Fortalecimento das ações de cuidado às pessoas com obesidade no contexto da pandemia de COVID-19: o caso do Brasil

Enhancing care measures for people with obesity in the context of the COVID-19 pandemic: the case of Brazil

Thais Fonseca Veloso de Oliveira Gisele Ane Bortolini Ariene Silva do Carmo Erika Cardoso dos Reis Felipe Silva Neves Ana Maria Cavalcante de Lima Rafaella da Costa Santin Sara Araújo da Silva Ana Maria Spaniol Paloma Abelin Saldanha Marinho Lilian Ânima Bressan Lorena Gonçalves Chaves Medeiros Juliana Rezende Melo da Silva Sobre os autores

Resumo

O presente estudo ecológico descritivo objetivou analisar o papel indutor de um incentivo financeiro federal repassado aos municípios brasileiros em 2020, em meio à pandemia de COVID-19, no aumento do número de atendimentos individuais para a condição de obesidade na atenção primária à saúde (APS). Utilizaram-se dados secundários, obtidos no Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica e no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN). Em 2021, 74,8% dos 5.504 municípios que receberam o incentivo financeiro apresentaram aumento no número de atendimentos individuais para a condição avaliada como obesidade na APS, em relação a 2020. O número de pessoas identificadas com obesidade e o número de atendimentos individuais para esta condição foram maiores em 2021 do que nos demais anos analisados (2017 a 2020). Na comparação de 2021 com 2020 (ano de recebimento do incentivo financeiro), observou-se que o percentual de aumento de atendimentos individuais foi superior ao percentual de aumento de pessoas com obesidade registradas no SISVAN (77,6% vs. 39,1%). Em conclusão, incentivos financeiros federais, canalizados para o fortalecimento do cuidado às pessoas com obesidade no âmbito da APS, figuram como importantes mecanismos de indução de ações em nível local.

Key words:
Obesity; Primary health care; National Health System; Public health; COVID-19

Abstract

This descriptive ecological study sought to analyze the inductive role of a federal financial incentive passed on to Brazilian municipalities in 2020, during the COVID-19 pandemic, in increasing the number of individual consultations for the condition of obesity in primary health care (PHC). Secondary data obtained from the Health Information System for Primary Care and from the Food and Nutrition Surveillance System (SISVAN) were used. In 2021, 74.8% of the 5,504 municipalities that received the financial incentive, showed an increase in the number of individual obesity consultations in PHC, compared to 2020. The number of people identified with obesity and the number of individual visits for this condition were higher in 2021 than in the other years analyzed (2017 to 2020). Comparing 2021 with 2020 (year of receipt of the financial incentive), it was observed that the percentage of increase in the number of individual consultations for the condition of obesity was higher than the increase in the number of people identified with obesity in the SISVAN (77.6 % vs. 39.1%). In conclusion, federal financial incentives for municipalities, channeled to enhance care for people with obesity within the scope of PHC, are important mechanisms for inducing actions at the local level.

Key words:
Obesity; Primary health care; National Health System; Public health; COVID-19

Introdução

No Brasil, segundo a última Pesquisa Nacional de Saúde11 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Diretoria de Pesquisas. Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa nacional de saúde 2019: atenção primária à saúde e informações antropométricas. Rio de Janeiro: IBGE; 2020., aproximadamente um em cada quatro indivíduos maiores de 18 anos tem obesidade (estimativa de 41 milhões) e 60,3% têm excesso de peso (cerca de 96 milhões de pessoas). As prevalências de obesidade e excesso de peso estimadas para a população de 20 anos ou mais de idade do país aumentaram continuamente ao longo de inquéritos populacionais de saúde realizados entre 2002 e 2019. Em 2019, a prevalência de obesidade superou o dobro dos valores registrados em 2002-2003, tanto nos homens (de 9,6% para 22,8%) quanto nas mulheres (de 14,5% para 30,2%)11 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Diretoria de Pesquisas. Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa nacional de saúde 2019: atenção primária à saúde e informações antropométricas. Rio de Janeiro: IBGE; 2020.. Em 2021, 9,1 milhões de indivíduos adultos atendidos na atenção primária à saúde (APS) que tiveram o estado nutricional avaliado e registrado em sistema de informação tinham diagnóstico de excesso de peso; e mais de 4 milhões tinham diagnóstico de obesidade, sendo que 624 mil eram classificados com obesidade grave (grau III)22 Brasil. Relatório público do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), referente ao consolidado de dados do ano de 2021 [Internet]. [acessado 2022 jun 24]. Disponível em: http://sisaps.saude.gov.br/sisvan/relatoriopublico/index
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Quando se comparam as prevalências de hipertensão arterial (HA), diabetes mellitus (DM) e obesidade oriundas da pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) de 202133 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis. Vigitel Brasil 2021: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2021. Brasília: MS; 2021. com os atendimentos individuais de adultos registrados como “problema/condição avaliada” no Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB) no mesmo ano, observa-se que a proporção de atendimentos de HA (24,3%) foi próxima da prevalência estimada desta condição na população (26,3%); o mesmo acontece para o DM, cuja proporção de atendimentos (11,3%) foi maior que a prevalência estimada da doença na população (9,1%); no entanto, no caso da obesidade, enquanto sua prevalência estimada na população foi de 22,4%, os atendimentos registrados como problema/condição avaliada como obesidade corresponderam a apenas 2,9%44 Brasil. Relatório público de produção do Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB), referente ao consolidado de dados do ano de 2019 [Internet]. [acessado 2021 mar 16]. Disponível em: https://sisab.saude.gov.br/
https://sisab.saude.gov.br...
. Desse modo, apesar da magnitude e da relação bastante clara entre obesidade e outras condições crônicas, configurando-se como fator importante para a prevenção e o manejo de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), os dados epidemiológicos indicam a baixa prioridade no cuidado ofertado à condição de obesidade na APS.

O cenário pandêmico vivenciado nos últimos anos evidenciou as DCNT, entre elas a obesidade, como importantes fatores de risco para o agravamento da COVID-19, a maior prevalência de internações e o aumento das chances de desfechos de saúde negativos e letalidade55 Siqueira JVV, Almeida LG, Zica BO, Brum IB, Barceló A, Siqueira Galil AG. Impact of obesity on hospitalizations and mortality, due to COVID-19: a systematic review. Obes Res Clin Pract 2020; 14(5):398-403.

6 Hussain A, Mahawar K, Xia Z, Yang W, El-Hasani S. Obesity and mortality of COVID-19. Meta-analysis. Obes Res Clin Pract 2020; 14(4):295-300.
-77 Simonnet A, Chetboun M, Poissy J, Raverdy V, Noulette J, Duhamel A, Labreuche J, Mathieu D, Pattou F, Jourdain M; LICORN and the Lille COVID-19 and Obesity study group. High prevalence of obesity in Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus-2 (SARS-CoV-2) requiring invasive mechanical ventilation. Obesity (Silver Spring) 2020; 28(7):1195-1199.. Por meio de metanálise, demostrou-se que indivíduos com obesidade apresentavam chances 72% maiores de evoluírem para a forma grave ou fatal da COVID-1988 Zhou Y, Yang Q, Chi J, Dong B, Lv W, Shen L, Wang Y. Comorbidities and the risk of severe or fatal outcomes associated with coronavirus disease 2019: a systematic review and meta-analysis. Int J Infect Dis 2020; 99:47-56.. Além disso, em outra metanálise, concluiu-se que indivíduos com obesidade apresentavam 1,21 vezes mais chances de serem admitidos em unidades de terapia intensiva e 2,05 vezes mais chances de receberem ventilação mecânica como decorrência do agravamento da COVID-1999 Földi M, Farkas N, Kiss S, Zádori N, Váncsa S, Szakó L, embrovszky F, Solymár M, Bartalis E, Szakács Z, Hartmann P, Pár G, Eross B, Molnár Z, Hegyi P, Szentesi A; KETLAK Study Group. Obesity is a risk factor for developing critical condition in COVID-19 patients: a systematic review and meta-analysis. Obes Rev 2020; 21(10):e13095..

Tal situação chamava atenção tanto para a necessidade de reforçar as ações de prevenção da COVID-19 às pessoas com DCNT quanto para a importância de fortalecer o cuidado aos indivíduos infectados, com o intuito de estabilizar as condições crônicas, evitando o agravamento e, por consequência, o aumento do risco de complicações relacionadas. Para induzir e fortalecer a atenção precoce às pessoas com obesidade na APS, por intermédio da organização da assistência baseada em protocolos e linhas de cuidado, foi instituído no Brasil, no ano de 2020, em caráter excepcional e temporário, um incentivo financeiro federal para a atenção às pessoas com obesidade (o primeiro recurso destinado para este fim no país), DM e/ou HA no âmbito da APS, no Sistema Único de Saúde (SUS), no contexto da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) decorrente da pandemia de COVID-191010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.994, de 29 de outubro de 2020. Institui, em caráter excepcional e temporário, incentivo financeiro federal para atenção às pessoas com obesidade, diabetes mellitus ou hipertensão arterial sistêmica no âmbito da Atenção Primária à Saúde, no Sistema Único de Saúde, no contexto da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) decorrente da pandemia do novo coronavírus. Diário Oficial da União 2020; 29 out.. Instituiu-se que o monitoramento da aplicação desse incentivo financeiro seria avaliado por meio do aumento no número de atendimentos individuais para as condições registradas no SISAB.

Portanto, o presente estudo teve como objetivo analisar o papel indutor do incentivo financeiro federal repassado aos municípios brasileiros em 2020, em meio à pandemia de COVID-19, no aumento do número de atendimentos individuais para a condição avaliada como obesidade na APS.

Métodos

Trata-se de um estudo ecológico descritivo, desenvolvido com dados secundários oriundos de municípios brasileiros contemplados em ação estratégica realizada no ano de 20201010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.994, de 29 de outubro de 2020. Institui, em caráter excepcional e temporário, incentivo financeiro federal para atenção às pessoas com obesidade, diabetes mellitus ou hipertensão arterial sistêmica no âmbito da Atenção Primária à Saúde, no Sistema Único de Saúde, no contexto da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) decorrente da pandemia do novo coronavírus. Diário Oficial da União 2020; 29 out.. O incentivo financeiro foi transferido a 5.504 municípios, inclusive o Distrito Federal, que tinham equipes de saúde da família e/ou equipes de APS custeadas pelo Ministério da Saúde, com cadastro no Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde na competência financeira de agosto do ano de 2020. O valor, transferido em parcela única, totalizou R$221.811.937,501010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.994, de 29 de outubro de 2020. Institui, em caráter excepcional e temporário, incentivo financeiro federal para atenção às pessoas com obesidade, diabetes mellitus ou hipertensão arterial sistêmica no âmbito da Atenção Primária à Saúde, no Sistema Único de Saúde, no contexto da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) decorrente da pandemia do novo coronavírus. Diário Oficial da União 2020; 29 out..

A utilização do incentivo financeiro federal relacionado ao cuidado das pessoas com obesidade abrangeu, além de outras ações: i) a identificação, o cadastro e a estratificação de risco das pessoas com obesidade, por meio de ações de vigilância alimentar e nutricional (VAN) da população adstrita; e ii) a identificação precoce e a priorização do acompanhamento e do monitoramento de indivíduos com obesidade com síndrome gripal ou com suspeita ou confirmação de COVID-191010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.994, de 29 de outubro de 2020. Institui, em caráter excepcional e temporário, incentivo financeiro federal para atenção às pessoas com obesidade, diabetes mellitus ou hipertensão arterial sistêmica no âmbito da Atenção Primária à Saúde, no Sistema Único de Saúde, no contexto da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) decorrente da pandemia do novo coronavírus. Diário Oficial da União 2020; 29 out.. Considerando que durante o primeiro ano da pandemia de COVID-19 os serviços diminuíram o número de atendimentos eletivos, incluindo aqueles para pessoas com DCNT, a implementação das ações relacionadas à Portaria foi então verificada por meio do aumento, entre 2020 e 2021, do número de atendimentos individuais para a condição avaliada como obesidade APS.

Para o presente estudo, os dados foram obtidos no SISAB e no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), ambos da Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, de domínio público e de livre acesso no meio eletrônico (https://sisab.saude.gov.br/ e https://sisaps.saude.gov.br/sisvan/, respectivamente).

O número de atendimentos individuais para a condição avaliada como obesidade na APS foi extraído de informações registradas no e-SUS APS e disponíveis no SISAB, e envolveu os respectivos passos: i) em “Linha do relatório” foi selecionada a opção “Municípios”, e em “Coluna do relatório”, a opção “Problema/Condição avaliada”; ii) no item “Tipo de produção” foi marcada a opção “Atendimento individual”, e depois, em “Problema/Condição avaliada”, a opção “Obesidade”. Essas informações foram obtidas considerando todas as faixas etárias, de cada município brasileiro, para os últimos cinco anos (de 2017 a 2021).

O número de pessoas identificadas com obesidade na APS foi extraído do SISVAN e envolveu os respectivos passos: i) no item “Mês de referência” foi selecionada a opção “Todos”; ii) no item “Agrupar por”, a opção “Municípios”; iii) no item “Fases da vida”, as opções “Criança (0 a 4 anos; 5 a 9 anos)”, “Adolescente”, “Adulto” e “Idoso” em cada uma das buscas, e “Todos”, para os demais filtros presentes, tais como escolaridade, sexo, raça/cor, região de cobertura, povo e comunidade, e acompanhamentos registrados. O indicador antropométrico selecionado para crianças e adolescentes no relatório público do SISVAN foi o índice de massa corporal (IMC) por idade. Essas informações foram obtidas para os anos de 2017 a 2021.

Apresentaram-se, assim, o número de pessoas identificadas com obesidade, os atendimentos individuais por condição avaliada como obesidade e por todas as condições e a cobertura de acompanhamento do estado nutricional na APS, segundo macrorregiões, unidades federativas e no Brasil. A cobertura de acompanhamento do estado nutricional foi obtida dividindo-se o total de indivíduos acompanhados em todas as fases do curso da vida pelo total da população residente, considerando as estimativas populacionais para o ano de 2012, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Informática do SUS (DATASUS). População residente. Censos (1980, 1991, 2000 e 2010), contagem (1996) e projeções intercensitárias (1981 a 2012), segundo faixa etária, sexo e situação de domicílio. Brasil por municípios [Internet]. [acessado 2022 jun 20]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?ibge/cnv/popbr.def
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Adicionalmente, com o intuito de apresentar o papel indutor do incentivo financeiro repassado pelo Ministério da Saúde1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.994, de 29 de outubro de 2020. Institui, em caráter excepcional e temporário, incentivo financeiro federal para atenção às pessoas com obesidade, diabetes mellitus ou hipertensão arterial sistêmica no âmbito da Atenção Primária à Saúde, no Sistema Único de Saúde, no contexto da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) decorrente da pandemia do novo coronavírus. Diário Oficial da União 2020; 29 out., foi contabilizado o número de municípios que obtiveram aumento no número de atendimentos individuais por condição avaliada como obesidade na APS em 2021, em relação à 2020, segundo macrorregiões e unidades federativas. Ressalta-se que qualquer incremento no valor desse indicador em 2021, quando comparado aos valores de 2020, foi considerado “aumento”, representando assim o alcance da meta, conforme estabelecido na Portaria de repasse do recurso1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.994, de 29 de outubro de 2020. Institui, em caráter excepcional e temporário, incentivo financeiro federal para atenção às pessoas com obesidade, diabetes mellitus ou hipertensão arterial sistêmica no âmbito da Atenção Primária à Saúde, no Sistema Único de Saúde, no contexto da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) decorrente da pandemia do novo coronavírus. Diário Oficial da União 2020; 29 out.. Com o intuito também de verificar o papel indutor da Portaria, foram comparados os padrões dos percentuais de aumento do número de pessoas identificadas com obesidade e do número de atendimentos individuais para a condição avaliada como obesidade, contrastando o ano de 2021 com os anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 (ano de repasse da Portaria).

A análise descritiva foi realizada por meio do cálculo de frequências absolutas e relativas. Os dados foram analisados com o auxílio do software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS, IBM Corp., EUA), versão 19.0.

Resultados

Em 2021, dos 5.504 municípios brasileiros contemplados com o incentivo financeiro, 74,8% (N = 4.120) apresentaram aumento no número de atendimentos individuais para a condição avaliada como obesidade na APS, em relação a 2020, variando entre 71,9% na região Centro-Oeste e 78,2% na região Sul (Tabela 1). As unidades federativas com maiores percentuais de municípios que apresentaram aumento no número de atendimentos individuais foram Distrito Federal (100%) e Sergipe (88%), e aquelas que apresentaram os menores percentuais foram Acre (50%) e Amazonas (64,5%) (Tabela 1).

Tabela 1
Número de municípios que apresentaram aumento no número de atendimentos individuais por condição avaliada como obesidade na atenção primária à saúde, em 2021, em relação a 2020, segundo macrorregiões e unidades federativas. Brasil, 5.504 municípios contemplados com o incentivo financeiro federal.

Quando comparados os anos de 2021 e 2020, observou-se que, no Brasil, houve aumento de 77,6% no número de atendimentos por condição avaliada como obesidade. Todas as macrorregiões e unidades federativas apresentaram incremento (Tabela 2). As regiões Sul (99,6%) e Centro-Oeste (50,1%) apresentaram o maior e o menor valor de percentual de aumento, respectivamente (Tabela 2). Os estados que registraram maiores percentuais de aumento foram o Ceará (417%) e o Paraná (226%), e os que registraram menores percentuais foram Rio Grande do Norte (22,7%) e Alagoas (22,8%) (Tabela 2).

Tabela 2
Número de atendimentos individuais por condição avaliada como obesidade na atenção primária à saúde, segundo macrorregiões e unidades federativas, em 2020 e 2021. Brasil, 5.504 municípios contemplados com o incentivo financeiro federal.

O número de pessoas identificadas com obesidade no Brasil e nas macrorregiões foi maior em 2021, quando contrastado com os demais anos de avaliação (Tabela 3). O número de atendimentos individuais para a condição avaliada como obesidade, no Brasil e nas macrorregiões, também foi maior em 2021, com exceção da região Sudeste, na qual os números foram maiores em 2018 (Tabela 3).

Tabela 3
Número de pessoas identificadas com obesidade, atendimentos individuais por condição avaliada como obesidade e por todas as condições, e cobertura de acompanhamento do estado nutricional na atenção primária à saúde, segundo macrorregiões e unidades federativas, entre os anos de 2017-2021. Brasil, 5.504 municípios contemplados com o incentivo financeiro federal.

Comparando-se 2021 com os anos de 2017, 2018 e 2019, o percentual de aumento de pessoas com obesidade registradas no SISVAN foi maior do que o percentual de aumento de atendimentos individuais para esta condição: 42,9% vs. 38,7% em 2017; 22,5% vs. 6,4% em 2018; 24,1% vs. 17,3% em 2019, respectivamente (Figura 1). Em comparação com 2020 (ano de recebimento do incentivo financeiro), em 2021 houve aumento de 39,1% para o número de pessoas com diagnóstico de obesidade e crescimento de 77,6% para o número de atendimentos individuais em que a condição avaliada foi obesidade. Portanto, na comparação de 2021 com 2020, observou-se que o percentual de aumento do número de atendimentos individuais para a condição avaliada como obesidade foi superior ao percentual de aumento de pessoas com obesidade registradas no SISVAN (Figura 1).

Figura 1
Percentuais de aumento do número de pessoas identificadas com obesidade e do número de atendimentos individuais para a condição avaliada como obesidade na comparação do ano de 2021 com os anos de 2017, 2018, 2019 e 2020. Brasil, 5.504 municípios contemplados com o incentivo financeiro federal.

Discussão

Os achados deste estudo evidenciaram o papel indutor de uma estratégia nacional, adotada durante a pandemia de COVID-19, no fortalecimento do cuidado às pessoas com obesidade na APS, que previu repasse federal de recursos financeiros aos municípios. Embora a avaliação dos resultados decorrentes desse repasse tenha alguma limitação, pelo fato de considerar qualquer incremento no percentual de atendimentos individuais, ainda há de se considerar a análise demonstrada no presente estudo como de grande relevância, pois o contexto da pandemia de COVID-19 sobrecarregou os serviços de saúde e resultou na redução do número de atendimentos eletivos, principalmente em 2020.

Entende-se que, com o controle epidemiológico da pandemia, a determinação de uma meta para o percentual de aumento no número de atendimentos individuais poderá se configurar como uma estratégia robusta para induzir a progressão da oferta do cuidado. Além disso, acredita-se que o repasse regular e permanente de recursos financeiros federais como estratégia de apoio aos municípios para o reforço à implementação de ações de caráter prioritário contribui sobremaneira para um melhor desempenho na atenção às pessoas com obesidade na APS.

Destaca-se ainda que, apesar do aumento do número de atendimentos individuais para a condição avaliada como obesidade na APS, a quantidade de registros (menos de 3% nos últimos cinco anos) está muito inferior à quantidade de pessoas com obesidade na população brasileira (25,9% dos indivíduos com 18 anos ou mais11 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Diretoria de Pesquisas. Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa nacional de saúde 2019: atenção primária à saúde e informações antropométricas. Rio de Janeiro: IBGE; 2020.), o que pode estar relacionado à falta de reconhecimento, por parte dos profissionais de saúde e gestores, dessa condição como um grave problema de saúde pública1212 James WP. WHO recognition of the global obesity epidemic. Int J Obes (Lond) 2008; 32(suppl. 7):S120-126.

13 Christensen S. Recognizing obesity as a disease. J Am Assoc Nurse Pract 2020; 32(7):497-503.
-1414 Arrieta F, Pedro-Botet J. Recognizing obesity as a disease: a true challenge. Rev Clin Esp (Barc) 2021; 221(9):544-546., que merece atenção e espaço específico na rotina de atendimentos como outras doenças crônicas. O não reconhecimento e a falta de abordagem da obesidade na APS possivelmente se traduzem em dois obstáculos para a oferta de cuidado às pessoas com essa condição clínica: i) relacionado à atenção à saúde, as equipes de APS não cumprem satisfatoriamente o seu papel na oferta de cuidado clínico e incentivo às mudanças comportamentais e à adoção de hábitos de vida saudáveis1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas do sobrepeso e obesidade em adultos. Brasília: MS; 2020.,1616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. Manual de atenção às pessoas com sobrepeso e obesidade no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS) do Sistema Único de Saúde. Brasília: MS; 2022.; e ii) relacionado à gestão do cuidado, a APS não assume sua função de coordenadora da linha de cuidado do sobrepeso e obesidade, conforme preconizado nas diretrizes do Ministério da Saúde1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria de consolidação nº 3, de 28 de setembro de 2017 - Consolidação das normas sobre as redes do Sistema Único de Saúde 2017; Diário Oficial da União 2017; 28 set..

De modo geral, as equipes da APS se sentem sobrecarregadas em suas tarefas. Porém, ao se considerar o cuidado integral, a agenda de alimentação e nutrição precisa estar incorporada à rotina das equipes, pois seis em cada dez indivíduos que entram em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) apresentam excesso de peso e diferentes estudos apontam a importância da oferta de ações de cuidado às pessoas com obesidade em todas as fases do curso da vida na APS1818 Brown CL, Perrin EM. Obesity prevention and treatment in primary care. Acad Pediatr 2018; 18(7):736-745.

19 Tsai AG, Remmert JE, Butryn ML, Wadden TA. Treatment of obesity in primary care. Med Clin North Am 2018; 102(1):35-47.

20 Braga VAS, Jesus MCP, Conz CA, Silva MHD, Tavares RE, Merighi MAB. Actions of nurses toward obesity in primary health care units. Rev Bras Enferm 2020; 73(2):e20180404.
-2121 Jaklevic MC. Primary care health coaches help low-income patients curb obesity. JAMA 2021; 325(15):1494-1495.. Mesmo assim, dados do segundo ciclo do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade (PMAQ), de 2013-2014, apontaram que apenas 36,4% das equipes de saúde tinham o registro das pessoas com obesidade no seu território; 35,9% faziam classificação de risco desses usuários e 39% apresentavam registro dos usuários de maior risco encaminhados para outros pontos de atenção2222 Brandão AL, Reis EC, Silva CVC, Seixas CM, Casemiro JP. Estrutura e adequação dos processos de trabalhos no cuidado à obesidade na Atenção Básica brasileira. Saude Debate 2020; 44(126):678-693..

Dados do SISAB referentes ao primeiro quadrimestre de 2022 indicam que, entre as pessoas atendidas com a condição avaliada como obesidade, 19,5% tiveram como conduta a consulta agendada; 24,1% foram agendadas para o cuidado continuado/programado; 9,3% foram direcionadas para a atenção especializada; e 38,1% tiveram alta. Ou seja, quando realizado o atendimento aos usuários com obesidade, menos da metade tem retorno agendado ou cuidado continuado/programado na APS, que seria a conduta esperada para os casos de DCNT. Estudo realizado no Canadá também demonstrou que metade dos usuários que conversaram com profissionais de saúde tiveram diagnóstico de obesidade e apenas 28% tiveram consulta de retorno agendada2323 Sharma AM, Bélanger A, Carson V, Krah J, Langlois MF, Lawlor D, Lepage S, Liu A, Macklin DA, MacKay N, Pakseresht A, Pedersen SD, Ramos Salas X, Vallis M. Perceptions of barriers to effective obesity management in Canada: results from the ACTION study. Clin Obes 2019; 9(5):e12329..

No SISAB, os encaminhamentos para outros serviços são quase na sua totalidade para a atenção especializada, o que pode indicar que há uma compreensão geral de que o cuidado das pessoas com obesidade deve ser realizado por especialistas e/ou não existem fluxos e protocolos institucionalizados para orientar os atendimentos de pessoas com obesidade. Entre as barreiras apontadas por profissionais de saúde para a não abordagem do peso nos atendimentos estão o treinamento e as habilidades de aconselhamento insuficientes, o tempo limitado das consultas, a baixa confiança de que o aconselhamento sobre obesidade valha a pena e, ainda, a carência de espaço e de recursos clínicos2424 Kahan SI. Practical strategies for engaging individuals with obesity in primary care. Mayo Clin Proc 2018; 93(3):351-359..

Em estudo conduzido no Reino Unido avaliando as perspectivas de usuários e médicos da APS sobre seus papéis e responsabilidades na abordagem à obesidade, observou-se que o empoderamento dos usuários para o tratamento dessa condição depende do empoderamento dos profissionais de saúde para promover iniciativas de prevenção e controle2525 Henderson E. Obesity in primary care: a qualitative synthesis of patient and practitioner perspectives on roles and responsibilities. Br J Gen Pract 2015; 65(633):e240-e247.. Em metanálise, demonstrou-se que a probabilidade de tentativa de perda de peso em pessoas com obesidade é quase quatro vezes maior quando os profissionais de saúde ofertam aconselhamento2626 Rose SA, Poynter PS, Anderson JW, Noar SM, Conigliaro J. Physician weight loss advice and patient weight loss behavior change: a literature review and meta-analysis of survey data. Int J Obes (Lond) 2013; 37(1):118-28..

Nessa perspectiva, a utilização da ferramenta 5As na APS em apoio a um cuidado mais respeitoso e centrado nas necessidades e demandas dos usuários com obesidade tem apresentado resultados promissores, como perda de peso mais significativa, adoção de mudanças comportamentais positivas, chance 30% maior de motivação para a perda de peso por parte dos usuários e implementação duas vezes maior de iniciativas de manejo da obesidade por parte dos profissionais de saúde2424 Kahan SI. Practical strategies for engaging individuals with obesity in primary care. Mayo Clin Proc 2018; 93(3):351-359..

Outra dificuldade no cuidado às pessoas com obesidade parece ser o acesso insuficiente à consulta com profissionais de saúde para além da equipe mínima. Estudo realizado com dados do PMAQ de 2013-2014 apontou que apenas 24,3% das UBS tinham equipe estendida (psicólogo/a, profissional de educação física ou nutricionista) e 57,6% recebiam apoio matricial da Equipe do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Primária2727 Lopes MS, Freitas PP, Carvalho MCR, Ferreira NL, Menezes MC, Lopes ACS. Is the management of obesity in primary health care appropriate in Brazil? Cad Saude Publica 2021; 37(supl. 1):e00051620.. Consultas com nutricionistas na APS são efetivas para a melhoria da qualidade da dieta, do controle glicêmico, dos níveis de colesterol e triglicerídeos, da perda de peso e do controle do ganho de peso na gravidez2828 Mitchell LJ, Ball LE, Ross LJ, Barnes KA, Williams LT. Effectiveness of dietetic consultations in primary health care: a systematic review of randomized controlled trials. J Acad Nutr Diet 2017; 117(12):1941-1962., sendo mais benéficas do que visitas ao serviço de saúde sem a sua participação2929 Govers E, Seidell JC, Visser M, Brouwer IA. Weight related health status of patients treated by dietitians in primary care practice: first results of a cohort study. BMC Fam Pract 2014; 15:161.. Da mesma forma, a associação de terapeuta ou psicólogo/a, ao utilizar estratégias comportamentais, resulta em maior adesão à dieta, perda de peso e melhorias no IMC, no perímetro de cintura, no percentual de gordura e na pressão arterial diastólica3030 Ferrari GD, Azevedo M, Medeiros L, Neufeld CB, Ribeiro RPP, Rangé BP, Bueno Júnior CR. A multidisciplinary weight-loss program: The importance of psychological group therapy. Motriz Rev Educ Fis 2017; 23(1):47-52.,3131 Menezes MC, Duarte CK, Costa DVP, Lopes MS, Freitas PP, Campos SF, Lopes ACF. A systematic review of effects, potentialities, and limitations of nutritional interventions aimed at managing obesity in primary and secondary health care. Nutrition 2020; 75-76:110784.. Assim, em suas diretrizes oficiais para o cuidado às pessoas com sobrepeso e obesidade no SUS, o Ministério da Saúde recomenda que a assistência seja feita por equipe multiprofissional, conforme a necessidade de cada usuário1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas do sobrepeso e obesidade em adultos. Brasília: MS; 2020.,1616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. Manual de atenção às pessoas com sobrepeso e obesidade no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS) do Sistema Único de Saúde. Brasília: MS; 2022.,3232 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Instrutivo de abordagem coletiva para manejo da obesidade no SUS. Brasília: MS; 2021..

É importante que os profissionais de saúde reconheçam a obesidade como uma doença crônica que necessita de acesso precoce e atendimento em tempo oportuno e resolutivo, baseado na atenção integral. Um estudo canadense observou que os indivíduos demoravam mais de uma década para procurar orientação médica sobre o excesso de peso2323 Sharma AM, Bélanger A, Carson V, Krah J, Langlois MF, Lawlor D, Lepage S, Liu A, Macklin DA, MacKay N, Pakseresht A, Pedersen SD, Ramos Salas X, Vallis M. Perceptions of barriers to effective obesity management in Canada: results from the ACTION study. Clin Obes 2019; 9(5):e12329.. Isso ocorre não apenas pelas fragilidades em identificar essas pessoas no território e abordar a questão do peso nos atendimentos3333 Burlandy L, Teixeira MRM, Castro LMC, Cruz MCC, Santos CRB, Souza SR, Benchimol LS, Araújo TDS, Ramos DBDN, Souza TR. Modelos de assistência ao indivíduo com obesidade na atenção básica em saúde no estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(3):e00093419., mas pela inadequação de infraestrutura dos serviços, que não têm macas, cadeiras e balanças adequadas, fazendo com que essas pessoas se sintam invisibilizadas, estigmatizadas e mal acolhidas nos espaços2727 Lopes MS, Freitas PP, Carvalho MCR, Ferreira NL, Menezes MC, Lopes ACS. Is the management of obesity in primary health care appropriate in Brazil? Cad Saude Publica 2021; 37(supl. 1):e00051620.. No Brasil, demonstrou-se que 76,9% das UBS não tinham balança de 200 kg, 16,6% de 150 kg e 11,1% não tinham estadiômetro2222 Brandão AL, Reis EC, Silva CVC, Seixas CM, Casemiro JP. Estrutura e adequação dos processos de trabalhos no cuidado à obesidade na Atenção Básica brasileira. Saude Debate 2020; 44(126):678-693..

Outro desafio é o reconhecimento, por parte de profissionais de saúde e gestores, da obesidade como doença crônica que é, por trazer a complicações metabólicas, também fator de risco para DCNT, com alta prevalência na população brasileira. Esse reconhecimento perpassa o monitoramento do cenário epidemiológico do sobrepeso e da obesidade, e a inclusão de metas e indicadores nos instrumentos de gestão, com pactuação em nível federal, estadual e municipal.

É importante considerar que a prevenção e o tratamento da obesidade podem resultar na redução de custos para o SUS: quando considerados os gastos financeiros totais de HA, DM e obesidade, em 2018, aqueles referentes à obesidade corresponderam a 11%; mas considerando separadamente a obesidade como fator de risco para HA e DM, as despesas atribuíveis a essa condição chegaram a 41%3434 Nilson EAF, Andrade RDCS, Brito DA, Oliveira ML. Costs attributable to obesity, hypertension, and diabetes in the Unified Health System, Brazil, 2018. Rev Panam Salud Publica 2020; 44:e32..

Estudos indicam que pagamentos por desempenho na APS têm potencial para melhoria na qualidade do serviço, inclusive na atenção clínica a doenças crônicas como DM, HA, doenças cardiovasculares, câncer e tabagismo3535 Carvalho MF, Andrade CS. Pagamentos por desempenho na atenção primária à saúde: uma revisão sistemática. Rev APS 2021; 24(2):296-310.. Também têm efeitos positivos sobre a utilização de protocolos clínicos, redução de fatores de risco associados aos agravos e redução de internações por condições sensíveis à APS (ICSAP)3535 Carvalho MF, Andrade CS. Pagamentos por desempenho na atenção primária à saúde: uma revisão sistemática. Rev APS 2021; 24(2):296-310.. Um estudo de 2020 constatou que o PMAQ teve efeito importante na redução das ICSAP em todas as regiões e também no Brasil3636 Soares C, Ramos M. Uma avaliação dos efeitos do PMAQ-AB nas internações por condições sensíveis à Atenção Básica. Saude Debate 2020; 44(126):708-724.. A transferência de recurso financeiro atrelada a ações de educação permanente, definição de protocolos, gestão de casos e melhoria das condições de trabalho parece induzir o alcance dos resultados esperados, bem como a ampliação do acesso e a qualificação da APS3737 Rodrigues AWD, Mello ECA, Candeia RMS, Silva G, Gomes LB, Sampaio J. Pagamento por desempenho às Equipes da Atenção Básica: análise a partir dos ciclos do PMAQ-AB. Saude Debate 2021; 45(131):1060-1074..

Sabe-se que a APS deve ser a coordenadora do cuidado na Rede de Atenção à Saúde (RAS), buscando garantir a continuidade da atenção nos outros pontos da rede de acordo com a necessidade do usuário. Entre os desafios encontrados para a efetivação da coordenação do cuidado pela APS, estão: i) fragmentação da rede; ii) comunicação frágil entre os pontos de atenção, com baixo conhecimento do papel da APS pelos outros serviços; iii) escassez, má distribuição e baixa oferta de recursos humanos, principalmente especialistas; e iv) subfinanciamento das ações, com diminuição de investimentos e de prioridade na APS, em particular na Estratégia Saúde da Família3838 Bousquat A, Giovanella L, Fausto MCR, Medina MG, Martins CL, Almeida PF, Campos EMS, Mota PHS. A atenção primária em regiões de saúde: política, estrutura e organização. Cad Saude Publica 2019; 35(supl. 2):e00099118.,3939 Ribeiro SP, Cavalcanti MLT. Primary health care and coordination of care: device to increase access and improve quality. Cien Saude Colet 2020; 25(5):1799-1808..

O fortalecimento da APS como coordenadora do cuidado resulta em redução de encaminhamentos desnecessários à atenção especializada e menor tempo de espera por esses serviços, redução das internações hospitalares por condições sensíveis à APS, menor utilização dos serviços de urgência e emergência e redução de custos do sistema de saúde. Além disso, outros benefícios do cuidado coordenado pela APS são o maior acesso aos serviços necessários, melhor qualidade e continuidade do cuidado, maior foco na promoção da saúde e na prevenção das doenças e gestão precoce dos problemas de saúde4040 Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012.. É válido ressaltar que a atuação do profissional da APS pode provocar mudanças na organização do processo de cuidado e fortalecer a implementação da linha de cuidado de sobrepeso e obesidade na RAS.

No âmbito da atenção à saúde, é essencial ampliar o diagnóstico dos usuários com sobrepeso e obesidade por meio da VAN. Isso permite a identificação dos usuários com excesso de peso no território e a organização das ações de cuidado individual e coletivo realizadas no serviço de saúde. Ainda possibilita o diagnóstico precoce para intervenções em tempo oportuno, visando a prevenção do ganho excessivo de peso.

Estudo realizado pelos ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome apontou que o monitoramento sistemático na APS do estado nutricional de crianças de 0 a 5 anos acompanhadas pelo Programa Bolsa Família entre 2008 e 2012 resultou na diminuição dos casos de desnutrição em aproximadamente 50% (de 17,3% para 8,6%) e de excesso de peso em cerca de 40% (de 16,4% para 9,6%)4141 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Ministério da Saúde. Avaliação da evolução temporal do estado nutricional das crianças de 0 a 5 anos beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF), acompanhadas nas condicionalidades de saúde. Brasília: MDS; 2014.. Os profissionais da APS têm importante papel na prevenção e tratamento da obesidade infantil e em adolescentes, seja por avaliação e monitoramento do peso, promoção de hábitos de vida saudáveis, desenvolvimento de habilidades clínicas e infraestrutura, programas comunitários, educação em saúde, iniciativas intersetoriais ou advocacy4242 Vine M, Hargreaves MB, Briefel RR, Orfield C. Expanding the role of primary care in the prevention and treatment of childhood obesity: a review of clinic- and community-based recommendations and interventions. J Obes 2013; 2013:172035..

É necessário investir na formação e qualificação de todas as categorias profissionais das equipes de saúde para atuação clínico-assistencial, com a utilização de protocolos multiprofissionais baseados na melhor evidência científica disponível, pois intervenções educacionais por clínicos gerais que receberam capacitação sobre o tema resultam em maior perda de peso4343 Jay MR, Gillespie CC, Schlair SL, Savarimuthu SM, Sherman SE, Zabar SR, Kalet AL. The impact of primary care resident physician training on patient weight loss at 12 months. Obesity (Silver Spring) 2013; 21(1):45-50.,4444 Flodgren G, Gonçalves-Bradley DC, Summerbell CD. Interventions to change the behaviour of health professionals and the organisation of care to promote weight reduction in children and adults with overweight or obesity. Cochrane Database Syst Rev 2017; 11(11):CD000984..

No âmbito do cuidado das pessoas adultas, há uma série de materiais publicados nos últimos dois anos pelo Ministério da Saúde, como o “Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas de sobrepeso e obesidade em adultos”1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas do sobrepeso e obesidade em adultos. Brasília: MS; 2020., o “Manual de atenção às pessoas com sobrepeso e obesidade no âmbito da atenção primária à saúde (APS) do Sistema Único de Saúde”1616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. Manual de atenção às pessoas com sobrepeso e obesidade no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS) do Sistema Único de Saúde. Brasília: MS; 2022. e o “Instrutivo de abordagem coletiva para manejo da obesidade no SUS”3232 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Instrutivo de abordagem coletiva para manejo da obesidade no SUS. Brasília: MS; 2021., que apresentam orientações baseadas em evidências e subsidiam as práticas de cuidado dos profissionais de saúde na APS.

Para o cuidado de crianças e adolescentes, publicou-se o “Instrutivo para o cuidado da criança e do adolescente com sobrepeso e obesidade no âmbito da APS”4545 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Instrutivo para o cuidado da criança e do adolescente com sobrepeso e obesidade no âmbito da Atenção Primária à Saúde. Brasília: MS; 2022.. Além disso, foram disponibilizados os seguintes cursos autoinstrucionais a distância sobre essa temática na plataforma UNASUS (www.unasus.gov.br): “Abordagem do sobrepeso e obesidade na APS”, “Reconhecendo o sobrepeso e obesidade no contexto da APS”, “Promoção do ganho de peso adequado na gestação” e “Cuidado da criança e adolescente com sobrepeso e obesidade na Atenção Primária à Saúde”; e na plataforma AVASUS (avasus.ufrn.br), o curso “Obesidade infantil: uma visão global da prevenção e controle na atenção primária”. Destaca-se também a oferta de vagas para o “Curso de especialização em atenção à saúde das pessoas com sobrepeso e obesidade”, na modalidade de ensino a distância4646 Universidade Federal de Santa Catarina. Edital n° 005/2022/UNA-SUS/UFSC. Processo seletivo para ingresso na Especialização para Atenção à Saúde das Pessoas com Sobrepeso e Obesidade [Internet]. [acessado 2022 nov 6]. Disponível em: https://unasus.ufsc.br/especializacaoobesidade/files/2022/06/Edital_alunos_obesidade_segunda_turma_2022.pdf
https://unasus.ufsc.br/especializacaoobe...
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Para fornecer informações confiáveis e alinhadas com a Política Nacional de Alimentação e Nutrição e o Guia Alimentar para a População Brasileira, o Ministério da Saúde tem investido na elaboração e divulgação de materiais, vídeos e podcasts com a temática “Peso saudável”, por meio da Plataforma Saúde Brasil e de suas redes sociais. Foi desenvolvida, ainda, a funcionalidade “Peso saudável” no aplicativo ConecteSUS (https://conectesus-paciente.saude.gov.br/), que permite o cálculo do IMC e traz um programa de 12 semanas com o objetivo orientar profissionais de saúde e usuários sobre estratégias de prevenção e cuidado do excesso de peso. Estudos indicam que o uso de tecnologias online para o automonitoramento e a promoção de estilo de vida saudável tem sido benéfico para a perda de peso e o consumo alimentar4747 Mateo GF, Granado-Font E, Ferré-Grau C, Montaña-Carreras X. Mobile phone apps to promote weight loss and increase physical activity: a systematic review and meta-analysis. J Med Internet Res 2015; 17(11):e253.

48 Beleigoli AM, Andrade AQ, Cançado AG, Paulo MN, Diniz MFH, Ribeiro AL. Web-based digital health interventions for weight loss and lifestyle habit changes in overweight and obese adults: systematic review and meta-analysis. J Med Internet Res 2019; 21(1):e298.
-4949 Lau Y, Chee DGH, Chow XP, Cheng LJ, Wong SN. Personalised eHealth interventions in adults with overweight and obesity: a systematic review and meta-analysis of randomised controlled trials. Prev Med 2020; 132:106001..

Por ser a obesidade uma condição de causa multifatorial e complexa, é essencial que os profissionais de saúde considerem os determinantes socioculturais e ambientais para a organização de suas ações. Nesse sentido, é fundamental reconhecer os ambientes obesogênicos (promotores ou facilitadores de escolhas alimentares não saudáveis e de comportamentos sedentários) como fatores que influenciam diretamente a prevalência de excesso de peso. É recomendado que os países invistam em políticas públicas intersetoriais para intervir nesses ambientes, implementando equipamentos públicos que favoreçam o acesso físico e financeiro a alimentos saudáveis, estratégias de regulação da publicidade infantil e tributação de alimentos não saudáveis, além da criação e manutenção de espaços para a prática de atividades físicas, como parques e ruas de lazer acessíveis, com boa iluminação e segurança5050 The Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD). The heavy burden of obesity: the economics of prevention [Internet]. [cited 2022 out 25]. Disponível em: https://www.oecd.org/health/the-heavy-burden-of-obesity-67450d67-en.htm
https://www.oecd.org/health/the-heavy-bu...

51 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Recomendações para a operacionalização da Política Nacional de Promoção da Saúde na Atenção Primária à Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2020.
-5252 Shekar M, Popkin B. Obesity: health and economic consequences of an impending global challenge. Human Development Perspectives series. Washington, DC: International Bank for Reconstruction and Development, The World Bank; 2020.. Para aumentar a capacidade de resposta, uma iniciativa brasileira, lançada em 2021, é a Estratégia Nacional para Prevenção e Atenção à Obesidade Infantil (Proteja), que prevê ações nos diferentes ambientes coordenados pela saúde5353 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. Proteja - Estratégia Nacional para Prevenção e Atenção à Obesidade Infantil: orientações técnicas. Brasília: MS; 2022..

Este estudo tem como limitações a fonte de dados utilizada: os sistemas de informação da APS, a partir dos atendimentos realizados nos serviços de saúde. Quanto menor o registro nos sistemas de informação, mais frágil são as análises e os resultados. Entretanto, como potencialidade, destaca-se que este é o primeiro estudo a avaliar os efeitos do incentivo financeiro federal para a atenção às pessoas com obesidade no Brasil1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.994, de 29 de outubro de 2020. Institui, em caráter excepcional e temporário, incentivo financeiro federal para atenção às pessoas com obesidade, diabetes mellitus ou hipertensão arterial sistêmica no âmbito da Atenção Primária à Saúde, no Sistema Único de Saúde, no contexto da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) decorrente da pandemia do novo coronavírus. Diário Oficial da União 2020; 29 out.; além disso, os dados aqui analisados permitem pactuação de metas e indicadores para o monitoramento do desempenho da atenção ofertada aos indivíduos com obesidade de forma permanente.

Em conclusão, a obesidade é definitivamente um sério e complexo problema de saúde pública, que requer uma atuação intra e intersetorial coordenada. Investir recursos financeiros para induzir, em nível municipal, a implementação de ações, além de uma atenção integral e resolutiva, tem se mostrado uma estratégia efetiva. O presente estudo evidenciou uma melhora do desempenho dos municípios em relação ao aumento da oferta de atendimentos individuais na APS para a condição avaliada como obesidade. O desafio agora é ampliar o investimento e mantêlo de forma permanente e regular, por exemplo com a pactuação e inclusão de indicadores na política formal de financiamento da APS. Para um agravo de tamanha magnitude, somente ações estruturantes (como a qualificação de gestores e profissionais, a organização da rede de atenção e estratégias intersetoriais) e financiamento adequado para apoiar municípios serão capazes de reverter o cenário ou deter o avanço do excesso de peso no país.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2022
  • Aceito
    25 Abr 2023
  • Publicado
    27 Abr 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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