Mortalidade de imigrantes bolivianos em São Paulo, Brasil: análise de causas evitáveis

Rubens Carvalho Silveira Gizelton Pereira Alencar Zilda Pereira da Silva Sobre os autores

Resumo

Objetivou-se analisar a mortalidade dos imigrantes bolivianos residentes no município de São Paulo comparada à dos brasileiros, com ênfase na análise das mortes evitáveis. Estudo descritivo dos óbitos do município de São Paulo entre 2007 e 2018 registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade. Foram analisados os óbitos de pessoas de 5 a 74 anos, conforme a lista de causas de mortes evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde, segundo grupos e sexo; o teste de qui-quadrado foi utilizado na comparação das nacionalidades. A tendência temporal foi avaliada pela regressão de Prais-Winsten. Houve 1.123 óbitos de bolivianos e 883.116 de brasileiros, com predomínio de óbitos masculinos, com idade média ao morrer menor (-13,6 anos) para bolivianos. A proporção de óbitos por causas evitáveis foi semelhante entre bolivianos (71,0%) e brasileiros (72,8%) e a tendência não apresentou variação anual proporcional significante para ambas as nacionalidades. Para bolivianos, houve maior frequência de causas externas (27,6%) e de causas reduzíveis por ações de promoção, prevenção, controle e atenção às doenças infecciosas (20,8%). Os bolivianos exibiram mortalidade mais jovem, sem redução na proporção de causas evitáveis, o que pode indicar acesso desigual aos serviços de saúde.

Palavras-chave:
Imigrantes; Causas de morte; Mortalidade prematura

Introdução

Relatório da Comissão sobre Migração e Saúde do Lancet11 Abubakar I, Aldridge RW, Devakumar D, Orcutt M, Burns R, Barreto ML, Dhavan P, Fouad FM, Groce N, Guo Y, Hargreaves S, Knipper M, Miranda JJ, Madise N, Kumar B, Mosca D, McGovern T, Rubenstein L, Sammonds P, Sawyer SM, Sheikh K, Tollman S, Spiegel P, Zimmerman C, THE UCL - Lancet Commission on Migration and Health. THE UCL - Lancet Commission on Migration and Health: the health of a world on the move. Lancet 2018; 392(10164):2606:2654. concluiu que a migração deve ser tratada como um aspecto central de saúde e desenvolvimento no século XXI. Além disso, aponta que os compromissos com a saúde das populações migrantes devem ser considerados em todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

O processo de migração em busca de melhores condições de vida envolve uma série de eventos que podem ser traumatizantes e colocar o migrante em risco. O processo envolve o desenraizamento, começando pela separação do migrante de sua família e de seus valores tradicionais, sendo colocado em novas situações sociais e culturais em que o trabalho e os direitos podem ser mínimos, sendo o desemprego um influenciador na baixa qualidade de vida dos imigrantes22 Carballo M, Nerukar A. Migration, refugees, and health risks. Emerg Infect Dis 2001;7(3l):556-560.,33 Oliveira EM, Matias MMM, Felix TA, Cavalcanti MMB, Lopes RE, Neto F. Mulheres brasileiras vivendo em Portugal: trabalho e qualidade de vida. Saude Soc 2019; 28(1):182-192.. Fatores como estilo de vida, influência social e comunitária, condições de vida e trabalho, condições socioeconômicas, culturais e ambientais determinam a saúde dos indivíduos. Esses determinantes sociais de saúde são os principais responsáveis pelas desigualdades e iniquidades em saúde dentro e entre países, afetando também os imigrantes44 International Organization for Migration (IOM). Social Determinants of Migrant Health. [acessado 2019 ago 31]. Disponível em: https://www.iom.int/social-determinants-migrant-health
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Nas últimas três décadas, foram observadas no Brasil novas tendências nas migrações internacionais e o país passou a ser receptor de imigrantes coreanos, chineses, bolivianos, paraguaios, chilenos, peruanos e africanos de diferentes países55 Patarra NL. Brasil: país de imigração? e-metropolis 2012; 3(9):6-18.. Em 1980, o perfil de imigrantes mudou, não sendo mais de europeus, mas de latino-americanos, sobretudo bolivianos, que migraram inicialmente para a fronteira e mais adiante se deslocaram para o Município de São Paulo (MSP)66 Silva S. Costurando sonhos - trajetória de um grupo de imigrantes bolivianos em São Paulo. São Paulo: Paulinas; 1997..

De acordo com o Sistema Nacional de Registro de Estrangeiros, os bolivianos são a nacionalidade com maior número de registros, representando 20,8% da população de imigrantes na cidade de São Paulo77 Prefeitura de São Paulo, Organização Internacional para as Migrações. A cidade de São Paulo - perfil 2019 indicadores da governança migratória local. Genebra: Organização Internacional para as Migrações; 2019.. Dados do Censo Demográfico de 2010 mostram que o perfil do imigrante boliviano residente no MSP é de uma população jovem (entre 20 e 34 anos), masculina e com baixa escolaridade quando comparados com a população em geral88 Yazaki LM, Ortiz LP, Almeida MF, Aranha V, Silva ZP. Indicadores de saúde reprodutiva e mortalidade dos bolivianos residentes na cidade de São Paulo. Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais; 2014 nov 24 a 28; São Pedro-SP..

Os indicadores de mortalidade representam de forma indireta o nível de saúde de uma comunidade e podem refletir o efeito das intervenções na saúde da população, bem como as diferenças socioeconômicas. Muitas causas de mortes são evitáveis e sua análise pode contribuir para a elaboração de programas de promoção e prevenção em saúde pública, assim como na redução de desigualdades no acesso e na qualidade dos serviços de saúde99 Malta DC, Duarte EC, Almeida MF, Dias MAS, Morais NOL, Moura L, Ferraz W, Souza MFM. Lista de causas de mortes evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde do Brasil. Epidemiol Serv Saude 2007; 16(4):233-244.,1010 Malta DC, Saltarelli RMF, Prado RR, Monteiro RA, Almeida MF. Mortes evitáveis no Sistema Único de Saúde na população brasileira, entre 5 e 69 anos, 2000-2013. Rev Bras Epidemiol 2018; 21:e180008..

Estudo conduzido na Bélgica com imigrantes de 50 anos e mais mostrou que, dependendo do país de origem, causa da morte, idade, sexo e status socioeconômico, os imigrantes possuíam maior risco de morrer do que a população local1111 Reus-Pons M, Vandenheede H, Janssen F, Kibele EUB. Differences in mortality between groups of older migrants and older non-migrants in Belgium, 2001-2009. Eur J Public Health 2016; 26(6):992-1000.. Por outro lado, estudo de revisão sistemática mostrou que os migrantes internacionais em países de alta renda têm uma vantagem de mortalidade em comparação com populações nativas, e que essa vantagem persistiu na maioria das categorias de doenças analisadas1212 Aldridge RW, Nellums LB, Bartlett S, Barr AL, Patel P, Burns R, Hargreaves S, Miranda JJ, Tollman S, Friedland JS, Abubakar I. Global patterns of mortality in international migrants: a systematic review and meta-analysis. Lancet 2018; 392(10164):2553-2566..

Para ofertar cuidados de saúde de qualidade, acessíveis e adequados, é necessário monitorar continuamente os padrões de mortalidade da população, incluindo os diversos grupos populacionais. A comparação de perfis de mortalidade entre populações imigrante e nativa colaboram para a compreensão de possíveis diferenças e, em última análise, podem indicar a necessidade de ações para reduzir desigualdades em saúde1111 Reus-Pons M, Vandenheede H, Janssen F, Kibele EUB. Differences in mortality between groups of older migrants and older non-migrants in Belgium, 2001-2009. Eur J Public Health 2016; 26(6):992-1000.. Pesquisas sobre a mortalidade entre os imigrantes no Brasil são escassas1313 Silveira RC. A mortalidade de imigrantes internacionais no município de São Paulo de 2006 a 2015 [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019., assim, o objetivo deste estudo foi analisar a mortalidade da população boliviana comparada à da população brasileira, residente no município de São Paulo, com ênfase na análise das causas de morte potencialmente evitáveis, no período de 2007 a 2018.

Materiais e métodos

Trata-se de um estudo descritivo de base populacional sobre a mortalidade de imigrantes da Bolívia, residentes no município de São Paulo, capital do estado que leva o mesmo nome, com população estimada em 12.176.866 de habitantes (2018) e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) alto, de 0,8051414 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cidades@. [acessado 2019 ago 24]. Disponível em: http://cod.ibge.gov.br/QHF
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No estudo, foram utilizados os microdados de óbitos da população residente no MSP, ocorridos entre 1/1/2007 a 31/12/2018, provenientes do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Os arquivos foram disponibilizados pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS/CEInfo/PRO-AIM).

A partir da variável naturalidade na Declaração de Óbito (DO), foram identificados os óbitos de naturais da Bolívia e do Brasil. O número de casos ignorados para essa variável é mínimo, sendo de apenas dois óbitos em 2007, o restante do período tem 100% de completude1313 Silveira RC. A mortalidade de imigrantes internacionais no município de São Paulo de 2006 a 2015 [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019..

Para conhecer a distribuição por sexo e faixa etária, foi elaborada uma pirâmide etária do total de óbitos no período para as duas nacionalidades e foi calculada a idade média ao morrer.

Foi estudada a causa básica dos óbitos de acordo com os códigos da 10ª Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10). Como os óbitos de menores de cinco anos entre os bolivianos foram pouco frequentes (35 óbitos ou 3,1% do total), optou-se por estudar as causas dos óbitos de 5 a 74 anos, que foram agrupados segundo a Lista de Causas de Mortes Evitáveis por Intervenções do Sistema Único de Saúde do Brasil1515 Malta DC, França E, Abreu DX, Oliveira H, Monteiro RA, Sardinha LMV, Duarte EC, Silva GA. Atualização da lista de causas de mortes evitáveis (5 a 74 anos de idade) por intervenções do Sistema Único de Saúde do Brasil. Epidemiol Serv Saude 2011; 20(3):409-412., que inclui três grupos: 1) causas de mortes evitáveis e subgrupos, 2) causas de mortes mal definidas; e 3) demais causas de morte - não claramente evitáveis. Foram calculados as proporções e os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC), segundo grupos e subgrupos, sexo e nacionalidade.

Efetuou-se a análise por meio de estatísticas descritivas e do teste de qui-quadrado de Pearson, testando-se a hipótese nula em que não há relação entre as variáveis nacionalidade e óbitos por causas evitáveis, sendo adotado um nível de significância de 5%. Foram excluídos dois óbitos com causas inconsistentes para o sexo masculino e seis óbitos com sexo ignorado.

Para a análise da tendência temporal da proporção de mortes evitáveis no período 2007-2018, foi utilizada a regressão de Prais-Winsten. Os dados foram processados nos softwares Microsoft Office Excel 2016 e R versão 3.4.4. Foram utilizados os pacotes foreign, prais, readxl, stats e tidyverse.

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), tendo sido aprovado (parecer 2.728.230/2018).

Resultados

Foram identificados 1.123 óbitos de naturais da Bolívia e 883.116 do Brasil no período 2007-2018. A distribuição por sexo mostrou que predominaram os óbitos do sexo masculino, com 58% entre bolivianos e 53% entre brasileiros.

A distribuição do total dos óbitos de brasileiros apresenta um formato de pirâmide invertida, com volume crescente de óbitos conforme aumenta a idade. Já o gráfico dos óbitos bolivianos apresenta distribuição distinta, com maior concentração de óbitos na faixa etária de 15 a 64 anos (57,79%) (Gráfico 1). Verificou-se diferença de 13,6 anos na idade média ao morrer entre bolivianos (50,2 anos) e brasileiros (63,8 anos).

Gráfico 1
Pirâmides etárias dos óbitos de brasileiros e bolivianos, município de São Paulo, 2007-2018.

Foi estudada a tendência anual da proporção das causas de óbito evitáveis na faixa etária entre 5 e 74 anos. Utilizando a regressão de Prais-Winsten para avaliar as curvas que descrevem os óbitos de ambas as nacionalidades, nenhuma apresentou variação proporcional estatisticamente significante (Gráfico 2).

Gráfico 2
Evolução da proporção de óbitos por causas evitáveis entre 5 e 74 anos por ano, segundo nacionalidade, município de São Paulo, 2007-2018.

Devido ao reduzido número de óbitos de menores de cinco anos para a comunidade boliviana, foram estudadas as causas de morte apenas para o grupo de 5 a 74 anos. Quando comparada à proporção de óbitos por causas evitáveis, no período agregado, não se observou diferença (p = 0,266) entre os bolivianos (71,0%, IC95% [67,9; 74,1]) e brasileiros (72,8%, IC95% [72,7; 72,9]), tanto para homens (p = 0,210) como para mulheres (p = 0,811), situação diferente da que se verificou quando comparados os grupos das causas (Tabela 1).

Tabela 1
Distribuição dos óbitos de bolivianos e brasileiros por grupo de causas evitáveis entre 5 e 74 anos, Município de São Paulo, 2007 - 2018.

Na análise desses grupos e subgrupos, para os bolivianos, destaca-se a frequência de óbitos por causas reduzíveis por ações adequadas de promoção à saúde, prevenção, controle e atenção às doenças não transmissíveis (45,9%, IC95% [41,9; 49,9]), porém em uma concentração muito menor do que na população brasileira (67,7%, IC95% [67,5; 67,8]). Esse foi o único grupo de causas que apresentou maior proporção entre os brasileiros, para as demais causas a população boliviana apresenta maior proporção (Tabela 1). Neste grupo, as causas relacionadas ao capítulo das doenças do aparelho circulatório, principalmente infarto agudo do miocárdio e doença isquêmica do coração, se destacaram para os brasileiros, com 16,8% (IC95%: 16,6; 16,9) e 6,7% (IC95%: 6,7; 6,8) respectivamente, contra 11,4% (IC95%: 7,6; 15,1) e 1,5% (IC95%: 0,0; 2,9) para os bolivianos (Tabela 2).

Tabela 2
Distribuição dos óbitos de bolivianos e brasileiros pelas principais causas dentro dos grupos de causas evitáveis entre 5 e 74 anos, Município de São Paulo, 2007-2018.

As causas reduzíveis por ações intersetoriais e de promoção à saúde, prevenção e atenção adequada às causas externas (acidentes e violências) corresponderam a 27,6% (IC95%: 24,0; 31,2) e 16,8% (IC95%: 16,7;16,9) dos óbitos de bolivianos e brasileiros (Tabela 1), respectivamente, com maior frequência entre os homens. Nesse conjunto de óbitos, os acidentes de transporte corresponderam a aproximadamente um quarto das mortes para ambas as nacionalidades (Tabela 2).

As causas reduzíveis por ações de promoção à saúde, adequada prevenção, controle e atenção às doenças de causas infecciosas representaram 20,8% (IC95%: 17,6; 24,1) dos óbitos de imigrantes bolivianos e 15,1% (IC95%: 15,0; 15,2) dos brasileiros (Tabela 1), entre os quais destacam-se as mortes por tuberculose com 25,8% (IC95%: 18,1; 33,5) e 5,4% (IC95%: 5,2; 5,6), respectivamente (Tabela 2).

As causas reduzíveis por adequada ação de prevenção, controle e atenção às causas de morte materna foram mais frequentes entre as imigrantes bolivianas (3,7%, IC95%: 2,2-5,7) do que entre as brasileiras (0,3%, IC95% [0,3; 0,3]) (Tabela 1).

As causas mal definidas foram mais frequentes na população boliviana quando observado o total de óbitos (2,6%, IC95% [1,5; 3,7]) e para população do sexo masculino (3,7%, IC95% [1,9; 5,2]), em relação aos brasileiros (1,4%, IC95% [1,4; 1,5] e 1,7%, IC95% [1,7; 1,7], respectivamente).

Para as duas nacionalidades, verificou-se maior proporção de causas evitáveis no sexo masculino (72,1% e 74,6%, para bolivianos e brasileiros), quando comparada com o sexo feminino (69,4% e 69,9%, respectivamente), porém essa diferença foi significante apenas para a nacionalidade brasileira (p < 0,001).

Discussão

Os óbitos de bolivianos se concentraram na população economicamente ativa, enquanto na população de brasileiros predominou a faixa etária de 65 anos e mais. Não houve queda na proporção de causas evitáveis no grupo etário de 5 a 74 anos no período de 2007 a 2018, tanto para bolivianos como para brasileiros. No global, não houve diferença na proporção total de óbitos evitáveis entre as duas nacionalidades, porém houve diferenças na distribuição interna dos grupos de causas e também por sexo.

Nosso estudo verificou diferença de -13,6 anos na idade média ao morrer entre bolivianos e brasileiros. Na síntese dos dados apresentados na pirâmide etária, essa diferença reflete em parte o perfil da migração boliviana, formada por uma população jovem, em idade produtiva88 Yazaki LM, Ortiz LP, Almeida MF, Aranha V, Silva ZP. Indicadores de saúde reprodutiva e mortalidade dos bolivianos residentes na cidade de São Paulo. Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais; 2014 nov 24 a 28; São Pedro-SP.,1616 Aguiar ME, Mota A. O Programa Saúde da Família no bairro do Bom Retiro, SP, Brasil: a comunicação entre bolivianos e trabalhadores de saúde. Interface (Botucatu) 2014; 18(50): 493-506.. Estudo canadense observou a mesma característica de óbitos de imigrantes com idade média mais baixa, porém com uma diferença menor, de seis anos1717 Khan AM, Urquia M, Kornas K, Henry D, Cheng SY, Bornbaum C, Rosella LC. Socioeconomic gradients in all-cause, premature and avoidable mortality among immigrants and long-term residents using linked death records in Ontario, Canada. J Epidemiol Community Health 2017; 71(7):625-632..

As causas de mortes evitáveis ou reduzíveis são definidas como aquelas preveníveis, total ou parcialmente, por ações efetivas dos serviços de saúde que estejam acessíveis em determinado local e época e devem ser atualizadas à luz do avanço do conhecimento e das tecnologias99 Malta DC, Duarte EC, Almeida MF, Dias MAS, Morais NOL, Moura L, Ferraz W, Souza MFM. Lista de causas de mortes evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde do Brasil. Epidemiol Serv Saude 2007; 16(4):233-244.. Nossos resultados não mostraram redução do conjunto dessas mortes para a população nativa brasileira e boliviana, diferentemente do verificado em outros estudos que utilizaram a mesma lista de mortes evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde, como no estudo sobre a população de 5 a 69 anos no Brasil1010 Malta DC, Saltarelli RMF, Prado RR, Monteiro RA, Almeida MF. Mortes evitáveis no Sistema Único de Saúde na população brasileira, entre 5 e 69 anos, 2000-2013. Rev Bras Epidemiol 2018; 21:e180008. e na região Sudeste nos anos 2000-20131818 Saltarelli RMF, Prado RR, Monteiro RA, Machado IE, Teixeira BSM, Malta DC. Mortes evitáveis por ações do Sistema Único de Saúde na população da região Sudeste do Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(3):887-898.. O que pode indicar que, no período estudado, as condições de vida e saúde no MSP podem ser mais desfavoráveis para a redução da mortalidade evitável.

Verificou-se alto percentual de mortes por causas evitáveis na população boliviana. Embora no Brasil a legislação garanta acesso aos serviços de saúde aos imigrantes, ainda permanecem muitas barreiras1616 Aguiar ME, Mota A. O Programa Saúde da Família no bairro do Bom Retiro, SP, Brasil: a comunicação entre bolivianos e trabalhadores de saúde. Interface (Botucatu) 2014; 18(50): 493-506.,1919 Aith FMA, Forsyth C, Shikanai-Yasuda MA. Chagas Disease and Healthcare Rights in the Bolivian Immigrant Community of São Paulo, Brazil. Trop Med Infect Dis 2020; 5(2):62.. Os migrantes bolivianos têm necessidades específicas, incluindo diferenças de idioma e um alto nível de mobilidade1616 Aguiar ME, Mota A. O Programa Saúde da Família no bairro do Bom Retiro, SP, Brasil: a comunicação entre bolivianos e trabalhadores de saúde. Interface (Botucatu) 2014; 18(50): 493-506., além disso, a imigração ilegal e a falta de documentos dificultam, e às vezes impede, o acesso aos serviços básicos de saúde1919 Aith FMA, Forsyth C, Shikanai-Yasuda MA. Chagas Disease and Healthcare Rights in the Bolivian Immigrant Community of São Paulo, Brazil. Trop Med Infect Dis 2020; 5(2):62..

Nos dois grupos populacionais, predominaram as mortes por causas reduzíveis por ações adequadas de promoção à saúde, prevenção, controle e atenção às doenças não transmissíveis, porém a proporção entre bolivianos foi muito menor do que a dos brasileiros, o que está em acordo com o perfil demográfico das duas populações8, 16. Esse grupo de doenças são indicadas como um dos maiores problemas de saúde pública, pois envolvem elevado número de mortes prematuras e perda de qualidade de vida com alto grau de limitação e incapacidade para as atividades de vida diária1010 Malta DC, Saltarelli RMF, Prado RR, Monteiro RA, Almeida MF. Mortes evitáveis no Sistema Único de Saúde na população brasileira, entre 5 e 69 anos, 2000-2013. Rev Bras Epidemiol 2018; 21:e180008..

Segundo Yazaky e colaboradores88 Yazaki LM, Ortiz LP, Almeida MF, Aranha V, Silva ZP. Indicadores de saúde reprodutiva e mortalidade dos bolivianos residentes na cidade de São Paulo. Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais; 2014 nov 24 a 28; São Pedro-SP., no município de São Paulo, há forte concentração de bolivianos do sexo masculino e em idades produtivas, o que caracteriza um fluxo migratório voltado predominantemente para o trabalho, sendo que mais de 70% deles têm ocupação relacionada ao setor de confecção de roupas e registraram maior frequência de vínculos precários de trabalho e baixa renda. Em relação ao grupo de causas reduzíveis por ações de promoção à saúde, adequada prevenção, controle e atenção às doenças de causas infecciosas, destaca-se a maior proporção de óbitos por tuberculose na população boliviana, o que está em acordo com o observado por Martinez e colaboradores2020 Martinez VN, Komatsu NK, Figueredo SM, Waldman EA. Equity in health: tuberculosis in the Bolivian immigrant community of São Paulo, Brazil. Trop Med Inter Health 2012; 17(11):1417-1424. sobre o crescimento nos casos de tuberculose entre bolivianos da região central de São Paulo entre os anos de 1998 e 2008, assim como outros estudos que mostram maior prevalência da doença nessa população2121 Silva ECC. Rompendo barreiras: os bolivianos e o acesso aos serviços de saúde na cidade de São Paulo. Travessia 2009; 63:26-31.,2222 Melo R, Campinas LLSL. Multiculturalidade e morbidade referida por imigrantes bolivianos na Estratégia Saúde da Família. O Mundo da Saúde 2010; 34(1):25-35.. Estudos observaram condições precárias de vida e trabalho de bolivianos em São Paulo (capital), que muitas vezes moram e trabalham no mesmo recinto1616 Aguiar ME, Mota A. O Programa Saúde da Família no bairro do Bom Retiro, SP, Brasil: a comunicação entre bolivianos e trabalhadores de saúde. Interface (Botucatu) 2014; 18(50): 493-506.,2323 Rizek CS, Georges I, Silva CF. Trabalho e imigração: uma comparação Brasil-Argentina. Lua Nova 2010; 79:111-142.

24 Junior NC, Oliveira RLS, Jesus CH, Luppi CG. Migração, exclusão social e serviços de saúde: o caso da população boliviana no centro da cidade de São Paulo. SUS Mosaico de Inclusões 2011; 13(2):177-181.
-2525 Silveira C, Carneiro Junior N, Ribeiro MCSA, Barata RCB. Living conditions and access to health services by Bolivian immigrants in the city of São Paulo, Brazil. Cad Saude Publica 2013; 29(10):2017-2027.. O mesmo foi observado em estudo na região metropolitana de Buenos Aires, com bolivianos vivendo e trabalhando em condições precárias2626 Goldberg A. Contextos de vulnerabilidad social y situaciones de riesgo para la salud: tuberculosis en inmigrantes bolivianos que trabajan y viven en talleres textiles clandestinos de Buenos Aires. Cuadernos de Antropología Social 2014; 39:91-114., o que favorece a maior frequência de doenças respiratórias2727 San Pedro A, Oliveira RM. Tuberculose e indicadores socioeconômicos: revisão sistemática da literatura. Rev Panam Salud Publica 2013; 33(4):294-301..

Diversos estudos2626 Goldberg A. Contextos de vulnerabilidad social y situaciones de riesgo para la salud: tuberculosis en inmigrantes bolivianos que trabajan y viven en talleres textiles clandestinos de Buenos Aires. Cuadernos de Antropología Social 2014; 39:91-114.,2828 Souza LG, Siviero PCL. Diferencias por sexo na mortalidade evitável e ganhos potenciais de esperança de vida em São Paulo, SP: um estudo tranversal entre 2014 e 2016. Epidemiol Serv Saude 2020; 29(3):e2018451. mostram melhores condições de saúde entre as mulheres. Nossos resultados evidenciaram que os homens registraram maior proporção de causas evitáveis quando comparados às mulheres, nas duas nacionalidades estudadas. Resultado semelhante foi observado em estudo realizado em São Paulo2828 Souza LG, Siviero PCL. Diferencias por sexo na mortalidade evitável e ganhos potenciais de esperança de vida em São Paulo, SP: um estudo tranversal entre 2014 e 2016. Epidemiol Serv Saude 2020; 29(3):e2018451. que avaliou mortes evitáveis por câncer, hipertensão e causas externas, com destaque para causas externas que impactam mais homens do que mulheres.

As causas externas acometem principalmente homens2929 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Saúde nas Américas, 2012. Volume regional. OPAS; 2012.,3030 Moura EC, Gomes R, Falcão MTC, Schwarz E, Neves ACM, Santos W. Desigualdade de gênero na mortalidade por causas externas no Brasil, 2010. Cien Saude Colet 2015; 20(3):779-788. e isso foi observado nas elevadas proporções desses óbitos, tanto para brasileiros como para bolivianos, porém com maior participação relativa neste grupo. Esses resultados são corroborados por estudo da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, que identificou o mesmo entre imigrantes de diversas nacionalidades, sendo a população boliviana a que apresentou a maior proporção de óbitos por causas externas3131 Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (SMS-SP). Coordenação de Epidemiologia e Informação (CEInfo). Alguns aspectos da saúde de imigrantes e refugiados recentes no município de São Paulo. Boletim CEInfo Análise 2015; 10(13):1-48., situação que está relacionada também ao perfil demográfico dessa população, predominantemente jovem e do sexo masculino88 Yazaki LM, Ortiz LP, Almeida MF, Aranha V, Silva ZP. Indicadores de saúde reprodutiva e mortalidade dos bolivianos residentes na cidade de São Paulo. Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais; 2014 nov 24 a 28; São Pedro-SP.. Nessa mesma linha, uma revisão sistemática com estudos de 92 países encontrou maiores taxas de mortalidade por causas externas entre a população migrante do que para os nativos1212 Aldridge RW, Nellums LB, Bartlett S, Barr AL, Patel P, Burns R, Hargreaves S, Miranda JJ, Tollman S, Friedland JS, Abubakar I. Global patterns of mortality in international migrants: a systematic review and meta-analysis. Lancet 2018; 392(10164):2553-2566.. A maior mortalidade por essas causas entre migrantes pode ser atribuída a vários fatores interrelacionados, como posição socioeconômica, adaptação cultural, preconceito22 Carballo M, Nerukar A. Migration, refugees, and health risks. Emerg Infect Dis 2001;7(3l):556-560.,2424 Junior NC, Oliveira RLS, Jesus CH, Luppi CG. Migração, exclusão social e serviços de saúde: o caso da população boliviana no centro da cidade de São Paulo. SUS Mosaico de Inclusões 2011; 13(2):177-181., além do fato de homens jovens apresentarem maior exposição a atividades laborais de risco ocupacional, ao consumo de álcool, aos comportamentos agressivos e à direção perigosa de veículos automotores1818 Saltarelli RMF, Prado RR, Monteiro RA, Machado IE, Teixeira BSM, Malta DC. Mortes evitáveis por ações do Sistema Único de Saúde na população da região Sudeste do Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(3):887-898..

As imigrantes bolivianas registraram maior proporção de óbitos por causas reduzíveis por adequada ação de prevenção, controle e atenção às causas de morte materna. Estudo realizado na Espanha mostrou um risco excessivo de morte materna entre as mulheres imigrantes, e aquelas de origem sul-americana tiveram maior risco ajustado de morte materna3232 Atanasova VB, Arevalo-Serrano J, Alvarado EA, Larroca SGT. Maternal mortality in Spain and its association with country of origin: cross-sectional study during the period 1999-2015. BMC Public Health 2018; 18(1):1171.. Várias causas podem explicar essas disparidades, incluindo doenças pré-existentes ou outros fatores de risco, bem como diferenças no acesso e na adesão ao pré-natal. Diferenciais no acesso aos serviços de saúde também têm sido relatados, como no estudo de Ferreira e colaboradores3333 Ferreira EK, Almeida MF, Alencar GP, Silva ZP. Live births of immigrant mothers in Brazil: a population-based study. J Migration Health 2022;5:100108., que mostrou que, mesmo com o acesso gratuito via Sistema Único de Saúde, as mães imigrantes bolivianas realizam menor número de consultas de pré-natal e as iniciam mais tarde do que as mães brasileiras3333 Ferreira EK, Almeida MF, Alencar GP, Silva ZP. Live births of immigrant mothers in Brazil: a population-based study. J Migration Health 2022;5:100108..

O município de São Paulo apresenta excelente cobertura e qualidade dos registros de óbitos. Fator importante para a qualidade do preenchimento da declaração de óbito em São Paulo é o Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade (PRO-AIM), estruturado com base no acesso rápido, na melhoria da qualidade e na descentralização da informação produzida3434 Drumond M. Homicídios e desigualdades sociais na cidade de São Paulo: uma visão epidemiológica. Saude Soci 1999; 8(1):63-81.,3535 Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (SMS-SP). Coordenação de Epidemiologia e Informação (CEInfo). PRO-AIM Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade. [acessado 2021 nov 1]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/epidemiologia_e_informacao/mortalidade/index.php?p=29586
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/...
. Fruto desse trabalho, identificamos baixa proporção de causas mal definidas tanto para imigrantes como para nativos, quando comparada à média brasileira (7%), em 20103636 França E, Teixeira R, Ishitani L, Duncan BB, Cortez-Escalante JJ, Neto OLM, Szwarcwald CL. Causas mal definidas de óbito no Brasil: método de redistribuição baseado na investigação do óbito. Rev Saude Publica 2014; 48(4):671-681..

Não há consenso sobre a hipótese do efeito do imigrante saudável, que consiste em o imigrante ter uma melhor condição de saúde do que a população do país receptor. Alguns estudos demonstraram a presença desse efeito1212 Aldridge RW, Nellums LB, Bartlett S, Barr AL, Patel P, Burns R, Hargreaves S, Miranda JJ, Tollman S, Friedland JS, Abubakar I. Global patterns of mortality in international migrants: a systematic review and meta-analysis. Lancet 2018; 392(10164):2553-2566., porém não é em todos os locais que o mesmo é observado3737 Kennedy S, McDonald JT, Biddle N. The healthy immigrant effect and immigrant selection: evidence from four countries. Social and Economic Dimensions of an Aging Population Research Papers; McMaster University; 2006.

38 Moullan Y, Jusot F. Why is the 'healthy immigrant effect' different between European countries? Eu J Public Health 2014; 24(1):80-86.
-3939 Lu C, Ng E. Healthy immigrant effect by immigrant category in Canada. Health Rep 2019; 30(4):3-11., como na presente investigação. A escassez de estudos dificulta identificar se a migração em si melhora ou piora a saúde, isto é, se altera os diversos fatores de risco para a saúde em nível individual e populacional11 Abubakar I, Aldridge RW, Devakumar D, Orcutt M, Burns R, Barreto ML, Dhavan P, Fouad FM, Groce N, Guo Y, Hargreaves S, Knipper M, Miranda JJ, Madise N, Kumar B, Mosca D, McGovern T, Rubenstein L, Sammonds P, Sawyer SM, Sheikh K, Tollman S, Spiegel P, Zimmerman C, THE UCL - Lancet Commission on Migration and Health. THE UCL - Lancet Commission on Migration and Health: the health of a world on the move. Lancet 2018; 392(10164):2606:2654.. Os riscos à saúde dos migrantes são determinados por seu status pré-migração e fazem parte de uma complexa combinação de fatores biológicos e socioeconômicos desenvolvidos ao longo de suas vidas11 Abubakar I, Aldridge RW, Devakumar D, Orcutt M, Burns R, Barreto ML, Dhavan P, Fouad FM, Groce N, Guo Y, Hargreaves S, Knipper M, Miranda JJ, Madise N, Kumar B, Mosca D, McGovern T, Rubenstein L, Sammonds P, Sawyer SM, Sheikh K, Tollman S, Spiegel P, Zimmerman C, THE UCL - Lancet Commission on Migration and Health. THE UCL - Lancet Commission on Migration and Health: the health of a world on the move. Lancet 2018; 392(10164):2606:2654.. Novas pesquisas sobre o tema se justificam no município de São Paulo, que é uma área de alta mobilidade populacional no país, em cujo contexto mais recente a migração internacional readquiriu importância88 Yazaki LM, Ortiz LP, Almeida MF, Aranha V, Silva ZP. Indicadores de saúde reprodutiva e mortalidade dos bolivianos residentes na cidade de São Paulo. Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais; 2014 nov 24 a 28; São Pedro-SP..

Como limitações deste estudo, deve ser considerado que não se dispõe de dados sobre o tempo de imigração e residência no território e também a identificação de subgrupos de imigrantes, que podem ser mais vulneráveis, como os refugiados. Não se utilizou taxas de mortalidade, que medem melhor o risco de morte, em razão da falta de denominador para a população boliviana. Deve ser considerado que a lista de causas evitáveis pode variar conforme os avanços do conhecimento e do emprego de novas tecnologias e por isso deve ser sempre atualizada.

Em conclusão, os bolivianos apresentaram mortalidade mais jovem, perfil de causas de morte diferente do brasileiro e sem redução da proporção de causas potencialmente evitáveis, com destaque para o grupo de causas infecciosas e acidentes e violências. Diferenças na mortalidade evitável são um indicador de acesso e uso de serviços de saúde desiguais, assim como de condições de vida. O conhecimento do perfil de mortalidade pode auxiliar na elaboração de políticas voltadas para ações de prevenção e promoção da saúde nessa população e com isso evitar mortes precoces.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Jan 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2022
  • Aceito
    24 Ago 2022
  • Publicado
    26 Ago 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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