Prevalência e fatores associados à síndrome de burnout em profissionais da saúde indígena no Brasil

Joselly Aparecida da Cruz Ferraz Luciane Zanin Arlete Maria Gomes Oliveira Flávia Martão Flório Sobre os autores

Resumo

O objetivo foi investigar a prevalência da síndrome de burnout (SB) em profissionais de nível superior atuantes na saúde indígena no Brasil e fatores associados. Trata-se de um estudo observacional, transversal e analítico. O questionário foi aplicado (perfil e MBI-HSS) a 513 profissionais. A presença da SB foi identificada em 65% dos profissionais. Foi verificada maior chance de exaustão emocional entre os profissionais mais novos, com mais tempo de atuação na saúde indígena, em função assistencial e com menor nível de tranquilidade ao trabalhar durante a pandemia. Mais chance de apresentar baixa realização pessoal no trabalho foi observada entre os profissionais mais velhos, com menos tempo de atuação na saúde indígena, que estavam em atendimento clínico durante a pandemia e que relataram menor nível de tranquilidade ao trabalhar durante a pandemia. Maior chance de despersonificação em profissionais casados, em atendimento clínico durante a pandemia e com menor nível de tranquilidade ao trabalhar durante a pandemia. O estudo contribui com uma importante avaliação da existência de preditores da SB nos profissionais atuantes na saúde indígena.

Palavras-chave:
Esgotamento psicológico; Saúde do trabalhador; Saúde de populações indígenas

Introdução

A saúde indígena no Brasil é regulamentada pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS), incorporado ao SUS por meio da Lei nº 9.836/1999 e descrito na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI)11 Ministério da Saúde (MS). Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Brasília: MS; 2002., que contempla entre suas diretrizes a inserção da atenção primária nos territórios indígenas, em contextos interculturais, com garantia da autonomia de cuidado pelo respeito às especificidades de cada povo, incluindo seus saberes e práticas médicas, além de sua autonomia por meio do controle social e da formação de seus recursos humanos22 Mendes AM, Alfonso JR, Langdon EJ, Grisotti M, Martínez-Hernáez A. Representations and care practices of professionals regarding indigenous use of alcohol. Cien Saude Colet 2020; 25(5):1809-1818..

A implementação da PNASPI no Brasil, desde a sua criação no ano 2000 e sua aprovação em 200211 Ministério da Saúde (MS). Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Brasília: MS; 2002., vem apresentando desafios e mostra-se precária em sua concretização33 Mendes AM, Leite MS, Langdon EJ, Grisotti M. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2018; 42:e184., exigindo dos profissionais que nela atuam diferentes habilidades e recursos para o enfrentamento da realidade. A precariedade das estruturas de saúde, a escassez de insumos e equipamentos, a complexidade logística e a alta rotatividade de profissionais são fatores que impactam de forma negativa na qualidade da prestação de serviços de saúde dentro dos territórios indígenas33 Mendes AM, Leite MS, Langdon EJ, Grisotti M. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2018; 42:e184..

Neste contexto, a pandemia de COVID-19 levou ao agravamento da desestruturação da saúde indígena44 Ramos DP, Pimentel SK. Movimentos indígenas, pandemia e controle social: Estratégias de mobilização e enfrentamento da COVID-19 pelos povos indígenas no Brasil. Dilemas 2021; n. esp: 106. [acessado 2021 ago 3]. Disponível em: https://www.reflexpandemia2021.org/texto-106
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, não apenas pelos números de casos e óbitos e suas repercussões de ordem biomédica e epidemiológica, mas também pelos múltiplos e devastadores impactos e transformações sociais, econômicas, políticas e culturais provocados, representando uma combinação nociva que atua, em conjunto com o vírus, na constituição de ambientes de risco e vulnerabilidade55 Scopel D, Dias-Scopel R; Neves RDCM, Segata J. Os povos indígenas e a covid-19. Espaço Ameríndio 2021; 15(2):1-15..

A análise dos impactos desse cenário deve ser feita sob diferentes óticas, sendo oportuno e necessário um olhar também aos profissionais da saúde indígena, já que o processo de trabalho pode ter se tornado ainda mais desafiador e estressante. O agravamento da exposição crônica aos agentes estressores, aliados à incapacidade de adaptação e enfrentamento66 Lima AS, Farah BF, Bustamante-Teixeira MT. Análise da prevalência da síndrome de burnout em profissionais da atenção primária em saúde. Trab Educ Saude 2018 16(1):283-304., podem ter ocasionado vivências e exigido desses profissionais diferentes habilidades e recursos para o enfrentamento da singular realidade na saúde indígena, tão agravada com a pandemia.

A síndrome de burnout (SB), conhecida como síndrome de esgotamento profissional, é descrita como um processo de adoecimento psicofísico decorrente da exposição intensa ao estresse crônico no ambiente de trabalho77 Ferreira NN, Lucca SR. Burnout syndrome in nursing assistants of a public hospital in the state of São Paulo. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(1):68-79.. A SB é constituída por três dimensões: a exaustão emocional se relaciona ao relato da falta de energia e sentimento de esgotamento de recursos com relação ao trabalho, tendo como maior causa o conflito pessoal nas relações e a sobrecarga de trabalho; a despersonalização corresponde à dissimulação afetiva, ao distanciamento e tratamento impessoal dos pacientes, podendo apresentar sintomas como falta de comprometimento com os resultados, conduta voltada a si mesmo, alienação, ansiedade, irritabilidade e desmotivação; e a baixa realização profissional se caracteriza pela autoavaliação negativa, insatisfação com seu desenvolvimento e declínio no sentimento de competência e êxito.

A SB normalmente está associada a alta carga laboral, baixo controle sobre o processo de trabalho e pouco suporte da chefia e de colegas88 Theorell T, Karasek RA. Current issues relating to psychosocial job strain and cardiovascular disease research. J Occup Health Psychol 1998; 1(1):9-26.. Além desses aspectos, os efeitos negativos da pandemia de COVID-19 trouxeram novos fatores que podem aumentar o risco de esgotamento nos profissionais de saúde99 Franc-Guimond J, Hogues V. Burnout among caregivers in the era of the COVID-19 pandemic: Insights and challenges. Can Urol Assoc J. 2021; 15(6 Suppl. 1):s16-s19.,1010 Orrù G, Marzetti F, Conversano C, Vagheggini G, Miccoli M, Ciacchini R, Panait E, Gemignani A. Secondary traumatic stress and burnout in healthcare workers during COVID-19 outbreak. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(1):337.. Considerando que esta temática tem sido pouco abordada entre os trabalhadores da saúde indígena, o presente estudo buscou investigar a prevalência da síndrome de burnout (SB) em profissionais de nível superior atuantes na saúde indígena no Brasil e fatores associados.

Métodos

Trata-se de um estudo observacional, transversal, quantitativo e analítico desenvolvido com profissionais de nível superior atuantes na saúde indígena brasileira. A coleta de dados ocorreu entre junho e dezembro de 2020, período concomitante a uma fase crítica da pandemia de COVID-19 na população indígena, tanto em relação ao número de novos casos quanto ao de óbitos, que superavam em muitas vezes as taxas verificadas na população não-indígena do país1111 Alves JD, Abade AS, Peres WP, Borges JE, Santos SM, Scholze AR. Impact of COVID-19 on the indigenous population of Brazil: a geo-epidemiological study. Epidemiol Infect 2021; 149:e185..

Considerando a estimativa de que existiam no Brasil, em 2019, aproximadamente 7.000 profissionais de nível superior vinculados à saúde indígena e a frequência de 25% de respondentes em pesquisas que empregaram a mesma metodologia1212 Marconi MA, Lakatos EM. Técnicas de pesquisa. São Paulo: Atlas; 2002., estimou-se que a amostra mínima necessária ao estudo fosse de 438 profissionais respondentes, lotados nas Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI), nas Casas de Apoio a Saúde Indígena (CASAIs), nos Polos-Base e nas sedes dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) do Brasil.

O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) no Brasil é formado pelos 34 DSEIs coordenados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), sob o Ministério da Saúde (MS). Os DSEIs representam as unidades gestoras descentralizadas do SasiSUS, estrategicamente definidas por critérios territoriais baseados na ocupação geográfica das comunidades indígenas e possuem autonomia administrativa, orçamentária e financeira, além de responsabilidade sanitária. Os DSEIs se responsabilizam pela Atenção Primaria à Saúde em seus territórios, tendo como estrutura de atendimento as Unidades Básicas de Saúde Indígenas, os Polos-Base e as Casas de Apoio a Saúde Indígena (CASAI). Os Polos-Base representam a primeira referência para os agentes indígenas de saúde que atuam nas aldeias e contam com atuação de equipe multidisciplinar de saúde indígena. As CASAIs são locais de recepção e apoio ao indígena, que vem referenciado da aldeia/Polo-Base, tendo como função facilitar o acesso da população indígena ao atendimento secundário e/ou terciário, servindo de apoio entre a aldeia e a rede de serviços do SUS.

O recrutamento dos profissionais que participaram do estudo foi realizado com base em diferentes estratégias, incluindo a divulgação pelas redes sociais ligadas à Saúde Indígena, por grupos nacionais de trabalhadores da saúde indígena e por meio da coordenação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), por correio eletrônico e aplicativo comunicador instantâneo (WhatsApp).

Ao serem convidados a participar, os profissionais de nível superior receberam, além da explicação sobre a pesquisa, um link para acesso ao formulário do Google Forms, possibilitando a participação dos interessados imediatamente ao receber o convite. O link permitia acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e se houvesse o aceite, o instrumento de pesquisa era liberado para preenchimento.

Para que houvesse um controle individual de envio das respostas, o e-mail individual de cada participante foi coletado em uma das respostas ao instrumento, fazendo com que os resultados individuais pudessem ser enviados aos participantes.

A partir da divulgação inicial da pesquisa aos profissionais da saúde indígena, foram enviados lembretes nos diversos canais citados, por inúmeras vezes, até que os aceites de participação cessaram.

Os dados foram coletados por meio de um questionário autoadministrado padronizado, com resposta obrigatória a todas as questões e dividido em duas seções. A primeira seção, destinada à coleta de informações sobre os fatores associados à SB (variáveis independentes), abordou características sociodemográficas e ocupacionais que incluíram: idade, sexo, estado civil, se possui filhos, área e nível de formação, local de trabalho (aldeia; CASAI; polo; DSEI [sede]; SESAI [sede]), unidade federativa do vínculo com a saúde indígena, tempo de vínculo na saúde indígena (menos de 12 meses; de 1 a 5 anos; de 6 a 10 anos e acima de 10 anos, função na saúde indígena (assistencial; administrativa), renda familiar mensal (R$ 2.000 a R$ 6.000; R$ 7.000 a R$ 9.000; R$ 10.000 a R$ 15.000 e acima de R$ 15.000), além da situação de trabalho na pandemia (Você está em atendimento clínico durante a pandemia? Sim; não/Que nota você dá para nível de tranquilidade que você sente ao trabalhar durante a pandemia: 0 - sem tranquilidade nenhuma; e 10 -tranquilidade completa).

A segunda seção foi composta pelo questionário validado de avaliação psicológica Malasch Burnout Inventory (MBI), versão Maslach Burnout Inventory-Human Service Survey - HSS1313 Maslach C, Jackson SE. The measurement of experience burnout. J Organ Behav 1981; 2:99-113.,1414 Maslach C, Jackson S. Maslach Burnout Inventory manual. Palo Alto: Consulting Psychologist Press; 1986., empregado para caracterização da SB em profissionais da área de serviços humanos e de saúde, adaptado por Tamayo (1997)1515 Tamayo RM. Relação entre a síndrome de Burnout e os valores organizacionais no pessoal de enfermagem de dois hospitais públicos [Dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 1997.. O MBI-HSS é um inventário autoaplicável, composto por 22 itens, que avaliam por meio de uma escala do tipo Likert reduzida (1- nunca, 2 - raramente, 3 - algumas vezes, 4 - frequentemente, 5 - sempre), as três dimensões estabelecidas pelo modelo teórico de Maslach sobre como o indivíduo vivencia seu trabalho: exaustão emocional - EE (sentimentos de fadiga e exaustão no trabalho, com nove itens - questões 1, 2, 3, 6, 8, 13, 14, 16 e 20), realização pessoal no trabalho - RP (sentimentos de incompetência, com oito itens - questões 4, 7, 9, 12, 17, 18, 19 e 21) e despersonalização - DE (sentimentos de insensibilidade e afastamento dos clientes ou do serviço, com cinco itens - questões 5, 10, 11, 15 e 22). Os escores obtidos para cada uma das dimensões, além do escore total do MBI-HSS, constituíram as variáveis dependentes do estudo.

Para a análise da prevalência da SB, utilizou-se como principal base critérios já estabelecidos1616 Shirom A. Burnout in work organizations. In: Cooper CL, Robertson I, editors. International Review of Industrial and Organizational Psychology. New York: Wiley & Sons; 1989. p. 25-48.

17 Gil-Monte PR. El síndrome de que-marse por el trabajo (síndrome de burnout) en profesionales de enfermería. InterAção Psy 2003; 1(1):19-33.
-1818 Batista JB, Carlotto MS, Coutinho AS, Augusto LG. Prevalência da síndrome de burnout e fatores sociodemográficos e laborais em professores de escolas municipais da cidade de João Pessoa, PB. Rev Bras Epidemiol 2010; 13(3):502-512., e os indivíduos que apresentaram, nas dimensões EE e DE, a média das opções de resposta igual ou superior a “frequentemente” sinalizam a presença da SB. Na dimensão RP isso ocorre com valores iguais ou inferiores a 4 na escala Likert. Assim, nas dimensões EE e DE altas pontuações e na dimensão RP, baixas pontuações se relacionam à predisposição à SB1414 Maslach C, Jackson S. Maslach Burnout Inventory manual. Palo Alto: Consulting Psychologist Press; 1986.. A presença de alteração em ao menos uma das dimensões avaliadas caracterizou, neste estudo, a presença da SB.

Conforme orientam os criadores do inventário, avaliou-se cada dimensão individualmente1313 Maslach C, Jackson SE. The measurement of experience burnout. J Organ Behav 1981; 2:99-113.. Inicialmente, foram feitas análises descritivas das características dos respondentes e das respostas ao instrumento da pesquisa. As associações das variáveis independentes com os escores das dimensões e o escore total do instrumento foram analisadas por modelos de regressão logística simples e múltiplos. Para isso, os escores de cada dimensão e total foram classificados em alto e baixo, pela mediana, tomando como referência o padrão de resposta da própria amostra1919 Tamayo MR. Burnout: implicações das fontes organizacionais de desajuste indivíduo-trabalho em profissionais da enfermagem. Psicol Reflex Crit 2009; 22(3):474-482.. As variáveis com p < 0,20 nos modelos simples foram testadas nos modelos múltiplos, permanecendo nos modelos finais aquelas com p ≤ 0,05 após os ajustes para as demais variáveis do modelo. Foram estimados os odds ratio brutos e ajustados com os intervalos de 95% de confiança. O ajuste dos modelos foi avaliado pelo AIC (critério de informação de Akaike). Todas as análises foram realizadas no programa R2020 R Core Team. R: A language and environment for statistical computing. Vienna: R Foundation for Statistical Computing; 2020, com nível de significância de 5%.

O estudo teve certificação de aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), sob o parecer nº 3.981.718. Foram consideradas todas as normas éticas, atendendo à Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados

A amostra final do estudo foi composta por 513 profissionais. Na Tabela 1 é apresentada a caracterização sociodemográfica e ocupacional dos respondentes. Nota-se que 63,0% dos respondentes eram do sexo feminino, 47,6% com idade entre 29 e 39 anos, 40,7% eram casados, 56,1% possuíam filhos, 63,7% eram enfermeiros, 46,4% trabalhavam na saúde indígena entre um e cinco anos, 60,8% tinham função assistencial e 76,6% estavam em atendimento clínico durante a pandemia. A minoria dos respondentes (2,1%) relatou total tranquilidade para trabalhar na pandemia.

Tabela 1
Caracterização sociodemográfica e ocupacional da amostra de profissionais de nível superior atuantes na saúde indígena no Brasil (n = 513).

No que se refere aos resultados da avaliação das dimensões do MBI-HSS, verificou-se que 4,9% dos profissionais apresentaram despersonalização, 13,8% exaustão emocional e 61% baixa realização pessoal no trabalho, o que resultou em uma prevalência de 65% dos profissionais com ao menos uma das dimensões alteradas, caracterizando a presença da SB.

Em relação às dimensões do instrumento, os valores mínimo, máximo e da mediana foram respectivamente os seguintes: exaustão emocional (mín = 1,0; máx = 4,9 e med = 2,9); despersonalização (mín = 1,0; máx = 4,8 e med = 2,6) e realização profissional (mín = 1,0; máx = 4,5 e med = 2,8). Para o instrumento completo, os valores foram: mín = 1,0; máx = 4,6 e med = 2,8. Na Tabela 2 são apresentados os resultados do MBI-HSS, considerando todas as questões e cada uma das dimensões avaliadas.

Tabela 2
Distribuição das respostas dos profissionais da saúde indígena no Questionário Maslach Burnout Inventory (MBI-HSS) n = 513.

Como pode ser observado na Tabela 3, nas análises brutas verificou-se associação da exaustão emocional com idade, formação do profissional, função, estar em atendimento clínico durante a pandemia e nível de tranquilidade ao trabalhar durante a pandemia (p < 0,05). A despersonalização apresentou associação com formação, função na saúde indígena, estar em atendimento clínico e nível de tranquilidade (p < 0,05). Já a baixa realização pessoal no trabalho, nas análises brutas, apresentou associação com sexo, formação, tempo de atuação e função na saúde indígena, estar em atendimento clínico e nível de tranquilidade (p < 0,05). O escore total se associou a formação do profissional, tempo de atuação e função na saúde indígena, atendimento clínico durante a pandemia e nível de tranquilidade ao trabalhar durante a pandemia (p < 0,05).

Tabela 3
Análises brutas das associações com os escores de síndrome de burnout - Maslach Burnout Inventory - Human Services Survey (MBI-HSS) em profissionais da saúde indígena, n = 513.

Nas análises brutas, ainda é possível observar que as associações de exaustão emocional com sexo e com o tempo que atua na saúde indígena apresentaram p-valor < 0,20, então foram também estudadas no modelo múltiplo, juntamente com as variáveis com associações significativas. O mesmo ocorreu na associação de despersonificação com estado civil e tempo que atua na saúde indígena, e associação do escore total com idade.

A Tabela 4 apresenta a análise ajustada das variáveis que permaneceram no modelo final após o ajuste para as demais variáveis. Observou-se maior chance de exaustão emocional entre os profissionais com até 39 anos, com mais tempo de atuação na saúde indígena, com função assistencial e com menor nível de tranquilidade ao trabalhar durante a pandemia. No domínio despersonalização, maiores escores foram observados entre os profissionais casados, em atendimento clínico durante a pandemia e com menor nível de tranquilidade ao trabalhar durante a pandemia.

Tabela 4
Análises ajustadas das associações com os escores de síndrome de burnout - Maslach Burnout Inventory - Human Services Survey (MBI-HSS), adaptado por Tamayo (1997), em profissionais da saúde indígena, n = 513.

Maior chance de apresentar baixa realização pessoal no trabalho foi observada entre os profissionais com mais de 39 anos, enfermeiros, dentistas, nutricionistas e médicos, em relação às demais formações, com menos tempo de atuação na saúde indígena, em atendimento clínico durante a pandemia e com menor nível de tranquilidade ao trabalhar durante a pandemia.

Apresentam mais chance de apresentar a SB os enfermeiros, dentistas e nutricionistas, os profissionais que atuam há mais tempo na saúde indígena, que estavam em atendimento clínico e que relataram menor nível de tranquilidade ao trabalhar durante a pandemia.

Os dados completos obtidos pelo presente estudo estão disponíveis em material suplementar: https://doi.org/10.48331/scielodata.EV93NM.

Discussão

Uma síntese dos resultados indica a presença da SB na maioria dos profissionais avaliados, sendo que a baixa realização pessoal no trabalho foi a dimensão que mais contribuiu para a caracterização da presença da síndrome, e que fatores sociodemográficos e laborais impactaram nas dimensões do MBI-HSS, justificando a necessidade de uma ação focada no combate aos fatores deflagradores da síndrome, o que demanda estudo quanto às condições de trabalho a que esses profissionais estão submetidos, além do esforço de buscar mecanismos que auxiliem no enfrentamento de problemas relacionados ao trabalho.

Vale esclarecer que a presença da SB pode variar de acordo com a definição ou metodologia adotada2121 Porciuncula AM, Venâncio SA, Silva CMFPD. Burnout syndrome in Family Health Strategy managers. Cien Saude Colet 2020; 25(4):1555-1566. e que o MBI-HSS não é um questionário utilizado para o seu diagnóstico, mas sim um indicador que sinaliza a predisposição pessoal ao desenvolvimento da síndrome2222 Schaufeli WB, Leiter MP, Maslach C. Burnout: 35 years of research and practice. Career Dev Int 2009; 14(3):204-220., contexto este considerado para a identificação da prevalência da SB no presente estudo.

A frequência de SB identificada nos profissionais da saúde indígena (65%) está entre as maiores relatadas em trabalhadores da saúde, cuja variação identificada na literatura foi de 5,9%77 Ferreira NN, Lucca SR. Burnout syndrome in nursing assistants of a public hospital in the state of São Paulo. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(1):68-79. a 68,1%2323 Moura RS, Carvalho Saraiva FJ, Santos RM, Silva KRLR, Silva NAR, Albuquerque WDM. Estrés, burnout y depresión en los profesionales de enfermería de las unidades de cuidados intensivos. Enfermeria Glob 2019;18(2):79-123.. Chama atenção o fato de que os profissionais que participaram do presente estudo são vinculados a serviços de gestão e assistência da atenção primária e a prevalência de SB neles identificada está próxima à verificada em profissionais que trabalham nas unidades de terapia intensiva, ligados diretamente à assistência de enfermagem de forma ininterrupta a pacientes em situações graves2323 Moura RS, Carvalho Saraiva FJ, Santos RM, Silva KRLR, Silva NAR, Albuquerque WDM. Estrés, burnout y depresión en los profesionales de enfermería de las unidades de cuidados intensivos. Enfermeria Glob 2019;18(2):79-123.. O momento de coleta dos dados do presente estudo foi coincidente com uma fase grave da pandemia de COVID-19 na população indígena1111 Alves JD, Abade AS, Peres WP, Borges JE, Santos SM, Scholze AR. Impact of COVID-19 on the indigenous population of Brazil: a geo-epidemiological study. Epidemiol Infect 2021; 149:e185., o que pode ter contribuído para esse achado e para o fato de que os profissionais que estavam realizando atendimento clínico no período da pandemia, além daqueles que relataram menor nível de tranquilidade ao trabalhar durante este período, foram os que apresentaram os piores resultados nas dimensões do MBI-HSS e em seu escore total.

Estudos que analisaram a predisposição dos profissionais da área da saúde para o desenvolvimento da SB durante a pandemia mostraram que a falta de recursos, o alto número de mortes e de infectados, o medo de ser infectado e de infectar familiares e amigos1010 Orrù G, Marzetti F, Conversano C, Vagheggini G, Miccoli M, Ciacchini R, Panait E, Gemignani A. Secondary traumatic stress and burnout in healthcare workers during COVID-19 outbreak. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(1):337.,2424 Zhang WR, Wang K, Yin L, Zhao WF, Xue Q, Peng M, Min BQ, Tian Q, Leng HX, Du JL, Chang H, Yang Y, Li W, Shangguan FF, Yan TY, Dong HQ, Han Y, Wang YP, Cosci F, Wang HX. Mental health and psychosocial problems of medical health workers during the COVID-19 epidemic in China. Psychother Psychosom 2020; 89(4):242-250.

25 Schmidt B, Crepaldi MA, Bolze DAS, Silva LN, Demenech LM. Impactos na saúde mental e intervenções psicológicas diante da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Estud Psicol 2020; 37:e200063)

26 Guajajara MJSB, Santos SC. Tecidos, linhas e agulhas: mulheres indígenas e a" costura" de interlocuções no contexto da pandemia. Vukápanavo: Revista Terena 2020; 3:103.

27 Souza FCC, Souza MGA. O direito de participação ativa e a elaboração de políticas públicas de contenção da Covid-19 nas populações indígenas. Vukápanavo: Revista Terena 2020; 4:183.

28 Andrade RAO, Machado A. Políticas públicas e etno-estratégias para saúde indígena em tempos de Covid-19. Vukápanavo: Revista Terena 2020; 4:261.

29 Herbetta A, Pocuhto T, Pimentel Silva MDS, Guajajara C. Urgent considerations on the relationship between the advance of COVID-19 in Indigenous territories in Brazil and the Impacts of monoepistemic public policies. Front Sociol 2021; 6:623656.

30 Santos VS, Araújo AAS, Oliveira JR, Quintans-Júnior LJ, Martins-Filho PR. COVID-19 mortality among Indigenous people in Brazil: a nationwide register-based study. J Public Health (Oxf) 2021; 43(2):e250-e251.

31 Silva MG, Pereira PMB, Portela WF, Daros GC, Barbosa CRA, Vanassi BM, Parma GOC, Bitencourt RM, Iser BPM. Epidemiology of COVID-19 Among Indigenous Populations in Brazil. J Racial Ethn Health Disparities 2022; 9(3):960-966.

32 Diehl EE, Pellegrini MA. Saúde e povos indígenas no Brasil: o desafio da formação e educação permanente de trabalhadores para atuação em contextos interculturais. Cad Saude Publica 2014; 30(4):867-874.

33 Wisetborisut A, Angkurawaranon C, Jiraporncharoen W, Uaphanthasath R, Wiwatanadate P. Shift work and burnout among health care workers. Occup Med (Lond) 2014; 64(4):279-86.
-3434 Freitas RF, Barros IMD, Miranda MAF, Freitas TF, Rocha JSB, Lessa ADC. Preditores da síndrome de burnout em técnicos de enfermagem de unidade de terapia intensiva durante a pandemia da COVID-19. J Bras Psiquiatr 2021; 70(1):12-20. foram os fatores que mais contribuíram para o esgotamento profissional, que, concomitantes à sobrecarga de trabalho, estresse e esgotamento físico, ajudam a justificar a prevalência de SB encontrada. Nesse sentido, houve relatos na saúde indígena de que, pela falta de recursos disponibilizados aos profissionais33 Mendes AM, Leite MS, Langdon EJ, Grisotti M. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2018; 42:e184., indígenas confeccionaram máscaras e toucas para os profissionais de saúde aldeados, em vista da demora da SESAI em suprir a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs)2626 Guajajara MJSB, Santos SC. Tecidos, linhas e agulhas: mulheres indígenas e a" costura" de interlocuções no contexto da pandemia. Vukápanavo: Revista Terena 2020; 3:103.. Outro fator estressor a ser ponderado foi o peso atribuído pelas comunidades aos profissionais da saúde indígena quanto a eles serem um dos principais vetores de transmissão da COVID-19 aos povos indígenas2727 Souza FCC, Souza MGA. O direito de participação ativa e a elaboração de políticas públicas de contenção da Covid-19 nas populações indígenas. Vukápanavo: Revista Terena 2020; 4:183.,3535 Palamim CVC, Ortega MM, Marson FAL. COVID-19 in the Indigenous Population of Brazil. J Racial Ethn Health Disparities 2020; 7(6):1053-1058., situação que pode ter aumentado a insegurança e as tensões interpessoais no cotidiano do serviço, reverberando na exaustão emocional.

Os níveis de burnout estão diretamente relacionados à carga horária de trabalho, e profissionais que têm cargas de trabalho entre 40 e 50 horas apresentam maior predisposição a desenvolverem sintomas da síndrome3333 Wisetborisut A, Angkurawaranon C, Jiraporncharoen W, Uaphanthasath R, Wiwatanadate P. Shift work and burnout among health care workers. Occup Med (Lond) 2014; 64(4):279-86.. Na saúde indígena, a escala de trabalho possui particularidades que a diferencia da escala dos trabalhadores da saúde da população não indígena, podendo ser de 15 até 30 dias de trabalho consecutivos, a depender do DSEI de referência, da dificuldade e do tipo de acesso ao território, tempo de locomoção, estrutura de alojamento, das ações que serão desenvolvidas e dos insumos a serem utilizados. Além disso, na pandemia a precariedade das condições de trabalho na saúde indígena, relacionadas principalmente à já abordada escassez de EPIs nos serviços de saúde33 Mendes AM, Leite MS, Langdon EJ, Grisotti M. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2018; 42:e184.,2626 Guajajara MJSB, Santos SC. Tecidos, linhas e agulhas: mulheres indígenas e a" costura" de interlocuções no contexto da pandemia. Vukápanavo: Revista Terena 2020; 3:103.,3434 Freitas RF, Barros IMD, Miranda MAF, Freitas TF, Rocha JSB, Lessa ADC. Preditores da síndrome de burnout em técnicos de enfermagem de unidade de terapia intensiva durante a pandemia da COVID-19. J Bras Psiquiatr 2021; 70(1):12-20. e ao aumento do número de afastamentos profissionais, levaram ao prolongamento de muitas escalas de trabalho, o que pode ter contribuído para os achados do presente estudo.

É nesse contexto que se deve ponderar o achado contundente de que profissionais casados apresentaram maior chance de despersonalização. Embora haja relatos de que o casamento se associe a uma maior satisfação com o trabalho, pela possibilidade de conversar com entes queridos, levando ao alívio do estresse e ao aumento da resiliência das pessoas3636 Son DM, Ham OK. Influence of group resilience on job satisfaction among Korean nurses: A cross-sectional study. J Clin Nurs 2020; 29:3473-3481.,3737 Puhanić P, Erić S, Talapko J, Škrlec I. Job satisfaction and burnout in Croatian physiotherapists. Healthcare (Basel) 2022; 10(5):905., o contexto singular do presente estudo pode ter resultado na necessidade de dissimulação afetiva como estratégia de autoproteção e de proteção da própria família, além do medo de levar a doença ao cônjuge e da insatisfação com o prolongamento forçado das escalas de trabalho.

Há um consenso entre os movimentos indígenas de que o governo federal não tomou as medidas adequadas em relação ao avanço da pandemia nos territórios indígenas, já que providências de apoio, como testagem em massa e cessão de equipamentos e profissionais, não foram implementadas a tempo, sendo portanto atribuído aos profissionais de saúde nos territórios o protagonismo e a responsabilidade pelas principais ações de controle da pandemia2929 Herbetta A, Pocuhto T, Pimentel Silva MDS, Guajajara C. Urgent considerations on the relationship between the advance of COVID-19 in Indigenous territories in Brazil and the Impacts of monoepistemic public policies. Front Sociol 2021; 6:623656.. Por essa razão, a equipe de saúde indígena assumiu desde o início a liderança no enfrentamento à pandemia, sendo responsável tanto pelo atendimento dos casos leves COVID-19 quanto pelo manejo de casos graves e a identificação da necessidade de tratamentos de alta complexidade com evolução para a síndrome respiratória aguda grave2828 Andrade RAO, Machado A. Políticas públicas e etno-estratégias para saúde indígena em tempos de Covid-19. Vukápanavo: Revista Terena 2020; 4:261..

Na presente pesquisa, constatou-se que médicos, enfermeiros, dentistas e nutricionistas apresentam mais chance de baixa realização pessoal no trabalho do que o grupo classificado como demais profissionais. Destaca-se que, pela lógica da atenção à saúde demandada por tais áreas de formação, o volume de trabalho aumentou mais ainda na fase em que o estudo foi realizado, com a necessidade de prevenir e tratar a COVID-19 por meio da proposição de práticas de cuidado interculturais que colocassem os avanços da medicina ocidental em diálogo com as concepções tradicionais de doença e de cura de cada povo, pautando o isolamento social em termos culturalmente apropriados à cada realidade cultural. Como já abordado, apesar do protagonismo assumido pelos profissionais de saúde diretamente envolvidos no atendimento clínico durante a pandemia, a coleta de dados foi concomitante a uma fase muito crítica da pandemia1111 Alves JD, Abade AS, Peres WP, Borges JE, Santos SM, Scholze AR. Impact of COVID-19 on the indigenous population of Brazil: a geo-epidemiological study. Epidemiol Infect 2021; 149:e185., o que pode ter resultado, por parte desses profissionais, na avaliação negativa de seu trabalho, suas habilidades e em uma diminuição da autoestima, além da percepção de que os objetivos de seu trabalho não estavam sendo alcançados.

Vale contextualizar que a deterioração das condições de trabalho na saúde indígena foi agravada pela redução dos investimentos do Programa Mais Médicos, o que resultou, em 2019, na demissão de milhares de profissionais, impactando principalmente as equipes de comunidades indígenas de áreas mais remotas3030 Santos VS, Araújo AAS, Oliveira JR, Quintans-Júnior LJ, Martins-Filho PR. COVID-19 mortality among Indigenous people in Brazil: a nationwide register-based study. J Public Health (Oxf) 2021; 43(2):e250-e251.. Esse fato, somado à evidência de que houve maior eficácia no controle da propagação do vírus nas comunidades indígenas que eram próximas de um serviço de serviço de saúde mais estruturado, apesar de serem mais povoadas3131 Silva MG, Pereira PMB, Portela WF, Daros GC, Barbosa CRA, Vanassi BM, Parma GOC, Bitencourt RM, Iser BPM. Epidemiology of COVID-19 Among Indigenous Populations in Brazil. J Racial Ethn Health Disparities 2022; 9(3):960-966., podem ajudar a compreender o porquê de enfermeiros, dentistas e nutricionistas, profissionais em atendimento clínico na pandemia e os que relataram menor tranquilidade para trabalhar nesse momento apresentaram maior chance de apresentar a SB segundo o modelo final. Serviços desestruturados, equipes incompletas e escalas de trabalho desequilibradas levaram ao limite os profissionais que restaram na linha de frente de assistência às aldeias.

O tempo de atuação na saúde indígena foi a variável temporal utilizada neste estudo e verificou-se que o maior tempo de atuação na saúde indígena aumentou a chance de exaustão emocional e de SB. A respeito desse achado, pode-se ressaltar que, apesar do contexto pandêmico em que o estudo foi realizado, o trabalho na saúde indígena por si só demanda dos profissionais tarefas e habilidades específicas, com ênfase na interculturalidade, que viabilizem o conhecimento do modo de vida da comunidade indígena e o respeito às suas práticas e costumes. Uma das diretrizes da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas11 Ministério da Saúde (MS). Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Brasília: MS; 2002. se refere à “preparação de recursos humanos para atuação em contexto intercultural”, o que inclui adequar as ações dos profissionais e serviços às especificidades culturais dos povos indígenas para que os serviços de saúde sejam permeáveis às práticas e saberes tradicionais indígenas. A formação em saúde, tradicionalmente pautada no modelo biomédico imperante, mostra-se ainda mais limitada na saúde indígena, na qual se fazem necessários conhecimentos mais específicos e culturais sobre os povos com quem se trabalha3232 Diehl EE, Pellegrini MA. Saúde e povos indígenas no Brasil: o desafio da formação e educação permanente de trabalhadores para atuação em contextos interculturais. Cad Saude Publica 2014; 30(4):867-874.. É importante ponderar que tais resultados vão de encontro ao fato já identificado de que trabalhar há mais tempo na Estratégia Saúde da Família com populações não indígenas permitiu que os profissionais desenvolvessem métodos e habilidades para lidar com as circunstâncias adversas do trabalho, permitindo maior resiliência às situações estressantes3838 Tomaz HC, Tajra FS, Lima ACG, Santos MM. Síndrome de burnout e fatores associados em profissionais da Estratégia Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2020; 24(Supl. 1):e190634. Essa diferença pode estar relacionada ao contexto temporal e geográfico em que os estudos foram realizados e às diferenças intrínsecas dos processos de trabalho envolvendo as populações indígena e não indígena.

Por outro lado, o menor tempo de atuação na saúde indígena mostrou-se associado à realização profissional mais baixa, e nesse sentido vale considerar que expectativas podem ter sido frustradas nos profissionais com menos tempo de atuação, seja pela falta de experiência e adaptação à realidade do trabalho em território indígena, seja pelo fato de que os profissionais com maior tempo de carreira são os que geralmente têm menor carga horária semanal, trabalham mais em tarefas administrativas e gerenciais e se dedicam menos ao atendimento direto de pacientes3838 Tomaz HC, Tajra FS, Lima ACG, Santos MM. Síndrome de burnout e fatores associados em profissionais da Estratégia Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2020; 24(Supl. 1):e190634.

A baixa realização profissional ocorre devido à cobrança pessoal do trabalhador, associada à maior frequência nos sentimentos de desagrado, frustação e incompetência em suas atividades profissionais3939 Barcellos RDA, Lucena MAGD, Vieira JLDC. A Síndrome de Burnout e suas repercussões no cotidiano de trabalho do enfermeiro. Res Soc Dev 2021; 10(4):e38510414352. e na saúde indígena. A realidade vivenciada pela equipe multiprofissional vai além da necessidade de organização e execução das ações de atenção primária, uma vez que a realidade da APS na maioria das aldeias em território brasileiro é impactada pela dificuldade de acesso ao território, pela falta de estrutura para o desenvolvimento de atividades, pela falta de combustível para o transporte dos profissionais e pela insuficiência nos insumos. Além disso a insuficiência de recursos humanos e a alta rotatividade dos profissionais que compõem a equipe multiprofissional sobrecarregam os profissionais vinculados à saúde indígena, aumentando tanto o tempo quanto a frequência de sentimentos relacionados ao estresse no trabalho.

Com o passar dos anos, a insatisfação e a baixa expectativa de mudanças nas possibilidades de melhoria na qualidade do serviço prestado podem contribuir para a baixa satisfação profissional. A contratação de profissionais na saúde indígena se dá por meio de processo seletivo para vínculo empregatício por tempo determinado, por meio de conveniadas que são entidades privadas sem fins lucrativos na área de saúde4040 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena - SESAI - editais disponíveis. 2021. [acessado 2021 nov 13]. Disponível em: http://www.saudeindigena.net.br/coronavirus/listEditais.php
http://www.saudeindigena.net.br/coronavi...
. A ausência de concursos públicos é uma deficiência na saúde indígena, já que no modelo vigente de contratação é difícil a coibição das interferências políticas, e a fragilidade do vínculo pode contribuir para a insegurança profissional, assim como para a grande rotatividade dos trabalhadores do SasiSUS. É importante enfatizar também que a particularidade do trabalho na saúde indígena é por si só desgastante, em vista de a maioria dos profissionais atuantes terem que trabalhar em locais que, na maioria das vezes, são isolados e distantes do local de residência. Outros fatores que tornam singular a atuação na saúde indígena são a ampla gama de contextos e nuances culturais nas quais os profissionais têm de se envolver4141 Albuquerque FJB, Melo CF, Araújo Neto JL. Avaliação da síndrome de burnout em profissionais da Estratégia Saúde da Família da capital paraibana. Psicol Reflex Crit 2012; 25(3):542-549..

É necessário levar em consideração que a sobrecarga quantitativa e qualitativa só representa um problema e fator de risco para o desenvolvimento da SB nos casos em que o indivíduo tem pouco tempo para se recuperar de um evento traumático/estressante4242 Maslach C, Leiter MP. Early predictors of job burnout and engagement. J Appl Psychol 2008; 93(3):498-512.. Nesse sentido, afirma-se que este é o contexto enfrentado pela grande maioria dos profissionais de saúde que atuaram na pandemia, não importando o local de trabalho. Tais condições desfavoráveis vivenciadas, aliadas às necessárias condutas pessoais na pandemia, restringiram a possibilidade de realização de atividades fora do trabalho, sejam elas sociais, culturais, de lazer ou desportivas, e é notório que o exercício da atividade laboral na área de saúde requer boa saúde física e mental.

Quanto às limitações de estudo, é necessário pontuar que, como qualquer estudo com amostragem não probabilística, a generalização dos resultados obtidos deve ser considerada com cautela. O estudo utilizou medidas de autorrelato, o que torna os resultados suscetíveis à desejabilidade social, porém na atualidade não se dispõe de outros métodos para a avaliação dessas variáveis. Ainda, a presente investigação aplicou um delineamento transversal, o que restringe a possibilidade de inferir causalidade a partir das associações averiguadas entre as variáveis estudadas. Apesar de tais limitações, o presente estudo traz informações importantes sobre as condições de saúde dos profissionais da saúde indígena que ainda não foram abordadas em outras pesquisas, com a ressalva de que a fase da coleta de dados pode ter potencializado os resultados encontrados, valorizando a necessidade de um olhar perene sobre as condições de trabalho desses profissionais.

O ônus de um profissional que atua em áreas precárias, embora não possa necessariamente ser caracterizado como maior, é diferente e mais delicado do que o ônus de profissionais que atuam em áreas de saúde urbanizadas e com infraestrutura mais adequada. Assim, quanto a possíveis rumos de novos estudos, sugere-se que se aprofunde o olhar sobre as situações a que os profissionais da saúde que atuam em áreas indígenas são submetidos, em especial quando a situação relacionada à COVID-19 estiver completamente superada.

Conclusão

A prevalência de SB identificada entre os profissionais de saúde que atuam na saúde indígena foi impactante. A idade e estado civil do profissional, a área de formação, o tempo de atuação na saúde indígena, ser da assistência e relatar menor nível de tranquilidade ao trabalhar durante a pandemia foram fatores que se associaram à sua ocorrência.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Jan 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2021
  • Aceito
    05 Ago 2022
  • Publicado
    07 Ago 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br