A bioética em tempos de emergência sanitária

Humberto Costa Sobre o autor

O artigo se propõe a analisar os dilemas morais e conflitos éticos relacionados à pandemia de COVID-19 no país, com foco nos trabalhadores e no trabalho em saúde, utilizando-se do referencial teórico da bioética, definida como uma “ética aplicada, preocupada em analisar os argumentos morais a favor e contra determinadas práticas que afetam a qualidade de vida e o bem-estar dos humanos e dos outros seres vivos e a qualidade dos seus ambientes, e em tomar decisões baseadas nestas análises”11 Rego S. Contribuições da bioética para a saúde pública. Cad Saude Publica 2007; 23(11):2530-2531..

Ao resgatar documentos e resultados de pesquisas que abordaram tais conflitos, o autor oferece uma visão panorâmica de um tema atual e insuficientemente explorado na saúde coletiva - o debate das questões bioéticas em momentos de emergências sanitárias. Cita, como exemplo, o maior impacto da pandemia sobre os chamados “trabalhadores invisíveis da saúde”; o assédio aos trabalhadores por planos de saúde ao impor a obrigatoriedade da prescrição do “kit covid”, inclusive com envio de medicamentos diretamente à casa dos usuários; a realização de pesquisas sem aprovação de conselhos de ética; a manipulação de dados de atestados de óbitos e a quebra de sigilo de dados de pacientes. Trazem ainda o relato chocante de um paciente que havia sido encaminhado para os cuidados sem o consentimento da família, a qual interviu e o salvou.

O autor joga luz ainda sobre a omissão e o negacionismo do governo federal no enfrentamento à pandemia que, ao desestimular medidas de proteção e isolamento social, postergar o início da vacinação, se eximir da proteção a grupos sociais e vulnerabilizados e das ações necessárias para o fortalecimento do SUS, potencializou a sobrecarga, o adoecimento e o óbito de trabalhadores de saúde. Ao mesmo tempo, descreve também a fundamental ação de outros setores do Estado, em especial os poderes Legislativo e Judiciário, que buscaram atuar de forma não só a minimizar a omissão do Executivo, mas também de apurar responsabilidades de agentes públicos e privados e encontrar alternativas que visassem maior proteção física e psicossocial de profissionais de saúde e da população. Meritoriamente abordam o papel que tiveram na denúncia e na procura de melhores ações durante a pandemia: a CPI da Pandemia do Senado, a Frente pela Vida,o Supremo Tribunal Federal e o código de ética do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). A CPI da Covid, por exemplo, desvelou diversos conflitos e infrações éticas de agentes da saúde pública e privada.

Ao realizar a práxis do confronto de tais dados de realidade com a teoria bioética, o artigo traz conceitos fundamentais para compreender a dinâmica dos atores políticos e do impacto da pandemia sobre o mundo do trabalho e no bem-estar da população, no contexto brasileiro. Um deles é mistanásia - a morte de pessoas em razão da falta de tratamento de saúde adequado ou pela omissão do Estado. Muitas famílias, sociedades, crianças órfãs, movimentos sociais, enfim, todos os brasileiros e todas as brasileiras que tenham alguma empatia encontrarão neste conceito um certo conforto, ao saber que o que ocorreu no Brasil tem nome.

É debatida também a Ética da Responsabilidade, do filósofo Hans Jonas22 Jonas H. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad: Lisboa M, Montez LB. Rio de Janeiro: Contraponto; 2006., que traz como imperativo ético as ações guiadas pela necessidade da construção das condições necessárias à permanência das futuras gerações no planeta frente aos desafios enfrentados pela sociedade tecno-científica. Neste sentido, o artigo chama a atenção para a necessidade de os gestores públicos guiarem suas ações em uma ética da responsabilidade pública, caracterizada como um agir moral que tem como princípio maior o cuidado.

O autor buscou e conseguiu realizar uma excelente síntese dos dilemas morais e conflitos éticos que emergiram durante a Pandemia de COVID-19 no Brasil, trazendo elementos teóricos da bioética que podem servir para guiar não só novas pesquisas sobre o tema, mas as decisões e práticas dos atores políticos do setor saúde. A pandemia nos mostrou o quanto a humanidade necessita avançar na busca de relações solidárias e socialmente responsáveis por parte de governos e indivíduos em momentos de emergências sanitárias globais. E como boas ou más escolhas, assim como as ações ou omissões, por parte do Estado podem ter como consequência a proteção à saúde da população ou nos levar a resultados catastróficos, como no caso brasileiro, quando foi multiplicado o número de óbitos devido ao desdém e à indiferença diante não só do sofrimento humano individual, mas do próprio destino da humanidade e do nosso planeta.

Referências

  • 1
    Rego S. Contribuições da bioética para a saúde pública. Cad Saude Publica 2007; 23(11):2530-2531.
  • 2
    Jonas H. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad: Lisboa M, Montez LB. Rio de Janeiro: Contraponto; 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Out 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br