Em defesa da vida, da ciência e da solidariedade

Maria de Fátima Bezerra Sobre o autor

Atravessamos a mais grave crise sanitária da história recente do país, que desafiou o mundo e, no Brasil, ganhou contornos ainda mais graves e devastadores pela gestão federal de perfil negacionista, que atrasou a compra de vacinas, não coordenou um esforço conjunto com os entes Estaduais, incentivou a aglomeração, difundiu o uso de remédios sem eficácia e tripudiou da morte e do sofrimento, colocando o povo brasileiro em situação de profunda vulnerabilidade e risco, trazendo sofrimento para toda a população, mas em especial para as trabalhadoras e trabalhadores da saúde.

A dualidade entre vida e economia estabelecida pela autoridade maior do país era criminosa. Proteger a vida através das medidas orientadas pela comunidade científica era tido como relegar o povo à própria sorte, quando na verdade quem estava abandonando o povo, submetendo-o à fome a ao vírus, era o governo que não garantia auxílio emergencial para que as pessoas pudessem se proteger em suas casas. O governo brasileiro foi omisso, e mais do que isso, agiu intencionalmente no desprezo à vida e na falta de assistência como já ficou evidenciado.

A disseminação de remédios sem eficácia, buscando gerar uma falsa sensação de segurança por parte da população, que tinha por objetivo contrariar e militar contra o distanciamento social tornou a situação ainda mais grave. Sabemos que muitas das mortes poderiam ter sido evitadas e isso nos dói coletivamente, como humanidade. Cada ação irresponsável por parte do governo federal colocava as trabalhadoras e trabalhadores em saúde numa situação ainda mais difícil, com hospitais lotados, filas por leitos e, por vezes, sendo forçados a determinar critérios sobre quem tentar salvar. Vivemos momentos dramáticos com a necessidade de isolamento, com o medo de contaminação, de transmitir para a família, com o pavor de precisar ser internado e não saber se haveria leitos disponíveis, com as cenas de dor e agonia pela falta de anestésicos ou equipamentos. Nesse contexto, os profissionais da saúde não tiveram opção de realizar trabalho remoto, estiveram na linha de frente, com jornadas exaustivas, convivendo com o sofrimento e a morte, sem que pudessem receber o aconchego de amigos e familiares após o trabalho.

A pressão e o estresse a que essas/es trabalhadoras/es estiveram submetidas/os não foi fácil. Foram jornadas silenciosas e anônimas, de rostos protegidos por EPIs por vezes insuficientes, de mulheres e negros, em sua maioria, invisibilizados em seus papéis fundamentais de manter o Sistema Único de Saúde como o patrimônio mais fantástico e imprescindível já construído, num país fraturado pela desigualdade social profunda. Não eram poucos os que, após um dia de trabalho, dividiam habitações pequenas com famílias inteiras, tornando inviável qualquer distanciamento.

Na condição de governadora do Rio Grande do Norte (RN), nossa ação foi guiada pela responsabilidade de que fala Hans Jonas11 Jonas H. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad: Lisboa M, Montez LB. Rio de Janeiro: Contraponto; 2006. citado no artigo, pela defesa da vida, da ciência, pela solidariedade e o cuidado que se deva ter permanentemente, mas de forma especial em contextos de crise. As cobranças e pressões que sofremos foram grandes, em especial para flexibilizar as recomendações científicas, mas não podíamos titubear na garantia do que era moral e eticamente correto. Tudo se recupera, mas a vida não. Orgulho-me de ter sido intransigente em defesa da vida.

Num tempo em que não podíamos sequer sepultar os nossos mortos, sabemos que as sequelas da pandemia ainda estão presentes no luto pelos que perdemos, em condições de saúde herdadas a partir da doença, na assistência que buscamos dar aos órfãos da COVID-19, nas lembranças e memórias do horror que vivemos. Nunca mais seremos os mesmos após termos vivenciado a pandemia. Fica a nossa imensa gratidão aos profissionais de saúde, aos que gozam ou não da cidadania de trabalhadores em saúde, como bem destacado, por terem se doado em nome de salvar vidas.

Essas mulheres e homens são verdadeiros heróis contemporâneos e o registro sobre o que atravessaram no contexto da pandemia é, não só oportuno e necessário, como também uma forma de fazer justiça.

Referências

  • 1
    Jonas H. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad: Lisboa M, Montez LB. Rio de Janeiro: Contraponto; 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Out 2023
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