Resumo
A violência letal contra a mulher é um fenômeno complexo e multidimensional no qual interseccionam e confluem um amplo número de fatores para que aconteça um feminicídio em um momento e lugar específico. Identificaram-se os principais fatores que contribuíram na ocorrência de feminicídios na cidade de Campinas no período de janeiro de 2018 a dezembro de 2019. Foram feitas entrevistas com membros da família, amigos, vizinhos, testemunhas e agentes de saúde sobre 24 casos de feminicídio utilizando a técnica da autópsia verbal. As autópsias foram complementadas, quando possível, com informações veiculadas na mídia e informes de autópsia clínica. Para o processo de análise de dados, foram realizadas narrativas dos casos resgatando os aspectos mais importantes das autópsias verbais e organizando os fatores encontrados nos quatro níveis do modelo ecológico da violência utilizado pela Organização Mundial da Saúde: individual, relacional, comunitário e social. Estruturou-se a análise em categorias seguindo uma abordagem dedutiva. Partindo de casos particulares delimitados no tempo (2018 e 2019) e no espaço (a cidade de Campinas), espera-se compreender o fenômeno da violência letal contra as mulheres em sua dimensão mais ampla.
Palavras-chave:
Violência de gênero; Feminicídio; Análise de gênero na saúde; Perspectiva de gênero
Introdução
Os feminicídios são eventos multicausais, frequentes e complexos. No mundo, a cada dia são contabilizadas em média 137 mortes de mulheres por um membro da própria família11 United Nations Office on Drugs and Crime. Global Study on Homicide. Gender-related Killing of Women and Girls. Viena: UN; 2018.. A maioria dos casos acontece em espaços domésticos e são de autoria dos parceiros íntimos ou parentes de sexo masculino22 World Health Organization (WHO). Pan American Health Organization (PAHO). Understanding and addressing violence against women. Femicide. Geneva: WHO; 2012.. O Brasil é considerado um país com altos níveis de violência contra a mulher. Em 2019, foram notificados em média 13 homicídios femininos diários33 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas da Violência. Brasília: Ipea; 2019.. Durante os últimos cinco anos, o país vem registrando aumento nas cifras de feminicídio, particularmente no contexto da pandemia de COVID-1944 Fórum Brasileiro de Segurança pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública [Internet]. 2021. [acessado 2022 ago 3]. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf
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Múltiplas variáveis participam para que aconteça um feminicídio, algumas delas não completamente exploradas. Modelos conceituais são úteis para a compreensão do fenômeno de violência letal contra as mulheres. O modelo ecológico da violência foi implementado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no Relatório Mundial sobre Violência e Saúde55 Krug EG. Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS; 2002.,66 Dahlberg LL, Krug EG. Violência: um problema global de saúde pública. Cien Saude Colet 2006; 11(Supl.):1163-1178.. Introduzido na década de 1970, tem sido aplicado na análise de abuso infantil, violência juvenil, violência praticada pelo parceiro íntimo e abuso contra idosos. O modelo explora a relação entre fatores individuais e contextuais, considerando a violência como o resultado de várias camadas de influência sobre o comportamento em quatro níveis de análise55 Krug EG. Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS; 2002.:
Nível individual: refere-se às características da pessoa que aumentam a possibilidade de ser uma vítima ou perpetradora de violência. Inclui fatores biológicos, históricos, demográficos, pessoais e comportamentais (personalidade, baixo rendimento escolar, abuso de substâncias, antecedente de relacionamento violento, entre outros).
Nível relacional: abrange as relações sociais próximas (companheiros, parceiros íntimos e membros da família) que aumentam o risco de violência.
Nível comunitário: integra os contextos nos quais as relações estão embutidas (escolas, locais de trabalho e vizinhança) e identifica características desses cenários.
Nível social: contempla os fatores mais amplos que influenciam um clima favorável à violência ou reduzem as inibições contra ela, tais como as normas que apoiam a violência para solucionar conflitos. Também inclui as políticas de saúde, educacionais, econômicas e sociais que mantêm altos os níveis de desigualdade.
A estrutura ecológica leva em consideração as diversas causas da violência e a interação de fatores familiares, comunitários e sociais, que são também influenciados por valores culturais e econômicos. Cabe ressaltar que o modelo não pode contemplar todos os elementos da realidade que pretende modelar. É uma estratégia analítica para a compreensão da complexidade do fenômeno da violência letal contra as mulheres. A escolha desse modelo atende ao reconhecimento da participação de um amplo conjunto de fatores que se interseccionam e confluem para que aconteça um feminicídio em um contexto temporal e espacial determinado.
O objetivo do presente trabalho é analisar, por meio do modelo ecológico da violência, os casos de feminicídio que aconteceram nos anos 2018 e 2019 na cidade de Campinas, SP, Brasil.
Método
O estudo foi realizado na cidade de Campinas, com cerca de 1,2 milhão de habitantes, situada aproximadamente 100 quilômetros a noroeste da cidade de São Paulo. A pesquisa de casos possibilita a análise de eventos singulares para compreender o contexto geral mediante uma abordagem dedutiva. Entende-se que um indivíduo pode ser visto como uma manifestação de uma totalidade, construído a partir de relações sociais em um contexto histórico determinado77 Heloani R, Capitão CG. Formulações gerais sobre o objeto de pesquisa em Psicologia: estudo de caso. In: Heloani R, Souza RMB, Rodrigues RRJ, organizadores. Sociedade em transformação: estudo das relações entre trabalho, saúde e subjetividade. Londrina: EDUEL; 2007. p. 17-35.. Mediante parceria com a Secretaria de Saúde da cidade, foram obtidas as declarações de óbito e o endereço da totalidade das moradoras que faleceram por homicídio (n = 38) de 1º de janeiro de 2018 a 31 de dezembro de 2019. Entre os casos, foram selecionados, mediante consenso do grupo de campo, aqueles nos quais se identificou o componente de desigualdade de gênero que caracteriza os feminicídios.
Tratando-se de um estudo que analisou casos de feminicídio já ocorridos, os dados foram obtidos por meio da realização de autópsias verbais com familiares, amigos, conhecidos e vizinhos nos entornos de moradia, convivência e trabalho das mulheres falecidas88 World Health Organization (WHO). Verbal autopsy standards: ascertaining and attributing cause of death; Geneva: WHO; 2007.. A autópsia verbal é um método indireto para estimar uma causa de mortalidade. É utilizada para a coleta, codificação e sistematização de informações de mortalidade em estudos epidemiológicos e de vigilância em saúde pública88 World Health Organization (WHO). Verbal autopsy standards: ascertaining and attributing cause of death; Geneva: WHO; 2007.. O objetivo ao usar a autópsia verbal foi complementar as informações e ampliar o entendimento das características das mortes por feminicídio. Trabalhos prévios sobre feminicídios utilizaram essa técnica99 Caicedo-Roa M, Cordeiro RC, Martins ACA, Faria PH. Femicídios na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica 2019; 35(6):e00110718.,1010 Caicedo-Roa M, Nascimento JL, Bandeira LM, Cordeiro RC. Queima às bruxas: feminismo e feminicídios íntimos por queimadura em uma metrópole brasileira. Cien Saude Colet 2022; 27(2):525-534..
As informações foram coletadas por meio de trabalho de campo, com deslocamento da equipe de pesquisa até os entornos de moradia, trabalho e convivência das mulheres falecidas, o que implicou uma aproximação das condições de vida dos sujeitos pesquisados. As autópsias foram feitas após 15 dias da morte, para respeitar o período de luto de familiares e conhecidos. O caráter mais pessoal e subjetivo dos casos não foi captado, em seu lugar, tentou-se aproximar o máximo possível das condições de vida da vítima.
Tomando como referência as autópsias verbais, as informações da mídia e das autópsias clínicas, foram elaboradas narrativas resgatando os elementos mais significativos da vida e da morte das vítimas para cada nível do modelo ecológico. Posteriormente, foram organizadas por frequências e categorias.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de ética em pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob CAAE 04005118.9.0000.5404 e 29654720.6.0000.5404. Termos de consentimento foram proporcionados aos participantes. Os nomes empregados são fictícios e foi eliminada qualquer informação que pudesse revelar a identidade da vítima ou do autor do feminicídio.
Resultados
Analisaram-se 24 casos de mulheres moradoras de Campinas que faleceram por feminicídio nos anos de 2018 e 2019. No Quadro 1, pode-se encontrar a descrição das caraterísticas sociodemográficas das vítimas, o provável gatilho e o mecanismo empregado para causar a morte. No Quadro 2, foram registrados os elementos e categorias que compuseram cada nível. Estes foram organizados de forma esquemática na Figura 1. Nesta análise, o nível relacional mostrou-se como o mais relevante para feminicídio, seguido pelos níveis individual, social e comunitário.
A morte de uma mulher não é um evento isolado. Pela relevância do seu papel social, a morte impacta consideravelmente a vida das pessoas que dependem delas. Nos 24 casos de feminicídio analisados, além das mortes das mulheres, aconteceram três mortes de agressores que se suicidaram após cometerem o feminicídio ou morreram durante a agressão. Também houve 45 filhos que perderam suas genitoras.
Discussão
O modelo ecológico da violência permite identificar caso a caso os fatores relevantes para o feminicídio. Alguns fatores podem ser transversais, aparecer em mais de um nível e apresentar uma importância maior ou menor, dependendo do caso. Os fatores se interseccionam para ampliar o risco de feminicídio. A violência contra a mulher deve ser entendida como um fenômeno macro, que está inserido em um contexto global, comunitário e relacional, e que acaba na morte individual. A seguir, são discutidos os principais elementos de cada nível.
Nível relacional
Esse nível é determinante porque nele podem ser localizadas as relações violentas e a desigualdade de poder entre os gêneros. O nível relacional integra duas individualidades, a da mulher e a do autor do feminicídio, somente na interação delas surge o nível relacional. Este nível conforma-se de uma maneira diferente da simples junção dos níveis individuais e opera com uma dinâmica própria. As categorias mais importantes deste nível são descritas a seguir.
Relacionamento violento
Mundialmente, 30% (IC95% 27,8-32,2) das mulheres que estiveram em um relacionamento reportaram ter experimentado violência física e/ou sexual pelo parceiro íntimo ao longo da vida1111 World Health Organization (WHO). Department of Reproductive Health and Research, London School of Hygiene and Tropical Medicine, South African Medical Research Council. Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence; Geneva: WHO; 2013.,1212 United Nations (UN). The world's women 2015: trends and statistics. New York: UN; 2015.. No mundo, a prevalência de violência ao longo da vida oscila entre 15% a 71%1313 Organización Mundial de la Salud (OMS). Estudio multipai´s de la OMS sobre salud de la mujer y violencia domestica contra la mujer. Ginebra: OMS; 2002.. Estudos brasileiros reportaram prevalências entre 27,4% e 57,6%1414 Silva M, Neto G, Figueiroa J, Cabral Filho J. Violence against women: prevalence and associated factors in patients attending a public healthcare service in the Northeast of Brazil. Cad Saude Publica 2010; 26(2):264-272.,1515 Santos IB, Leite FMC, Amorim MHC, Maciel PMA, Gigante DP. Violência contra a mulher na vida: estudo entre usuárias da Atenção Primária. Cien Saude Colet 2020; 25(5):1935-1946.. Mulheres que sofrem violência doméstica experimentam múltiplos episódios e vários tipos de abuso.
A maioria das mulheres analisadas neste estudo tinha um relacionamento com um homem violento (79%), o que corrobora a altíssima prevalência de exposição à violência entre as vítimas de feminicídio1616 Campbell J, Glass N, Sharps PW, Laughon K, Bloom T. Intimate partner homicide: review and implications of research and policy. Trauma Violence Abuse 2007; 8(3):246-269.. A violência é um recurso utilizado pelos parceiros para garantir obediência, manter controle e favorecer a continuidade dos relacionamentos. Começa usualmente em baixo grau e aumenta em severidade e frequência. A violência se comporta de forma cíclica1717 Lucena K, Deininger L, Coelho H, Monteiro A, Vianna R, Nascimento J. Analysis of the cycle of domestic violence against women. J Human Growth Develop 2016; 26(2):139-146.; períodos de aparente calma e bem estar se alternam com situações estressoras que desencadeiam as agressões. Na repetição do ciclo de violência, as agressões vão se tornando mais fortes e podem terminar em feminicídio.
Um estudo com dez países, entre eles o Brasil, mostrou que quando uma mulher é vítima recorrente de violência infringida pelo companheiro é muito provável que posteriormente ocorra um ato de violência grave. A maioria dos atos violentos não são incidentes isolados, seguem um padrão de maus tratos continuados1313 Organización Mundial de la Salud (OMS). Estudio multipai´s de la OMS sobre salud de la mujer y violencia domestica contra la mujer. Ginebra: OMS; 2002.. Estudos com mulheres vítimas de tentativas feminicidas estimaram que 67% delas tinham uma história de abuso antes da tentativa de assassinato1818 Nicolaidis C, Curry MA, Ulrich Y, Sharps P, McFarlane J, Campbell D, Gary F, Laughon K, Glass N, Campbell J. Could we have known? A qualitative analysis of data from women who survived an attempted homicide by an intimate partner. J Gen Intern Med 2003; 18(10):788-794..
O antecedente de relacionamento violento apareceu em 25% dos casos. Teorias prévias pontuaram que mulheres vítimas de violência têm tendência a se envolver em novos relacionamentos violentos. Assim, o antecedente de relacionamento violento é um fator de risco para feminicídio1616 Campbell J, Glass N, Sharps PW, Laughon K, Bloom T. Intimate partner homicide: review and implications of research and policy. Trauma Violence Abuse 2007; 8(3):246-269..
Relacionamento curto
O padrão conhecido dos relacionamentos violentos descreve que as relações vão se tornando cada vez mais violentas até chegar ao feminicídio1919 Reckdenwald A, Parker KF. Understanding the change in male and female intimate partner homicide over time: a policy-and theory-relevant investigation. Feminist Criminology 2011; 7(3):167-195.. No entanto, quatro dos casos de feminicídio estudados contradizem o padrão. No caso da Valentina, o relacionamento foi de quatro meses, da Valeriana e da neta da Orquídea, de três meses, e no caso da Carina foi de apenas um mês. O fato de esses feminicídios terem acontecido em relacionamentos tão curtos é uma questão preocupante porque diminui a possibilidade de as mulheres procurarem apoio e terminarem o relacionamento de forma segura, demandando maior agilidade das intuições para a proteção da vida das vítimas.
Relacionamento com um homem casado
Dois casos de feminicídio decorreram de relacionamentos com homens casados. Manifestações de intensa violência foram vistas ante o descobrimento da infidelidade masculina. Manter um relacionamento com um homem casado também pode ser um fator para feminicídio, principalmente quando há suspeita ou confirmação de gravidez.
Questões comportamentais do agressor Ameaça de morte
Ser ameaçada de morte é um fator de risco para feminicídio (OR 7,36, IC95% 2,99-18,11)2020 Spencer CM, Stith SM. Risk factors for male perpetration and female victimization of intimate partner homicide: a meta-analysis. Trauma Violence Abuse 2020; 21(3):527-540.. Escalas de avaliação identificaram essa ameaça como um sinal de risco2020 Spencer CM, Stith SM. Risk factors for male perpetration and female victimization of intimate partner homicide: a meta-analysis. Trauma Violence Abuse 2020; 21(3):527-540.
21 Campbell JC, Webster DW, Glass N. The danger assessment validation of a lethality risk assessment instrument for intimate partner femicide. J Interpers Violence 2009; 24(4):653-674.
22 Brasil. Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Formulário de avaliação de risco FRIDA: um instrumento para o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher. Brasília: CNMP; 2019.-2323 Echeburúa E, Fernández-Montalvo J, Corral P, López-Goñi JJ. Assessing risk markers in intimate partner femicide and severe violence: a new assessment instrument. J Interpers Violence 2009; 24(6):925-939.. Seis mulheres da pesquisa foram ameaçadas de morte, duas fizeram um boletim de ocorrência, mas em nenhum dos casos foi oferecida a medida protetiva. No caso da Ramona, tanto ela quanto sua família foram ameaçadas de morte caso denunciassem as agressões.
Consumo problemático de substâncias psicoativas (spas) por parte do agressor
Estudos sobre o padrão de uso de álcool e drogas em assassinatos e tentativas de assassinato de mulheres pelos seus companheiros íntimos mostraram forte relação entre o uso de sustâncias e a violência2424 Sharps P, Campbell JC, Campbell D, Gary F, Webster D. Risky mix: drinking, drug use, and homicide. NIJ Journal 2003; 250:8-13.. Uma revisão sistemática encontrou que o abuso de substâncias por parte do agressor, incluindo álcool e outras drogas, aumenta o risco de feminicídio em 85% (OR 1,85, IC95% 1,19-2,86)2020 Spencer CM, Stith SM. Risk factors for male perpetration and female victimization of intimate partner homicide: a meta-analysis. Trauma Violence Abuse 2020; 21(3):527-540.. O álcool atua desinibindo a conduta. Pessoas sob efeito de substâncias psicoativas podem exibir comportamentos agressivos.
Comportamento controlador do companheiro
O comportamento controlador inclui uma ampla variedade de atitudes restritivas, tais como:
Limitar os locais que a mulher frequenta e o tempo de permanência neles, por exemplo em serviços de saúde ou visitas a familiares/amigos(as); limitar acesso a redes sociais; limitar ou impedir atividades como trabalhar ou estudar; decidir sobre a roupa, maquiagem, comida e bebida que pode usar ou ingerir; enviar mensagens controladoras pelo celular ou e-mails de forma insistente; restringir o acesso a dinheiro, conta bancária ou outros bens de propriedade da mulher ou do casal.
Comportamentos desse tipo usualmente são acompanhados de justificativas como ciúmes, desconfiança da palavra da mulher ou um aparente desejo de proteção dela. Com o uso massivo de dispositivos eletrônicos, outras formas de controle sobre as mulheres estão se tornando mais frequentes2525 Campeiz AB, Carlos DM, Campeiz AF, Silva JL, Freitas LA, Ferriani MGC. Violence in intimate relationships from the point of view of adolescents: perspectives of the Complexity Paradigm. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03575.. Alana e Samanta eram vigiadas por meio dos seus telefones. Alana recebia ligações o tempo inteiro e foi pedido para ela dormir com a câmera do telefone ligada projetando sua imagem. No caso de Samanta, o agressor pedia o envio constante da localização pelo dispositivo. Ser um companheiro que exibe um comportamento controlador é um fator de risco para feminicídio (OR 5,60, IC 95% 4,41-7,13)2020 Spencer CM, Stith SM. Risk factors for male perpetration and female victimization of intimate partner homicide: a meta-analysis. Trauma Violence Abuse 2020; 21(3):527-540..
Ameaça ou tentativa de suicídio por parte do agressor
Em três casos os agressores ameaçaram cometer suicídio ante o término do relacionamento (casos de Orquídea, Taciana e Alana). Pressão psicológica é utilizada como forma de manter as mulheres nos relacionamentos. Ante a ameaça de suicídio de um autor de violência, é recomendável que a mulher evite o contato com ele e que notifique os serviços de prevenção a suicídio para o manejo da situação de crise. Dessa forma, possibilita-se que o agressor receba suporte em relação à ameaça suicida e que a mulher não se exponha a situações de confronto físico potencialmente letais para ela.
Ideia de traição ou infidelidade
Alguns dos feminicídios são justificados pelos agressores como resposta a uma traição. No caso de Franciele, depois de ter terminado o relacionamento, o esposo a mata, ataca com dois tiros o suposto amante e posteriormente se suicida por não aceitar o fim do relacionamento e acreditar que fora traído. Alana recebeu 16 disparos de arma de fogo porque o companheiro encontrou umas mensagens com corações em seu telefone. E Valeriana foi brutalmente espancada por se relacionar com outros parceiros sexuais.
A ideia de traição como justificativa para matar uma mulher vem associada à concepção de propriedade sobre seus corpos, ações e sentimentos. Teorias como a de propriedade sexual têm apontado que a probabilidade de violência aumenta quando o homem acredita que tem direito sobre a mulher e suas capacidades reprodutivas. Nesse contexto, a perda de tal controle é detonante para as agressões2020 Spencer CM, Stith SM. Risk factors for male perpetration and female victimization of intimate partner homicide: a meta-analysis. Trauma Violence Abuse 2020; 21(3):527-540.. Outras teorias focam na ideia masculina do direito à autoridade, em que a violência é vista como instrumento para limitar a independência feminina, reforçada pela ideia de que a mulher lhe pertence.
Separação e término do relacionamento
O término do relacionamento violento é um detonante para feminicídio (OR 2,33, IC95% 1,64- 3,30)2020 Spencer CM, Stith SM. Risk factors for male perpetration and female victimization of intimate partner homicide: a meta-analysis. Trauma Violence Abuse 2020; 21(3):527-540.,2626 Campbell JC, Webster D, Koziol-McLain J, Block C, Campbell D, Curry MA, Gary F, Glass N, McFarlane J, Sachs C, Sharps P, Ulrich Y, Wilt SA, Manganello J, Xu X, Schollenberger J, Frye V, Laughon K. Risk factors for femicide in abusive relationships: results from a multisite case control study. Am J Public Health 2003; 93(7):1089-1097.. Nicolaidis e colaboradores empreenderam um estudo com mulheres sobreviventes a tentativas de feminicídio, encontrando que em 73% dos casos a mulher tinha tentado deixar o relacionamento1818 Nicolaidis C, Curry MA, Ulrich Y, Sharps P, McFarlane J, Campbell D, Gary F, Laughon K, Glass N, Campbell J. Could we have known? A qualitative analysis of data from women who survived an attempted homicide by an intimate partner. J Gen Intern Med 2003; 18(10):788-794.. Nesta pesquisa, seis das mulheres morreram após tentar ou terminar o relacionamento violento. Os assassinatos ocorrem pouco tempo depois do término. O primeiro ano após a separação é o período de maior risco2626 Campbell JC, Webster D, Koziol-McLain J, Block C, Campbell D, Curry MA, Gary F, Glass N, McFarlane J, Sachs C, Sharps P, Ulrich Y, Wilt SA, Manganello J, Xu X, Schollenberger J, Frye V, Laughon K. Risk factors for femicide in abusive relationships: results from a multisite case control study. Am J Public Health 2003; 93(7):1089-1097., sendo particularmente importantes os três primeiros meses.
No entanto, o término da relação não garante a cessação da violência. Agressões e ameaças persistem. Existem múltiplas razões pelas quais as mulheres não querem terminar os relacionamentos: medo de sofrer agressões mais severas ou de morrer, falta de suporte econômico, preocupação com os filhos, dependência emocional, falta de redes de apoio, esperança de mudança do agressor, preconceito associado à separação, entre outras2727 Ellsberg M, Peña R, Herrera A, Liljestrand J, Winkvist A. Candies in hell: women's experiences of violence in Nicaragua. Soc Sci Med 2000; 51(11):1595-1610..
Entre os preditores mais comuns para o término, destacam-se: a natureza da violência, a história de vida da mulher, fatores sociais e psicológicos, recursos externos e estratégias de enfrentamento2828 Anderson DK, Saunders DG. Leaving an abusive partner: an empirical review of predictors, the process of leaving, and psychological well-being. Trauma Violence Abuse 2003; 4(2):163-191.. O término de um relacionamento violento não costuma ser um processo linear, comumente contemplando várias idas e vindas. Em ocasiões, as vítimas têm intenção de deixar os relacionamentos por motivos diferentes da violência, tais como abuso de álcool ou drogas por parte dos parceiros, problemas financeiros ou infidelidade, mais do que por reconhecer o risco da própria morte1818 Nicolaidis C, Curry MA, Ulrich Y, Sharps P, McFarlane J, Campbell D, Gary F, Laughon K, Glass N, Campbell J. Could we have known? A qualitative analysis of data from women who survived an attempted homicide by an intimate partner. J Gen Intern Med 2003; 18(10):788-794..
De forma geral, a qualidade de vida das mulheres que sofrem abuso melhora depois da separação, mas a permanência em um relacionamento é em média de 11 anos2929 Alsaker K, Moen BE, Kristoffersen K. Health-related quality of life among abused women one year after leaving a violent partner. Social Indicators Research 2008; 86(3):497-509.. O processo de rompimento de um relacionamento violento não é um assunto simples. Mulheres nessa situação devem ser apoiadas com os recursos legais disponíveis. Términos de relacionamentos violentos devem ser auxiliados por pessoal competente em violência doméstica, caso contrário podem aumentar o risco de morte.
A medida protetiva é um recurso disponível para as mulheres que terminam o relacionamento. Notifica o agressor sobre a proteção do Estado e limita as possibilidades de contato sob pena de prisão. A lei brasileira contempla também que pedidos de divórcio podem ser feitos unicamente com a intenção de uma das partes, o que facilita o término dos vínculos legalmente estabelecidos com o agressor.
Rede de apoio deficiente
Mulheres que sofrem violência têm redes de apoio precárias. No estudo da OMS de 2002, foi reportado que no Brasil aproximadamente 80% das mulheres entrevistadas tinham falado sobre maus tratos físicos com alguém, porém, muitas mulheres evitam falar a respeito da experiência de violência, e quando o fazem normalmente comentam com familiares, amigos ou líderes religiosos1313 Organización Mundial de la Salud (OMS). Estudio multipai´s de la OMS sobre salud de la mujer y violencia domestica contra la mujer. Ginebra: OMS; 2002..
Concepções tradicionalistas sobre o papel da mulher, atitudes machistas, descrédito na palavra da mulher quando denuncia violência, tendência à culpabilização da vítima ou justificação do agressor, assim como sentimentos de vergonha e culpa, impedem as mulheres de expor situações de violência e procurar ajuda. A dicotomia entre público e privado termina vulnerabilizando as mulheres, colocando-as em entornos onde é mais difícil sua proteção.
Vítimas de violência física moderada e grave procuram as instituições ou autoridades mas o fazem quando não podem tolerar mais as agressões ou se encontram gravemente feridas1313 Organización Mundial de la Salud (OMS). Estudio multipai´s de la OMS sobre salud de la mujer y violencia domestica contra la mujer. Ginebra: OMS; 2002.. Ante situações de risco para a integridade física, é recomendável ter uma rota de escape planejada para se resguardar e posteriormente denunciar às autoridades. Mulheres vítimas de violência doméstica que não encontram redes de apoio na comunidade, na escola, na legislação, na sociedade se tornam vítimas de feminicídio.
Redes de apoio são especialmente necessárias para adolescentes porque elas carecem dos recursos pessoais e econômicos suficientes para enfrentar a violência. Adolescentes como Miranda e Jeannete, com 13 e 19 anos, tinham redes de apoio deficientes. Mulheres jovens cada vez mais estão experimentando situações de violência por parceiros íntimos, evidenciando que a violência começa precocemente1313 Organización Mundial de la Salud (OMS). Estudio multipai´s de la OMS sobre salud de la mujer y violencia domestica contra la mujer. Ginebra: OMS; 2002.,3030 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil [Internet]. 2019. [acessado 2021 out 13]. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/02/relatorio-pesquisa-2019-v6.pdf
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Um estudo com participantes de cinco cidades estadunidenses identificou que quase 50% das mulheres que sobreviveram a tentativas feminicidas subestimaram a periculosidade da situação, não reconheceram que suas vidas estavam em risco e se mostraram surpreendidas com o ataque do agressor1818 Nicolaidis C, Curry MA, Ulrich Y, Sharps P, McFarlane J, Campbell D, Gary F, Laughon K, Glass N, Campbell J. Could we have known? A qualitative analysis of data from women who survived an attempted homicide by an intimate partner. J Gen Intern Med 2003; 18(10):788-794.. Que as mulheres não reconheçam que têm um risco de morte e que os agressores não tenham um padrão único reforça a necessidade de capacitar as pessoas que realizam as intervenções ou têm contato com mulheres vítimas de violência, como funcionários do setor de saúde, advogados, psicólogos, trabalhadores sociais e outros, para estarem cientes da seriedade da situação e do risco de morte da mulher.
Nível individual
A identidade de gênero feminina, a procedência de fora de São Paulo, o consumo problemático de spas, o baixo nível socioeconômico e de escolaridade foram os fatores relevantes para feminicídio neste nível.
Gênero
Um dos pontos importantes, mas polêmico e complexo, é identificar o componente de gênero nos casos de feminicídio. Na pesquisa realizada pelo Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, foi colocada esta questão3131 Núcleo de Gênero Ministério Público do Estado de São Paulo. Raio X do feminicídio em São Paulo: é possível evitar a morte [Internet]. 2018. [acessado 2021 jul 7]. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nucleo_de_Genero/Feminicidio/RaioXFeminicidioC.PDF
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal... . Os casos só são classificados como feminicídios quando entre a vítima e o agressor havia uma relação ou evidência de violência doméstica; outros assassinatos não são tipificados como tal, o que implica a subclassificação e subnotificação de casos. Mulheres são majoritariamente vítimas de violência nos relacionamentos. Apesar de elas poderem recorrer a condutas violentas contra os agressores, sua posição no próprio relacionamento é desvantajosa. Mulheres às vezes utilizam a violência para se defenderem, mas raramente iniciam as agressões físicas1313 Organización Mundial de la Salud (OMS). Estudio multipai´s de la OMS sobre salud de la mujer y violencia domestica contra la mujer. Ginebra: OMS; 2002..
Condições econômicas
Mulheres com baixas condições econômicas sofrem violência com mais frequência3232 Van Wyk JA, Benson ML, Fox GL, DeMaris A. Detangling individual-, partner-, and community-level correlates of partner violence. Crime & Delinquency 2003; 49(3):412-438.. Altos níveis de pobreza podem aumentar a tensão e os conflitos nos relacionamentos. Casais insatisfeitos com suas finanças têm mais probabilidade de recorrer à violência3232 Van Wyk JA, Benson ML, Fox GL, DeMaris A. Detangling individual-, partner-, and community-level correlates of partner violence. Crime & Delinquency 2003; 49(3):412-438.. Por outra lado, o fato de o agressor estar empregado tem sido identificado como um fator protetor para feminicídio (OR 0,50, IC95% 0,36-0,70)2020 Spencer CM, Stith SM. Risk factors for male perpetration and female victimization of intimate partner homicide: a meta-analysis. Trauma Violence Abuse 2020; 21(3):527-540..
A privação econômica e a marginalização causada pelas iniquidades de gênero influenciam os feminicídios. Mulheres que carecem de independência financeira podem ter maior dificuldade para deixar as relações abusivas1919 Reckdenwald A, Parker KF. Understanding the change in male and female intimate partner homicide over time: a policy-and theory-relevant investigation. Feminist Criminology 2011; 7(3):167-195.. Mulheres com melhores aportes econômicos têm mais chances de deixar seus parceiros agressores2828 Anderson DK, Saunders DG. Leaving an abusive partner: an empirical review of predictors, the process of leaving, and psychological well-being. Trauma Violence Abuse 2003; 4(2):163-191.. A independência econômica as torna menos dispostas a manter relacionamentos violentos, dado a baixa percepção de retribuição e o alto custo emocional.
Mulheres em situação de violência têm sua energia gasta na segurança própria e dos filhos. A violência as impede de se dedicar a atividades laborais, causam absenteísmo e maiores dificuldades para conservar o trabalho ou mudar de emprego. O trabalho, além de prover ingresso econômico, aumenta a autoestima e a liberdade das mulheres. Dispor do próprio dinheiro proporciona segurança e sensação de autossuficiência3333 Alsaker K, Moen BE, Baste V, Morken T. How has living with intimate partner violence affected the work situation? A qualitative study among abused women in Norway. J Fam Violence 2016; 31:479-487..
Procedência
Mulheres migrantes enfrentam fatores que aumentam sua vulnerabilidade, tais como isolamento, distância, afastamento da família, racismo, xenofobia, além de relações de trabalho precárias e informais3434 Bertoldo J. Migração com rosto feminino: múltiplas vulnerabilidades, trabalho doméstico e desafios de políticas e direitos. Katálysis 2018; 21(2):313-323.. Estudos de migração com enfoque de gênero têm mostrado a relevância de incorporar as diferenças por sexo na análise de fluxos migratórios3535 Peres RG, Baeninger R, organizadores. Migração feminina: um debate teórico e metodológico no âmbito dos estudos de gênero. Anais do XVIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais. 2012 nov 19-23, Águas de Lindoia, Brasil. Associação Brasileira de Estudos Populacionais; 2012.. Mulheres migrantes estão mais expostas a iniquidades estruturais, menores recursos econômicos, falta de opções de emprego e divórcio3636 Sabri B, Campbell JC, Messing JT. Intimate partner homicides in the united states, 2003-2013: a comparison of immigrants and nonimmigrant victims. J Interpers Violence 2021; 36:4735-4757..
Consumo spas por parte da vítima
O consumo de spas por parte da vítima aumenta o risco de feminicídio (OR 2,56, IC95% 1,78-3,67). Estudos apontaram o consumo de substâncias por parte da mulher como um fator que favorece sua vitimização2020 Spencer CM, Stith SM. Risk factors for male perpetration and female victimization of intimate partner homicide: a meta-analysis. Trauma Violence Abuse 2020; 21(3):527-540..
Condições educativas
Existe uma relação inversa entre educação e violência, sugerindo que educação tem um efeito protetor. Mulheres com maior nível educacional têm mais possibilidade de escolher seus companheiros, decidir acerca do casamento e ter maior autonomia e controle sobre os recursos dentro do matrimônio1313 Organización Mundial de la Salud (OMS). Estudio multipai´s de la OMS sobre salud de la mujer y violencia domestica contra la mujer. Ginebra: OMS; 2002.,1515 Santos IB, Leite FMC, Amorim MHC, Maciel PMA, Gigante DP. Violência contra a mulher na vida: estudo entre usuárias da Atenção Primária. Cien Saude Colet 2020; 25(5):1935-1946.. Melhores condições educacionais estão intimamente relacionadas com melhores posições econômicas, que impactam na exposição à violência.
Feminicídios de mulheres grávidas, com suspeita de gravidez e puérperas
Socialmente, o papel de mãe é um dos mais valorizados. Estima-se que a prevalência de violência na gravidez pode chegar até 45%3737 Campbell JC, Lewandowski LA. Mental and physical health effects of intimate partner violence on women and children. Psychiatr Clin North Am 1997; 20(2):353-374.
38 Gharacheh M, Azadi S, Mohammadi N, Montazeri S, Khalajinia Z. Domestic violence during pregnancy and women's health-related quality of life. Glob J Health Sci 2016; 8(2):27-34.-3939 Conceição HN, Coelho SF, Madeiro AP. Prevalência e fatores associados à violência por parceiro íntimo na gestação em Caxias, Maranhão, 2019-2020. Epidemiol Serv Saude 2020; 30(2):e2020848.. Nas autópsias realizadas, uma mulher foi assassinada durante a gravidez, e outra durante o puerpério. Em um estudo internacional com mulheres agredidas durante a gravidez, foi reportado que em 90% dos casos as agressões vieram do pai biológico do filho em gestação1313 Organización Mundial de la Salud (OMS). Estudio multipai´s de la OMS sobre salud de la mujer y violencia domestica contra la mujer. Ginebra: OMS; 2002.. A gravidez tem sido identificada como uma condição de risco para o feminicídio4040 Campbell JC, Lewandowski LA. Mental and physical health effects of intimate partner violence on women and children. Psychiatr Clin North Am 1997; 20:353-374.. Homens que abusam de mulheres durante a gravidez têm mais risco de serem feminicidas (OR 3,93, IC 95% 2,99-5,18)2020 Spencer CM, Stith SM. Risk factors for male perpetration and female victimization of intimate partner homicide: a meta-analysis. Trauma Violence Abuse 2020; 21(3):527-540..
Nível social
No nível social, destacaram-se a cultura misógina e machista, além da alta tolerância social ao comportamento violento contra as mulheres. Sociedades latino-americanas como a brasileira têm sido amplamente influenciadas por modelos de pensamento tradicionalistas e religiosos.
Misoginia e machismo
A misoginia é um termo que descreve o ódio, desprezo ou o preconceito discriminatório contra as mulheres. É um conceito de caráter social, que se manifesta nas relações. Pode estar presente nas formas de exclusão, hostilidade, discriminação, subordinação, violência e na manutenção do privilégio masculino sobre o feminino. A misoginia é própria dos ambientes onde as mulheres são percebidas como violadoras das normas patriarcais e reprimidas por meio de reações hostis. Assim, a misoginia se refere ao controle feminino que perpetua sua subordinação4141 Manne K. Down girl: the logic of misogyny. New York: Oxford University Press; 2017..
O ódio e o controle das mulheres estão sustentados em crenças religiosas, naturalistas/biologicistas e culturais que passam pelas diferentes gerações nas práticas educativas e de socialização. Ideias como a menor inteligência das mulheres ou sua propensão à maldade estão arraigadas em algumas culturas. Mulheres em sociedades patriarcais e misóginas estão impossibilitadas de exercerem sua liberdade, autodeterminarem sua existência e usufruírem dos direitos básicos, sendo também punidas e agredidas pela sua condição de mulheres.
Durante os últimos anos, o tema da violência contra as mulheres tem sido visibilizado. Pautas como a da dignidade, integridade, respeito, bem-estar e valoração do feminino são cada vez mais presentes em entornos de debates políticos, acadêmicos, sociais e familiares como resposta contra o sistema de valores e crenças que modelam as relações desiguais entre os gêneros.
Homens com pensamentos tradicionalistas sobre os papeis de gênero são mais propensos a praticar violência contra as parceiras para garantir obediência e submissão. Nos relacionamentos afetivos, o controle das mulheres começa com o controle e a desvalorização do feminino. É frequente que a violência escale para a violência sexual; mulheres são obrigadas a manter contato sexual não desejado ou praticar atos sexuais sem sua aprovação. E, finalmente, aparecem as agressões físicas. Todas as condutas respondem ao propósito de garantir a obediência e submissão feminina em benefício da contraparte masculina4242 Conopoima Y. El femicidio como resultado de la educación patriarcal. Universidad y Sociedad 2019; 11(4):118-123..
Violência e falta de coesão social
A organização social se refere à habilidade dos residentes da comunidade de regular o comportamento. Comunidades com isolamento social têm maior dificuldade para estabelecer acordos sobre o comportamento dos residentes e não residentes. A falta de laços pode gerar uma atitude apática ante situações de violência doméstica, por exemplo evitando ligar para a Polícia ou confrontar o agressor, fazendo com que homens violentos possam se sentir livres para agredir as parceiras com impunidade.
Limitar o contato da mulher com outras pessoas faz parte do controle que exercem os parceiros. Isso reduz a probabilidade de o comportamento violento ser exposto, e por sua vez o isolamento aumenta a dependência feminina do homem. Mulheres que têm um suporte social forte têm maior probabilidade de encontrar ajuda para deixar o parceiro abusivo. A desaprovação social refreia o comportamento agressivo masculino3232 Van Wyk JA, Benson ML, Fox GL, DeMaris A. Detangling individual-, partner-, and community-level correlates of partner violence. Crime & Delinquency 2003; 49(3):412-438..
Nível comunitário
Nos casos estudados, pode ser visto que os feminicídios atingem tanto as mulheres com condições econômicas favoráveis quanto precárias. Vítimas de violência doméstica raramente contam com seus vizinhos para ajudar a resolver problemas pessoais. Indivíduos com rendas médias e altas têm menor probabilidade de intervir em situações de violência doméstica do que indivíduos com menores ingressos4343 Edwards KM, Mattingly MJ, Dixon KJ, Banyard VL. Community matters: intimate partner violence among rural young adults. Am J Community Psychol 2014; 53(1-2):198-207.. Neste nível destacam-se as questões a seguir.
Relação com as instituições de justiça
Uma pesquisa nacional mostrou que entre mulheres vítimas de agressão grave, 22,2% procuraram algum órgão oficial, como delegacias da mulher, a Polícia Militar ou linhas telefônicas de denúncia3030 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil [Internet]. 2019. [acessado 2021 out 13]. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/02/relatorio-pesquisa-2019-v6.pdf
https://forumseguranca.org.br/wp-content... . A denúncia da violência doméstica é rara. No caso de Ramona, o agressor ameaçou matá-la e à sua família se fosse feita a denúncia.
A resposta social à violência doméstica diminui os feminicídios. Estudos têm abordado essa questão testando a hipótese de redução da exposição, que preconiza que os serviços ou intervenções que limitam o contato entre a vítima e o parceiro abusivo reduzem a probabilidade de abuso e violência4444 Dugan L, Rosenfeld R, Nagin DS. Exposure reduction or retaliation? The effects of domestic violence resources on intimate-partner homicide. Law Society Review 2003; 37(1):169-198.. Entre as intervenções, encontram-se as ordens de proteção e prisão de homens abusadores. Homens podem tomar atitudes de vingança ante as medidas impostas, particularmente quando sentem que as medidas os impedem de exercer sua autoridade. Assim eles podem reagir violentamente quando seu “direito” de dominação ou controle é violado pelas medidas protetivas.
Mulheres evitam procurar serviços de assistência e proteção legal pela percepção de complexidade do processo legal, sobretudo mulheres pobres, com baixa escolaridade e baixas possibilidades econômicas para assumir os custos de processos legais. Procedimentos policiais claros para situações de violência doméstica e unidades treinadas são necessárias. Agentes policiais tradicionais podem apresentar pouca sensibilidade perante situações de violência doméstica ou considerar esta trivial, principalmente quando se deparam com a ambivalência de denunciantes que informam as agressões mas não terminam definitivamente as relações abusivas.
Tráfico de drogas e crime organizado
Assassinatos relacionados a tráfico de pessoas, de drogas e crime organizado afetam mulheres por motivos de gênero. Pesquisas em gangues mostraram que, embora os membros de gangues do sexo masculino experimentem taxas mais altas de vitimização, integrantes femininos estão expostos a violência sexual tanto por gangues adversárias como pelos membros masculinos da própria gangue. Mulheres vinculadas a homens integrantes de gangues têm maior risco de violência grave do que mulheres sem tais vínculos11 United Nations Office on Drugs and Crime. Global Study on Homicide. Gender-related Killing of Women and Girls. Viena: UN; 2018.,4545 Manjoo R. Report of the Special Rapporteur on violence against women, its causes and consequences. United Nations; 2012..
Considerações finais
Analisando-se os casos de feminicídio em Campinas por meio do modelo ecológico da violência, pôde-se ter uma compreensão ampliada do fenômeno da violência letal contra as mulheres. O nível mais relevante para feminicídio é o relacional, no qual se destacam quatro categorias: a relação com um homem violento, questões comportamentais do parceiro agressor, término de relacionamento e uma rede de apoio deficiente. Para o nível individual, são relevantes o gênero, as condições econômicas, a procedência e o consumo problemático de spas. Por sua parte, para o nível social são relevantes a misoginia e o machismo. Finalmente, para o nível comunitário, estão presentes as condições econômicas precárias na comunidade, a relação problemática com as instituições de justiça e a violência comunitária derivada de tráfico de drogas e crime organizado. Esta análise permite ver que são vários os elementos que contribuem para a ocorrência de feminicídio.
Mulheres que procuram serviços de atendimento ou fazem denúncia de situações de violência precisam ser corretamente orientadas. É indispensável fazer uma avaliação de risco de feminicídio para oferecer as medidas legais e sociais para preservar sua integridade, garantir sua segurança e melhorar sua qualidade de vida. A denúncia é um passo inicial para a interdição do ciclo de violência. No entanto, as ações não podem estar limitadas à promoção da denúncia e devem vir acompanhadas de toda uma estrutura de suporte material, psicológico e de segurança para as mulheres e seus dependentes.
Se as denunciantes não forem acolhidas e orientadas irão retornar a situações de violência por dependência econômica, emocional ou falta de recursos pessoais, comunitários e sociais. Mulheres passam por um período em que é necessário o fortalecimento de mecanismos internos e da procura de ajuda externa para o término da situação de vulnerabilidade.
Questões econômicas apareceram tanto no nível individual como no comunitário, e sem dúvida contribuem para a ocorrência de casos de feminicídio. Sociedades estruturadas em entornos de desigualdade econômica, racial e de gênero têm maior incidência de feminicídio.
Agradecimentos
À professora Lourdes Maria Bandeira (Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília) in memoriam, pelas suas considerações e contribuições ao longo da pesquisa.
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Financiamento
A pesquisa foi financiada por bolsa de estudos outorgada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), código 001. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) financiou parcialmente o trabalho de campo (2018/07162-0).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Jan 2023 - Data do Fascículo
Jan 2023
Histórico
- Recebido
09 Abr 2022 - Aceito
15 Ago 2022 - Publicado
17 Ago 2022