Resumo
O acesso ao cuidado médico é essencial para o alcance da atenção primária à saúde (APS) de qualidade. No Brasil, ainda persistem dificuldades de acesso. O Programa Médicos pelo Brasil (PMpB) pretende ampliar a oferta de serviços médicos em locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade. Traz como inovações a priorização das menores e mais isoladas cidades; a seleção de profissionais por processo isonômico; a formação em medicina de família e comunidade; e o fato de ser a primeira carreira médica federal na APS, com salários competitivos, progressão e incentivos financeiros que valorizam a longitudinalidade e o desempenho. O PMpB é executado pela Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), o que permite mais eficiência na gestão da política pública. Os primeiros nove meses do programa mostram resultados promissores, com aproximadamente 23 mil médicos interessados em ingressar no programa por meio de seu processo seletivo, 97,1% de ocupação das vagas e 95,4% de permanência após o ingresso. Tais resultados sinalizam o avanço de qualidade do PMpB em relação às políticas anteriores, bem como a necessidade de continuar com sua implementação, a fim de que ela atinja todo o seu potencial de cobertura na APS do SUS.
Palavras-chave:
Atenção primária à saúde; Política de saúde; Medicina de família e comunidade; Acesso aos serviços de saúde
Introdução
A atenção primária à saúde (APS) bem implementada é capaz de resolver a maior parte dos problemas de saúde apresentados pelas pessoas, e nesse cenário, o trabalho do médico é fundamental11 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002.. Contudo, existe no Brasil uma grande desigualdade no acesso ao cuidado médico, sendo o acesso um dos atributos mais desafiadores para a estruturação da APS22 Tesser CD, Norman AH, Vidal TB. Acesso ao cuidado na Atenção Primária à Saúde brasileira: situação, problemas e estratégias de superação. Saude Debate 2018; 42(S1):361-378.. No que diz respeito à disponibilidade de cuidados médicos na APS, atualmente essa desigualdade deriva mais da distribuição de médicos pelo país do que propriamente do total de médicos em atuação. Cidades menores e com predominância de população rural apresentam menor disponibilidade de médicos quando comparadas às grandes cidades. Municípios do interior das regiões Norte e Nordeste chegam a apresentar densidade de 0,2 médicos por mil habitantes, enquanto as capitais da região Sudeste chegam a ter mais de 13,7 médicos por mil habitantes33 Scheffer M. Demografia médica no Brasil 2020. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, Conselho Federal de Medicina; 2020..
As iniciativas governamentais de melhoria do acesso aos cuidados médicos no Brasil tiveram origem na década de 197044 Maciel Filho R. Estratégias para a distribuição e fixação de médicos em sistemas nacionais de saúde: o caso brasileiro [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.. Os graus de sucesso obtidos foram variados, sendo possível afirmar que ocorreu ampliação na oferta de serviços médicos no âmbito da APS, ainda que não tenha se dado homogeneamente pelo país. O acesso segue sendo um desafio a ser enfrentado em determinadas localidades do país, bem como a retenção dos profissionais nos municípios e a qualidade da atenção ofertada na APS44 Maciel Filho R. Estratégias para a distribuição e fixação de médicos em sistemas nacionais de saúde: o caso brasileiro [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.
5 Metade dos brasileiros desiste do Mais Médicos em até 1 ano e meio. Folha de São Paulo 2018; 30 nov.-66 Brasil. Tribunal de Contas da União (TCU). Auditoria Operacional do Projeto Mais Médicos para o Brasil. [Internet]. 2017 mar 15. [acessado 2022 nov 11]. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/auditoria-operacional-no-projeto-mais-medicos-para-o-brasil.htm
https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-dig... . É fundamental atuar sobre a retenção e qualificação profissional, a fim de atingir melhores indicadores de longitudinalidade, integralidade e coordenação do cuidado, essenciais na implementação efetiva da APS11 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002..
A partir dessa realidade, surge o Programa Médicos pelo Brasil (PMpB)77 Brasil. Lei nº 13.958, de 18 de dezembro de 2019. Institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), e autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Diário Oficial da União 2019; 19 dez.. Tem como finalidade incrementar a prestação de serviços médicos na APS em locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade e fomentar a formação de médicos especialistas em medicina de família e comunidade. Entre as principais diretrizes do Programa estão: a definição de localidades elegíveis ao provimento médico federal e o respectivo dimensionamento da força de trabalho médica a partir de critérios técnicos associados à dificuldade de provimento médico e vulnerabilidade individual das pessoas; a seleção e formação de médicos com competências de excelência para atuação na APS; e a estruturação de carreira médica federal comprometida com a viabilização de melhores condições de trabalho e resultados em saúde das pessoas atendidas.
O programa configura-se como a atual estratégia de provimento médico federal perene para a APS, e é executado pela Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), uma estrutura criada para, entre outras atribuições, dedicar-se à execução do PMpB.
Os médicos do PMpB começaram a atuar em abril de 2022. Neste artigo apresentamos os primeiros resultados do programa.
Resultados e discussão
Criação e implantação da Adaps
A autorização da criação da Adaps se deu no bojo da criação do Programa Médicos pelo Brasil, a partir de ampla discussão no Congresso Nacional, e com atores interessados da sociedade civil. A Adaps, instituição de interesse público sem fins lucrativos, cuja personalidade jurídica é a de serviço social autônomo (SSA), atuando no desenvolvimento da APS do SUS, sob os termos da contratualização estabelecida com o Ministério da Saúde e fiscalização das instâncias responsáveis.
A adoção do modelo de SSA, segundo estudos que analisam casos concretos de instituições dessa natureza jurídica e suas respectivas aplicações, propõem-se a superar a rigidez da administração pública brasileira88 Junior LAP, Saddy A, Knopp GC, Aureliano Junior E. Serviço social autônomo: alternativa à implementação de políticas públicas não exclusivas de Estado. A&C - R de Dir Adm Const 2018; 18(72):255-289.. A Adaps foi criada pelo Decreto Federal nº 10.283/202099 Brasil. Decreto nº 10.283, de 20 de março de 2020. Institui o Serviço Social Autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde - Adaps. Diário Oficial da União 2020; 21 mar. e efetivamente operacionalizada pelo Ministério da Saúde a partir de outubro de 2021. Em menos de 100 dias após sua implantação efetiva, a Adaps já executava operações de grande escala, como a realização de processo seletivo para contratação inicial de quase 2.000 médicos por todo o Brasil1010 Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Solicitação de apresentação de candidatos convocados [Internet]. [acessado 2022 nov 11]. Disponível em: https://www.adapsbrasil.com.br/convocacoes/
https://www.adapsbrasil.com.br/convocaco... .
Contribuíram para a gestão ágil, a célere definição de objetivos e resultados estratégicos no planejamento organizacional, os processos organizacionais mapeados e padronizados, a contratação de soluções digitais que permitissem, por exemplo, a admissão digital simultânea de grande volume de médicos e a disponibilização de sítio eletrônico que dá publicidade às operações envolvidas na seleção, convocação e admissão dos médicos.
A Adaps surge, portanto, como um potente modelo inovador no cenário da gestão do SUS1111 Alexandrino M. Direito administrativo descomplicado. Rio de Janeiro: Método; 2021., buscando dar mais agilidade e eficiência à gestão, ao mesmo tempo em que atua observando os princípios da administração pública, comprometida com o fortalecimento do SUS e com a busca de soluções com foco no cidadão1212 Wollmann L, Pereira D'Avila O, Harzheim E. Programa Médicos pelo Brasil: mérito e equidade. Rev Bras Med Fam Comunidade 2020; 15(42):2346..
Programa Médicos pelo Brasil
Redistribuição das vagas
O PMpB apresenta novos critérios de alocação das vagas nos municípios como uma das marcas do aperfeiçoamento de estratégias nacionais de provimento médico. São priorizados os municípios remotos e as regiões mais vulneráveis dentro dos municípios. Para tanto, são utilizados critérios primários (com maior peso) e critérios secundários1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS nº 3.352, de 2 de dezembro de 2021. Dispõe sobre a metodologia de priorização de municípios e de dimensionamento de vagas e define a relação dos municípios elegíveis e o quantitativo máximo de vagas no âmbito do Programa Médicos pelo Brasil. Diário Oficial da União 2021; 3 dez.. Os critérios primários foram estabelecidos na Lei do Programa, e são constituídos pela tipologia do município, definida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1414 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. Rio de Janeiro: IBGE; 2017. e pelo número de pessoas em alta vulnerabilidade social, obtido a partir do número de pessoas cadastradas nas equipes de saúde da família, no Programa Bolsa Família, no Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou benefício previdenciário no valor máximo de dois salários-mínimos. A priorização de áreas remotas e/ou com população em situação de vulnerabilidade social favorece o provimento em áreas com maior demanda por serviços de saúde, e que também têm maior dificuldade para atração de médicos. Os critérios secundários1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS nº 3.352, de 2 de dezembro de 2021. Dispõe sobre a metodologia de priorização de municípios e de dimensionamento de vagas e define a relação dos municípios elegíveis e o quantitativo máximo de vagas no âmbito do Programa Médicos pelo Brasil. Diário Oficial da União 2021; 3 dez., utilizados para aprofundar a análise e ponderar o dimensionamento de vagas por localidade, são: arrecadação tributária municipal per capita, população municipal SUS dependente, internações por condições sensíveis à APS no município e cobertura municipal da Estratégia de Saúde da Família.
Com a mudança dos critérios houve um deslocamento do quantitativo de vagas para as regiões Norte e Nordeste, que agora recebem 56% das vagas, e para os municípios de característica rural e isolados de grandes centros urbanos. A título de comparação, no Projeto Mais Médicos (PMM), as regiões Norte e Nordeste recebiam 48% das vagas.
No PMpB estão previstas 21.527 vagas, um aumento de aproximadamente 20% em relação às 17.977 disponíveis no PMM (Tabela 1). As vagas do PMM estão distribuídas em 3.873 municípios, enquanto no PMpB há previsão de que 5.233 municípios possam receber médicos. Com a mudança dos critérios de distribuição de vagas, é nítido o benefício das localidades indígenas e municípios remotos.
Atração e seleção de médicos
O PMpB contrata médicos em dois cargos distintos: médico de família e comunidade (MFC) e tutor médico. Para ambos, é necessário que o médico tenha registro no Conselho Federal de Medicina e seja aprovado em prova escrita. Para o cargo de tutor médico é necessário que o profissional tenha especialidade em medicina da família e comunidade ou clínica médica. Para o cargo de MFC, o médico deve fazer formação de dois anos e prova final para habilitação com especialista reconhecido pela Associação Médica Brasileira. Os tutores médicos, além de prover assistência na equipe para a qual foram designados, auxiliam na formação dos médicos em formação.
Já foram realizados dois processos seletivos para o PMpB, o primeiro em dezembro de 2021 e o outro em setembro de 2022. Entre os editais de seleção de 2021 e 2022, foram realizadas melhorias, como mudanças no regramento de indicação de local de interesse e realização da prova na modalidade online. Houve aumento do interesse de candidatos pelo programa, redução do tempo decorrido entre publicação do edital e homologação de resultados, e aumento do banco de candidatos habilitados e aptos a iniciarem as atividades (Tabela 2).
Plano de carreira
O PMpB inovou ao criar a carreira médica da APS1515 Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Resolução nº 6, de 20 de dezembro de 2021. Dispõe sobre a Estrutura de Plano de Cargos, Salários e Benefícios para os profissionais médicos de família e comunidade e tutores médicos da atenção primária participantes do Programa Médicos pelo Brasil e dá outras providências [Internet]. 2021. [acessado 2022 nov 11]. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-6-de-20-de-dezembro-de-2021-368992134
https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao... . Os médicos empregados da Adaps são contratados via CLT. A carreira apresenta quatro níveis de progressão, com remuneração acima da média de mercado para a especialidade, e progressão a cada cinco anos. Foram implementados também incentivos adicionais de valorização do desempenho1616 Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Portaria nº 11, de 19 de agosto de 2022. Institui o Plano de Cargos, Salários e Benefícios para os cargos de Tutor Médico e Médico de Família e Comunidade da carreira de Médicos da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde [Internet]. 2022. [acessado 2022 nov 11]. Disponível em: https://www.adapsbrasil.com.br/wp-content/uploads/2022/08/Portaria_no_11_de_19_de_agosto_de_2022_Plano_de_Cargos_e_Salarios_PMpB_assinado.pdf
https://www.adapsbrasil.com.br/wp-conten... . A avaliação de desempenho é feita a partir da mensuração de indicadores de qualidade assistencial, desenvolvimento de competências profissionais e realização de atividades de educação continuada.
Os médicos tutores recebem um incentivo específico por essa atribuição. Médicos atuando em municípios rurais, remotos ou DSEI também recebem uma remuneração adicional. Os indicadores de desempenho têm como premissa o alinhamento com aqueles buscados por todas equipes no âmbito do componente de desempenho do financiamento federal da APS.
Assim, busca-se conjugar esforços e ter efeitos sinérgicos entre gestores, equipes e médicos do programa na melhoria do acompanhamento de agravos crônicos e outras condições frequentes na APS. Também foi implementada a possibilidade de movimentação dos médicos entre os diferentes municípios, priorizando a movimentação dos médicos há mais tempo no programa, que atuam em locais de maior dificuldade de provimento e que apresentam melhor avaliação de desempenho.
Todas essas características têm como objetivo permitir a permanência efetiva dos médicos nos locais de trabalho, ao mesmo tempo em que valorizam os médicos com melhor desempenho, que atuam nos locais de maior dificuldade de provimento e que estão responsáveis pela formação de novos MFCs1717 World Health Organization (WHO). WHO guideline on health workforce development, attraction, recruitment and retention in rural and remote areas. Genebra: WHO; 2021..
Ocupação e retenção profissional
Os médicos aprovados no processo seletivo foram progressivamente convocados para as 5.000 vagas disponibilizadas para ocupação pelo PMpB em 20221818 Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Resolução nº 5, de 15 de dezembro de 2021. Dispõe sobre o Contrato de Gestão para o desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde [Internet]. 2021. [acessado 2022 nov 11]. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-5-de-15-de-outubro-de-2021-352701180
https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao... , de acordo com a nota obtida na seleção e o local escolhido pelo médico para atuar. Foram 22 convocações nos primeiros 9 meses, com tempo médio de aproximadamente 12 dias entre as convocações, totalizando 12.126 médicos convocados.
Ao final de 2022, o percentual de vagas ocupadas foi de 97,1%, com 4.855 médicos em atuação. Dos 2.835 municípios com vagas previstas para ocupação em 2022, 2.777 já tinham médicos do Programa atuando. Do total de médicos contratados, apenas 4,6% foram desligados, principalmente a pedido do próprio médico. A meta de ocupação de vagas para o primeiro ano do programa é de 35%, enquanto a meta de desligamentos do cargo de MFC é de até 30%1515 Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Resolução nº 6, de 20 de dezembro de 2021. Dispõe sobre a Estrutura de Plano de Cargos, Salários e Benefícios para os profissionais médicos de família e comunidade e tutores médicos da atenção primária participantes do Programa Médicos pelo Brasil e dá outras providências [Internet]. 2021. [acessado 2022 nov 11]. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-6-de-20-de-dezembro-de-2021-368992134
https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao... . Os resultados apontam para a alta adesão e permanência dos médicos no Programa e superam as metas estabelecidas pelo Ministério da Saúde, por meio de seu Contrato de Gestão com a Adaps1818 Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Resolução nº 5, de 15 de dezembro de 2021. Dispõe sobre o Contrato de Gestão para o desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde [Internet]. 2021. [acessado 2022 nov 11]. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-5-de-15-de-outubro-de-2021-352701180
https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao... .
Os resultados acima indicam a adoção de estratégias adequadas para manutenção do médico no Programa. A título de comparação, 54% dos médicos brasileiros que participaram do Projeto Mais Médicos entre 2013 e 2017 foram desligados do programa em até um ano e meio após o início de suas atividades55 Metade dos brasileiros desiste do Mais Médicos em até 1 ano e meio. Folha de São Paulo 2018; 30 nov..
Formação profissional
Os médicos que ingressaram para o cargo de MFC da Adaps devem, como parte de seu processo seletivo, fazer o Curso de Especialização em Medicina de Família e Comunidade (CEMFC)1919 Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde. Plano pedagógico de curso de pós-graduação. In: Especialização em Medicina de Família e Comunidade. Brasília: UNA-SUS; 2022.. O CEMFC é um modelo de formação profissional inédito no Brasil, desenvolvido especificamente para o Programa, a partir da matriz de competências da especialidade. Ele foi preparado utilizando metodologias consolidadas de formação de médicos1919 Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde. Plano pedagógico de curso de pós-graduação. In: Especialização em Medicina de Família e Comunidade. Brasília: UNA-SUS; 2022.. O curso tem enfoque no cuidado clínico, para que, ao final dos dois anos de formação, os médicos tenham desenvolvido todas as competências necessárias para oferecer um atendimento resolutivo.
A formação tem carga horária de 60h semanais (40h assistenciais + 20h de atividades teóricas). As atividades teóricas são realizadas em formato a distância e assíncrono. Os médicos em formação serão supervisionados por um tutor clínico, com quem passam uma semana a cada dois meses em supervisão contínua, a fim de apoiar, supervisionar e avaliar o desenvolvimento das competências profissionais. Além disso, recebem uma tutoria acadêmica no componente teórico da formação.
A avaliação dos profissionais é outra novidade importante do PMpB. Os médicos são periodicamente acompanhados em relação ao seu desempenho acadêmico e seu desenvolvimento de competências clínicas e profissionais. Também são acompanhados os indicadores de qualidade assistencial, a exemplo dos médicos já empregados da Adaps.
Ao longo do curso, os médicos recebem uma bolsa-formação. Ao final da formação, deverão fazer prova de título para habilitação profissional como especialistas em MFC reconhecidos pela Associação Médica Brasileira. Isso garante um último ponto de controle da qualidade da formação dos médicos, bem como certifica tal qualidade, além de permitir o aumento significativo do número de especialistas em MFC no país. Os médicos aprovados ingressam automaticamente na contratação CLT da Adaps.
Considerações finais
Os primeiros resultados apresentados pelo PMpB são significativos. Houve grande e crescente procura pelos processos seletivos do programa. Ao mesmo tempo, os dados de permanência dos médicos contratados sinalizam um futuro promissor no que se refere ao potencial do PMpB como política de retenção de médicos, problema para o qual as políticas de provimento anteriores ainda não haviam encontrado solução satisfatória44 Maciel Filho R. Estratégias para a distribuição e fixação de médicos em sistemas nacionais de saúde: o caso brasileiro [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.
5 Metade dos brasileiros desiste do Mais Médicos em até 1 ano e meio. Folha de São Paulo 2018; 30 nov.-66 Brasil. Tribunal de Contas da União (TCU). Auditoria Operacional do Projeto Mais Médicos para o Brasil. [Internet]. 2017 mar 15. [acessado 2022 nov 11]. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/auditoria-operacional-no-projeto-mais-medicos-para-o-brasil.htm
https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-dig... . Além disso, a capacidade de ocupação tem se mostrado efetiva, graças à execução do programa pela Adaps, que oferece maior agilidade na organização dos procedimentos de atração, seleção, convocação e alocação dos médicos. O plano de carreira dos médicos do PMpB, grande estratégia para a retenção profissional, também só é possível por meio da execução da política pela Adaps.
Novas políticas públicas surgem com o objetivo de avançar sobre o que já foi feito. O PMpB surge orientado por essa realidade. Corrigindo distorções e fragilidades das políticas de provimentos anteriores, ele aumentou a efetividade do provimento médico do Brasil por meio da redistribuição das vagas para os locais com maiores dificuldades de acesso, do aumento da capacidade de atração e retenção de médicos, da redução do tempo de ociosidade das vagas desocupadas e da qualificação da formação profissional.
Ainda existem desafios a serem superados. O PMpB precisa se expandir para atender às mais de 20 mil equipes previstas para receber os médicos do programa em 5.233 municípios1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS nº 3.352, de 2 de dezembro de 2021. Dispõe sobre a metodologia de priorização de municípios e de dimensionamento de vagas e define a relação dos municípios elegíveis e o quantitativo máximo de vagas no âmbito do Programa Médicos pelo Brasil. Diário Oficial da União 2021; 3 dez., e expandir-se melhorando os seus processos de recrutamento, seleção, acolhimento, suporte, retenção e formação dos médicos e apoio aos gestores. Além disso, por melhores que sejam os mecanismos estabelecidos, é provável que algumas localidades continuem com dificuldade de provimento. Dada essa histórica camada de saturação do provimento médico presencial, a criação da Adaps permite que soluções inovadoras sejam desenvolvidas para atender aos locais que o PMpB não consegue chegar, identificados pela própria agência. A telemedicina se apresenta como uma possibilidade a ser considerada. E assim se reinicia o ciclo de planejamento, implementação, avaliação e melhoria da política pública.
Por fim, a Adaps, como o seu próprio nome diz, foi criada para a execução de quaisquer ações que tenham por objetivo o desenvolvimento da APS. A partir dos resultados apresentados por sua primeira ação, o PMpB, a agência se coloca como parceira estratégica da administração pública para atender cada vez melhor às pessoas que utilizam a APS do SUS.
Referências
- 1Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002.
- 2Tesser CD, Norman AH, Vidal TB. Acesso ao cuidado na Atenção Primária à Saúde brasileira: situação, problemas e estratégias de superação. Saude Debate 2018; 42(S1):361-378.
- 3Scheffer M. Demografia médica no Brasil 2020. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, Conselho Federal de Medicina; 2020.
- 4Maciel Filho R. Estratégias para a distribuição e fixação de médicos em sistemas nacionais de saúde: o caso brasileiro [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.
- 5Metade dos brasileiros desiste do Mais Médicos em até 1 ano e meio. Folha de São Paulo 2018; 30 nov.
- 6Brasil. Tribunal de Contas da União (TCU). Auditoria Operacional do Projeto Mais Médicos para o Brasil. [Internet]. 2017 mar 15. [acessado 2022 nov 11]. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/auditoria-operacional-no-projeto-mais-medicos-para-o-brasil.htm
» https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/auditoria-operacional-no-projeto-mais-medicos-para-o-brasil.htm - 7Brasil. Lei nº 13.958, de 18 de dezembro de 2019. Institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), e autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Diário Oficial da União 2019; 19 dez.
- 8Junior LAP, Saddy A, Knopp GC, Aureliano Junior E. Serviço social autônomo: alternativa à implementação de políticas públicas não exclusivas de Estado. A&C - R de Dir Adm Const 2018; 18(72):255-289.
- 9Brasil. Decreto nº 10.283, de 20 de março de 2020. Institui o Serviço Social Autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde - Adaps. Diário Oficial da União 2020; 21 mar.
- 10Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Solicitação de apresentação de candidatos convocados [Internet]. [acessado 2022 nov 11]. Disponível em: https://www.adapsbrasil.com.br/convocacoes/
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- 12Wollmann L, Pereira D'Avila O, Harzheim E. Programa Médicos pelo Brasil: mérito e equidade. Rev Bras Med Fam Comunidade 2020; 15(42):2346.
- 13Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS nº 3.352, de 2 de dezembro de 2021. Dispõe sobre a metodologia de priorização de municípios e de dimensionamento de vagas e define a relação dos municípios elegíveis e o quantitativo máximo de vagas no âmbito do Programa Médicos pelo Brasil. Diário Oficial da União 2021; 3 dez.
- 14Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. Rio de Janeiro: IBGE; 2017.
- 15Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Resolução nº 6, de 20 de dezembro de 2021. Dispõe sobre a Estrutura de Plano de Cargos, Salários e Benefícios para os profissionais médicos de família e comunidade e tutores médicos da atenção primária participantes do Programa Médicos pelo Brasil e dá outras providências [Internet]. 2021. [acessado 2022 nov 11]. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-6-de-20-de-dezembro-de-2021-368992134
» https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-6-de-20-de-dezembro-de-2021-368992134 - 16Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Portaria nº 11, de 19 de agosto de 2022. Institui o Plano de Cargos, Salários e Benefícios para os cargos de Tutor Médico e Médico de Família e Comunidade da carreira de Médicos da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde [Internet]. 2022. [acessado 2022 nov 11]. Disponível em: https://www.adapsbrasil.com.br/wp-content/uploads/2022/08/Portaria_no_11_de_19_de_agosto_de_2022_Plano_de_Cargos_e_Salarios_PMpB_assinado.pdf
» https://www.adapsbrasil.com.br/wp-content/uploads/2022/08/Portaria_no_11_de_19_de_agosto_de_2022_Plano_de_Cargos_e_Salarios_PMpB_assinado.pdf - 17World Health Organization (WHO). WHO guideline on health workforce development, attraction, recruitment and retention in rural and remote areas. Genebra: WHO; 2021.
- 18Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Resolução nº 5, de 15 de dezembro de 2021. Dispõe sobre o Contrato de Gestão para o desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde [Internet]. 2021. [acessado 2022 nov 11]. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-5-de-15-de-outubro-de-2021-352701180
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
10 Nov 2023 - Data do Fascículo
Nov 2023
Histórico
- Recebido
09 Jan 2023 - Aceito
21 Mar 2023 - Publicado
23 Mar 2023