Resumo
O objetivo deste estudo transversal foi analisar os fatores associados ao estresse ocupacional entre cirurgiões-dentistas atuantes no setor privado no primeiro ano da pandemia de COVID-19 no Brasil. Incluiu 384 profissionais do estado do Paraná, cujos dados foram obtidos entre agosto e outubro de 2020 por meio de formulário online. Dois desfechos compuseram proxy de estresse ocupacional: (1) ansiedade e preocupação e (2) preparo e segurança para o trabalho durante a pandemia. As variáveis independentes foram agrupadas segundo modelo teórico explicativo em fatores individuais, organizacionais e extraorganizacionais. As associações foram testadas por regressão logística bi e multivariada. Apesar de preparados e seguros, os profissionais se sentiam ansiosos e preocupados para o atendimento clínico. Mulheres, mais jovens e que não receberam orientações sobre as medidas de segurança apresentaram maiores chances de relatar insegurança e despreparo. Profissionais mais jovens, que não participavam da tomada de decisões e que às vezes dispunham de auxiliar para o trabalho a quatro mãos, tiveram maiores chances de se sentirem ansiosos e preocupados. Além dos fatores individuais, fatores organizacionais do trabalho estão associados ao estresse ocupacional entre cirurgiões-dentistas no primeiro ano da pandemia.
Palavras-chave:
COVID-19; Dentistas; Setor privado; Estresse ocupacional
Introdução
A COVID-19 trouxe danos irreparáveis em diversos setores da sociedade, sendo considerada o maior desafio sanitário dos últimos 100 anos11 Farooq I, Ali S. COVID-19 outbreak and its monetary implications for dental practices, hospitals and healthcare workers. Postgrad Med J 2020; 96(1142):791-792.. Ainda, a alta capacidade de mutações adaptativas e o surgimento de novas variantes do agente etiológico, o vírus Sars-CoV-2, aumenta as incertezas em relação à cobertura das vacinas e o estágio de finalização da pandemia22 Aleem A, Samad ABK, Vaqar S. Emerging variants of SARS-CoV-2 and novel therapeutics against coronavirus (COVID-19). In: StatPearls. Treasure Island: StatPearls Publishing; 2022. PMID: 34033342..
Em 2020, primeiro ano da pandemia, entre as principais medidas a serem tomadas nos serviços odontológicos a partir das orientações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)33 Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nota Técnica GVIMS/GGTES/Anvisa no 04/2020 [Internet]. 2020. [citado 2021 out 13]. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/servicosdesaude/notas-tecnicas/nota-tecnica-gvims_ggtes_anvisa-04-2020-09-09-2021.pdf/view
https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centrais... , recomendava-se a suspensão dos atendimentos eletivos, com restrição às urgências e emergências, novas orientações em biossegurança e aquisição de equipamentos de proteção individual (EPIs), como uso de protetor facial (face shield) e máscara N95 ou similar, além de incentivo ao teletrabalho e distanciamento nas salas de espera33 Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nota Técnica GVIMS/GGTES/Anvisa no 04/2020 [Internet]. 2020. [citado 2021 out 13]. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/servicosdesaude/notas-tecnicas/nota-tecnica-gvims_ggtes_anvisa-04-2020-09-09-2021.pdf/view
https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centrais... .
No setor odontológico privado, cabe ao profissional empregador ou empregado as decisões e mudanças organizacionais, além da compra dos EPIs necessários para um atendimento seguro. Com a suspensão de atendimentos eletivos, esses profissionais foram diretamente afetados, tendo em vista que o ganho salarial depende do desempenho diário e da realização de procedimentos para manter a lucratividade nos estabelecimentos44 Schwendicke F, Krois J, Gomez J. Impact of SARS-CoV2 (COVID-19) on dental practices: economic analysis. J Dent 2020; 99:103387.. As medidas que precisaram ser tomadas em relação à biossegurança55 Franco JB, Camargo AR, Peres MPS. Cuidados odontológicos na era do COVID-19: recomendações para procedimentos odontológicos e profissionais. Rev Assoc Paul Cir Dent 2020; 74(1):18-21. representam um aumento de gastos, trazendo consequências econômicas que suscitam grande preocupação entre esses profissionais66 Cavalcanti YW, Silva RO, Ferreira LF, Lucena EHG, Souza AMLB, Cavalcante DFB, Meneghim MC, Pereira AC. Economic impact of new biosafety recommendations for dental clinical practice during COVID-19 pandemic. Pesqui Bras Odontopediatria Clin Integr 2020; 20(Supl. 1):e0133.
7 Chamorro-Petronacci C, Martin Carreras-Presas C, Sanz-Marchena A, A Rodríguez-Fernández M, María Suárez-Quintanilla J, Rivas-Mundiña B, Suárez-Quintanilla J, Pérez-Sayáns M. Assessment of the economic and health-care impact of COVID-19 (SARS-CoV-2) on public and private dental surgeries in Spain: a pilot study. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(14):e5139.-88 Consolo U, Bellini P, Bencivenni D, Iani C, Checchi V. Epidemiological Aspects and Psychological Reactions to COVID-19 of Dental Practitioners in the Northern Italy Districts of Modena and Reggio Emilia. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(10):e3459..
É fato que a pandemia de COVID-19 trouxe diversas mudanças ao cenário global, com forte impacto na prática odontológica, principalmente durante o primeiro ano pandêmico99 Abdelrahman H, Atteya S, Ihab M, Nyan M, Maharani DA, Rahardjo A, Shaath M, Aboalshamat K, Butool S, Shamala A, Baig L, El Tantawi M. Dental practice closure during the first wave of COVID-19 and associated professional, practice and structural determinants: a multi-country survey. BMC Oral Health 2021; 21:243.. Além disso, os cirurgiões-dentistas do setor privado1010 Ranka MS, Ranka SR. Survey of mental health of dentists in the COVID-19 pandemic in the UK. J Int Soc Prev Community Dent 2021; 11(1):104-108. têm demonstrado maior prejuízo na condição emocional do que os que atuam no setor público99 Abdelrahman H, Atteya S, Ihab M, Nyan M, Maharani DA, Rahardjo A, Shaath M, Aboalshamat K, Butool S, Shamala A, Baig L, El Tantawi M. Dental practice closure during the first wave of COVID-19 and associated professional, practice and structural determinants: a multi-country survey. BMC Oral Health 2021; 21:243.
10 Ranka MS, Ranka SR. Survey of mental health of dentists in the COVID-19 pandemic in the UK. J Int Soc Prev Community Dent 2021; 11(1):104-108.-1111 Novaes TF, Jordão MC, Bonacina CF, Veronezi AO, Araujo CAR, Olegário IC, Oliveira DB, Ushakova V, Birbrair A, Costa Palacio D, Heller D. COVID-19 pandemic impact on dentists in Latin America's epicenter: São-Paulo, Brazil. PLoS One 2021; 16(8):e0256092., possivelmente devido às inúmeras incertezas e à falta de segurança relacionadas ao vínculo empregatício nesse setor.
Considerando a problemática atípica vivenciada pelos profissionais e o conceito de estresse ocupacional, que pode ser definido como uma resposta fisiológica e psicológica às pressões e demandas que não correspondem aos conhecimentos e habilidades dos trabalhadores1212 Babatunde A. Occupational stress: a review on conceptualizations, causes and cure. Econ insights - Trends Challenges 2013; 2(3):73-80., tornou-se relevante a busca pela identificação de possíveis fatores causadores de estresse relacionado ao trabalho no setor privado durante o período pandêmico. Portanto, o objetivo deste estudo foi analisar os fatores individuais e organizacionais associados ao estresse ocupacional durante a pandemia de COVID-19 entre cirurgiões-dentistas atuantes no setor privado no primeiro ano da pandemia no Brasil.
Métodos
Esta pesquisa transversal foi realizada com dados de um estudo multicêntrico observacional transversal que teve por objetivo avaliar as medidas de prevenção e controle da COVID-19 adotadas por cirurgiões-dentistas, técnicos e auxiliares em saúde bucal dos estados da região Sul do Brasil (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) em relação às recomendações da Anvisa para os serviços de saúde. Os dados relativos ao estado do Paraná foram obtidos sob a responsabilidade da Universidade Estadual de Ponta Grossa e da Universidade Federal do Paraná. O estudo foi aprovado junto aos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual de Ponta Grossa (CAAE: 31720920.5.1001.0105, parecer 4.024.593) e da Universidade Federal do Paraná (CAAE: 31720920.5.3001.0102, parecer 4.312.933).
O delineamento seguiu referencial metodológico para pesquisas online (websurveys), dentro das limitações de um estudo com amostra não-probabilística, de conveniência. Para orientar a condução da pesquisa e o relato de resultados, foi utilizado o Checklist for Reporting Results of Internet E-Surveys (CHERRIES)1313 Eysenbach G. Improving the quality of web surveys: The Checklist for Reporting Results of Internet E-Surveys (CHERRIES). J Med Internet Res 2004; 6(3):e34. .
Foi elaborado um formulário de pesquisa contendo perguntas abertas e fechadas, que passou por validação de face e conteúdo, sendo submetido à análise de oito experts da área e a estudo piloto com profissionais de saúde bucal de estados não participantes da pesquisa. A construção e validação do instrumento da coleta de dados confeccionados para essa pesquisa estão descritos e detalhados em outra publicação1414 Ditterich RG, Baldani MH, Warmling CM. Rede Colaborativa - Biossegurança em Odontologia - Pesquisa Multicêntrica para o enfrentamento do Covid19. Ponta Grossa: Ed. UEPG: 2021..
As perguntas foram organizadas em um formulário na plataforma Google Formulários e o link para participação foi enviado por e-mail pelos conselhos regionais de odontologia (CRO). Após 14 dias e 45 dias do primeiro envio, houve o reenvio de e-mail pelos CRO, com um total de três tentativas. No mesmo período, houve estratégia de ampla divulgação por redes sociais. A todo momento as respostas ao formulário eram monitoradas e novas estratégias de divulgação foram elaboradas de acordo com a necessidade1515 Fielding NG, Lee RM, Blank G. The SAGE handbook of online research methods. New York: SAGE Publications; 2016..
O universo do estudo multicêntrico foi de 81.531 profissionais de saúde bucal atuantes nos três estados do Sul em maio de 2020, sendo o tamanho da população aferida pelo número de inscritos nos conselhos. Ao todo, foi obtida amostra não-probabilística, de conveniência, de 2.560 participantes, representando taxa de resposta de 3,1% da população-alvo.
O estado do Paraná teve participação de 1.127 profissionais de saúde bucal, sendo 435 respondentes atuantes em clínicas e consultórios odontológicas privados. A amostra selecionada para este estudo foi referente ao conjunto de cirurgiões-dentistas do estado do Paraná que responderam sobre os seus processos de trabalho nesses estabelecimentos, correspondendo a 384 profissionais.
O formulário de pesquisa abordou questões relativas às seguintes dimensões: características sociodemográficas, de formação acadêmica e trabalho; biossegurança e processo de trabalho frente à COVID-19; acesso a informação; percepção sobre ansiedade, preocupação e aspectos emocionais do trabalho. As questões relacionadas a biossegurança e processo de trabalho tiveram opções de resposta organizadas em escala do tipo Likert de frequência com cinco pontos: (1) nunca; (2) quase nunca; (3) às vezes; (4) quase sempre; e (5) sempre. Também era possível selecionar a opção “não sei”.
As questões de desfecho selecionadas como proxy do estresse ocupacional para este estudo foram relacionadas à percepção de ansiedade e a aspectos emocionais do trabalho durante a pandemia: (1) “Me sinto suficientemente esclarecido e seguro para trabalhar adequadamente na prática odontológica durante a pandemia da COVID-19”; (2) “Me sinto ansioso e preocupado para trabalhar adequadamente na prática odontológica durante a pandemia da COVID-19”. Ambas apresentavam opções de resposta em escala do tipo Likert de concordância com cinco pontos: (1) discordo totalmente; (2) discordo parcialmente; (3) nem concordo e nem discordo; (4) concordo parcialmente; e (5) concordo totalmente. Também era oferecida a opção “não sei”.
Para fins de análise, além da medida ordinal, as respostas às duas questões foram dicotomizadas e categorizadas como: a) “não” - respostas negativas e neutras (discordo totalmente, discordo parcialmente, nem concordo e nem discordo); b) “sim” - respostas positivas (concordo parcialmente e concordo totalmente). As respostas “não sei” foram consideradas como missing (dado perdido). Os desfechos de interesse foram as respostas “não” para se sentir preparado e seguro, e “sim” para se sentir ansioso e preocupado em trabalhar durante a pandemia da COVID-19. Essas foram consideradas como variável proxy de sintomas de estresse.
Este estudo se fundamenta na avaliação por autopercepção de estresse1616 Faro A, Pereira ME. Medidas do estresse: uma revisão narrativa. Psic Saude Doenças 2013; 14(1):101-124., e a escolha das variáveis dependentes e independentes foi baseada no modelo teórico explicativo para o estresse ocupacional proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS)1717 Leka S, Jain A. Health impact of psychosocial hazards at work: an overview. Geneva: WHO; 2010., adaptado aos cirurgiões-dentistas atuantes durante a pandemia (Figura 1). A escolha das variáveis proxy de sintomas de estresse são representadas por: aspectos psicológicos e emocionais (ansiedade e preocupação), e aspecto cognitivo e comportamental (segurança e conhecimento). As variáveis independentes identificadas no formulário de pesquisa foram elencadas em fatores individuais e as fontes de estresse extraorganizacionais e organizacionais, relacionados ao processo de trabalho, biossegurança e acesso a EPIs.
Modelo teórico proposto para o estresse ocupacional entre cirurgiões-dentistas durante a pandemia da COVID-19.
O modelo teórico aqui descrito é fundamentado em três pilares explicativos:
1) Características individuais: aquelas possíveis fontes de estresse intrinsecamente relacionadas ao indivíduo, que são representadas pelas variáveis idade (dicotomizada pela mediana em até 39 anos/39 anos ou mais), gênero (masculino/feminino), tempo de formação profissional (até 10 anos/11 a 20 anos/mais de 20 anos), presença de condição de risco agravante da COVID-19 (não/sim) e testagem para a doença (não/sim);
2) Fontes de estresse extraorganizacionais que se relacionam indiretamente ao serviço em si, aqui representadas por: afastamento das atividades laborais na pandemia (não/sim) e acesso às diretrizes com informações sobre o atendimento odontológico nos serviços de saúde (não/sim);
3) Fontes de estresse organizacionais, ou seja, possíveis causas de estresse diretamente relacionadas ao trabalho, como: tipo de vínculo de trabalho (dicotomizada em autônomo/outros vínculos), ter recebido orientação no local de trabalho a respeito das medidas a serem tomadas durante a pandemia (não/sim), e um conjunto de perguntas sobre a organização do processo de trabalho (suspensão de atendimentos eletivos, participação na tomada de decisões, redução de carga de trabalho, investigação de sintomas de infecção respiratória no agendamento de consultas, definição de urgência baseada em protocolos clínicos pré-estabelecidos, orientação aos pacientes sobre a COVID-19, uso de ferramentas digitais para teleorientação e telemonitoramento), que foram categorizadas em “sempre/quase sempre”, “às vezes” ou “quase nunca/nunca”. O mesmo foi considerado para os fatores relacionados à biossegurança na clínica odontológica (limpeza e desinfecção do ambiente e de mangueiras de sucção a cada atendimento, uso de peças de mão estéreis a cada atendimento, realização de procedimentos odontológicos a quatro mãos, uso do dique de borracha nos atendimentos com alta rotação, evitar procedimentos geradores de aerossóis, desparamentação em sequência correta a cada atendimento) e para o acesso aos EPIs (máscara N95/PFF2 e avental impermeável disponível em quantidade suficiente e seu respectivo uso, uso de protetor facial no atendimento de pacientes e reutilização de máscaras N95/PFF2 seguindo os critérios de segurança) (Figura 1).
Por fim, as respostas identificadas como proxy de estresse ocupacional representam o desfecho do estudo, resultante das fontes estressoras, que podem influenciar na ansiedade e na preocupação, no esclarecimento e na segurança para o atendimento clínico durante a pandemia (Figura 1).
Os dados foram organizados em planilha eletrônica Microsoft Excel e foram analisados no programa Statistical Package for the Social Sciences - SPSS para Windows (versão 16.0). A análise das características sociodemográficas, de formação, trabalho e saúde da amostra foi feita a partir de estatísticas descritivas. Foram aferidas as frequências absolutas e percentuais para as variáveis categóricas, bem como medianas (± intervalos interquartílicos) para as numéricas.
A associação entre as variáveis de desfecho foi verificada por meio do teste de correlação de Spearman. As associações bivariadas entre os desfechos (proxy de estresse ocupacional) e as variáveis explicativas (fatores individuais, extraorganizacionais e organizacionais) foram verificadas com o teste qui-quadrado de Pearson, considerando-se o nível de significância estatística de 5%. As variáveis associadas a cada desfecho com valor de p ≤ 0,20 foram elegíveis para a análise multivariada, obtida por meio de regressão logística binária.
Os resultados são apresentados por odds ratio bruta e ajustada, com os respectivos intervalos de confiança no nível de 95%, para as variáveis incluídas no modelo explicativo multivariado. A variável anos de conclusão do curso de graduação mostrou multicolinearidade com a idade e foi excluída da análise. As variáveis foram incluídas na análise de regressão pelo método enter. A qualidade do ajuste do modelo final foi aferida pelo teste de Hosmer e Lemershow, sendo que p ≥ 0,05 indica que o modelo está ajustado.
Resultados
Quanto à caracterização da amostra, observada na Tabela 1, houve maior participação do gênero feminino (74,7%), de até 39 anos (51,0%). A maioira declarou não ter nenhum fator de risco para o desenvolvimento de formas graves de COVID-19 (90,9%) e não ter sido submetida a teste para a COVID-19 até o momento (71,6%). Por outro lado, a maioria dos participantes declara ter se afastado do trabalho em clínica odontológica durante a pandemia (84,4%), ter tido acesso às diretrizes oficiais sobre prevenção e controle da COVID-19 (84,4%) e ter recebido orientações no local de trabalho a respeito de medidas a serem tomadas durante a pandemia (77,5%). Ainda na Tabela 1, observa-se que, apesar da alta frequência de relato de que se sentem preparados e seguros para trabalhar adequadamente na prática odontológica durante a pandemia da COVID-19 (78,1%), a maioria dos participantes declarou estar se sentindo ansioso e preocupado (64,8%).
Na análise quanto à adoção de medidas de prevenção e controle da disseminação da COVID-19, considerando a resposta “sempre/quase sempre”, a medida mais adotada foi a investigação de sintomas de infecção respiratória no agendamento de consultas (83,4%), e a medida que teve a menor adesão foi a suspensão de procedimentos eletivos, com restrição a urgência e emergência (29,7%) (Tabela 2).
Quanto às medidas de biossegurança na clínica odontológica, analisando as respostas “sempre/quase sempre”, a limpeza e desinfecção do ambiente realizada por profissional treinado, com EPIs adequados, foi a medida com maior adesão (80,5%), e as de menor foram observadas em relação a evitar procedimentos que geram aerossóis (26,6%), uso do dique de borracha em atendimentos que requerem alta rotação (32,0%), realizar procedimentos a quatro mãos (40,1%) e utilização de peças de mão estéreis a cada atendimento (42,7%) (Tabela 2).
Da mesma forma, a respeito da disponibilidade e uso de EPIs, o protetor facial era amplamente utilizado (85,4%) e a máscara N95/PFF2 estava disponível em quantidade suficiente para a maioria dos profissionais (76,6%) (Tabela 2).
Na Tabela 3 são apresentadas as associações bivariadas dos fatores explicativos do modelo teórico e as variáveis de desfecho dicotomizadas. Em relação aos fatores individuais, estavam mais preparados e seguros os profissionais do gênero masculino (p = 0,018), com mais de 39 anos de idade (p < 0,001), formados há mais de 20 anos (p < 0,001), que apresentavam algum fator de risco para formas graves de COVID-19 (p = 0,044). Declararam maior ansiedade e preocupação as mulheres (p = 0,015), mais jovens (até 39 anos) (p < 0,001), de formação profissional mais recente (até 10 anos) (p = 0,055) (Tabela 3).
No bloco de fatores relacionados ao trabalho extraorganizacional, mostraram-se mais ansiosos e preocupados os profissionais que se afastaram do trabalho durante a pandemia (p = 0,020), e mais preparados e seguros aqueles que tiveram acesso a diretrizes oficiais sobre prevenção e controle da COVID-19 (p = 0,050) (Tabela 3).
Com relação aos fatores organizacionais, os profissionais que declararam estar mais preparados e seguros foram os que receberam orientações no local de trabalho sobre as medidas a serem adotadas durante a pandemia (p < 0,001), e responderam que sempre ou quase sempre suspenderam os atendimentos eletivos (p = 0,035) e participaram da tomada de decisões (p < 0,001). Também aqueles que relataram que “sempre/quase sempre” eram investigados os sintomas de infecção respiratória no agendamento de consultas (p < 0,001), que baseavam a definição das urgências em protocolos pré-estabelecidos (p < 0,001), que utilizavam as ferramentas digitais para teleorientação e telemonitoramento (p < 0,001).
Quanto à biossegurança no consultório, estavam mais preparados e seguros aqueles que responderam “sempre/quase sempre” às medidas: a) limpeza e desinfecção do ambiente por profissional treinado, com EPIs adequados (p < 0,001); b) limpeza das mangueiras de sucção a cada atendimento (p < 0,001); c) utilização de canetas e peças de mão estéreis a cada atendimento (p < 0,001); d) procedimentos a quatro mãos (p = 0,002); e) evitavam procedimentos que geravam aerossóis (p = 0,005); f) desparamentação realizada seguindo sequência recomendada (p < 0,001); g) máscara N95/PFF2 disponível e em quantidade suficiente (p = 0,018); h) avental impermeável disponível e em quantidade suficiente (p = 0,046) (Tabela 3).
Estavam mais ansiosos e preocupados: mulheres (p = 0,015), jovens (até 39 anos) (p < 0,001), que haviam concluído sua formação profissional em até 10 anos (p = 0,055), que se afastaram do trabalho em clínica durante a pandemia (p = 0,020), que “sempre/quase sempre” suspenderam os atendimentos eletivos (p = 0,037) e usavam protetor facial (p = 0,001). Os mais ansiosos e preocupados declararam que “nunca/quase nunca” participaram da tomada de decisões (p = 0,010). Estavam mais ansiosos e preocupados aqueles que responderam “às vezes” para a limpeza e desinfecção do ambiente realizada por profissional treinado (p = 0,009), e atendimento a quatro mãos (p < 0,001) (Tabela 3).
A Tabela 4 mostra a análise multivariada para estar “preparado e seguro” e “ansioso e preocupado” para atuar em clínica durante a pandemia individualmente. O modelo final revelou que os fatores associados ao desfecho de preparo e segurança foram individuais e organizacionais relacionados à biossegurança. Os profissionais tiveram menor chance de se sentirem preparados e seguros para o atendimento clínico quanto aos fatores individuais (gênero feminino e mais jovens) e organizacionais (profissionais que não receberam orientações no local de trabalho a respeito de medidas a serem tomadas durante a pandemia e “quase nunca/nunca” realizam a desparamentação seguindo a sequência recomendada). Os fatores relacionados à COVID-19, como ter fatores de risco para as formas graves da doença e ter sido submetido a testes laboratoriais para sua detecção, estiveram no limite da significância estatística e ajustaram o modelo explicativo.
Análise de regressão logística multivariada. Razão de chance (OR) com intervalos de confiança de 95% (IC95%), bruta e ajustada. Modelo explicativo para a o relato de sentir-se preparado e seguro ou ansioso e preocupado para atuar em clínica odontológica durante a pandemia de COVID-19. Cirurgiões-dentistas atuantes do setor privado no Paraná, agosto-outubro, 2020.
Quanto ao sentimento de ansiedade e preocupação para atuar, o modelo multivariado identificou apenas a idade como fator individual associado, além de fatores relacionados à organização do processo de trabalho e à biossegurança na clínica. Apresentaram maior chance de se sentirem ansiosos e preocupados os profissionais mais jovens, que “quase nunca/ nunca” participaram da tomada de decisões e que “às vezes” realizavam procedimentos odontológicos a quatro mãos. Os que mostraram menos chance de estarem ansiosos e preocupados foram aqueles que “quase nunca/ nunca” suspenderam os atendimentos eletivos e que “às vezes” utilizavam protetor facial (Tabela 4).
Discussão
O presente estudo mostrou que a maior parte dos cirurgiões-dentistas declarou sentimento de ansiedade e preocupação para trabalhar durante a pandemia, e fatores individuais e organizacionais foram associados ao estresse ocupacional entre cirurgiões-dentistas da iniciativa privada do estado do Paraná durante a pandemia de COVID-19. Estudos têm mostrado que a saúde mental da população foi afetada negativamente pelo período de pandemia1818 Ren X, Huang W, Pan H, Huang T, Wang X, Ma Y. Mental health during the COVID-19 outbreak in China: a meta-analysis. Psychiatr Q 2020; 91(4):1033-1045., em especial profissionais de saúde1919 Silva DFO, Cobucci RN, Soares-Rachetti VP, Lima SCVC, Andrade FB. Prevalência de ansiedade em profissionais da saúde em tempos de COVID-19: revisão sistemática com metanálise. Cien Saude Colet 2021; 26(2):693-710., incluindo cirurgiões-dentistas do setor privado1010 Ranka MS, Ranka SR. Survey of mental health of dentists in the COVID-19 pandemic in the UK. J Int Soc Prev Community Dent 2021; 11(1):104-108., que mostram estar mais afetados quando comparados à condição emocional de cirurgiões-dentistas do setor público1010 Ranka MS, Ranka SR. Survey of mental health of dentists in the COVID-19 pandemic in the UK. J Int Soc Prev Community Dent 2021; 11(1):104-108.,1111 Novaes TF, Jordão MC, Bonacina CF, Veronezi AO, Araujo CAR, Olegário IC, Oliveira DB, Ushakova V, Birbrair A, Costa Palacio D, Heller D. COVID-19 pandemic impact on dentists in Latin America's epicenter: São-Paulo, Brazil. PLoS One 2021; 16(8):e0256092., possivelmente pela imprevisibilidade inerente às condições econômicas e de trabalho envolvidas nesse setor.
A amostra majoritariamente composta pelo gênero feminino foi semelhante à maioria dos estudos com cirurgiões-dentistas no Brasil, considerando que as mulheres representam a maioria dos profissionais da área no país, reafirmando a feminilização da profissão2020 Costa SM, Durães SJA, Abreu MHNG. Feminização do curso de odontologia da Universidade Estadual de Montes Claros. Cien Saude Colet 2010; 15(Supl. 1):1865-1873.,2121 Moraes RR, Correa MB, Daneris A, Queiroz AB, Lopes JP, Lima GS, Cenci MS, D'Avila OP, Pannuti CM, Pereira-Cenci T, Demarco FF. Email vs. Instagram recruitment strategies for online survey research. Braz Dent J 2021; 32(1):67-77.. Apesar de os estudos mostrarem que o gênero feminino apresenta maior percepção quanto à saúde mental, no presente estudo o gênero permaneceu associado apenas ao desfecho sobre preparo e segurança para trabalhar, com maior relato entre as mulheres sobre estarem menos preparadas e seguras. Embora o gênero não tenha sido mantido pela análise multivariada como fator de ansiedade neste estudo, de acordo com a literatura, as mulheres têm demonstrado maior risco para ansiedade durante a pandemia da COVID-191919 Silva DFO, Cobucci RN, Soares-Rachetti VP, Lima SCVC, Andrade FB. Prevalência de ansiedade em profissionais da saúde em tempos de COVID-19: revisão sistemática com metanálise. Cien Saude Colet 2021; 26(2):693-710.,2222 Tysiac-Mista M, Dziedzic A. The attitudes and professional approaches of dental practitioners during the COVID-19 outbreak in Poland: a cross-sectional survey. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(13):4703.. A idade, com maior impacto do que o gênero, pode ser explicada pelo fato de que a maior experiência profissional influenciou mais no sentimento de estar esclarecido e seguro na prática clínica, e consequentemente resultou em menor ansiedade e preocupação para trabalhar, atenuando a influência por gênero.
Este estudo obteve maior participação de indivíduos jovens (idade mediana - 39; percentil 75% - 47 anos). Os mais jovens costumam utilizar mais as redes sociais, com maior chance de aderir mais às pesquisas online, no entanto, com o isolamento social, toda a população passou a utilizar mais essas ferramentas2323 Farooq A, Laato S, Islam AKMN. Impact of online information on self-isolation intention during the COVID-19 pandemic: cross-sectional study. J Med Internet Res 2020; 22(5):e19128., o que pode justificar a participação semelhante entre as faixas etárias. A idade foi o único fator individual de influência mantido no modelo teórico dentro dos dois desfechos, com os profissionais mais jovens se sentindo menos preparados e seguros, e mais ansiosos e preocupados, para trabalhar durante a pandemia. Na Turquia, cirurgiões-dentistas recém-formados parecem ser os mais afetados durante a pandemia2424 Maden EA, Özen B, Altun C. The effect of COVID-19 pandemic on life quality of dental professionals. J Health Sci Med 2022; 5(1):274-281., e no estado da Paraíba, estudo mostrou maior segurança em atuar durante a pandemia entre os cirurgiões-dentistas mais idosos ou com maior idade, o que pode se justificar pelo maior tempo no mercado de trabalho e maior estabilidade na profissão2525 Braga MLA, Medeiros FLS, Costa LED, Penha ES, Queiroz FS. Biossegurança no ambiente odontológico e prevalência de COVID-19 em cirurgiões-dentistas do estado da Paraíba. Res Soc Dev 2021; 10(15):e294101521813..
Em relação aos fatores organizacionais, os que foram orientados no local de trabalho sobre a COVID-19 declararam estar mais seguros e preparados para atuar, destacando a importância da educação continuada em saúde para os profissionais. Estudo realizado no estado de São Paulo mostrou que mais de 80% dos cirurgiões-dentistas não receberam nenhum treinamento específico para controlar a transmissão de COVID-19 no ambiente de saúde, mesmo que haja diversos cursos amplamente divulgados1111 Novaes TF, Jordão MC, Bonacina CF, Veronezi AO, Araujo CAR, Olegário IC, Oliveira DB, Ushakova V, Birbrair A, Costa Palacio D, Heller D. COVID-19 pandemic impact on dentists in Latin America's epicenter: São-Paulo, Brazil. PLoS One 2021; 16(8):e0256092..
Os profissionais que não seguiam a sequência recomendada de desparamentação dos EPIs se sentiam pouco preparados e mais inseguros para o atendimento durante a pandemia. Ao considerar que uma das principais vias de contaminação do profissional é no momento de desparamentação, este é um passo tão importante quanto a paramentação33 Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nota Técnica GVIMS/GGTES/Anvisa no 04/2020 [Internet]. 2020. [citado 2021 out 13]. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/servicosdesaude/notas-tecnicas/nota-tecnica-gvims_ggtes_anvisa-04-2020-09-09-2021.pdf/view
https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centrais... . Além da proteção à saúde física, o acesso adequado aos EPIs e sua utilização adequada têm sido associado à maior satisfação no trabalho e a menos sofrimento emocional2626 Zhang SX, Liu J, Afshar Jahanshahi A, Nawaser K, Yousefi A, Li J, Sun S. At the height of the storm: Healthcare staff's health conditions and job satisfaction and their associated predictors during the epidemic peak of COVID-19. Brain Behav Immun 2020; 87:144-146..
Em relação à ansiedade e à preocupação para trabalhar, os fatores organizacionais foram relacionados à adesão dos protocolos sobre a COVID-19. A falta de participação na tomada de decisões foi associada à maior chance de os profissionais estarem ansiosos e preocupados, o que sugere que os profissionais empregados nas clínicas, com vínculos profissionais fragilizados, foram afetados negativamente, enfatizando a importância do diálogo entre a equipe, além do papel de gestores no manejo de ações direcionadas.
Os profissionais que conhecem a importância das readequações são mais afetados emocionalmente, pois são os mais conscientes do risco de infecção e possivelmente estão mais preocupados com as consequências da contaminação, o que é evidenciado na associação entre o maior uso de protetor facial com ansiedade e preocupação. A relativização da adesão aos cuidados, demonstrada com as respostas ao atendimento a quatro mãos “às vezes”, mostra que a incerteza quanto ao apoio de estrutura do local de trabalho pode gerar maior ansiedade e preocupação entre profissionais. Apesar de otimizar o trabalho, os auxiliares e técnicos em saúde bucal nem sempre estão presentes nas equipes de trabalho no setor privado, possivelmente pelo ônus financeiro agregado às clínicas, entretanto, o atendimento a quatro mãos é altamente recomendado, sendo enfatizado durante a pandemia por auxiliar na redução da geração de aerossóis, acelerar o atendimento e, consequentemente, reduzir o risco de contaminação2727 Vicente KMS, Silva BM, Barbosa DN, Pinheiro JCP, Leite RB. Diretrizes de biossegurança para o atendimento odontológico durante a pandemia do COVID-19: revisão de literatura. Rev Odontol Araçatuba 2020; 41(3):29-32..
Por outro lado, os profissionais que não suspenderam atendimentos eletivos estavam menos ansiosos e preocupados, possivelmente porque se acostumaram com a situação inadequada ao longo do tempo, ou pode sugerir descuido e negacionismo diante da gravidade da pandemia, sendo estes associados à menor chance de estresse ocupacional. De forma semelhante, estudo na Polônia mostrou que cirurgiões-dentistas que suspenderam seu trabalho clínico declaravam maior ansiedade do que os profissionais que não interromperam sua prática2222 Tysiac-Mista M, Dziedzic A. The attitudes and professional approaches of dental practitioners during the COVID-19 outbreak in Poland: a cross-sectional survey. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(13):4703.. Entretanto, de maneira geral, cirurgiões-dentistas parecem ter bom domínio de conhecimento sobre a COVID-19 e as readequações necessárias dentro dos serviços para minimizar os riscos de contaminação2828 Sotomayor-Castillo C, Li C, Kaufman-Francis K, Nahidi S, Walsh LJ, Liberali SAC, Irving E, Holden AC, Shaban RZ. Australian dentists' knowledge, preparedness, and experiences during the COVID-19 pandemic. Infect Dis Health 2022; 27(1):49-57..
No setor odontológico privado, a diminuição do fluxo de pacientes nos serviços foi observada em todo o mundo, tanto em atendimentos urgentes quanto eletivos2929 Villarim NLS, Muniz IAF, Perez DEC, Martelli Junior H, Machado RA, Cavalcanti YW, Bonan PRF. Evaluation of the economic impact of COVID-19 on Brazilian private dental clinics: a cross-sectional study. Work 2022;71(1):79-86., o que contribui para um prejuízo financeiro aos profissionais. Ainda, o impacto da COVID-19 na condição financeira dos cirurgiões-dentistas ultrapassa os fatores inerentes à suspensão de atendimentos durante um período crítico da pandemia, pois a condição econômica dos pacientes que frequentam clínicas odontológicas particulares está intrinsecamente relacionada à situação econômica do país. Dessa forma, a atual crise econômica brasileira, que envolve redução no poder de compra da população, altas taxas de desemprego e insegurança alimentar, soma-se aos impactos da pandemia, contribuindo para essa problemática3030 Alpino TMA, Santos CRB, Barros DC, Freitas CM. COVID-19 and food and nutritional (in)security: action by the Brazilian Federal Government during the pandemic, with budget cuts and institutional dismantlement. Cad Saude Publica 2020; 36(8):e00161320..
Os resultados obtidos neste estudo, em que os profissionais com maior estresse ocupacional foram as mulheres mais jovens e de formação mais recente, demonstram a precarização das relações de trabalho no setor odontológico privado. Na prática, são cada vez mais comuns os vínculos de trabalho que não garantem condições favoráveis de atendimento com EPIs adequados e submetem profissionais ao ganho salarial dependente de rendimento quantitativo de procedimentos, os quais sofreram redução ou paralisação abrupta no período de pandemia.
Assim, resultaram em substanciais prejuízos financeiros e, consequentemente, afetaram a saúde emocional desses trabalhadores. A falta de garantias relacionadas ao vínculo empregatício informalizado também desvaloriza e fragiliza as condições trabalhistas. A precarização da prática odontológica dentro da saúde suplementar é reconhecida pela literatura3131 Moraes DA, Maluf F, Tauil PL, Portillo JAC. Precarização do trabalho odontológico na saúde suplementar: uma análise bioética. Cien Saude Colet 2019; 24(3):705-714., e no Brasil é preciso admitir que existe uma grande oferta de cirurgiões-dentistas no mercado de trabalho, resultado do excesso de faculdades de odontologia no país, além da falta de regulação do mercado e de controle estatal3131 Moraes DA, Maluf F, Tauil PL, Portillo JAC. Precarização do trabalho odontológico na saúde suplementar: uma análise bioética. Cien Saude Colet 2019; 24(3):705-714..
Dessa forma, os achados podem estar refletindo consequências de problemáticas pré-existentes à pandemia dentro do mercado de trabalho no setor odontológico, em especial na região Sul, onde ocorreu este estudo, que depois do Sudeste concentra a maior parte de cirurgiões-dentistas do país3232 Martin ASS, Chisini LA, Martelli S, Sartori LRM, Ramos EC, Demarco FF. Distribuição dos cursos de odontologia e de cirurgiões-dentistas no Brasil: uma visão do mercado de trabalho. Rev ABENO 2018; 18(1):63-73.. Os resultados obtidos, fundamentados pelos conceitos dos modelos teóricos explorados3333 Cooper CL, Willians S, Sloan SJ. Occupational stress indicator management guide. London; Windsor: 1988.,3434 Griffiths A, Leka S, Cox T. La organización del trabajo y el estrés: estrategias sistemáticas de solución de problemas para empleadores, personal directivo y representantes sindicales [Internet]. 2004. [citado 16 de setembro de 2021]. Disponible en: https://apps.who.int/iris/handle/10665/42756
https://apps.who.int/iris/handle/10665/4... , ajudam, em parte, a explicar pontos de vista socioeconômicos envolvidos no estresse ocupacional entre cirurgiões-dentistas, sendo agravado durante a pandemia.
O fato de ter sido submetido a testagem para COVID-19, apesar de não estar associado ao nível de 5%, foi uma variável importante no ajuste do modelo explicativo final. Esse achado pode estar relacionado à incerteza quanto à possível infecção pela doença, que afetaria emocionalmente esses profissionais, sobretudo em um período em que não havia remédios comprovadamente eficazes para a doença nem vacinas disponíveis. Considerando a amostra composta por profissionais liberais do setor privado, que na maioria tinham apenas um vínculo de trabalho, além da preocupação com a própria saúde diante da doença infecciosa, o período necessário de isolamento e quarentena com o afastamento do trabalho traz impactos diretos na condição financeira deles, por isso se encontram apreensivos e preocupados com o futuro da profissão3535 De Stefani A, Bruno G, Mutinelli S, Gracco A. COVID-19 Outbreak Perception in Italian Dentists. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(11):e3867.,3636 Noushi N, Oladega A, Glogauer M, Chvartszaid D, Bedos C, Allison P. Dentists' experiences and dental care in the COVID-19 pandemic: insights from Nova Scotia, Canada. J Can Dent Assoc 2021; 87:l5..
O avanço da vacinação tem sido altamente eficaz no controle da COVID-193737 Zheng C, Shao W, Chen X, Zhang B, Wang G, Zhang W. Real-world effectiveness of COVID-19 vaccines: a literature review and meta-analysis. Int J Infect Dis 2022; 114:252-260. e pode impactar nas respostas dos profissionais que responderam ao questionário na fase inicial da pandemia. Assim, uma nova etapa de coleta será desenvolvida pela equipe multicêntrica de pesquisadores. Embora o instrumento de medição para o estresse ocupacional utilizado tenha sido proxy para estresse ocupacional, e não tenha sido publicada a validação de seu instrumento de pesquisa até a presente data, os dados aqui obtidos são concordantes com os achados da literatura sobre o tema1919 Silva DFO, Cobucci RN, Soares-Rachetti VP, Lima SCVC, Andrade FB. Prevalência de ansiedade em profissionais da saúde em tempos de COVID-19: revisão sistemática com metanálise. Cien Saude Colet 2021; 26(2):693-710.,2424 Maden EA, Özen B, Altun C. The effect of COVID-19 pandemic on life quality of dental professionals. J Health Sci Med 2022; 5(1):274-281..
Destaca-se que o período de coleta de dados foi de 10 de agosto a 7 de outubro de 2020, e devido ao prolongamento da pandemia em novas fases, acentuadas com o surgimento de novas variantes do vírus, os resultados devem ser analisados com cautela, já que podem não representar todo o período pandêmico. Uma limitação deste estudo é o viés de participação em um questionário online inerente à amostra de conveniência. No entanto, com a realização de cálculo amostral, verificou-se que o estudo teria um tamanho amostral adequado para representar o estado do Paraná.
Os achados do presente estudo reforçam a necessidade da criação de estratégias que minimizem os impactos emocionais sofridos por cirurgiões-dentistas do setor privado durante a pandemia de COVID-19. Cabe ao Conselho Federal e aos conselhos regionais de Odontologia possibilitar e incentivar a qualificação profissional por meio da educação permanente em saúde, proporcionando preparo e segurança para os profissionais atuarem na prática clínica. Ainda, cabe aos órgãos reguladores a fiscalização e a busca por melhoria de relações trabalhistas e de condições de trabalho do setor odontológico privado, visando a garantia de direitos dos profissionais, considerando que tais condições estão intrinsecamente relacionadas ao estresse ocupacional dos trabalhadores, com potencial impacto na saúde mental.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
23 Out 2023 - Data do Fascículo
Out 2023
Histórico
- Recebido
30 Jun 2022 - Aceito
01 Jun 2023 - Publicado
26 Jun 2023