Autocuidado na perspectiva de trabalhadoras sexuais para prevenção e enfrentamento à pandemia do SARS-CoV-2

Pablo Luiz Santos Couto Vanda Palmarella Rodrigues Rita Narriman Silva de Oliveira Boery Andresa Teixeira Santos Correia Alba Benemérita Alves Vilela Sobre os autores

Resumo

Objetivou-se identificar os significados atribuídos ao autocuidado e a relação deste com as ações adotadas por trabalhadoras sexuais na prevenção e enfrentamento à COVID-19. Estudo qualitativo, apoiado na teoria de Enfermagem do Autocuidado. Realizou-se entrevista em profundidade com 30 trabalhadoras sexuais, do Alto Sertão Produtivo Baiano. Utilizou-se o software IRAMUTEQ para análise dos discursos, com o dendrograma da Classificação Hierárquica Descendente. Evidenciou-se quatro classes que revelam os significados atribuídos ao autocuidado: a ideia de que o autocuidado promove obter qualidade de vida e bem-estar; o dinheiro como instrumento facilitador de ações de autocuidado, tanto na prevenção da COVID-19, quanto para enfrentamento das dificuldades; além da noção de que o autocuidado contribui para o cuidado daqueles(as) que as cercam. Conclui-se que as trabalhadoras sexuais demonstraram entender o conceito de autocuidado em associação a noção de precaução, enquanto a prevenção é feita mediante as recomendações feitas por órgãos competentes. Outrossim, percebeu-se um déficit de autocuidado pelas próprias condições presentes no serviço sexual e nas dificuldades impostas pela pandemia.

Palavras-chave:
Profissionais do sexo; Saúde da mulher; Autocuidado; Teorias de enfermagem; Pandemias

Introdução

O mundo se deparou com a evolução e agravamento da pandemia da COVID-19, síndrome decorrente do vírus SARS-CoV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2)11 Li Q, Guan X, Wu P, Wang X, Zhou L, Tong Y, Ren R, Leung KSM, Lau EHY, Wong JY, Xing X, Xiang N, Wu Y, Li C, Chen Q, Li D, Liu T, Zhao J, Liu M, Tu W, Chen C, Jin L, Yang R, Wang Q, Zhou S, Wang R, Liu H, Luo Y, Liu Y, Shao G, Li H, Tao Z, Yang Y, Deng Z, Liu B, Ma Z, Zhang Y, Shi G, Lam TTY, Wu JT, Gao GF, Cowling BJ, Yang B, Leung GM, Feng Z. Early transmission dynamics in Wuhan, China, of novel coronavirus-infected pneumonia. N Engl J Med 2020; 382:1199-1207., tendo atingido platô e posterior diminuição dos casos, na medida em que houve avanço da vacinação. O avanço do vírus e suas consequências ultrapassaram os aspectos relacionados ao processo de adoecimento e de cura, impactou dinâmicas sociais, culturais, políticas e econômicas em diversos países e expôs as iniquidades que grupos sociais vulnerabilizados socialmente sofrem, como as mulheres inseridas no mercado sexual remunerado22 Adebisi YA, Alaran AJ, Akinokun RT, Micheal AI, Ilesanmi EB, Lucero-Prisno DE. Sex workers should not be forgotten in Africa's COVID-19 response. Am J Trop Med Hyg 2020; 103(5):1780-1782.,33 World Health Organization (WHO). Statement on the second meeting of the International Health Regulations (2005) Emergency Committee regarding the outbreak of novel coronavirus (2019-nCoV) [Internet]. 2020 [cited 2020 dez 27]. Available from: https://www.who.int/news/item/30-01-2020-statement-on-the-second-meeting-of-the-international-health-regulations-(2005)-emergency-committee-regarding-the-outbreak-of-novel-coronavirus-(2019-ncov).
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O conceito de vulnerabilidade rompe com a noção de comportamento de risco, por trazer à tona outras ideias de exposição e de acometimento aos agravos, bem como extrapolar a ideia de culpabilidade que o termo risco apresentava, voltando a responsabilidade para aspectos sociais e estatais44 Padoveze MC, Juskevicius LF, Santos TR, Nichiata LI, Ciosak SI, Bertolozzi MR. The concept of vulnerability applied to Healthcare-associated Infections. Rev Bras Enferm 2019; 72(1):299-303.,55 Ayres JR. Vulnerabilidade, direitos humanos e cuidado: aportes conceituais. In: Barros S, Campos PFS, Fernandes JJS, organizadores. Atenção à saúde de populações vulneráveis. Barueri: Manole; 2014. P. 1-25.. Por conseguinte, as situações provocadoras de vulnerabilidades, emergidas com a pandemia da COVID-19, têm potencializado danos remediáveis, mas que pela falta de políticas públicas, dificultam a obtenção da qualidade de vida e bem-estar das pessoas desfavorecidas, negando-lhes direitos humanos básicos22 Adebisi YA, Alaran AJ, Akinokun RT, Micheal AI, Ilesanmi EB, Lucero-Prisno DE. Sex workers should not be forgotten in Africa's COVID-19 response. Am J Trop Med Hyg 2020; 103(5):1780-1782.

3 World Health Organization (WHO). Statement on the second meeting of the International Health Regulations (2005) Emergency Committee regarding the outbreak of novel coronavirus (2019-nCoV) [Internet]. 2020 [cited 2020 dez 27]. Available from: https://www.who.int/news/item/30-01-2020-statement-on-the-second-meeting-of-the-international-health-regulations-(2005)-emergency-committee-regarding-the-outbreak-of-novel-coronavirus-(2019-ncov).
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4 Padoveze MC, Juskevicius LF, Santos TR, Nichiata LI, Ciosak SI, Bertolozzi MR. The concept of vulnerability applied to Healthcare-associated Infections. Rev Bras Enferm 2019; 72(1):299-303.

5 Ayres JR. Vulnerabilidade, direitos humanos e cuidado: aportes conceituais. In: Barros S, Campos PFS, Fernandes JJS, organizadores. Atenção à saúde de populações vulneráveis. Barueri: Manole; 2014. P. 1-25.
-66 Howard S. Covid-19: Health needs of sex workers are being sidelined, warn agencies. BMJ 2020; 369:m1867..

As orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) para a adoção de estratégias de mitigação, controle e prevenção da contaminação desse vírus perpassaram pelo distanciamento social e restrições rígidas de circulação da população nas cidades, fechamento/controle de fronteiras, uso de máscaras e álcool em gel, confinamentos em massa de comunidades e regiões que experenciaram/experenciam surto, assim como testagem com diagnóstico e isolamento social das pessoas contaminadas11 Li Q, Guan X, Wu P, Wang X, Zhou L, Tong Y, Ren R, Leung KSM, Lau EHY, Wong JY, Xing X, Xiang N, Wu Y, Li C, Chen Q, Li D, Liu T, Zhao J, Liu M, Tu W, Chen C, Jin L, Yang R, Wang Q, Zhou S, Wang R, Liu H, Luo Y, Liu Y, Shao G, Li H, Tao Z, Yang Y, Deng Z, Liu B, Ma Z, Zhang Y, Shi G, Lam TTY, Wu JT, Gao GF, Cowling BJ, Yang B, Leung GM, Feng Z. Early transmission dynamics in Wuhan, China, of novel coronavirus-infected pneumonia. N Engl J Med 2020; 382:1199-1207.,77 Kramer A, Kramer KZ. The potential impact of the Covid-19 pandemic on occupational status, work from home, and occupational mobility. J Vocat Behav 2020; 8;119:103442.. Todavia países latino-americanos e, nesse estudo em específico o Brasil, adotaram estratégias duvidosas (imunidade de rebanho ou estímulo ao uso indevido de medicamentos sem eficácia comprovada cientificamente) e destoantes daquelas regulamentadas pela OMS. Assim, houve elevação da taxa de morbimortalidade decorrente da COVID-19 em grupos populacionais que vivenciam marginalização do Estado, a exemplo das trabalhadoras sexuais22 Adebisi YA, Alaran AJ, Akinokun RT, Micheal AI, Ilesanmi EB, Lucero-Prisno DE. Sex workers should not be forgotten in Africa's COVID-19 response. Am J Trop Med Hyg 2020; 103(5):1780-1782.

3 World Health Organization (WHO). Statement on the second meeting of the International Health Regulations (2005) Emergency Committee regarding the outbreak of novel coronavirus (2019-nCoV) [Internet]. 2020 [cited 2020 dez 27]. Available from: https://www.who.int/news/item/30-01-2020-statement-on-the-second-meeting-of-the-international-health-regulations-(2005)-emergency-committee-regarding-the-outbreak-of-novel-coronavirus-(2019-ncov).
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-44 Padoveze MC, Juskevicius LF, Santos TR, Nichiata LI, Ciosak SI, Bertolozzi MR. The concept of vulnerability applied to Healthcare-associated Infections. Rev Bras Enferm 2019; 72(1):299-303.,77 Kramer A, Kramer KZ. The potential impact of the Covid-19 pandemic on occupational status, work from home, and occupational mobility. J Vocat Behav 2020; 8;119:103442.,88 Cluver L, Lachman JM, Sherr L, Wessels I, Krug E, Rakotomalala S, Blight S, Hillis S, Bachman G, Green O, Butchart A, Tomlinson M, Ward CL, Doubt J, McDonald K. Parenting in a time of COVID-19. Lancet 2020; 395:e64..

Para as teóricas feministas progressistas, o trabalho sexual é entendido como uma atividade laboral consentida e deve ser regulamentada a fim de garantir os direitos trabalhistas e proteção/amparo legal do Estado, além de acesso aos serviços de saúde livre de estigmas, respeito à dignidade humana e segurança pública99 Leite GS, Murray L, Lenz F. O Par e o Ímpar: o potencial de gestão de risco para a prevenção de DST/HIV/AIDS em contextos de prostituição. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(Supl. 1):7-25.

10 Silva AP, Blanchette TG. Por amor, por dinheiro? Trabalho (re)produtivo, trabalho sexual e a transformação da mão de obra feminina. Cad Pagu 2017; 50:e175019.

11 Silva AP, Santos CRC, Carvalho MG. Entre prazeres e sofrimentos: vivências subjetivas de trabalhadoras sexuais em São Paulo. Cad Psicol Social Trab 2018; 21(2):181-195.

12 Piscitelli A. Economias sexuais, amor e tráfico de pessoas- novas questões conceituais. Cad Pagu 2016; 47:e16475.

13 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: Broqua C, Deschamps C, editors. L'échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014. p. 7-17.
-1414 Gichuna S, Hassan R, Sanders T, Campbell R, Mutonyi M, Mwangi P. Access to Healthcare in a time of COVID-19: Sex Workers in Crisis in Nairobi, Kenya. Glob Public Health 2020; 20:1-13.. Durante a pandemia, tais mulheres, têm recebido subsídios e apoio de outras instâncias da sociedade, como sindicato das trabalhadoras do sexo e Organizações Não Governamentais (ONG)1515 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu 2015; 14:181-200.

16 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, Suto CSS, Paiva MS. Entre dinheiro, autoestima e ato sexual: representações sociais da satisfação sexual para trabalhadoras sexuais. Rev Eletr Enferm 2020; 22:59271.
-1717 Thng C, Blackledge E, Mclver R, Watchirs Smith L, McNulty A. Private sex workers' engagement with sexual health services: an online survey. Sex Health 2018; 15(1):93-95..

Nesse contexto, compreende-se a importância da essência do autocuidado e, por isso, necessita-se de verificação de ações e práticas que trabalhadoras sexuais têm adotado para prevenção e enfrentamento da pandemia. Diante disso, a Teoria de Enfermagem que versa sobre o autocuidado, faz aproximação com o objeto de estudo, por ser importante para a análise das ações empregadas por elas e, além disso, revela a noção de que qualquer pessoa, quando capaz, pode cuidar de si e/ou de outro(s), compondo o arcabouço teórico deste estudo1818 Hartweg DL, Pickens J. A concept analysis of normalcy within Orem's self-care deficit nursing theory. Self Care Depend Care Nurs 2016; 22(1):4-13..

A referida teoria contempla três dimensões, denominadas por teoria do autocuidado (aponta o motivo de como o indivíduo, em condições adequadas, cuida de si mesmo e atende suas necessidades de saúde), teoria do déficit do autocuidado (as razões que tornam os indivíduos necessitados dos cuidados de enfermagem) e teoria dos sistemas de enfermagem (aprofunda na explicação de como as relações interpessoais são criadas e mantidas para que se promova a enfermagem e produza o cuidado)1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.. Para esse estudo, será adotada a dimensão voltada à teoria do autocuidado.

Dessa forma, os resultados a serem apresentados aqui poderão apontar caminhos para que profissionais de saúde, como enfermeiras(os), repensem os cuidados dispensados às trabalhadoras sexuais, focados nas necessidades, demandas e entendimentos delas. Dessa forma, contribuirá para uma prática congruente à promoção do autocuidado, para além do tratamento e prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (IST) e do vírus da imunodeficiência adquirida (HIV), possibilitando uma assistência efetiva, individualizada, pautada no incentivo ao bem-estar e qualidade de vida, diferente do que resultados de pesquisas anteriores têm apontado22 Adebisi YA, Alaran AJ, Akinokun RT, Micheal AI, Ilesanmi EB, Lucero-Prisno DE. Sex workers should not be forgotten in Africa's COVID-19 response. Am J Trop Med Hyg 2020; 103(5):1780-1782.,44 Padoveze MC, Juskevicius LF, Santos TR, Nichiata LI, Ciosak SI, Bertolozzi MR. The concept of vulnerability applied to Healthcare-associated Infections. Rev Bras Enferm 2019; 72(1):299-303.,1414 Gichuna S, Hassan R, Sanders T, Campbell R, Mutonyi M, Mwangi P. Access to Healthcare in a time of COVID-19: Sex Workers in Crisis in Nairobi, Kenya. Glob Public Health 2020; 20:1-13.,1717 Thng C, Blackledge E, Mclver R, Watchirs Smith L, McNulty A. Private sex workers' engagement with sexual health services: an online survey. Sex Health 2018; 15(1):93-95..

Outrossim, traçou-se como questões norteadoras: Qual a noção das trabalhadoras sexuais sobre autocuidado? Quais as ações que essas mulheres têm adotado para enfrentar e se prevenir da contaminação pelo SARS-CoV-2? Para responder tais questionamentos, objetivou-se identificar o significado de autocuidado e a relação deste com as ações adotadas por trabalhadoras sexuais na prevenção e enfrentamento à COVID-19.

Método

Trata-se de um estudo descritivo e qualitativo, fundamentado no referencial teórico da Teoria do Déficit de Autocuidado de Enfermagem (TDAE), de Dorothea Orem, a partir da primeira dimensão “teoria do autocuidado”1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.,2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164.. A TDAE, considerada a teoria geral, tem em sua definição a relação da prática de ações que permitem o aperfeiçoamento e o amadurecimento de indivíduos e o desenvolvimento de cuidado de si mesmo (autocuidado) em espaços e tempos determinados e específicos, cujas metas visam a preservação da vida e o bem-estar pessoal1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001..

Pondera-se que o cuidado consigo mesmo é abrangente e, portanto, universal e subjetivo, pois envolve aspectos das experiências e vivências do ser humano, não sendo limitado às atividades cotidianas, mecânicas, manuais e instrumentais1818 Hartweg DL, Pickens J. A concept analysis of normalcy within Orem's self-care deficit nursing theory. Self Care Depend Care Nurs 2016; 22(1):4-13.,2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164.. A teoria envolve o autocuidado, as atividades inerentes a ele, bem como a exigência terapêutica correlata a essa proposta. Destarte, considera-se que a capacidade da pessoa cuidar de si compõe as funções dos seres humanos, desempenhada em diversos momentos pelo indivíduo, no intuito de assegurar a preservação da saúde, do bem-estar e desenvolvimento da vida1313 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: Broqua C, Deschamps C, editors. L'échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014. p. 7-17.,1414 Gichuna S, Hassan R, Sanders T, Campbell R, Mutonyi M, Mwangi P. Access to Healthcare in a time of COVID-19: Sex Workers in Crisis in Nairobi, Kenya. Glob Public Health 2020; 20:1-13., considerando-se o equilíbrio entre o excesso e a carência de cuidado para que o indivíduo seja capaz de se atentar para suas próprias necessidades1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.,2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164..

O local de desenvolvimento da pesquisa foi no município de Guanambi, cidade sede do Alto Sertão Produtivo Baiano e que possui em sua região de abrangência 19 municípios, com um total de pouco mais de 400.000 habitantes1616 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, Suto CSS, Paiva MS. Entre dinheiro, autoestima e ato sexual: representações sociais da satisfação sexual para trabalhadoras sexuais. Rev Eletr Enferm 2020; 22:59271.. As participantes desse estudo, foram trabalhadoras sexuais que, conforme critérios de elegibilidade, tinham idade igual ou maior que 18 anos e estavam inseridas no serviço sexual há pelo menos 01 ano (considerando que, a experiência possibilita a visão mais ampliada do serviço sexual). Como a participação das trabalhadoras sexuais se deu mediante convite prévio, 39 mulheres foram convidas por Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e 09 delas não aceitaram continuar na pesquisa por não se sentirem confortáveis com algumas indagações e, por isso, a coleta foi finalizada com as 30 participantes.

A conformação da amostra (participantes) ocorreu mediante convite, a partir da técnica de snowball2121 Costa BRL. Bola de Neve Virtual: O uso das redes sociais virtuais no processo de coleta de dados de uma pesquisa científica. Rev Interd Gest Social 2018; 7(1):15-37., com auxílio dos ACS que atuam nos bairros onde estão inseridos as residências e os locais de trabalho das mulheres, de modo a localizá-las, indicarem e, assim, possibilitar os convites. Salienta-se que tal técnica é utilizada para delimitação de amostra não probabilística por conveniência, compreendida como procedimento de recrutamento por Bola de Neve2121 Costa BRL. Bola de Neve Virtual: O uso das redes sociais virtuais no processo de coleta de dados de uma pesquisa científica. Rev Interd Gest Social 2018; 7(1):15-37..

A coleta de informações foi realizada por um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo (o qual tem experiência com a temática, por desenvolver projetos de pesquisa e extensão com o grupo selecionado) feita individualmente, com cada uma das 30 trabalhadoras sexuais participantes do estudo, durante os meses de setembro e outubro de 2020. Ocorreram encontros em salas reservadas dentro das unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF) dos bairros em que estão localizados os vários estabelecimentos - bares, restaurantes, pensões e pousadas - em que as mulheres desenvolvem o trabalho sexual remunerado. Para aquelas que não eram da cidade foi agendada uma visita ao local de trabalho (bares e casas de cafetinas, espaços em que elas alugam quartos disponíveis) e/ou residência por intermédio dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) do território.

Utilizou-se um questionário com a finalidade de proceder com a caracterização sociodemográfica das participantes e um roteiro composto de duas perguntas que guiou a entrevista aberta em profundidade: “fale-me o que você entende por autocuidado” e “fale-me das ações ou estratégias de autocuidado que você tem adotado nesse período de pandemia”.

As entrevistas tiveram duração média de 25 minutos cada. As respostas foram gravadas em um aparelho celular, em seguida transcritas na íntegra no Software Microsoft Word 2016. Com 22 mulheres a coleta foi desenvolvida em 03 unidades da ESF e oito nas residências ou locais de trabalho. As transcrições das falas foram feitas pelos autores, no mesmo dia em que as entrevistas eram concluídas.

Após a transcrição e organização das informações no banco de dados (corpus textual), as respostas foram processadas no software Interface de R pour lês Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRAMUTEQ), que realiza a análise de conteúdo semântico-lexical1616 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, Suto CSS, Paiva MS. Entre dinheiro, autoestima e ato sexual: representações sociais da satisfação sexual para trabalhadoras sexuais. Rev Eletr Enferm 2020; 22:59271.. Tal análise ocorre a partir da decodificação dos signos, identificação das semelhanças e divergências semânticas no conteúdo das respostas, para classificação dos códigos e unidades de texto, decodificação dos elementos com semelhança lexical e semântica, para a conformação das classes lexicais, as quais são comumente chamadas de categorias1616 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, Suto CSS, Paiva MS. Entre dinheiro, autoestima e ato sexual: representações sociais da satisfação sexual para trabalhadoras sexuais. Rev Eletr Enferm 2020; 22:59271..

Na sequência, com a delimitação das classes, procedeu-se com a análise pelo método da Classificação Hierárquica Descendente (CHD). Com o recurso da CHD as respostas foram organizadas em corpus e, na sequência, divididas em segmentos de texto para classificação conforme o conteúdo semântico-lexical e o seu vocabulário, originando as classes mediante os maiores qui-quadrados (X²) das palavras que compuseram o corpus1616 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, Suto CSS, Paiva MS. Entre dinheiro, autoestima e ato sexual: representações sociais da satisfação sexual para trabalhadoras sexuais. Rev Eletr Enferm 2020; 22:59271.. Nesse estudo, serão apresentadas as classes conforme os significados presentes no conteúdo semântico-lexical e os segmentos de texto que as compõem, decorrentes da CHD.

Para qualidade e transparência da redação foi utilizado o Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ). O estudo esteve vinculado a um projeto guarda-chuva, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Faculdade Guanambi, com protocolo número 2.007.080, em 7 de abril de 2017. No intuito de garantir o anonimato das participantes e preservar as identidades de cada uma, adotou-se códigos para nomeá-las, a letra ‘P’, seguida de um número (exemplo: P. 01).

Resultados

Dentre as 30 mulheres, profissionais do sexo, que participaram deste estudo, a maioria possuía idade entre 18 e 35 anos (78,2%), apenas o ensino fundamental completo (53,6%), declarou-se negra (59,4%), católica (55,1%), trabalhava nessa profissão há menos de cinco anos (68,1%), não estava satisfeita com a profissão (55,9%), utilizava preservativos nas relações sexuais (63,7%) e referia uso de anticoncepcional oral hormonal (66,6%).

Quanto ao dendrograma da CHD (Figura 1), foram geradas quatro classes a partir de 2.334 segmentos de textos extraídos das entrevistas, com 97,7% de aproveitamento do corpus analisado, possibilitando a compreensão das palavras e frases ditas pelas participantes nas unidades de contexto elementares (UCE), a partir das perguntas realizadas.

Figura 1
Dendrograma de Classes para Classificação Hierárquica Descendente. Alto Sertão Produtivo Baiano-BA, Brasil, 2022.

Para compreensão desta estrutura de divisão de conteúdos até chegar às classes, apresentam-se na Figura 1 os conteúdos semânticos-lexicais heterogêneos que sofreram divisões sucessivas até alcançar homogeneidade. No dendrograma encontram-se dois grandes blocos temáticos e quatro classes, a saber: o primeiro referente às classes 1 e 2; o segundo composto com pelas classes 3 e 4.

Na primeira classe houve o aproveitamento de 20,6% das UCE, cujo conteúdo lexical com maiores X² revelou como as trabalhadoras sexuais percebem e entendem o autocuidado: bem-estar, qualidade de vida, vida saudável e saudável. Nota-se que as respostas remetem à concepção que elas possuem do autocuidado, o qual perpassa pelo cuidado consigo mesmas, desde a obtenção de uma vida saudável para o alcance do bem-estar e da qualidade de vida.

A segunda classe é responsável por 29,2% das UCE, em que os elementos com apresentam maiores X² denotaram que há importância do dinheiro (renda e lucro) obtido com o serviço sexual remunerado, para a adoção de práticas e ações de autocuidado: dinheiro, necessidade, renda e rua. Aqui o dinheiro revela-se preponderante para que elas tenham disposição e ânimo para implementar o autocuidado, sobretudo, quando vivenciam a ausência de amparo e proteção do Estado e da sociedade. Em contrapartida, verifica-se nas falas, que para sobrevivência, muitas deixam de cuidar de si e dos seus familiares no que tange a prevenção da COVID-19, pela necessidade de romper com o distanciamento social para estar com os clientes, mesmo que usando máscaras, no intuito de garantir a renda.

Por sua vez, a terceira classe reteve 23,3% das UCE na qual as palavras mais importantes revelam, por meio dos segmentos de texto, a tentativa de muitas trabalhadoras sexuais em praticar o autocuidado com ações de prevenção e enfrentamento das adversidades emergidas com a pandemia: prevenir, cliente, coronavirus e cuidado. Todavia, esbarram na redução de clientes, contando apenas com ajuda de pessoas próximas e colegas para conseguir o mínimo de insumos que as possibilitam implementar o autocuidado.

Destaca-se que na última classe foram aproveitadas 25,6% das UCE e os elementos mais relevantes (com qui-quadrados elevados) que possibilitam tal entendimento foram: cuidando, preocupada, autocuidado e filhos. O conteúdo com a semelhança semântica-lexical que contribuiu com esta quarta classe revela que o entendimento do autocuidado tem reflexos no cuidado com o outro. Os seguimentos de textos sugerem que as necessidades demandadas por pessoas próximas que precisam de apoio é um estímulo para a prática do autocuidado. Ainda que sejam estratégias de sobrevivência, as ações presentes em suas falas, remetem ao autocuidado ou ao déficit dele. Para as mulheres aqui estudadas o autocuidado possui interface com necessidade de auxiliar aqueles que precisam do apoio delas.

O Quadro 1 contém as classes e as Unidades de Contextos Elementares (UCEs) que as subsidiam, com vistas na organização e melhor visualização do que cada classe apresenta como significado.

Quadro 1
Organização das classes com a contextualizam das respectivas UCEs, que remetem a noção de autocuidado e a relação deste com as ações adotadas por trabalhadoras sexuais na prevenção e enfrentamento à COVID-19. Alto Sertão Produtivo Baiano-BA, Brasil, 2022.

Por fim, deve-se fazer um adendo aos trechos das falas, que revelam que a prevenção perpassa por ações corriqueiras como manter hábitos higiênicos (lavar as mãos e tomar banho ao chegar em casa), não sair se estiver com algum sintoma sugestivo de COVID-19, trocar de roupas assim que chegar da rua e, caso tenham encontro com clientes, evitar beijos. Por sua vez, elas têm enfrentado os problemas impostos pela pandemia por meio de uma rede social de apoio, na crença em uma divindade, bem como no uso indevido de alguma substância psicoativa.

Discussão

O perfil das trabalhadoras sexuais aqui apresentadas coaduna com estudos anteriores99 Leite GS, Murray L, Lenz F. O Par e o Ímpar: o potencial de gestão de risco para a prevenção de DST/HIV/AIDS em contextos de prostituição. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(Supl. 1):7-25.,1111 Silva AP, Santos CRC, Carvalho MG. Entre prazeres e sofrimentos: vivências subjetivas de trabalhadoras sexuais em São Paulo. Cad Psicol Social Trab 2018; 21(2):181-195.,1616 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, Suto CSS, Paiva MS. Entre dinheiro, autoestima e ato sexual: representações sociais da satisfação sexual para trabalhadoras sexuais. Rev Eletr Enferm 2020; 22:59271.. Tanto na Malásia quanto em Belo Horizonte (Brasil), evidenciou-se que as mulheres inseridas no mercado sexual remunerado estavam na base da pirâmide social, com baixo nível de escolaridade1717 Thng C, Blackledge E, Mclver R, Watchirs Smith L, McNulty A. Private sex workers' engagement with sexual health services: an online survey. Sex Health 2018; 15(1):93-95.,2222 Brandão BMGM, Angelim RCM, Marques SC, Oliveira RC, Abrão FMS. Living with HIV: coping strategies of seropositive older adults. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03576.,2323 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc 2017; 25:134-155.. Outras pesquisas publicadas demonstraram que, embora essas pessoas componham um grupo de vulnerabilidade às ISTs/Aids, ao longo de décadas de foco das políticas públicas tem-se percebido eficácia nas estratégias de educação em saúde para promoção à saúde e prevenção às ISTs, o que possibilita a adesão de muitas delas ao uso de preservativo e de anticoncepcional hormonal99 Leite GS, Murray L, Lenz F. O Par e o Ímpar: o potencial de gestão de risco para a prevenção de DST/HIV/AIDS em contextos de prostituição. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(Supl. 1):7-25.,1616 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, Suto CSS, Paiva MS. Entre dinheiro, autoestima e ato sexual: representações sociais da satisfação sexual para trabalhadoras sexuais. Rev Eletr Enferm 2020; 22:59271.,2323 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc 2017; 25:134-155.,2424 Couto PL, Gomes AM, Pereira AB, Carvalho JS, Silva JK, Boery RN. Use of hormonal contraceptives by prostitutes: a correlation with social vulnerability markers. Acta Paul Enferm 2019; 32(5):507-513..

O fato de a maioria delas aderirem aos métodos de prevenção de ISTs e de gravidez não planejada, reforça a importância do trabalho da equipe de saúde, sobretudo de enfermeiros, no contexto da ESF. Nesse sentido esses profissionais implementam ações de educação e promoção à saúde a populações em situação de vulnerabilidade, como as trabalhadoras do sexo, a exemplo do que ocorre com trabalhadoras sexuais no Alto Sertão Produtivo Baiano1616 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, Suto CSS, Paiva MS. Entre dinheiro, autoestima e ato sexual: representações sociais da satisfação sexual para trabalhadoras sexuais. Rev Eletr Enferm 2020; 22:59271.,2424 Couto PL, Gomes AM, Pereira AB, Carvalho JS, Silva JK, Boery RN. Use of hormonal contraceptives by prostitutes: a correlation with social vulnerability markers. Acta Paul Enferm 2019; 32(5):507-513..

Ao apontar para o autocuidado, entende-se que a realização e execução de atividades corriqueiras e cotidianas, as quais são práticas, permitem que as pessoas tenham benefícios como alcançar qualidade de vida, bem-estar e levar uma vida saudável1414 Gichuna S, Hassan R, Sanders T, Campbell R, Mutonyi M, Mwangi P. Access to Healthcare in a time of COVID-19: Sex Workers in Crisis in Nairobi, Kenya. Glob Public Health 2020; 20:1-13.,2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164.. Contudo, ainda que possuam alguns bons hábitos e cuidados consigo mesmas, compreende-se que em muitos momentos há déficit de autocuidado, na medida em que, as trabalhadoras sexuais enquanto pessoas adultas, apresentam algumas incapacitações ou limitações para a autopromoção de práticas contínuas e eficazes99 Leite GS, Murray L, Lenz F. O Par e o Ímpar: o potencial de gestão de risco para a prevenção de DST/HIV/AIDS em contextos de prostituição. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(Supl. 1):7-25.,1414 Gichuna S, Hassan R, Sanders T, Campbell R, Mutonyi M, Mwangi P. Access to Healthcare in a time of COVID-19: Sex Workers in Crisis in Nairobi, Kenya. Glob Public Health 2020; 20:1-13.. Tal situação pode ser evidenciada nas barreiras e dificuldades (estigmas e preconceito institucional) encontradas ao acessar serviços de saúde e terem dificuldade em contactar e estabelecer relações mais próximas com enfermeiros (chamados de agentes do autocuidado) para as orientações eficazes, congruentes com a ciência e a realidade delas99 Leite GS, Murray L, Lenz F. O Par e o Ímpar: o potencial de gestão de risco para a prevenção de DST/HIV/AIDS em contextos de prostituição. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(Supl. 1):7-25.,1414 Gichuna S, Hassan R, Sanders T, Campbell R, Mutonyi M, Mwangi P. Access to Healthcare in a time of COVID-19: Sex Workers in Crisis in Nairobi, Kenya. Glob Public Health 2020; 20:1-13.,2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164..

As práticas de cuidado promovidas pelos enfermeiros na atenção básica, livre de preconceitos e estigmas, atraem as populações marginalizadas e invisibilizadas pelo Estado para o serviço de saúde e contribuem para adesão ao cuidado e orientações dispensadas2323 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc 2017; 25:134-155.,2424 Couto PL, Gomes AM, Pereira AB, Carvalho JS, Silva JK, Boery RN. Use of hormonal contraceptives by prostitutes: a correlation with social vulnerability markers. Acta Paul Enferm 2019; 32(5):507-513.. As mulheres desse presente estudo, vão de encontro a outras que desempenham a mesma profissão, uma vez que, em pesquisa recente foi apontado que grupos sociais em situação de vulnerabilidade se dirigem cada vez menos aos serviços de saúde, em consequência do preconceito institucional22 Adebisi YA, Alaran AJ, Akinokun RT, Micheal AI, Ilesanmi EB, Lucero-Prisno DE. Sex workers should not be forgotten in Africa's COVID-19 response. Am J Trop Med Hyg 2020; 103(5):1780-1782.. As mulheres aqui estudadas, a partir de seus depoimentos, sinalizam que buscavam as Unidades da ESF.

O cuidado dispensado pela enfermagem às pessoas é fundamental para adoção de práticas de autocuidado, pois orientações repassadas de forma simples, clara e objetiva devem ser congruentes à realidade2525 Barboza NSR, Fassarella CS, Souza PA. Self-care by discalced carmelite nuns in the light of Orem´s Theory. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03637.. Nesse caso específico, das mulheres inseridas no mercado sexual, os serviços de saúde devem se adequar as particularidades vivenciadas/apontadas por elas, como o horário de trabalho, o respeito a autonomia e decisões tomadas sobre seus corpos (utilizar a prática sexual para obtenção de renda) e as demandas psicoemocionais e sociais1515 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu 2015; 14:181-200.,2323 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc 2017; 25:134-155..

Tais questões (orientações repassadas de forma simples, respeito as individualidades e outras demandas subjetivas) mostram-se relevantes à Teoria do Autocuidado, pois nela se destaca que aspectos subjetivos do ser humano são requisitos universais para autopromoção de medidas que atendam às necessidades pessoais, pois aspectos das emoções e da psiquê humana, quando prejudicados, interferem nas necessidades humanas básicas1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.. Assim, qualquer ação no âmbito do autocuidado é reflexo da efetividade da assistência com o outro e no entendimento de quem recebe esses atos, alcança benefícios diretos para consigo1818 Hartweg DL, Pickens J. A concept analysis of normalcy within Orem's self-care deficit nursing theory. Self Care Depend Care Nurs 2016; 22(1):4-13.,1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001..

Nesse sentido, as trabalhadoras sexuais mostraram que a noção de autocuidado corrobora com o conceito proposto no arcabouço teórico da TDAE. O que favorece avanços ao apontar relação direta da adoção de hábitos saudáveis de vida para o alcance da independência, bem-estar e uma avaliação positiva da qualidade de vida, tentativa de equilíbrio entre atividade e descanso1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.,2525 Barboza NSR, Fassarella CS, Souza PA. Self-care by discalced carmelite nuns in the light of Orem´s Theory. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03637.. Estudos desenvolvidos com trabalhadoras sexuais na França e no Quênia sinalizaram que grupos de trabalhadoras sexuais adotam estratégias alternativas para a falta de apoio e auxílio do Estado, utilizando-se da renda decorrente do serviço sexual1313 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: Broqua C, Deschamps C, editors. L'échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014. p. 7-17.,1414 Gichuna S, Hassan R, Sanders T, Campbell R, Mutonyi M, Mwangi P. Access to Healthcare in a time of COVID-19: Sex Workers in Crisis in Nairobi, Kenya. Glob Public Health 2020; 20:1-13.. Assim, podem obter melhores condições de saúde e autopercepção positiva de suas situações em tempos de pandemia, quando muitas nações se fazem ausentes no apoio a essas mulheres22 Adebisi YA, Alaran AJ, Akinokun RT, Micheal AI, Ilesanmi EB, Lucero-Prisno DE. Sex workers should not be forgotten in Africa's COVID-19 response. Am J Trop Med Hyg 2020; 103(5):1780-1782.,1414 Gichuna S, Hassan R, Sanders T, Campbell R, Mutonyi M, Mwangi P. Access to Healthcare in a time of COVID-19: Sex Workers in Crisis in Nairobi, Kenya. Glob Public Health 2020; 20:1-13.,2626 Jozaghi E, Bird L. COVID-19 and sex workers: human rights, the struggle for safety and minimum income. Can J Public Health 2020; 111(3):406-407..

Contudo, destaca-se nos resultados que ainda que tentam fazer o autocuidado, há o déficit do mesmo1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.,2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164., em decorrência da necessidade de sobrevivência, terem que se expor ao risco de contaminação pelo novo coronavírus. Isso ocorre, enquanto deixam de fazer o distanciamento social (mesmo usando máscaras, há o contato sexual) para se encontraram com clientes. Mesmo que a qualidade de vida e o bem-estar estejam relegados a um segundo plano (do ponto de vista da prevenção à COVID-19), é inegável que, para elas, não morrer de fome e sustentar seus familiares seja a prioridade.

O déficit de autocuidado surge quando as pessoas estão impossibilitadas de cuidar de si mesmas e, por isso, demanda a ativação de sistemas da enfermagem1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.,2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164., sobretudo para orientação e ações de educação em saúde para mitigação da cadeia de transmissão da COVID-19, assim como criar mecanismos juntos a sociedade civil organizada para suprir as demandas decorrentes da falta de dinheiro para subsistência, bem como contribuir com a mobilização para garantia dos direitos das trabalhadoras sexuais.

Salienta-se que a qualidade de vida vai além das questões que envolvem o processo de saúde-doença, por englobar fatores distintos como bem-estar psicossocial, saúde mental, autoestima, condição de saúde. No que concerne a esse grupo de mulheres, deve haver redução de estigmas, aceitação da sociedade, bem como outras vertentes que complementam o ser humano como alimentação, repouso, descanso, boa noite de sono (no caso delas, descansar durante o dia, pois exercem seu serviço à noite), além da aquisição de renda para suprir essas e outras necessidades22 Adebisi YA, Alaran AJ, Akinokun RT, Micheal AI, Ilesanmi EB, Lucero-Prisno DE. Sex workers should not be forgotten in Africa's COVID-19 response. Am J Trop Med Hyg 2020; 103(5):1780-1782.,2626 Jozaghi E, Bird L. COVID-19 and sex workers: human rights, the struggle for safety and minimum income. Can J Public Health 2020; 111(3):406-407.,2727 Domingues JP, Oliveira DC, Marques SC. Quality of life social representations of people living with HIV/AIDS. Texto Contexto Enferm 2018; 27(2):e1460017..

A TDAE aponta três tipos de requisitos necessários para o autocuidado, dentre eles consta os universais, desenvolvimento e desvios de saúde1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.. Quanto aos universais a origem reside no que é conhecido e validado e discorre sobre a integridade estrutural e funcional do ser humano em todas as fases do ciclo vital, sendo comum a qualquer pessoa. Enquadram-se nos universais o ar, a comida e a ingesta de água, assim como a manutenção balanceada entre trabalho e descanso2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164.. Por conseguinte, os requisitos voltados ao desenvolvimento versam para a promoção dos processos vitais, prevenindo condições danosas decorrentes de algum evento, como as dificuldades e problemas oriundos do lar ou trabalho1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.,2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164., nesse estudo, do serviço sexual remunerado e consentido, praticado por mulheres.

No que tange ao lucro e à renda, outra associação apontada pelas trabalhadoras sexuais aqui apresentadas foi entre dinheiro e autocuidado. O recurso financeiro obtido com o trabalho sexual é fundamental para a subsistência e supressão das necessidades, tanto delas quanto dos familiares, além de adquirir meios e ações para garantir vida saudável, bem como cuidar do aspecto físico, emocional e espiritual na sua máxima plenitude2626 Jozaghi E, Bird L. COVID-19 and sex workers: human rights, the struggle for safety and minimum income. Can J Public Health 2020; 111(3):406-407.,2828 Cruz NL, Ferreira CL, Martins E, Souza M. O cuidado com a saúde das mulheres profissionais do sexo: uma revisão narrativa. Disciplinarum Sci 2016; 17(3):339-352.. A remuneração outrora conquistada no período pré-pandêmico subsidiava o sustento destas mulheres e de seu núcleo familiar1515 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu 2015; 14:181-200.,1616 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, Suto CSS, Paiva MS. Entre dinheiro, autoestima e ato sexual: representações sociais da satisfação sexual para trabalhadoras sexuais. Rev Eletr Enferm 2020; 22:59271.,2828 Cruz NL, Ferreira CL, Martins E, Souza M. O cuidado com a saúde das mulheres profissionais do sexo: uma revisão narrativa. Disciplinarum Sci 2016; 17(3):339-352.. Com essa renda conseguem acessar o serviço de saúde privado, na esperança de um atendimento livre de estranhamento, já que muitos profissionais que prestam assistência no Sistema Único de Saúde nem sempre as atendem de forma universal, integral e equânime99 Leite GS, Murray L, Lenz F. O Par e o Ímpar: o potencial de gestão de risco para a prevenção de DST/HIV/AIDS em contextos de prostituição. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(Supl. 1):7-25.,2323 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc 2017; 25:134-155.,2424 Couto PL, Gomes AM, Pereira AB, Carvalho JS, Silva JK, Boery RN. Use of hormonal contraceptives by prostitutes: a correlation with social vulnerability markers. Acta Paul Enferm 2019; 32(5):507-513.,2828 Cruz NL, Ferreira CL, Martins E, Souza M. O cuidado com a saúde das mulheres profissionais do sexo: uma revisão narrativa. Disciplinarum Sci 2016; 17(3):339-352., pois perpetuam estigmas por meio do preconceito institucional.

Levar uma vida saudável, ter saúde e adquirir dinheiro são fatores preponderantes para uma parcela dessas de mulheres e é relacionado por elas com o seu autocuidado, o respeito com a sua intimidade e o amor próprio1313 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: Broqua C, Deschamps C, editors. L'échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014. p. 7-17.,1515 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu 2015; 14:181-200.,2929 Couto PLS, Gomes AMT, Pereira SSC, Vilela ABA, Flores TS, Porcino C. Situations of health vulnerabilities experienced by sex workers in times of COVID-19 pandemic. Rev Baiana Enferm 2021; 35:e37327.. No transcorrer da pandemia da COVID-19 adotar ações de prevenção e mitigação da transmissão do novo coronavírus em algumas situações só é possível com a renda, que diminuiu com a redução dos clientes e com a falta de amparo estatal. Essa situação decorre da demanda para comprar máscaras, álcool em gel, materiais de higiene pessoal, alimentos, assim como fazer quarentena e manter distanciamento social, o que é dificultoso, por ter que se encontrar com os clientes em muitas situações, expondo a si e indiretamente seus familiares, ao risco de contaminação22 Adebisi YA, Alaran AJ, Akinokun RT, Micheal AI, Ilesanmi EB, Lucero-Prisno DE. Sex workers should not be forgotten in Africa's COVID-19 response. Am J Trop Med Hyg 2020; 103(5):1780-1782.,66 Howard S. Covid-19: Health needs of sex workers are being sidelined, warn agencies. BMJ 2020; 369:m1867.,1414 Gichuna S, Hassan R, Sanders T, Campbell R, Mutonyi M, Mwangi P. Access to Healthcare in a time of COVID-19: Sex Workers in Crisis in Nairobi, Kenya. Glob Public Health 2020; 20:1-13.,2929 Couto PLS, Gomes AMT, Pereira SSC, Vilela ABA, Flores TS, Porcino C. Situations of health vulnerabilities experienced by sex workers in times of COVID-19 pandemic. Rev Baiana Enferm 2021; 35:e37327..

A capacidade dessas mulheres para implementar o autocuidado é perceptível, no entanto as dificuldades não remetem a condição física delas, mas estão atreladas a falta de recursos para se obter meios que as possibilitam o autocuidado1414 Gichuna S, Hassan R, Sanders T, Campbell R, Mutonyi M, Mwangi P. Access to Healthcare in a time of COVID-19: Sex Workers in Crisis in Nairobi, Kenya. Glob Public Health 2020; 20:1-13.,1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.,2121 Costa BRL. Bola de Neve Virtual: O uso das redes sociais virtuais no processo de coleta de dados de uma pesquisa científica. Rev Interd Gest Social 2018; 7(1):15-37.,2525 Barboza NSR, Fassarella CS, Souza PA. Self-care by discalced carmelite nuns in the light of Orem´s Theory. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03637.. Desse modo, elas alcançam a terceira fase de autocuidado delimitada pela teoria da TDAE, que é o produtivo (capacidade real de cuidar de si mesma), pois elas apresentaram nos segmentos de texto aptidão para desempenhar atividades de autocuidado que mantém, restabelece e/ou aperfeiçoa a saúde e bem-estar1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.,2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164..

Com a apresentação de tal contexto, as trabalhadoras sexuais tentam implementar estratégias que favoreçam o autocuidado, se reinventando para garantir renda durante a pandemia, como o uso de meios tecnológicos com a finalidade da prática sexual virtual com clientes antigos. A tentativa de evitar transmissão do SARS-CoV-2 é válida, com a adoção de hábitos de higiene pessoal, o uso de máscaras e álcool em gel e se atentar aos sinais e sintomas da COVID-19. Entretanto, outros aspectos das necessidades humanas são escanteados por elas, dentre os quais, o padrão de sono e repouso comprometido e a falta de atividade física, não apenas nesse período pandêmico.

Estudos revelaram que a adoção de chamadas de vídeo para a atividade sexual virtual com clientes foi apontada como alternativa para trabalhadoras do sexo na Europa, no Estado Unidos e América Latina77 Kramer A, Kramer KZ. The potential impact of the Covid-19 pandemic on occupational status, work from home, and occupational mobility. J Vocat Behav 2020; 8;119:103442.,1414 Gichuna S, Hassan R, Sanders T, Campbell R, Mutonyi M, Mwangi P. Access to Healthcare in a time of COVID-19: Sex Workers in Crisis in Nairobi, Kenya. Glob Public Health 2020; 20:1-13.,3030 Couto PLS, Pereira SSC, Vilela ABA, Gomes AMT, Merces MC. COVID-19 coping-prevention strategies for female sexual workers in the context of various countries. Texto Contexto Enferm 2021; 30:e20200560.. De outro modo, os problemas com o padrão de sono e falta de atividade física fez/faz parte do cotidiano das mulheres que têm o serviço sexual como profissão, pois durante a noite trabalham e durante o dia descansam pouco, para cuidar de outros afazeres1616 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, Suto CSS, Paiva MS. Entre dinheiro, autoestima e ato sexual: representações sociais da satisfação sexual para trabalhadoras sexuais. Rev Eletr Enferm 2020; 22:59271.,2828 Cruz NL, Ferreira CL, Martins E, Souza M. O cuidado com a saúde das mulheres profissionais do sexo: uma revisão narrativa. Disciplinarum Sci 2016; 17(3):339-352.. Ainda assim, elas apresentam a compreensão para a necessidade em modificar o estilo de vida, quesito necessário para o autocuidado. O prejuízo em alguma necessidade humana básica, como a saciedade do sono, a disposição para desenvolver as atividades no dia a dia, a prática de exercício físico, tende a negligenciar o cuidado com elas próprias e, principalmente, o cuidado com o outro1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.,2525 Barboza NSR, Fassarella CS, Souza PA. Self-care by discalced carmelite nuns in the light of Orem´s Theory. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03637..

O entendimento sobre o autocuidado para essas mulheres tangencia a ideia do cuidado para com o outro, ou seja, cuidar dos filhos, demais familiares e colegas de trabalho. Assim, na concepção delas, há importância de estar bem e saudável, para estar na rua e garantir o dinheiro que possibilitará suprir demandas daqueles que estão próximos. Em outro sentido, “para que o cuidado com o outro seja eficaz, em vez de querer o melhor para o outro, compreende-se suas aspirações, seus desafios e suas capacidades [...] ao se estar atento ao outro, é possível observar suas capacidades, desejos e necessidades, conhecer e respeitar suas aspirações”2525 Barboza NSR, Fassarella CS, Souza PA. Self-care by discalced carmelite nuns in the light of Orem´s Theory. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03637.(p.5).

Pesquisas recentes, desenvolvidas durante a pandemia, com trabalhadoras sexuais africanas, evidenciaram que o principal motivo da inserção nesse tipo serviço é, além de garantir meios de se prevenir da COVID-19 (ainda que contraditoriamente, pois algumas se encontram com clientes) garantir que os filhos, parentes e algumas colegas, possam se alimentar e cuidar da higiene pessoal22 Adebisi YA, Alaran AJ, Akinokun RT, Micheal AI, Ilesanmi EB, Lucero-Prisno DE. Sex workers should not be forgotten in Africa's COVID-19 response. Am J Trop Med Hyg 2020; 103(5):1780-1782.,2626 Jozaghi E, Bird L. COVID-19 and sex workers: human rights, the struggle for safety and minimum income. Can J Public Health 2020; 111(3):406-407.. Estudos anteriores à pandemia, realizados no Brasil, revelaram que a manutenção das necessidades pessoais e de pessoas próximas são alguns dos motivos para elas desempenharem a profissão1515 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu 2015; 14:181-200.,1616 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, Suto CSS, Paiva MS. Entre dinheiro, autoestima e ato sexual: representações sociais da satisfação sexual para trabalhadoras sexuais. Rev Eletr Enferm 2020; 22:59271.,2323 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc 2017; 25:134-155.,2828 Cruz NL, Ferreira CL, Martins E, Souza M. O cuidado com a saúde das mulheres profissionais do sexo: uma revisão narrativa. Disciplinarum Sci 2016; 17(3):339-352..

Nesse sentido, os desvios de saúde (apontado na TDAE como problemas identificados ou diagnosticados) no âmbito dos sistemas humanos, possuem características que remetem às situações que se perpetuam inflexíveis e duradouras com o tempo, indicando quais são as necessidades de assistência demandadas pelas pessoas na vivência do processo de saúde e adoecimento. As ações autocuidado são fundamentais para satisfação das exigências do desvio de saúde, que devem ser transformadas em componentes das dificuldades apresentadas por cada ser humano1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.,2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164.,2525 Barboza NSR, Fassarella CS, Souza PA. Self-care by discalced carmelite nuns in the light of Orem´s Theory. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03637..

Os sistemas humanos são complexos, visto que as demandas e necessidades que surgem aumentam na medida em que as exigências do desvio de saúde se potencializam, cuja satisfação se dá em espaços e tempo específicos com o auxílio dos recursos usados por agentes de autocuidado terapêutico1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.,2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164.,2525 Barboza NSR, Fassarella CS, Souza PA. Self-care by discalced carmelite nuns in the light of Orem´s Theory. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03637.. Para Orem, em sua teoria, tal agente é um adulto em maturação ou mais capacitado que aceita o desafio de cumprir a responsabilidade de entender e ajudar a suprir a necessidade terapêutica precipitada pela ação de cuidar de si próprio e de outros que estão dependentes1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001..

Pode-se refletir que a eficácia de proteção às demandas do próximo acontece quando o “eu” é esquecido em detrimento da oferta de um esforço legítimo pautado na real necessidade do outro e na prática desenvolvida pelo promotor do autocuidado1919 Orem DE. Nursing: Concepts of practice. 6ª ed. St. Louis: Mosby; 2001.,2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164.,2525 Barboza NSR, Fassarella CS, Souza PA. Self-care by discalced carmelite nuns in the light of Orem´s Theory. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03637.. Portanto, a forma mais efetiva de se atentar à pessoa próxima é iniciar com a promoção de ações que tragam benefícios às próprias demandas2020 Queiro´s PJP, Vidinha TSS, Almeida Filho AJ. Autocuidado: o contributo teórico de Orem para a disciplina e profissão de enfermagem. Rev Enferm Refer 2014; IV(3):157-164.,2525 Barboza NSR, Fassarella CS, Souza PA. Self-care by discalced carmelite nuns in the light of Orem´s Theory. Rev Esc Enferm USP 2020; 54:e03637..

As limitações desse estudo estão ancoradas na sua realização em uma região carente do nordeste brasileiro e distante dos grandes centros, o que restringe o avanço dos resultados para outros cenários, tanto do país quanto do mundo. Outro fator é a lacuna de textos científicos que aprofundam na relação entre teorias da enfermagem, principalmente a do autocuidado e as trabalhadoras sexuais. Os resultados encontrados, oriundos de diversas investigações, tinham o objeto sustentado pela teoria da Etnoenfermagem. Além disso, há falta de investigações que fizessem análises de dados empíricos entrelaçados ao período pandêmico do novo coronavírus, o que impõe limites à discussão e restringe as comparações com demais contextos.

Conclusão

As trabalhadoras sexuais possuem um entendimento do conceito de autocuidado, entretanto em associação a medidas de precaução, já que desconhecem o arcabouço teórico da TDAE. Na concepção delas, desde que haja condições de saúde, o autocuidado é importante para levar uma vida saudável, alcançar bem-estar e qualidade de vida. No entanto, por encontrarem-se em situação de vulnerabilidade social, a renda oriunda do serviço sexual remunerado é um fator necessário para realizar o autocuidado e evitar a infecção pelo SARS-CoV-2. Por esse motivo, sugere-se que elas se encontram em déficit de autocuidado, pois em algumas situações viram-se necessitadas de ganhar dinheiro e, para isso, tiveram que encontrar com os clientes, rompendo com o distanciamento social, abdicando do autocuidado em detrimento da sobrevivência.

As práticas de prevenção mais relatadas pelas trabalhadoras sexuais foram a manutenção mais rígida com a higiene e o asseio pessoal e evitar sair de casa quando sentiam algum sintoma que considerava associado à COVID-19 e evitar os beijos com clientes. Para o enfrentamento desse período pandêmico muitas encontraram ajuda nas suas redes de apoio, como as colegas e as organizações de apoio às trabalhadoras sexuais. Destaca-se a solidariedade existente entre elas próprias, por entenderem a especificidade do momento da pandemia e a redução potencial de clientes, revelando outro aspecto do autocuidado, que é o cuidar do outro. Além disso, recorreram à divindade e práticas religiosas e outras, por sua vez, fizeram uso indevido de substâncias psicoativas, como medicamentos controlados.

Ao apresentar os resultados desse estudo, no contexto da pandemia da COVID-19, com aporte teórico do TDAE, na perspectiva de sua primeira dimensão, o autocuidado, esse estudo torna-se relevante para que profissionais de saúde e enfermeiras(os) repensem sua práxis. Essa reflexão reverberará em um cuidado voltado às demandas de grupos populacionais vulneráveis, como as trabalhadoras sexuais, equânime, integral, universal e individual, pautado em demandas que extrapolam ao que já está posto na ciência, como a saúde sexual e prevenção de ISTs/HIV. Assim, a assistência poderá se pautar na minimização dos estigmas e preconceitos, acolhê-las de forma a confiarem no profissional e favorecer a promoção do cuidado e autocuidado, como foco na qualidade de vida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Jan 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2022
  • Aceito
    12 Ago 2022
  • Publicado
    14 Ago 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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