Consumo de medicamentos não padronizados na saúde indígena: uso racional?

Consumption of non-standard medication in indigenous health: rational usage?

Larissa Torres Fernandes Tânia Alessandra Alves Ayala Reile Moreira de Amorim Firmato Tatiane da Silva Matos Fernanda de Oliveira Ferreira Carina Carvalho Silvestre Patrícia Aparecida Baumgratz de Paula Sobre os autores

Resumo

O estudo analisou o consumo de medicamentos não padronizados na saúde indígena, enfatizando a racionalidade da farmacoterapia, por meio de um estudo transversal dos dados secundários, de 2018 e 2019, no Distrito Especial Sanitário de Saúde Indígena Minas Gerais/Espírito Santo. Esses medicamentos foram classificados pela Anatomical Therapeutic Chemical Classification. Para a comparação da origem de prescrição e da forma de aquisição, empregaram-se testes não paramétricos, avaliando o acesso a medicamentos. Verificou-se a racionalidade por meio do perfil de consumo e da opção terapêutica na lista de medicamentos padronizados. Foram consumidas 104.928 apresentações farmacêuticas, 66.967 (66%) eram para o trato alimentar e o metabolismo; 17.705 (17%) para o sistema nervoso; 12.961 (12%) para o sistema cardiovascular. Quanto aos medicamentos mais consumidos por regiões, 171 (90%) dos 190 apresentavam opção terapêutica. As prescrições foram mais provenientes do SUS. Encontraram-se diferenças na forma de aquisição dos medicamentos. O estudo apontou importante consumo de medicamentos não padronizados, podendo existir falhas na racionalidade terapêutica. Na saúde indígena, questões etnoculturais e sociais constituem desafios para o acesso aos medicamentos com uso racional.

Key words:
Rational use of medication; Unified Health System; Health of indigenous peoples; Pharmaceutical services

Abstract

The study analyzed the consumption of non-standard medication in the health of indigenous peoples, emphasizing the rationality of pharmacotherapy, by conducting a cross-sectional study of secondary data from 2018 and 2019 in the Minas Gerais/Espírito Santo Special Sanitary Indigenous Health Districts. These medicines were classified by Anatomical Therapeutic Chemical Classification. Non-parametric tests were applied to compare the origin of prescription and the form of acquisition, assessing access to medication. Rationality was verified through the consumption profile and the therapeutic option in the list of standardized medicines. A total of 104,928 pharmaceutical presentations were consumed, 66,967 (66%) for the alimentary tract and metabolism, 17,705 (17%) for the nervous system, and 12,961 (12%) for the cardiovascular system. With respect to medicines consumed per region, 171 (90%) out of 190 had a therapeutic option. Prescriptions were more from the SUS. Differences were found in the way the medicines were acquired. The study pointed to significant consumption of non-standard medicines, and there may be failings in therapeutic rationality. In indigenous health, ethnocultural and social issues are challenges to access to medicines with rational use.

Key words:
Rational use of medication; Unified Health System; Health of indigenous peoples; Pharmaceutical services

Introdução

No Brasil, a partir dos anos de 1990, o uso racional de medicamentos (URM) teve centralidade na agenda da saúde, seguindo o preconizado pela Política Nacional de Medicamentos (PNM) em 199811 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos e dá outras providências. Diário Oficial da União 1998; 30 out., e pela Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF) em 2004 22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Resolução nº 338, de 6 de maio de 2004. Aprova a Política Nacional de Assistência Farmacêutica. Diário Oficial da União 2004; 6 maio..

A saúde indígena acompanhou este cenário por meio da criação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) no ano de 200233 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 254, de 31 de janeiro de 2002. Aprova a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Diário Oficial da União 2002; 31 jan.. Esta contemplou a promoção do URM, cuja coordenação e execução é responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) desde 201044 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Lei nº 12.314, de 19 de agosto de 2010. Autoriza a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) no âmbito do Ministério da Saúde. Diário Oficial da União 2010; 19 ago.. Em 2013, a Portaria nº 2.97455 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.974, de 4 de dezembro de 2013. Dispõe sobre a aquisição, pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI/MS) ou Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI/SESAI/MS), de medicamentos e insumos constantes da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), incluindo os medicamentos dos Componentes Básico, Estratégico e Especializado da Assistência Farmacêutica, de responsabilidade dos Estados, Distrito Federal e Municípios, para atendimento aos povos indígenas e cria Grupo de Trabalho para avaliação e elaboração de proposta de incorporação de novos medicamentos e insumos para atendimento à saúde indígena no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2013; 4 dez. dispôs sobre a aquisição de medicamentos e insumos constantes da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) pela SESAI e pelos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI)55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.974, de 4 de dezembro de 2013. Dispõe sobre a aquisição, pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI/MS) ou Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI/SESAI/MS), de medicamentos e insumos constantes da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), incluindo os medicamentos dos Componentes Básico, Estratégico e Especializado da Assistência Farmacêutica, de responsabilidade dos Estados, Distrito Federal e Municípios, para atendimento aos povos indígenas e cria Grupo de Trabalho para avaliação e elaboração de proposta de incorporação de novos medicamentos e insumos para atendimento à saúde indígena no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2013; 4 dez.. E em 2015, a Portaria nº 1.80066 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria n° 1.800, de 9 de novembro de 2015. Aprova as Diretrizes da Assistência Farmacêutica no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS). Diário Oficial da União 2015; 9 nov. estabeleceu as diretrizes da assistência farmacêutica (AF) no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (SASISUS), com ênfase no acesso e no URM66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria n° 1.800, de 9 de novembro de 2015. Aprova as Diretrizes da Assistência Farmacêutica no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS). Diário Oficial da União 2015; 9 nov..

Todo esse aparato regulatório forneceu subsídios de fortalecimento da AF para a saúde indígena, com avanços importantes relacionados ao acesso aos medicamentos essenciais. Todavia, a garantia do URM ainda é um ponto crítico. Para a saúde indígena, a racionalidade na farmacoterapia, isto é, a utilização pelos povos indígenas dos medicamentos adequados para suas condições clínicas, em doses adequadas às suas necessidades individuais, por um período adequado e ao menor custo para si e para a comunidade, constitui uma medida benéfica, e na sua ausência é aumentado o risco inerente à ampliação do consumo de medicamentos77 Gomes CS, Esperidião MA. Acesso dos usuários indígenas aos serviços de saúde de Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(5):e00132215..

Dessa forma, a garantia de acesso a medicamentos essenciais alinhada ao URM constitui desafio para a AF no âmbito do SUS, especialmente no contexto dos povos originários88 Santos MMH. Assistência farmacêutica como estratégia estruturante para a promoção do uso racional de medicamentos na saúde indígena de Pernambuco: uma abordagem econômica. Rev APS 2015; 18(2):141-150.. A esses desafios são acrescidas questões etnoculturais, sociais, econômicas e políticas à medicalização da saúde e ao consumo de medicamentos pelos povos indígenas, que se tornaram mais evidentes e preocupantes nos últimos anos88 Santos MMH. Assistência farmacêutica como estratégia estruturante para a promoção do uso racional de medicamentos na saúde indígena de Pernambuco: uma abordagem econômica. Rev APS 2015; 18(2):141-150.,99 Barbosa VFB, Cabral LBC, Alexandre ACS. Medicalização e saúde indígena: uma análise do consumo de psicotrópicos pelos índios Xukuru de Cimbres. Cien Saude Colet 2019; 24(8):2993-3000..

No Brasil, a partir dos anos 2000, importantes estudos de utilização de medicamentos foram realizados em diferentes segmentos, entre eles o das populações indígenas (Osório-de-Castro1010 Osório-de-Castro CGS, coordenadora. Estudos de utilização de medicamentos: noções básicas [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. [acessado 2021 jul 12]. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/zq6vb/pdf/castro-9788575412657.pdf; Leite et al.1111 Leite SN, Vieira M, Veber AP. Estudos de utilização de medicamentos: uma síntese de artigos publicados no Brasil e América Latina. Cien Saude Colet 2008; 13(Supl.):793-802.; Diehl et al.1212 Diehl EE, Grassi F. Uso de medicamentos em uma aldeia Guarani do litoral de Santa Catarina, Brasil. Cad Saude Publica 2010; 26(8):1549-1560.; Diehl et al.1313 Diehl EE, Almeida KL. Medicamentos em contexto local indígena: a "farmácia caseira" Xokleng, Santa Catarina. Rev de Antr Soc dos Alunos do PPGAS-UFSCar 2012; 4(1):189-206.; Santos88 Santos MMH. Assistência farmacêutica como estratégia estruturante para a promoção do uso racional de medicamentos na saúde indígena de Pernambuco: uma abordagem econômica. Rev APS 2015; 18(2):141-150.; Barbosa et al.99 Barbosa VFB, Cabral LBC, Alexandre ACS. Medicalização e saúde indígena: uma análise do consumo de psicotrópicos pelos índios Xukuru de Cimbres. Cien Saude Colet 2019; 24(8):2993-3000.; Matos et al.1414 Matos AC, Osório-de-Castro CGS, Coimbra CEAJr, Silva MJS. Perfil de utilização de medicamentos antineoplásicos entre indígenas atendidos pelo Sistema Único de Saúde. Cad Saude Publica 2020; 36(12):e00100520.). Entretanto, investigações no contexto dos povos indígenas são escassas, especialmente sobre o consumo de medicamentos e a racionalidade da farmacoterapia. Logo, o presente estudo tem por objetivo analisar o consumo de medicamentos não padronizados na saúde indígena, sob a ótica da racionalidade da farmacoterapia.

Método

Delineamento do estudo

Trata-se de um estudo transversal, com caráter quantitativo. Para tanto, foram utilizados dados de fonte secundária, planilhas de consumo de medicamentos não padronizados, obtidas no Distrito Sanitário Especial Indígena Minas Gerais e Espírito Santo (DSEI-MG/ES). Este estudo seguiu a recomendação do STROBE Checklist, traduzido e validado para o português por Malta et al.1515 Malta M, Cardoso LO, Bastos FI, Magnanini MMF, Silva CMFPD. Iniciativa STROBE: subsídios para a comunicação de estudos observacionais. Rev Saude Publica 2010; 44(3):559-565., contribuindo para a qualidade do relato metodológico.

Cenário de estudo

Os DSEI são unidades gestoras descentralizadas no âmbito do SUS, distribuídas estrategicamente pelo país de acordo com a ocupação geográfica das comunidades indígenas. Eles não guardam relação direta com os limites dos estados e municípios onde estão localizadas as terras indígenas77 Gomes CS, Esperidião MA. Acesso dos usuários indígenas aos serviços de saúde de Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(5):e00132215.. Esses distritos prestam atenção básica aos povos que vivem em terras indígenas, por meio da Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI), nos moldes da Estratégia Saúde da Família (ESF). A EMSI é composta por: médicos, enfermeiros, odontólogos, técnicos de enfermagem e agentes indígenas de saúde (AIS)1616 Gomes JS. Casas de Saúde e Assistência Farmacêutica: desafios da saúde indígena em Belém e Macapá [dissertação]. Belém: Universidade Federal do Pará; 2008..

A estrutura física de atendimento dos DSEI abrange as Unidades de Saúde Indígena, denominadas Polos Base (tipos I e II) e as Casas de Saúde Indígena (Casai). Os Polos Base se destinam ao atendimento das demandas oriundas da saúde indígena e são a primeira referência para as equipes de saúde prestadoras de assistência nas aldeias. O tipo I localiza-se em terras indígenas e conta com EMSI nas Unidades Básicas de Saúde Indígenas (UBSI). O tipo II encontra-se no município de referência, prestando apoio técnico-administrativo ao Polo Base tipo I1616 Gomes JS. Casas de Saúde e Assistência Farmacêutica: desafios da saúde indígena em Belém e Macapá [dissertação]. Belém: Universidade Federal do Pará; 2008.. As Casai, segundo a Política Nacional dos Povos Indígenas, são criadas em áreas estratégicas dos DSEI ou em centros urbanos de referência e visam o recebimento dos usuários da saúde indígena encaminhados para exames e tratamentos de média e alta complexidade33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 254, de 31 de janeiro de 2002. Aprova a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Diário Oficial da União 2002; 31 jan..

De acordo com o Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena (SIASI), o Distrito Sanitário Especial Indígena Minas Gerais e Espírito Santo (DSEI-MG/ES), sediado em Governador Valadares (GV) - MG, presta assistência a dez etnias: Xakriabá, Maxakali, Krenak, Kaxixó, Pankararu, XukuruKariri, Pataxó, Mocuriñ, Guarani e Tupiniquim, distribuídas em 95 aldeias localizadas nesses estados1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2018.,1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2019..

Os estabelecimentos de saúde do DSEI-MG/ES são organizados em localidades, por meio de Polos Bases tipo I e II, UBSI, Casai e Escritório Local. O Quadro 1 mostra os subtipos de estabelecimentos de saúde desse Distrito e suas localidades1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2018.,1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2019..

Quadro 1
Subtipos de estabelecimentos de saúde do DSEI-MG/ES e suas localidades1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2018.,1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2019..

População em estudo

A abrangência geográfica desse distrito corresponde a 17 municípios com povos que vivem em terras indígenas, e 21 municípios, levando em consideração municípios que contam com a Casa de Saúde Indígena e o Polo Base tipo II em seus territórios1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2018.,1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2019..

Em 2018 e 2019, segundo o SIASI, o DSEI prestou assistência à saúde de 16.787 e 16.971 indígenas, respectivamente. A maioria desses povos se encontrava em Minas Gerais1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2018.,1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2019..

Caracterização da assistência farmacêutica

no DSEI MG/ES

A AF no DSEI-MG/ES engloba 29 farmácias e dispensários de medicamentos localizados no Polos Base tipo I e II; UBSI; farmácia na Casai de GV; e Central de Abastecimento Farmacêutico (CAF). A gestão da AF no SASISUS é descentralizada, sendo sua execução por intermédio da SESAI/MS e da DSEI/SESAI/MS. A SESAI/MS tem a incumbência de coordenar, apoiar a organização e garantir recursos à AF. Cada distrito é responsável pela seleção, programação, aquisição, armazenamento, distribuição e fornecimento de medicamentos essenciais às Unidades de Saúde Indígena, e pelo monitoramento e a avaliação das atividades técnico-assistenciais voltadas aos povos indígenas66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria n° 1.800, de 9 de novembro de 2015. Aprova as Diretrizes da Assistência Farmacêutica no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS). Diário Oficial da União 2015; 9 nov..

Esse distrito tem uma lista de medicamentos padronizados baseada na RENAME que visa nortear as ações da AF. Nos anos de 2018 e 2019, essa lista continha 121 princípios ativos, num total de 197 itens, abrangendo diferentes classes terapêuticas e formas farmacêuticas. Os medicamentos padronizados são adquiridos pelo DSEI-MG/ES por meio processos licitatórios na modalidade pregão eletrônico.

Já os medicamentos não padronizados são obtidos de diversas fontes: municípios, doações aos Polos Base, amostras grátis distribuídas pelos médicos e medicamentos comprados pelos próprios indígenas. Cabe ressaltar que, em alguns casos excepcionais, esse distrito adquire medicamentos com base na Resolução nº 29 do Ministério da Saúde (MS), que dispõe sobre a apresentação de justificativa para a prescrição de medicamentos não padronizados no SUS e a centralização de dados1919 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Resolução nº 29 de 26 de janeiro de 2017: dispõe sobre a apresentação de justificativa para a prescrição de medicamento(s)não padronizado(s) no Sistema Único de Saúde (SUS) e centralização de dados. Diário Oficial da União 2017; 26 jan..

Coleta e fonte de dados

Os dados foram fornecidos pela gestão da AF do DSEI-MG/ES. Esses dados eram provenientes de planilhas de consumo de medicamentos não padronizados oriundas das localidades. Os dados descritos nas planilhas estavam organizados segundo campos preexistentes, de acordo com os meses de cada ano. As planilhas eram alimentadas por técnicos de enfermagem, farmacêuticos, enfermeiros, dentistas e demais profissionais de saúde, e enviadas mensalmente à gestão da AF do DSEI-MG/ES.

Foram disponibilizadas, em arquivo Microsoft Excel, 58 planilhas de medicamentos não padronizados, sendo 29 de cada ano. Foram excluídas as planilhas que não apresentavam: nome do princípio ativo e/ou nome comercial do medicamento; dose do medicamento; forma farmacêutica; origem de prescrição; consumo; e forma de aquisição.

Para o refinamento desses dados, foi necessário agrupar as planilhas segundo regiões, segundo localização geográfica e estrutura organizacional desse distrito, conforme apresentado no Quadro 2.

Quadro 2
Localidades e regiões atendidas pelo DSEI-MG/ES1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2018.,1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2019..

A Casa de Saúde Indígena de Governador Valadares foi a única Casai deste DSEI a realizar dispensação dos medicamentos, portanto foi inserida no estudo.

Variáveis analisadas

Os medicamentos foram analisados de acordo com a Denominação Comum Brasileira (DCB), em conformidade com o preconizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e classificados segundo o sistema Anatomical Therapeutic Chemical Classification (ATC)2020 Silva AS. Indicadores básicos de Saúde; Farmacoepidemiologia; farmacoterapia; uso de medicamentos; atenção básica à saúde [dissertação]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2017. - Classificação ATC, nos 1º e 2º níveis, isto é, nos grupos anatômico principal e terapêutico, respectivamente. Vale ressaltar que neste estudo não foi empregada a unidade de medida uniformizada, ou seja, a dose diária definida (DDD), em detrimento das limitações inerentes às informações sobre a população que fez uso dos medicamentos não padronizados. Os medicamentos com mais de um princípio ativo foram classificados segundo o princípio ativo principal. Os dados obtidos foram organizados de acordo com as análises realizadas quanto à racionalidade e ao acesso a medicamentos.

A racionalidade da farmacoterapia foi verificada mediante consumo dos medicamentos não padronizados (os dois principais medicamentos não padronizados mais consumidos por cada região e os dez medicamentos não padronizados mais consumidos segundo suas apresentações farmacêuticas em todo DSEI-MG/ES) e análise comparativa entre os dez medicamentos não padronizados mais consumidos pelas regiões e as possíveis opções terapêuticas adequadas/disponíveis dentro da mesma classe, segundo a lista de medicamentos padronizados do DSEI-MG/ES. Foram utilizados bancos de dados como Drugdex e Medscape2121 Reis WCT, Scopel CT, Correr CJ, Andrzejevski VMS. Análise das intervenções de farmacêuticos clínicos em um hospital de ensino terciário do Brasil. Einstein 2013; 11(2):190-196.,2222 World Health Organization (WHO). Guidelines for ATC classification and DDD assignment 2020. 2019. [cited 2020 nov 10]. Available from: https://www.whocc.no/atc_ddd_index/
https://www.whocc.no/atc_ddd_index...
. Cabe destacar que não foi levada em consideração a forma farmacêutica apresentada na lista de medicamentos padronizados.

Foram verificadas também a origem da prescrição e a forma de aquisição dos medicamentos, transformando as categorias pré-estabelecidas pelos profissionais do DSEI-MG/ES em categorias numéricas, que foram posteriormente consolidadas. No que diz respeito à origem das prescrições, verificaram-se as seguintes categorias: SUS (atenção primária ou secundária), particular, hospital (público ou particular) e receita externa (receitas provenientes de consultas que não fossem com profissionais do DSEI, portanto profissionais do SUS ou particular). Em relação à forma de aquisição, esta poderia ser: SUS (atenção primária ou secundária), compra particular, doação, hospital público ou particular, não fornecido (sem acesso) e amostra grátis. Essas categorias não eram padronizadas no DSEI-MG/ES, portanto cada localidade estudada tinha particularidades.

Análise de dados

O tratamento dos dados obtidos foi realizado por meio da análise estatística descritiva e inferencial do consumo dos medicamentos não padronizados. Na análise descritiva foi determinada a prevalência do consumo de medicamentos e a frequência do consumo dos medicamentos por região.

Os dados sobre a origem da prescrição e a forma de aquisição não apresentavam distribuição normal, mostrando-se heterogêneos e discrepantes. Por esse motivo, foram empregados testes não paramétricos: teste de Friedman e teste de Wilcoxon. Utilizando o teste de Friedman, foi feita a comparação entre as origens das prescrições (SUS, particular, hospital, receita externa) e da forma de aquisição dos medicamentos. Para comparar apenas duas categorias (SUS versus particular), foi utilizado o teste de Wilcoxon. O software aplicado na análise foi o Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 2.0 para Windows.

Aspectos éticos

O presente trabalho obteve parecer favorável, CAAE: 25617719.6.0000.5147, do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Resultados

As 58 planilhas, referentes a 27 localidades e agrupadas em 11 regiões, contabilizaram, nos dois anos de estudo, um total de 1.644 medicamentos, correspondendo a 104.928 cápsulas, comprimidos e frascos, entre outras apresentações farmacêuticas. A única planilha não incluída no estudo foi a da região de Carmésia referente 2018, pois apresentava apenas a dose do medicamento em seus dados. Portanto, 57 planilhas foram analisadas, oriundas das 10 regiões de 2018 e das 11 regiões de 2019. A prevalência dos dez medicamentos não padronizados mais consumidos segundo suas apresentações farmacêuticas nesse distrito em 2018 e 2019, conforme a Classificação ATC2020 Silva AS. Indicadores básicos de Saúde; Farmacoepidemiologia; farmacoterapia; uso de medicamentos; atenção básica à saúde [dissertação]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2017., é apresentada na Tabela 1.

Tabela 1
Dez medicamentos não padronizados mais consumidos segundo suas apresentações farmacêuticas no DSEI-MG/ES nos anos de 2018 e 2019 mediante a Classificação ATC1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2018.,1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2019..

Os grupos anatômicos mais consumidos foram: trato alimentar e metabolismo; sistema cardiovascular; sistema nervoso; sistema musculoesquelético. Em 2019, houve consumo de antiparasitários, inseticidas e repelentes, não sendo observado esse perfil no ano de 2018.

Quanto aos medicamentos mais consumidos por região, levando em consideração o primeiro nível da Classificação ATC2020 Silva AS. Indicadores básicos de Saúde; Farmacoepidemiologia; farmacoterapia; uso de medicamentos; atenção básica à saúde [dissertação]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2017., observou-se que, em 2018, as maiores frequências absolutas quanto aos dois medicamentos mais consumidos por cada região das dez em estudo foram: sete regiões consumiram medicamentos para sistema nervoso; cinco consumiram medicamentos para o trato alimentar; três para o sistema musculoesquelético. Já em 2019, as maiores frequências absolutas em relação aos dois medicamentos mais consumidos por cada região das 11 em estudo foram: oito consumiram medicamentos para sistema nervoso; sete para o trato alimentar e metabolismo; três consumiram medicamentos para o sistema cardiovascular.

Quanto à opção terapêutica na lista de medicamentos padronizados, em 2018, 75 (85%) dos 88 medicamentos não padronizados consumidos tinham opção terapêutica. Em 2019, 88 (86%) dos 102 medicamentos não padronizados consumidos tinham opção terapêutica na lista

A distribuição da origem da prescrição (proveniente do SUS; particular; hospital; receita externa) dos medicamentos não padronizados nos anos de 2018 e 2019 pelo DSEI-MG/ES é descrita na Tabela 2.

Tabela 2
Distribuição de origem de prescrição (SUS, particular, hospital, receita externa) dos medicamentos não padronizados nos anos de 2018-2019 pelo DSEI-MG/ES1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2018.,1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2019..

Conforme os resultados descritos na Tabela 2, não foram encontradas diferenças significativas na origem de prescrição entre os anos (p > 0,05). As maiores frequências de prescrição foram, em ordem: SUS, particular, hospital e receita externa. Ao se comparar os anos de 2018 e 2019, as origens das prescrições foram significativamente mais do SUS (p < 0,001.)

A distribuição da forma de aquisição (proveniente do SUS; compra; doação; não fornecido; amostra grátis) dos medicamentos não padronizados nos anos de 2018 e 2019 pelo DSEI- MG/ES é apresentada na Tabela 3.

Tabela 3
Distribuição da forma de aquisição (SUS, compra, doação, não fornecido e amostra grátis) dos medicamentos não padronizados nos anos de 2018-2019 pelo DSEI-MG/ES1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2018.,1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena - SIASI, 2019..

Segundo os resultados demonstrados na Tabela 3, encontram-se diferenças significativas na forma de aquisição dos medicamentos em 2018 e 2019 (p > 0,001).

Em relação à origem de aquisição, não foram encontradas diferenças significativas na quantidade de medicamentos adquiridos (p > 0,05). Porém, a forma de aquisição por doação mostrou-se significativamente mais frequente em 2019 (p = 0,028).

Discussão

A análise de consumo de medicamentos não padronizados no DSEI-MG/ES evidenciou um notável consumo de medicamentos, sendo que a maior parte tinha opção terapêutica disponível na lista de medicamentos padronizados do distrito em questão. Entre os medicamentos não padronizados, cabe destacar o consumo de vitaminas e anti-hipertensivos. No Brasil, em muitas comunidades indígenas ocorreram mudanças no estilo de vida e nos hábitos alimentares. Houve diminuição do consumo de alimentos tradicionais e elevação do consumo de alimentos industrializados, que geralmente têm menores valores nutricionais. Isso pode ter ocorrido devido ao distanciamento cultural, propiciado pelo maior contato e aproximação de povos indígenas e não indígenas. Essas transformações acarretaram mudanças no perfil de saúde dos povos indígenas, causando maiores taxas de doenças crônicas não transmissíveis, aumento de sobrepeso e obesidade associados a doenças cardiovasculares e diabetes2323 Ribas DLB, Leite MS, Gugelmin SA. Perfil nutricional dos povos indígenas do Brasil. In: Barros DF, Oliveira e Silva D, Gugelmin, SA, organizadores. Vigilância alimentar e nutricional para a saúde Indígena. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.

24 Menezes SM, Schauren BC. Perfis epidemiológico e nutricional dos indígenas Kaingangs: uma revisão da literatura. Cad Pedagogico 2015; 12(3):223-239.
-2525 Souza KLPR, Alves C. Diagnóstico nutricional de crianças e adultos indígenas atendidos pela rede pública de saúde no Brasil: um estudo exploratório. cmbio 2014; 12(4):433-40.. Além disso, estudos realizados na última década evidenciaram o papel das doenças crônicas como indicadores de morbidade e mortalidade entre os povos indígenas2626 Silva WM. Prevalência de diabetes mellitus e fatores associados entre povos indígenas na América Latina: uma revisão integrativa da literatura. [trabalho de conclusão de curso]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2022..

Em crianças indígenas se observa a elevação e manutenção dos casos de desnutrição, anemias e hipovitaminoses 2424 Menezes SM, Schauren BC. Perfis epidemiológico e nutricional dos indígenas Kaingangs: uma revisão da literatura. Cad Pedagogico 2015; 12(3):223-239.. Em adultos e adolescentes pertencentes a esses povos, essas mudanças nutricionais e do estilo de vida podem colaborar para o aumento da prevalência de hipertensão arterial sistêmica (HAS). Essa condição é o principal fator de risco modificável com associação independente, contribuindo, consequentemente, para o desenvolvimento das doenças cardiovasculares2727 Barroso WKS, Rodrigues CIS, Bortolotto LA, Mota-Gomes MA, Branda~o AA, Feitosa ADM. Diretrizes Brasileiras de Hipertensa~o Arterial - 2020. Arq Bras Cardiol 2021; 116(3):516-658..

Um estudo apontou que a prevalência de HAS associada, independentemente da idade, à obesidade abdominal e à hiperglicemia nos Krenak em Minas Gerais foi de 57 (31,2%) em um total de 183 pessoas2828 Chagas CA, Castro TGD, Leite MS, Viana MACBM., Beinner MA, Pimenta AM. Prevalência estimada e fatores associados à hipertensão arterial em indígenas adultos Krenak do Estado de Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica 2019; 36(1):e0020681.. Uma revisão sistemática com meta-análise incluiu estudos feitos entre 1975 e 2014, constatando que a cada ano houve aumento de 12% de chance de os povos indígenas apresentarem HAS. No Brasil e no mundo, a prevalência de hipertensão nesses povos é superior quando comparada à não indígena, levando em consideração a prevalência de HAS em relação à população em estudo2929 Souza ZAD, Ferreira AA, Santos BD, Pierin AMG. Prevalência de hipertensão arterial em indígenas do Brasil: uma revisão sistemática com meta-análise. Rev Esc Enferm USP 2015; 49(6):1012-1022..

Quanto ao consumo dos medicamentos não padronizados que agem no sistema nervoso central, esta foi a segunda classe mais consumida pelos povos indígenas do DSEI-MG/ES, corroborando estudos que abordam a temática. Pesquisa a respeito dos padrões de uso e de entendimento dos medicamentos nas casas das aldeias das terras indígenas Xapecó e Ibirama-Laklãnõ demonstrou que a segunda maior classe de medicamentos era destinada ao sistema nervoso central1313 Diehl EE, Almeida KL. Medicamentos em contexto local indígena: a "farmácia caseira" Xokleng, Santa Catarina. Rev de Antr Soc dos Alunos do PPGAS-UFSCar 2012; 4(1):189-206.. Outra investigação sobre o consumo de medicamentos em índios Xukuru99 Barbosa VFB, Cabral LBC, Alexandre ACS. Medicalização e saúde indígena: uma análise do consumo de psicotrópicos pelos índios Xukuru de Cimbres. Cien Saude Colet 2019; 24(8):2993-3000. revelou elevados índices de consumo de psicotrópicos. Esses índices podem ser justificados pela desvalorização das práticas tradicionais de cuidado, o que pode ter influenciado no aumento do uso dessas substâncias. Acrescenta-se a esse contexto a vulnerabilidade social e as desigualdades econômicas99 Barbosa VFB, Cabral LBC, Alexandre ACS. Medicalização e saúde indígena: uma análise do consumo de psicotrópicos pelos índios Xukuru de Cimbres. Cien Saude Colet 2019; 24(8):2993-3000..

Os achados do presente estudo reforçam a importância da discussão sobre a utilização de medicamentos pelos povos indígenas com ênfase no acesso e no URM. Nos dois anos estudados, quase 90% de todos os medicamentos não padronizados possivelmente poderiam ser substituídos por alternativas terapêuticas pertencentes à lista de medicamentos padronizados pelo DSEI-MG/ES, mediante protocolos terapêuticos elaborados para o contexto da saúde indígena.

Esses protocolos terapêuticos contribuem para a promoção da prescrição e do uso racional de medicamentos e para o maior acesso a esses medicamentos essenciais3030 Lima MG, Álvares J, Guerra AA, Costa EA, Guibu IA, Soeiro, Leite SN, Karnikowski MGO, Costa KS, Acurcio FDA. Indicadores relacionados ao uso racional de medicamentos e seus fatores associados. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):23s.. A prescrição de medicamentos de forma inadequada, além de ser ineficaz, insegura e desvantajosa do ponto de vista econômico, favorece a judicialização da saúde3131 Santi LQ. Prescrição: o que levar em conta? In: Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)/Organização Mundial da Saúde (OMS). Uso racional de medicamentos: fundamentação em condutas terapêuticas e nos macroprocessos da assistência farmacêutica [Internet]. 2016. [acessado 2022 abr 27]. Disponível em: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2020/02/Fasciculo-014a.pdf
https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz...
. Assim, a prescrição irracional não fundamentada em evidências científicas, acrescida da incoerência do contexto em que o paciente está introduzido e o desrespeito às prerrogativas de essencialidade na escolha dos medicamentos, provavelmente tornaram-se propulsores para a irracionalidade em seu uso.

Logo, os protocolos terapêuticos e a disponibilização de listas de medicamentos padronizados em consultórios médicos aos profissionais de saúde, bem como a comunicação entre prescritor e farmacêutico e/ou gestão da AF, apresentam-se como estratégias factíveis para a promoção de uma prescrição racional e o maior acesso aos medicamentos. O emprego contínuo das listas de medicamentos padronizados baseadas na RENAME possibilita a promoção da qualidade da assistência prestada3030 Lima MG, Álvares J, Guerra AA, Costa EA, Guibu IA, Soeiro, Leite SN, Karnikowski MGO, Costa KS, Acurcio FDA. Indicadores relacionados ao uso racional de medicamentos e seus fatores associados. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):23s. e supre as demandas epidemiológicas, por meio da seleção de medicamentos de forma racional, segundo critérios de essencialidade. Na saúde indígena, o emprego da lista de medicamentos padronizados deve levar em consideração questões sociais, econômicas e particularidades etnoculturais de cada distrito.

Os medicamentos podem ser demandados pelos povos indígenas, sejam por fatores históricos ou intervenções biomédicas, havendo uso exagerado destes1212 Diehl EE, Grassi F. Uso de medicamentos em uma aldeia Guarani do litoral de Santa Catarina, Brasil. Cad Saude Publica 2010; 26(8):1549-1560.. A racionalidade no uso de medicamentos tem como um de seus fundamentos a prescrição médica3232 Portela ADS, Silva PCDD, Simões MODS, Medeiros ACDD, Montenegro Neto NA. Indicadores de prescrição e de cuidado ao paciente na atenção básica do município de Esperança, Paraíba, 2007. Epidemiol Serv Saude 2012; 21(2):341-350.. Nos serviços de saúde, o consumo de medicamentos pode ser influenciado pelo ato prescricional, que é suscetível a fatores inerentes aos prescritores e aos usuários3232 Portela ADS, Silva PCDD, Simões MODS, Medeiros ACDD, Montenegro Neto NA. Indicadores de prescrição e de cuidado ao paciente na atenção básica do município de Esperança, Paraíba, 2007. Epidemiol Serv Saude 2012; 21(2):341-350.. O acesso a medicamentos essenciais no SUS, um dos pilares da política de saúde, compreende disponibilidade, acessibilidade geográfica, adequação e capacidade de adquirir os medicamentos pela população3333 Nascimento RCRM, Álvares J, Guerra Junior AA, Gomes IC, Costa EA, Leite SN, Costa KS, Soeiro OM, Guibu IA, Karnikowski MGO, Acurcio FA. Disponibilidade de medicamentos essenciais na atenção primária do Sistema Único de Saúde. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl 2.):10s..

O acesso aos medicamentos se configura como indicador de qualidade e resolutividade do serviço em saúde prestado, sendo um determinante importante no cumprimento do tratamento farmacológico prescrito3434 Paniz VMV, Fassa AG, Facchini LA, Bertoldi AD, Piccini RX, Tomasi E, Thumé E, Silveira DS, Siqueira FV, Rodrigues MA. Acesso a medicamentos de uso contínuo em adultos e idosos nas regiões Sul e Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica 2008; 24(2):267-280.. A prescrição irracional promove o não acesso aos medicamentos pelos grupos vulneráveis. Frequentemente, é a principal causa do retorno de pacientes aos serviços de saúde, do agravamento das condições de saúde e do aumento no uso de terapias e de gastos adicionais ao tratamento3535 Boing AC, Bertoldi AD, Boing AF, Bastos JL, Peres KG. Acesso a medicamentos no setor público: análise de usuários do Sistema Único de Saúde no Brasil. Cad Saude Publica 2013; 29(4):691-701.,3636 Oliveira LCF, Nascimento MAA, Lima IMSO. O acesso a medicamentos em sistemas universais de saúde - perspectivas e desafios. Saude Debate 2019; 43( esp. 5):286-298..

Estudo conduzido em Pernambuco na saúde indígena revelou que as prescrições apresentavam maior número de medicamentos devido às dificuldades de acesso a tratamentos especializados ou até mesmo pela demanda dos povos indígenas88 Santos MMH. Assistência farmacêutica como estratégia estruturante para a promoção do uso racional de medicamentos na saúde indígena de Pernambuco: uma abordagem econômica. Rev APS 2015; 18(2):141-150.. A irracionalidade no consumo dos medicamentos, nesse caso, não está atrelada à automedicação, mas ao ato de prescrever e ao modelo assistencial prestado88 Santos MMH. Assistência farmacêutica como estratégia estruturante para a promoção do uso racional de medicamentos na saúde indígena de Pernambuco: uma abordagem econômica. Rev APS 2015; 18(2):141-150..

Na sociedade brasileira, as populações socialmente vulneráveis acessam a saúde preferencialmente pelo SUS, sendo esta, de modo geral, a única fonte de acesso à saúde3636 Oliveira LCF, Nascimento MAA, Lima IMSO. O acesso a medicamentos em sistemas universais de saúde - perspectivas e desafios. Saude Debate 2019; 43( esp. 5):286-298..

Os dados provenientes da origem das prescrições e da forma de aquisição de medicamentos verificados no presente estudo comprovaram que a maioria se originou do SUS e que a principal forma de aquisição foi a compra. Entretanto, a indisponibilidade de medicamentos pode culminar em desigualdades ao acesso a alguns medicamentos3636 Oliveira LCF, Nascimento MAA, Lima IMSO. O acesso a medicamentos em sistemas universais de saúde - perspectivas e desafios. Saude Debate 2019; 43( esp. 5):286-298.. Essa realidade compromete significativamente a renda familiar, tornando-se um fardo para populações socialmente vulneráveis3636 Oliveira LCF, Nascimento MAA, Lima IMSO. O acesso a medicamentos em sistemas universais de saúde - perspectivas e desafios. Saude Debate 2019; 43( esp. 5):286-298., como os povos indígenas.

A aquisição de medicamentos por meio do SUS, de modo geral, pode se tornar um processo demorado para os povos indígenas, resultando em um maior tempo de espera, propiciando um incentivo para a aquisição de medicamentos por desembolso próprio ou delongando o início da terapia medicamentosa3737 Azevedo ALMD, Gurgel IGD, Tavares MA. O poder de acessar a saúde: uma análise do acesso à saúde na etnia indígena Xukuru do Ororubá, Pesqueira (PE). Cad Saude Colet 2014; 22(3):275-280.. Isso talvez explique a compra de medicamentos pelos indígenas, ou seja, o desembolso direto, no DSEI-MG/ES. Pesquisa realizada em Pernambuco com a etnia Xukuru do Ororubá mostrou que a demora na entrega dos medicamentos ou o não acesso pelo SUS estimula os povos indígenas que têm condições financeiras a comprar os medicamentos prescritos, sendo uma das queixas principais dessa etnia3737 Azevedo ALMD, Gurgel IGD, Tavares MA. O poder de acessar a saúde: uma análise do acesso à saúde na etnia indígena Xukuru do Ororubá, Pesqueira (PE). Cad Saude Colet 2014; 22(3):275-280..

No Brasil, em 2018, o governo federal desembolsou R$ 21,4 milhões na compra de medicamentos na saúde indígena. No ano seguinte, os gastos com medicamentos na saúde indígena foram menores: R$ 9,15 milhões3838 Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC). Orçamento temático de acesso a medicamentos [Internet]. 2019. [acessado 2021 set 25]. Disponível em: https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2020/12/OTMED-2020.pdf
https://www.inesc.org.br/wp-content/uplo...
,3939 Biudes RF, Gusmão HBA, Cohn A. Direito à saúde e a assistência farmacêutica para populações vulneráveis: um olhar sobre a saúde indígena no Brasil. Unisanta Law Soc Sci 2021; 10(2):279-293.. Já em 2020, o subsistema de saúde indígena recebeu uma média de R$ 1,4 bilhão, sendo que pouco mais de 1% foi gasto com medicamentos. Este cenário compromete a assistência à saúde dos povos indígenas. O baixo investimento em compra de medicamentos compromete o acesso aos mesmos, pois o valor destinado é insuficiente para atender aos 34 DSEI, sendo que cada dstrito tem características etnoculturais distintas3939 Biudes RF, Gusmão HBA, Cohn A. Direito à saúde e a assistência farmacêutica para populações vulneráveis: um olhar sobre a saúde indígena no Brasil. Unisanta Law Soc Sci 2021; 10(2):279-293..

A promoção da racionalidade dos medicamentos e o acesso a eles configuram uma das atribuições do farmacêutico. A presença destes em equipes multiprofissionais da atenção primária à saúde assume papel intransferível e indelegável para a redução de problemas relacionados a medicamentos e melhorias da qualidade das prescrições4040 Melo DO, Castro LLC. A contribuição do farmacêutico para a promoção do acesso e uso racional de medicamentos essenciais no SUS. Cien Saude Colet 2017; 22(1):235-244.,4141 Melo CR, Pauferro MRV. Educação em saúde para a promoção do uso racional de medicamentos e as contribuições do farmacêutico neste contexto. Braz J Develop 2020; 6(5):32162-32173.. No Brasil, a Resolução do Conselho Federal de Farmácia nº 649, de 28 de setembro de 2017, descreve as atribuições do farmacêutico no contexto da saúde indígena4242 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Resolução CFF nº 649, de 28 de setembro de 2017. Dispõe sobre as atribuições do farmacêutico no subsistema de atenção à saúde indígena. Diário Oficial da União 2017; 11 out.. Destaca-se a prestação de cuidado à saúde de forma a promover o uso racional e seguro de medicamentos, otimizando a farmacoterapia com o propósito de contribuir para a melhoria dos indicadores de saúde e a sustentabilidade do subsistema, respeitando as particularidades socioculturais da comunidade assistida4242 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Resolução CFF nº 649, de 28 de setembro de 2017. Dispõe sobre as atribuições do farmacêutico no subsistema de atenção à saúde indígena. Diário Oficial da União 2017; 11 out.,4343 Packeiser PB, Castro MS. Avaliação do processo de dispensação de medicamentos na saúde indígena por meio de simulação de atendimento. Clin Biomed Res 2021; 41(1):39-47..

Entretanto, na saúde indígena, o envolvimento dos farmacêuticos apenas em atividades burocráticas pode acarretar o distanciamento da prática do cuidado com o usuário. Essa situação pode ser comum nos Polos Bases ou DSEIs, devido às inúmeras atribuições gerenciais, que implicam a ausência da dispensação de medicamentos4343 Packeiser PB, Castro MS. Avaliação do processo de dispensação de medicamentos na saúde indígena por meio de simulação de atendimento. Clin Biomed Res 2021; 41(1):39-47..

Nessa perspectiva, a prática do cuidado farmacêutico para os povos indígenas deve abranger a compreensão ampla das diferenças e particularidades etnoculturais, promovendo uma orientação factível à realidade do paciente4343 Packeiser PB, Castro MS. Avaliação do processo de dispensação de medicamentos na saúde indígena por meio de simulação de atendimento. Clin Biomed Res 2021; 41(1):39-47.. Estudo realizado no Rio Grande do Sul sobre o desempenho dos farmacêuticos que trabalhavam na saúde indígena mostrou que eles apresentavam dificuldades para se comunicar e interagir com o paciente, deixando de fornecer informações importantes sobre os medicamentos, sem verificar se houve real entendimento das orientações repassadas e não adaptando o seu uso à realidade e à cultura do indígena4343 Packeiser PB, Castro MS. Avaliação do processo de dispensação de medicamentos na saúde indígena por meio de simulação de atendimento. Clin Biomed Res 2021; 41(1):39-47..

No Brasil, estudos direcionados à prestação do cuidado farmacêutico na saúde indígena ainda são escassos. Entretanto, na Oceania, os serviços clínicos prestados por farmacêuticos estão bem consolidados, abrangendo a população aborígene. Pesquisa sobre os Mãuori investigou a viabilidade em intervenções na revisão de medicamentos em uso por idosos, demonstrando ser possível realizar tal serviço clínico em povos indígenas4444 Cardwell K, Kerse N, Hughes CM, Teh R, Moyes SA, Menzies O, Rolleston A, Broad JB, Ryan C. Does potentially inappropriate prescribing predict an increased risk of admission to hospital and mortality? A longitudinal study of the 'oldest old'. BMC Geriatr 2020; 20(1):28.. Outro estudo de coorte, também com esses povos, aponta que o uso de medicamentos inapropriados, ou seja, sem racionalidade, foi associado ao aumento do risco de hospitalização e mortalidade4545 Hikaka J, Hughes C, Jones R, Amende H, Connolly MJ, Martini N. Feasibility of a pharmacist-facilitated medicines review intervention for community-dwelling Maori older adults. Explor Res Clin Soc Pharm 2021; 2:100018.. Essas pesquisas demonstram a importância da prestação do serviço de cuidado para os povos indígenas, bem como sua viabilidade.

Mediante o exposto, a racionalidade da farmacoterapia e o acesso a medicamentos pela população, incluindo os povos indígenas, estão diretamente atrelados à AF, com a prestação de atividades técnico-gerenciais e técnico-assistenciais por meio dos serviços clínicos.

O presente estudo tem forças e limitações. As limitações se concentram na ausência de dados completos sobre a população em estudo, que consumiu medicamentos padronizados e não padronizados, bem como a utilização de dados secundários, provenientes das planilhas preenchidas pelos profissionais do DSEI-MG/ES, resultando em possíveis discrepâncias nas informações. O preenchimento das planilhas de medicamentos não padronizados não é guiado por protocolos que norteiem sua alimentação. Na tentativa de minimizar vieses ou controlá-los, o refinamento e a tabulação dos dados foram feitos de forma independente, por uma das pesquisadoras. Por outro lado, suas forças se concentram na abordagem e na discussão sobre o consumo, a racionalidade e o acesso a medicamentos na saúde indígena, temáticas ainda pouco presentes nos estudos nacionais.

Considerações finais

Este estudo apontou possíveis falhas no alcance da racionalidade da farmacoterapia, em função do consumo de medicamentos não padronizados no DSEI-MG/ES, uma vez que, quase 90% dos medicamentos não padronizados poderiam ter a substituição avaliada mediante a lista de medicamentos padronizada pelo distrito.

O perfil de consumo dos medicamentos não padronizados descrito neste estudo pode ser influenciado por: maior aproximação com não indígenas; prescrição de medicamentos de forma irracional; assimetria de conhecimento entre prescritores, outros trabalhadores de saúde e povos indígenas. Os profissionais de saúde muitas vezes têm sua formação centrada no modelo reducionista, que não leva em consideração questões sociais e etnoculturais inerentes à saúde e à doença.

Logo, na saúde indígena, essas questões, tais como a medicalização da saúde vivenciada na sociedade brasileira, se fazem presentes e constituem desafios para a assistência farmacêutica e a garantia do acesso a medicamentos com uso racional enquanto atributo de cidadania.

A partir dos achados deste trabalho, novos estudos poderão ser direcionados a investigar os seguintes pontos: avaliação das necessidade em saúde em diferentes etnias; acesso a medicamentos pelos povos indígenas; uso racional de medicamentos em prescrições na saúde indígena; emprego da racionalidade na dispensação de medicamentos aos povos indígenas; importância do cuidado farmacêutico na promoção do uso racional de medicamentos no contexto da saúde indígena; impacto do consumo de medicamentos não padronizados na saúde indígena; racionalidade do consumo de medicamentos na saúde indígena em relação a doenças crônicas não transmissíveis; consumo de medicamentos não padronizados no universo dos medicamentos consumidos na saúde indígena, entre outros.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2022
  • Aceito
    17 Fev 2023
  • Publicado
    19 Fev 2023
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