Ensaio sobre estatísticas do crime e etnografias da insegurança

Essay on crime statistics and ethnographies of insecurity

Martinho Silva Sobre o autor

A coleção Ensaios da Fundação visa contribuir para a identificação e a resolução dos problemas portugueses, assim como para promover o debate público, sendo que o ensaio sobre crime escrito pela professora Manuela Ivone Cunha, docente da Universidade do Minho (Braga, Portugal), o faz de modo exemplar. Em primeiro lugar, o ensaio da autora11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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contribui para revelar como esse problema é identificado: a polícia aponta para um tipo de contabilização, o tribunal para uma mensuração de outra fatia dessa realidade, desdobrando-se em estatísticas diferentes, sendo que nenhuma delas reflete diretamente a criminalidade praticada. Assim, “O aumento dos números relativos a crimes de tráfico de droga, por exemplo, pode refletir não tanto o aumento do tráfico em si, mas sim a intensificação da atividade policial na sua repressão”11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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(p. 62). Em segundo lugar, a resposta governamental ao problema social pode alterar a estatística oficial, já que pode induzir práticas policiais que terminam por elevar taxas de criminalidade, como quando a autora narra a intervenção da Inspeção-Geral da Administração Interna em 2015: “recomendou que as polícias passassem a aceitar sempre as queixas que lhe chegavam, diminuindo assim a margem de discricionariedade no registro...”11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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(p. 83). Em terceiro e último lugar, a autora problematiza a relação entre os dados apresentados em três fontes documentais: estatísticas oficiais, etnografias no espaço urbano e estudos com vítimas de atos tipificados penalmente como crimes. Dessa maneira, o ensaio suscita uma ampla discussão acerca de “narrativas políticas”, “leituras distorcidas” e “ficção mediática” em torno do “fenômeno da insegurança”11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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(p. 34). Seria ele relevante para compreender esse fenômeno na realidade brasileira?

O ensaio de 105 páginas se divide em sete capítulos: além da Introdução, das Referências Bibliográficas e dos Agradecimentos, temos “Os muitos sentidos do crime”, “Os muitos sentidos da (in)segurança”, “No encalço do medo: ferramentas de leitura, contextos e tendências”, “No encalço do crime: ferramentas de leitura”, “Tendências da criminalidade: curtas-metragens e longa-metragens”, “Rumos, interrogações e respostas” e “Para saber mais”. Pesquisadores podem se sentir inclinados a buscar o sétimo e último capítulo, repleto de indicações de leituras, como manuais, coletâneas, artigos, livros e dossiês sobre o tema, em língua inglesa, francesa e portuguesa. Entretanto, a perspectiva teórico-metodológica desenvolvida pela autora, “uma abordagem por comparação e contraste”11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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(p. 8), permite notar as semelhanças e, principalmente, as diferenças entre crime, desvio, dano e marginalidade, bem como entre medo e insegurança, assim como entre sentimentos, preocupações e percepções, de maneira que os demais seis capítulos se tornam indispensáveis para leigos e especialistas. Torna-se de particular interesse para ambos o quinto e o sexto capítulo, já que neles assistimos a uma aula sobre o modo por meio do qual se pode - e por vezes se deve - ler estatísticas oficiais acerca do crime ao longo dos anos - e de preferência décadas - em poucas páginas.

Como o trecho a seguir sugere, não basta acompanhar essas taxas em apenas um país e olhando para a diferença entre alguns anos para chegar a afirmações conclusivas sobre a criminalidade: “Se é hoje incontroverso que nesta altura o declínio do crime violento foi real, já é mais incerto concluir que esse declínio se acompanhou, em paralelo, de uma subida dos crimes contra a propriedade. Reconhece-se hoje que os dados disponíveis não permitem afinal saber até que ponto se tratou de uma subida efetiva, ou se a proporção crescente destes crimes nos números da criminalidade se devem sobretudo a tribunais e polícias mais atentos...”11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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(p. 74-75, grifo meu). Seja em situações nas quais uma intervenção é desencadeada exclusivamente por iniciativa da instituição policial, judiciária ou mesmo penitenciária, seja em ocasiões nas quais a opinião pública está particularmente ativa em torno de uma questão de ordem moral, como o aborto, as drogas, a corrupção ou as sexualidades dissidentes, há implicações distintas para a determinação do fenômeno do crime e a própria tipificação penal.

Não é a primeira vez que a autora mostra a importância de acompanhar um fenômeno durante décadas, e não apenas anos, já que sua etnografia em uma prisão feminina ilustra com clareza o impacto dessa perspectiva de longo prazo na interpretação do sistema penitenciário em sua articulação - para ser mais exato, em sua ausência de fronteira - com atividades (o tráfico de drogas), relações (o parentesco) e redes (as vizinhanças) sociais22 Cunha MI. Entre o bairro e a prisão: tráfico e trajectos. Lisboa: Fim de século - Edições; 2021. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://books.openedition.org/etnograficapress/476
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. Combinando estatística e etnografia, mostra o que chama de “elemento homogeneizador da população reclusa”22 Cunha MI. Entre o bairro e a prisão: tráfico e trajectos. Lisboa: Fim de século - Edições; 2021. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://books.openedition.org/etnograficapress/476
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(p. 61): pena longa por crime de tráfico de drogas e pertencimento a alguns bairros específicos da cidade.

No primeiro capítulo, apresenta diversos exemplos para demonstrar a “variabilidade nas definições de crime e nas regras de seu registro”11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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(p. 15), bem como que “a concepção jurídica de crime e noções morais sobre o que é errado ou reprovável podem intersetar-se, mas não são necessariamente coincidentes”11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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(p. 19), de maneira que uma pessoa pode infringir uma norma legal sem fazê-lo com uma social e vice-versa, ou seja, ser condenado por um tribunal mas aclamado pela sociedade no primeiro caso e ser alvo de repúdio moral sem nunca ter cometido um crime. O segundo capítulo aponta para aquilo que escapa aos registros policiais, as chamadas “cifras negras”, acessíveis por meio dos designados inquéritos de “vitimação” e “delinquência autorrevelada”, nos quais as vítimas de alguns crimes revelam o que fica oculto quando se lê apenas estatísticas oficiais: em 1994, “apenas chegaram a ser participados às polícias pouco mais de um quarto do total de crimes identificados...”11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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(p. 29, grifo meu). No terceiro capítulo, etnografias no espaço urbano se agregam às estatísticas oficiais e aos estudos com as vítimas de crimes para demonstrar que “O sentimento de insegurança depende assim, em grande medida, das interações com os outros e do modo como se constrói a confiança nas relações sociais”.11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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(p. 43). Crime contra a pessoa ou a propriedade? Cometido no espaço público ou doméstico? Entre conhecidos ou desconhecidos? Contra mulheres ou homens, idosos ou jovens? Moradores de um local bem ou mal iluminado?

Essas e outras perguntas se tornam fundamentais para problematizar o chamado “paradoxo da insegurança”, que contraria a ideia comum segundo a qual o aumento do crime necessariamente agrava o sentimento de insegurança, em uma relação causal, quase mecânica entre os dois fenômenos. Esses e outros contrastes entre etnografias, estudos e estatísticas ajudam a compreender o que aparentemente soa como contraditório no terceiro capítulo: “Portugal foi então salientado pelos analistas desses inquéritos em virtude de, em contraponto a um dos mais baixos riscos de vitimação, se encontrar entre os países mais ansiosos e pessimistas, isto é, com níveis de receio mais elevados”11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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(p. 46). Para além da dicotomia subjetivo-objetivo, no quarto capítulo a autora é categórica sobre tais estatísticas, etnografias e inquéritos: “cada um deles nos dá acesso a uma realidade, ao mesmo tempo que esconde outras”11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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(p. 54, grifo da autora). Inclusive, a dicotomia virtual-real suscita hipóteses no sexto capítulo, quando é abordada a emergência dos crimes informáticos no mundo contemporâneo: “várias formas de criminalidade podem ter sido transferidas da ‘rua’ física, agora até certo ponto mais blindada contra incidentes criminais, para a ‘rua’ virtual, por enquanto mais abrigada de formas clássicas de controlo”11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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(p. 91).

Para quem ainda tem alguma dúvida sobre a importância desse ensaio para áreas como violência e saúde, saúde penitenciária e política de drogas no Brasil, basta se deter no trecho a seguir e relembrar o governo federal entre os anos 2018-2022: “Se, em geral, os níveis de violência criminal e atentatória dos direitos humanos são um dos indicadores cuja utilização suscita poucas dúvidas, o mesmo não se poderá dizer dos níveis de conflitualidade social interna, indicador cujo sentido não é provavelmente o mesmo no contexto de um regime autoritário que inibe ou silencia a sua expressão por vias ilegítimas e pouco consentâneas com um Estado de direito, ou no contexto de uma democracia que admite a sua manifestação aberta...”11 Cunha MI. Criminalidade e segurança. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos; 2019. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://www.ffms.pt/pt-pt/livraria/criminalidade-e-seguranca
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(p. 78, grifo meu). Inventariar as respostas governamentais já construídas para solucionar problemas criminais pode não ser suficiente, mas já apontaria algum horizonte em nosso cenário nacional marcado por amplas desigualdades sociais e parcos recursos financeiros para compreendê-las e intervir no sentido de diminuí-las.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Out 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br