus moradores, e o peso para o morador selecionado. Este último foi calculado considerando o peso do domicílio correspondente, a probabilidade de seleção do morador, ajustes de não resposta por sexo e calibração pelos totais populacionais por sexo e classes de idade estimados com o peso de todos os moradores1111 Quevedo ALAD, Leotti VB, Goulart BNG. Análise da prevalência de perda auditiva autodeclarada e fatores associados: informante primário versus proxy. Cad Saude Publica 2017; 33:e0076216.. A amostra foi delineada por clusters em múltiplos estágios. Foram efetuadas 60.202 entrevistas individuais com os adultos selecionados nos domicílios. A amostra final deste estudo compreendeu 1.464 indivíduos com perda auditiva.

O questionário da pesquisa foi subdividido em três partes. As duas primeiras foram respondidas por um residente do domicílio e abrangem perguntas sobre as características do domicílio, da situação socioeconômica e de saúde. O questionário individual foi respondido por um morador de 18 anos ou mais, selecionado entre todos os residentes adultos do domicílio99 Szwarcwald CL, Malta DC, Pereira CA, Vieira ML, Conde WL, Souza Júnior PR, Damacena GN, Azevedo LO, Azevedo E Silva G, Theme Filha MM, Lopes Cde S, Romero DE, Almeida WS, Monteiro CA. Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil: concepção e metodologia de aplicação. Cien Saude Colet. 2014;19(2):333-342..

Foram analisados os dados da PNS referentes aos indivíduos com perda auditiva autorreferida, examinando as seguintes variáveis sociodemográficas: sexo (masculino e feminino); idade (em anos, categorizada em 18-29; 30-44; 45-64; < 65); cor/raça (branca, preta, outras - parda, amarela e indígena); estado civil (casado/morando junto, separado, viúvo, solteiro); nível educacional (analfabeto, até ensino médio, graduação ou pós-graduação).

As variáveis autorreferidas da perda auditiva foram: tipo de deficiência auditiva (congênita ou adquirida), aferida com as questões: “O sr(a). nasceu com a deficiência auditiva?” (sim/não); ou a “Deficiência foi adquirida (sim/não)?”). O grau de perda auditiva foi classificado em: surdez total; surdez de um ouvido e normal/reduzido no outro e audição reduzida em um ou dois ouvidos, e “O sr(a). tem alguma limitação das atividades da vida diária?” (“Em geral, sua deficiência auditiva limita as atividades habituais de vida?” (sim/não). Foram considerados indivíduos com deficiência auditiva (DA) todas as pessoas que responderam sim à presença de deficiência auditiva.

Foram calculadas frequências absolutas e relativas, bem como testes qui-quadrado para as variáveis avaliadas. Analisou-se a presença de multicolinearidade das variáveis por meio das estimativas do fator de inflação de variância (VIF), observando que os pontos de corte são bons (próximos a 1), indicando que as variáveis não são multicolineares. A regressão de Poisson com variância robusta foi utilizada para cálculo de razões de prevalência (RP) brutas e ajustadas para discriminação nos serviços de saúde. O desfecho do presente estudo foi construído a partir da pergunta: “O(A) sr(a). já se sentiu discriminado(a) ou tratado(a) pior do que as outras pessoas no serviço de saúde, por algum médico ou outro profissional de saúde pela sua deficiência auditiva?” A resposta “sim” representou o desfecho positivo de discriminação nos serviços de saúde. Foi calculado intervalo de confiança para proporção de média para o desfecho. Esse desfecho foi associado às variáveis socioeconômicas e de características da deficiência auditiva autorreferida, considerando um nível de significância de 95%, assim como foram ponderados os pesos amostrais propostos pela amostragem complexa do inquérito populacional. As variáveis que apresentaram p < 0,10 foram incluídas no modelo ajustado. O ajuste do modelo foi avaliado com o teste de Hosmer e Lemeshow. Os dados foram analisados no software Statistical Package for Social Sciences (SPSS) para Windows, versão 19.0 (Chicago: SPSS Inc).

A PNS foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde em junho de 2013 (nº 10853812.7.0000.0008). Seguindo as normas da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), todos os sujeitos participantes do estudo assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e aceitaram participar da pesquisa. O presente estudo foi dispensado de apreciação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, pois utilizou exclusivamente grandes bancos nacionais de dados secundários de domínio público, sem identificação nominal. Observaram-se os princípios éticos constantes na referida Resolução do CNS.

Resultados

A Tabela 1 apresenta a proporção de discriminação autorreferida nos serviços de saúde, bem como variáveis sociodemográficas e auditivas. Das 1.464 pessoas entrevistadas com deficiência auditiva, 15% (n = 219); (p = 0.150; IC95%: 0,132-0.168) referiram ter sido discriminados nos serviços de saúde. A ocorrência de discriminação foi maior em indivíduos do sexo feminino, com idade entre 30 e 44 anos (19%), de cor/raça preta (22,1%), solteiros (18,6%) e que apresentavam nível de escolaridade até o ensino médio (15,4%). A maioria das pessoas que afirmaram ser discriminadas nos serviços de saúde refere deficiência auditiva do tipo congênita, com grau de surdez de um ouvido e normal/reduzido no outro, e relatou que a deficiência auditiva limita as atividades habituais de vida.

Tabela 1
Proporção de discriminação nos serviços de saúde e características auditivas. Brasil, 2013.

Apresentaram as maiores razões de prevalências de discriminação autorreferidas nos serviços de saúde os indivíduos de raça-cor preta (RP = 1,58; IC95%: 1,06-2,34), representando 58% a mais de discriminação quando comparados a pessoas brancas, e que relataram ter limitação nas atividades da vida diária (RP = 1,52; IC95%: 1,15-2,00), representando 52% a mais de discriminação quando comparados a pessoas sem limitação funcional, conforme descrito na Tabela 2.

Tabela 2
Prevalência de discriminação nos serviços de saúde em relação as variáveis demográficas e características da deficiência auditiva. Brasil, 2013.

Discussão

A prevalência autorreferida de discriminação nos serviços de saúde brasileiros por pessoas com deficiência auditiva foi de 15%, sendo estas de cor preta e pessoas que apresentam restrições das atividades da vida diária. A discriminação social se reproduz na população de pessoas com deficiência auditiva, portanto essa população necessita de cuidados especiais44 Nordvik Ø, Laugen Heggdal PO, Brännström J, Vassbotn F, Aarstad AK, Aarstad HJ. Generic quality of life in persons with hearing loss: a systematic literature review. MC Ear Nose Throat Disord 2018; 18:1.,55 Mick P, Kawachi I, Lin FR. The association between hearing loss and social isolation in older adults. Otolaryngol Head Neck Surg 2014; 150(3):378-384.. Restrições de atividades instrumentais da vida diária podem estar associadas ao cansaço diário de uma pessoa com deficiência auditiva por viver criando estratégias para o enfrentamento desse problema1212 Pérez-Garín D, Recio P, Magallares A, Molero F, García-Ael C. Perceived discrimination and emotional reactions in people with different types of disabilities: a qualitative approach. Span J Psychol 2018; 21:E12..

O autorrelato é uma ferramenta subjetiva de baixo custo que depende de aspectos pessoais, culturais e socioeconômicos, que são variáveis entre os indivíduos. É comumente utilizado para medir o estado real de saúde dos indivíduos, uma vez que é um importante preditor de morbimortalidade, utilização de serviços de saúde e estado de saúde das populações, entre elas as pessoas com deficiência11 World Health Organization (WHO). World report on disability. Geneva: WHO; 2011.. O autorrelato tem sido amplamente utilizado no mundo todo com diferentes populações. Importante inquérito populacional realizado na Espanha estimou a prevalência de 22,5% de perda auditiva na população1313 Jiménez A, Huete A. La discriminación por motivos de discapacidad: análisis de las respuestas recibidas al Cuestionario sobre Discriminación por motivos de Discapacidad promovido por el CERMI Estatal. Madrid: CERMI; 2002..

Um estudo que investigou discriminação social em pessoas com deficiências diversas descobriu que as pessoas com deficiência auditiva relataram, principalmente, encontrar barreiras nas atividades de lazer e sentimentos de desamparo, o que apoia os achados do presente estudo referentes às limitações das atividades diárias de vida1414 Ologe FE, Akande TM, Olajide TG. Occupational noise exposure and sensorineural hearing loss among workers of a steel rolling mill. Eur Arch Otorhinolaryngol 2006; 263(7):618-621.. Em um estudo com 494 pessoas com deficiências diversas na Espanha, cerca de 60% afirmaram ter sofrido discriminação em algum momento, e cerca de 15% afirmaram tê-la sofrido com frequência. A maioria (60%) percebeu que a discriminação estava diretamente relacionada ao fato de ter alguma deficiência, e em 34% dos casos a discriminação estava associada a condições ambientais inadequadas para realizar suas atividades diárias1515 Jamison DT, Breman JG, Measham AR, Alleyne G, Claeson M, Evans DB, Jha P, Mills A, Musgrove P, editors. Disease control priorities in developing countries. New York: Oxford University Press; 2006..

A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) estabelece que a limitação de atividades é avaliada de acordo com um padrão populacional aceito e pode levar a desvios de leve a grave, ocasionando aspectos negativos em relação à qualidade das atividades diárias. O uso de dispositivos pode reduzir as limitações e auxiliar na funcionalidade de indivíduos com deficiência22 Organização Mundial da Saúde (OMS). CIF: Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. São Paulo: EDUSP; 2004.. Neste estudo, os resultados foram significativos e mais prevalentes sobre a limitação de sua funcionalidade nas atividades diárias. Além de a limitação levar a prejuízos na vida diária, a presente pesquisa demonstra que os indivíduos são mais discriminados pelos serviços de saúde.

A percepção do preconceito e a rejeição têm um impacto negativo no bem-estar, e até mesmo na saúde física, de membros de grupos estigmatizados, e as consequências emocionais e comportamentais resultantes são frequentemente a redução da autoestima, sofrimento psicológico e solidão1616 Rogers SE, Thrasher AD, Miao Y, Boscardin WJ, Smith AK. Discrimination in healthcare settings is associated with disability in older adults: health and retirement study, 2008-2012. J Gen Intern Med 2015; 30(10):1413-1420.,1717 Hawkes S, Buse K. Gender and global health: evidence, policy, and inconvenient truths. Lancet 2013; 381(9879):1783-1787.. Essas condições podem estar associadas também aos indivíduos com deficiência auditiva, visto que essa deficiência resulta em amplo impacto na comunicação humana, interferindo fortemente na socialização e nas atividades da vida cotidiana. Sabe-se que a perda auditiva, substancialmente subestimada e não tratada1818 Baumgarten A, Peron TB, Bastos JL, Toassi RFC, Hilgert JB, Hugo FN, Celeste RK. Experiências de discriminação relacionadas aos serviços de saúde: análise exploratória em duas capitais do Sul do Brasil. Epidemiol Serv Saude 2015; 24(3):353-362., pode levar frequentemente a uma incapacidade vitalícia e causar danos profundos ao desenvolvimento da fala, linguagem e habilidades cognitivas, dependendo da gravidade e das frequências de fala afetadas1919 Villela WV, Vianna LAC, Lima LFP, Sala DCP, Vieira TF, Vieira ML, Oliveira EM. Ambiguidades e contradições no atendimento das mulheres que sofrem violência. Saude Soc 2011; 20(1):113-123..

A discriminação institucional ou social sofrida por pessoas com deficiências auditivas autorreferidas em relação ao acesso aos diferentes serviços de saúde existentes mundialmente tem sido pouco explorada, uma realidade também brasileira. No Brasil, por mais que o Sistema Único de Saúde (SUS) garanta a universalidade no acesso e respalde as políticas públicas que defendam a saúde auditiva da população, essas ainda podem ser mais analisadas, auxiliando pesquisadores e clínicos, assim como aprimoradas por gestores, visto que os dados ainda revelam alta prevalência de discriminação autorreferida1616 Rogers SE, Thrasher AD, Miao Y, Boscardin WJ, Smith AK. Discrimination in healthcare settings is associated with disability in older adults: health and retirement study, 2008-2012. J Gen Intern Med 2015; 30(10):1413-1420..

A discriminação social é mais autorreferida por mulheres, e esse fato é a atual realidade de vários países. Dessa forma, a questão de gênero na saúde e seus reflexos devem ser percebidos e contextualizados como uma questão de política mundial1717 Hawkes S, Buse K. Gender and global health: evidence, policy, and inconvenient truths. Lancet 2013; 381(9879):1783-1787.. Estudos apontam tal realidade entre diferentes aspectos, como em situações de busca por serviços de saúde1818 Baumgarten A, Peron TB, Bastos JL, Toassi RFC, Hilgert JB, Hugo FN, Celeste RK. Experiências de discriminação relacionadas aos serviços de saúde: análise exploratória em duas capitais do Sul do Brasil. Epidemiol Serv Saude 2015; 24(3):353-362., tendo acesso mais dificultado, na desqualificação do relato de uma mulher por parte de alguns profissionais de saúde, bem como no estereótipo1919 Villela WV, Vianna LAC, Lima LFP, Sala DCP, Vieira TF, Vieira ML, Oliveira EM. Ambiguidades e contradições no atendimento das mulheres que sofrem violência. Saude Soc 2011; 20(1):113-123. e no estigma sofrido por algumas mulheres que dificultam aproximações com cuidado em saúde, gerando demora na busca por certos diagnósticos o que acarreta prejuízos à saúde da mulher2020 Weiss M, Ramakrishna J, Somma D. Health-related stigma: rethinking concepts and interventions. Psychol Health Med 2006; 11(3):277-287.. Muitas vezes, além desse preconceito, existe, nos casos de mulheres com deficiências auditivas, o estigma de ser deficiente pelo uso de aparelho auditivos2121 Villela WV, Monteiro S. Gênero, estigma e saúde: reflexões a partir da prostituição, do aborto e do HIV/aids entre mulheres. Epidemiol Serv Saude 2015; 24(3):531-540..

Este estudo apontou que, do total de autorrelatos de discriminação sofrida por pessoas com deficiência auditiva, mais da metade foi proveniente de mulheres. Até o presente momento, não há na literatura indexada pesquisas que apontem tal objeto de investigação, fortaleza deste estudo. Além disso, pesquisas apontam que a perda da audição pode afetar a incidência de demência em mulheres, em associação com outras variáveis, e que mulheres com alguma deficiência podem ser mais propensas a relatar humilhação e discriminação2222 Ruusuvuori JE, Aaltonen T, Koskela I, Ranta J, Lonka E, Salmenlinna I, Laakso M. Studies on stigma regarding hearing impairment and hearing aid use among adults of working age: a scoping review. Disabil Rehabil 2021; 43(3):436-446.,2323 Fritze T, Teipel S, Ovari A, Kilimann I, Witt G, Doblhammer G. Hearing impairment affects dementia incidence. An analysis based on longitudinal health claims data in Germany. PLoS One 2016; 11(7):e0156876..

De toda forma, importantes achados autorreferidos revelam que a variável cor/raça preta foi estatisticamente associada ao desfecho discriminação nos serviços de saúde. O racismo pode ser caracterizado pela atribuição de características desfavoráveis a determinados grupos sociais que os detêm, e reafirma-se diariamente pelas relações estabelecidas entre os indivíduos e também na organização e no funcionamento das instituições2424 Dammeyer J, Chapman M. A national survey on violence and discrimination among people with disabilities. BMC Public Health 2018; 18(1):355.. Cabe destacar, em referência à área da saúde, que o racismo institucional pode ser o causador de desigualdade na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades às diferentes pessoas em virtude de sua cor2525 Taquette SR, Meirelles ZV. Discriminação racial e vulnerabilidade às DST/Aids: um estudo com adolescentes negras. Physis 2013; 23(1):129-142..

É importante destacar um estudo que aponta que um décimo da população brasileira se sente discriminada nos serviços de saúde e que pessoas não brancas têm mais chance de se sentirem discriminadas2626 López LC. O conceito de racismo institucional: aplicações no campo da saúde. Interface (Botucatu) 2012; 16(40):121-134.. Assim, as pessoas da cor/raça preta enfrentam disparidades na qualidade dos cuidados recebidos, o que pode ser um fator que contribui significativamente para as injustiças sociais em saúde.

O debate sobre as desigualdades raciais na saúde tem se concentrado nas diferenças genéticas inatas, disparidades na distribuição dos comportamentos de saúde individuais (traços culturais, como dieta, exercícios, uso de tabaco) e na super-representação de alguns grupos raciais em estratos socioeconômicos mais baixos como as principais causas de desigualdades raciais na morbidade e mortalidade2727 Boccolini CS, Boccolini PMM, Damacena GN, Ferreira APS, Landmann SC. Fatores associados à discriminação percebida nos serviços de saúde do Brasil: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Cien Saude Colet 2016, 21(2): 371-378.,2828 Rivera LM. Ethnic-racial stigma and health disparities: from psychological theory and evidence to public policy solutions. J Soc Issues 2014; 70(2):198-205.. Perspectivas alternativas para explicar esse tipo de iniquidade em saúde são os modelos estrutural-construtivista e psicossocial de estresse2929 Dressler WW, Oths KS, Gravlee C. Race and ethnicity in public health research: models to explain health disparities. Annual Review of Anthropology, 2005; 34:231-252.. O primeiro modelo enfatiza a intersecção de estruturas sociais estratificadas racialmente com objetivos e aspirações construídas dentro de grupos raciais, enquanto o último enfoca experiências de racismo e discriminação como importantes, mas não contribuintes únicos, para as desigualdades raciais em saúde2727 Boccolini CS, Boccolini PMM, Damacena GN, Ferreira APS, Landmann SC. Fatores associados à discriminação percebida nos serviços de saúde do Brasil: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Cien Saude Colet 2016, 21(2): 371-378.,2828 Rivera LM. Ethnic-racial stigma and health disparities: from psychological theory and evidence to public policy solutions. J Soc Issues 2014; 70(2):198-205.,3030 Krieger N. Stormy weather: race, gene expression, and the science of health disparities. Am J Public Health 2005; 95(12):2155-2160..

Com os resultados apresentados e a atualidade do objeto estudado, percebe-se que há a necessidade de se observar fatores interseccionais ao estudar a questão da discriminação da perda auditiva. É necessário a correlação com variáveis como cor, gênero e questões socioeconômicas, pois sabe-se que manifestações discriminatórias podem acometer mais pessoas de cor preta, mulheres e em situação socioeconômica vulneráveis66 Bastos JL, Faerstein E, Celeste RK, Barros AJ. Explicit discrimination and health: development and psychometric properties of an assessment instrument. Rev Saude Publica 2012; 46(2):269-278.. Em alguns casos, a intersecção entre estas variáveis podem se sobrepor e, juntas, produzir efeitos únicos para certos indivíduos.

Esta pesquisa apresenta originalidade mesmo com a limitação de não avaliar a renda e o efeito somatório entre as outras variáveis estudadas. Outra limitação foi não avaliar o uso de prótese auditiva, pois é um aspecto importante e que pode influenciar na vida dos indivíduos, refletindo na melhora da realização das atividades da vida diária e potencialmente podendo interferir na ocorrência de discriminação. Assim, abre-se uma oportunidade para novos estudos com modelos que incluam essas variáveis e esses modelos de análise. Ressalta-se, entretanto, que os achados apontam importantes questões contemporâneas a serem discutidas, como a possibilidade de racismo institucional e a diferença de sexo no relato de discriminação nos serviços de saúde no Brasil, em que mulheres e pessoas de cor ou raça (autodeclarada) preta com alguma deficiência auditiva relatam sofrer discriminação nos serviços de saúde. Além disso, os resultados reafirmam as desigualdades socioeconômicas no acesso e na utilização dos serviços de saúde que estão relacionadas às características individuais e interferem na necessidade e na busca de atendimento por parte do indivíduo.

Conclusão

Neste estudo, a prevalência de discriminação em adultos com deficiência auditiva foi de 15%. Observou-se que indivíduos de raça/cor preta e que referem limitação nas atividades habituais da vida diária apresentam as maiores prevalências de discriminação autorreferida nos serviços de saúde brasileiros.

Recomenda-se que sejam implementadas políticas e ações de saúde, incluindo estratégias durante a formação dos profissionais da área, para que esse cenário seja modificado. Além disso, ações para maior empoderamento do próprio usuário do serviço de saúde, a fim de que o acesso lhes seja assegurado de forma equitativa. É relevante que estudos mais aprofundados sobre a forma como a discriminação ocorre e como preveni-la também sejam desenvolvidos.

Referências

  • 1
    World Health Organization (WHO). World report on disability. Geneva: WHO; 2011.
  • 2
    Organização Mundial da Saúde (OMS). CIF: Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. São Paulo: EDUSP; 2004.
  • 3
    Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde [Internet]. 2015. p. 2015. [citado 2020 jul 13]. Disponível em: https://memoria.ebc.com.br/noticias/2015/08/ibge-62-da-populacao-tem-algum-tipo-de-deficiencia
    » https://memoria.ebc.com.br/noticias/2015/08/ibge-62-da-populacao-tem-algum-tipo-de-deficiencia
  • 4
    Nordvik Ø, Laugen Heggdal PO, Brännström J, Vassbotn F, Aarstad AK, Aarstad HJ. Generic quality of life in persons with hearing loss: a systematic literature review. MC Ear Nose Throat Disord 2018; 18:1.
  • 5
    Mick P, Kawachi I, Lin FR. The association between hearing loss and social isolation in older adults. Otolaryngol Head Neck Surg 2014; 150(3):378-384.
  • 6
    Bastos JL, Faerstein E, Celeste RK, Barros AJ. Explicit discrimination and health: development and psychometric properties of an assessment instrument. Rev Saude Publica 2012; 46(2):269-278.
  • 7
    Krieger N. A glossary for social epidemiology. J Epidemiol Community Health 2001; 55(10):693-700.
  • 8
    FitzGerald C, Hurst S. Implicit bias in healthcare professionals: a systematic review. BMC Med Ethics 2017; 18(1):19.
  • 9
    Szwarcwald CL, Malta DC, Pereira CA, Vieira ML, Conde WL, Souza Júnior PR, Damacena GN, Azevedo LO, Azevedo E Silva G, Theme Filha MM, Lopes Cde S, Romero DE, Almeida WS, Monteiro CA. Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil: concepção e metodologia de aplicação. Cien Saude Colet. 2014;19(2):333-342.
  • 10
    Holman JA, Drummond A, Hughes SE, Naylor G. Hearing impairment and daily-life fatigue: a qualitative study. Int J Audiol 2019; 58(7):408-416.
  • 11
    Quevedo ALAD, Leotti VB, Goulart BNG. Análise da prevalência de perda auditiva autodeclarada e fatores associados: informante primário versus proxy. Cad Saude Publica 2017; 33:e0076216.
  • 12
    Pérez-Garín D, Recio P, Magallares A, Molero F, García-Ael C. Perceived discrimination and emotional reactions in people with different types of disabilities: a qualitative approach. Span J Psychol 2018; 21:E12.
  • 13
    Jiménez A, Huete A. La discriminación por motivos de discapacidad: análisis de las respuestas recibidas al Cuestionario sobre Discriminación por motivos de Discapacidad promovido por el CERMI Estatal. Madrid: CERMI; 2002.
  • 14
    Ologe FE, Akande TM, Olajide TG. Occupational noise exposure and sensorineural hearing loss among workers of a steel rolling mill. Eur Arch Otorhinolaryngol 2006; 263(7):618-621.
  • 15
    Jamison DT, Breman JG, Measham AR, Alleyne G, Claeson M, Evans DB, Jha P, Mills A, Musgrove P, editors. Disease control priorities in developing countries. New York: Oxford University Press; 2006.
  • 16
    Rogers SE, Thrasher AD, Miao Y, Boscardin WJ, Smith AK. Discrimination in healthcare settings is associated with disability in older adults: health and retirement study, 2008-2012. J Gen Intern Med 2015; 30(10):1413-1420.
  • 17
    Hawkes S, Buse K. Gender and global health: evidence, policy, and inconvenient truths. Lancet 2013; 381(9879):1783-1787.
  • 18
    Baumgarten A, Peron TB, Bastos JL, Toassi RFC, Hilgert JB, Hugo FN, Celeste RK. Experiências de discriminação relacionadas aos serviços de saúde: análise exploratória em duas capitais do Sul do Brasil. Epidemiol Serv Saude 2015; 24(3):353-362.
  • 19
    Villela WV, Vianna LAC, Lima LFP, Sala DCP, Vieira TF, Vieira ML, Oliveira EM. Ambiguidades e contradições no atendimento das mulheres que sofrem violência. Saude Soc 2011; 20(1):113-123.
  • 20
    Weiss M, Ramakrishna J, Somma D. Health-related stigma: rethinking concepts and interventions. Psychol Health Med 2006; 11(3):277-287.
  • 21
    Villela WV, Monteiro S. Gênero, estigma e saúde: reflexões a partir da prostituição, do aborto e do HIV/aids entre mulheres. Epidemiol Serv Saude 2015; 24(3):531-540.
  • 22
    Ruusuvuori JE, Aaltonen T, Koskela I, Ranta J, Lonka E, Salmenlinna I, Laakso M. Studies on stigma regarding hearing impairment and hearing aid use among adults of working age: a scoping review. Disabil Rehabil 2021; 43(3):436-446.
  • 23
    Fritze T, Teipel S, Ovari A, Kilimann I, Witt G, Doblhammer G. Hearing impairment affects dementia incidence. An analysis based on longitudinal health claims data in Germany. PLoS One 2016; 11(7):e0156876.
  • 24
    Dammeyer J, Chapman M. A national survey on violence and discrimination among people with disabilities. BMC Public Health 2018; 18(1):355.
  • 25
    Taquette SR, Meirelles ZV. Discriminação racial e vulnerabilidade às DST/Aids: um estudo com adolescentes negras. Physis 2013; 23(1):129-142.
  • 26
    López LC. O conceito de racismo institucional: aplicações no campo da saúde. Interface (Botucatu) 2012; 16(40):121-134.
  • 27
    Boccolini CS, Boccolini PMM, Damacena GN, Ferreira APS, Landmann SC. Fatores associados à discriminação percebida nos serviços de saúde do Brasil: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Cien Saude Colet 2016, 21(2): 371-378.
  • 28
    Rivera LM. Ethnic-racial stigma and health disparities: from psychological theory and evidence to public policy solutions. J Soc Issues 2014; 70(2):198-205.
  • 29
    Dressler WW, Oths KS, Gravlee C. Race and ethnicity in public health research: models to explain health disparities. Annual Review of Anthropology, 2005; 34:231-252.
  • 30
    Krieger N. Stormy weather: race, gene expression, and the science of health disparities. Am J Public Health 2005; 95(12):2155-2160.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Jan 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2022
  • Aceito
    10 Jul 2022
  • Publicado
    12 Jul 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br