Resumo
O objetivo deste artigo é avaliar o impacto da COVID-19 na mortalidade das pessoas privadas de liberdade (PPL) no estado do Rio de Janeiro e comparar as taxas observadas com as da população geral. Estudo quantitativo, retrospectivo, que associa análise de série histórica 2016-2021 de taxa anual de mortalidade, seccional, comparando 2016-2017 vs. 2020-2021 e análise de dados individuais obtidos a partir de fontes primárias e secundárias de informação. A razão de mortalidade padronizada entre PPL e população geral foi estimada para os grupos de causa. Série histórica mostrou queda anual (13%) da mortalidade de 2016 a 2019, tendência que se inverteu em 2020 devido à COVID-19, responsável por 20% do total de mortes. Das PPL que morreram por COVID-19, 54,8% eram idosas e/ou portadoras de comorbidade. A mortalidade por COVID-19 foi semelhante entre a PPL e a população geral, mas a mortalidade por tuberculose e HIV permaneceu muito mais elevada entre as PPL. A pandemia foi provavelmente determinante para a reversão da tendência de queda na mortalidade observada entre 2016 e 2019. A utilização da mortalidade como indicador de saúde e direitos humanos nas prisões por órgãos de saúde, justiça e organizações da sociedade civil implica o aprimoramento da informação sobre PPL no SIM.
Palavras-chave:
Prisão; COVID-19; Mortalidade; Comorbidade; Tuberculose
Introdução
Ainda que nas prisões brasileiras as condições de encarceramento e as deficiências dos serviços de saúde resultem em alta morbidade, objeto de vários estudos11 Minayo MCS, Constantino P. Deserdados Sociais: condições de saúde e qualidade de vida dos presos do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015.
2 Domingues RMSM, Leal MDC, Pereira APE, Ayres B, Sánchez AR, Larouzé B. Prevalence of syphilis and HIV infection during pregnancy in incarcerated women and the incidence of congenital syphilis in births in prison in Brazil. Cad Saude Publica 2017; 33(11):e00183616.-33 Busatto C, Bierhals DV, Vianna JS, Silva PEAD, Possuelo LG, Ramis IB. Epidemiology and control strategies for tuberculosis in countries with the largest prison populations. Rev Soc Bras Med Trop 2022; 55:e00602022., a mortalidade, indicador fundamental de acesso à saúde e direitos humanos, tem sido pouco estudada44 Liu YE, Lemos EF, Gonçalves CCM, Oliveira RD, Santos ADS, Morais AOP, Croda MG, Alves MLD, Croda J, Walter KS, Andrews JR. All-cause and cause-specific mortality during and following incarceration in Brazil: a retrospective cohort study. PLoS Med 2021; 18(9):e1003789.,55 Sánchez A, Toledo CRS, Camacho LAB, Larouze B. Mortalidade e causas de óbitos nas prisões do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(9):e00224920..
Estudo realizado em 2016-2017 por nosso grupo de pesquisa55 Sánchez A, Toledo CRS, Camacho LAB, Larouze B. Mortalidade e causas de óbitos nas prisões do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(9):e00224920., na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fiocruz, em colaboração com o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), mostrou uma situação preocupante. A mortalidade foi mais elevada nas prisões do estado do Rio de Janeiro (ERJ) quando comparada à da população geral, com predominância de mortes por doenças infecciosas, especialmente tuberculose e infecção por HIV. Essas mortes foram consideradas, em sua maioria, potencialmente evitáveis, evidenciando as limitações técnicas e organizacionais do sistema de saúde prisional.
Nesse contexto, desde o surgimento da pandemia de COVID-19, a expectativa de ampla disseminação do SARS-CoV-2 nas prisões, seja de países de renda alta66 Toblin RL, Cohen SI, Hagan LM. SARS-CoV-2 infection among correctional staff in the Federal Bureau of Prisons. Am J Public Health 2021; 111(6):1164-1167., baixa77 Nweze VN, Anosike UG, Ogunwusi JF, Adebisi YA, Lucero-Prisno DE. Prison health during the COVID-19 era in Africa. Public Health Pract (Oxf) 2021; 2:100083. ou intermediária como o Brasil88 Sánchez A, Simas L, Diuana V, Larouze B. COVID-19 nas prisões: um desafio impossível para a saúde pública? Cad Saude Publica 2020; 36(5):e00083520.,99 World Health Organization (WHO). Preparedness, prevention and control of COVID-19 in prisons and other places of detention [Internet]. 2021. [cited 2022 jul 12]. Available from: https://www.who.int/europe/publications/i/item/WHO-EURO-2021-1405-41155-57257
https://www.who.int/europe/publications/... , tornou-se motivo de grande preocupação de saúde pública. Estudo realizado nas prisões de Brasília encontrou um intervalo menor de transmissão para COVID-19 do que o estimado para o Brasil como um todo. Esse achado corrobora a ideia de uma disseminação viral mais rápida no ambiente superlotado e confinado das prisões1010 Gouvea-Reis FA, Oliveira PD, Silva DCS, Borja LS, Percio J, Souza FS et al. COVID-19 outbreak in a large penitentiary complex, April-June 2020, Brazil. Emerg Infect Dis 2021; 27(3):924-927..
As condições de encarceramento das cerca de 52.000 pessoas privadas de liberdade (PPL) no ERJ são comuns à maioria das prisões brasileiras. As PPL enfrentaram a pandemia com um já frágil sistema de saúde prisional, pouca disponibilidade de máscaras e de testes para diagnóstico, limitado acesso a água, impossibilidade de distanciamento social em celas coletivas, superlotadas e pouco ventiladas1111 Santos M, França P, Sánchez A. Manual de Intervenções Ambientais para o Controle da Tuberculose nas Prisões. Rio de Janeiro: Letra e Imagem; 2012., além de retardo da vacinação e de uma política de desencarceramento pouco abrangente1212 Simas L, Larouze B, Diuana V, Sánchez A. Por uma estratégia equitativa de vacinação da população privada de liberdade contra a COVID-19. Cad Saude Publica 2021; 37(4):e0006822..
Os dados oficiais sobre óbitos por COVID-19 nas prisões do Brasil, disponibilizados no Painel de Monitoramento dos casos de COVID-19 do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)1313 Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil. Departamento Penitenciário Nacional. Painel de Monitoramento dos sistemas prisionais. Medidas de combate ao COVID-19. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYThhMjk5YjgtZWQwYS00ODlkLTg4NDgtZTFhMTgzYmQ2MGVlIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9
https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiY... , foram baseados na compilação de dados enviados pela administração penitenciária dos estados. Esses dados são subestimados por serem limitados aos óbitos confirmados por RT-PCR ou teste rápido de antígeno, cuja disponibilidade foi, durante toda a pandemia, muito desigual entre as prisões do país e menor para as PPL do que para a população geral. Constam no Painel de Monitoramento de DEPEN um total de 293 óbitos por COVID-19 nas prisões do país e 25 óbitos nas prisões do ERJ no período de março 2020 até 17 de outubro de 2022, última atualização1313 Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil. Departamento Penitenciário Nacional. Painel de Monitoramento dos sistemas prisionais. Medidas de combate ao COVID-19. [acessado 2023 fev 23]. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYThhMjk5YjgtZWQwYS00ODlkLTg4NDgtZTFhMTgzYmQ2MGVlIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9
https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiY... , o que sugere a existência de grande sub registro. A limitação das informações disponíveis sobre óbitos em PPL nas bases de dados e nas estatísticas oficiais, com a necessidade de voltar a dados primários, foi revelada por estudo anteriormente realizado pela ENSP/Fiocruz55 Sánchez A, Toledo CRS, Camacho LAB, Larouze B. Mortalidade e causas de óbitos nas prisões do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(9):e00224920..
Nesse sentido, a invisibilidade, no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), dos óbitos ocorridos durante o encarceramento dificulta sobremaneira a análise da mortalidade e suas causas na população privada de liberdade55 Sánchez A, Toledo CRS, Camacho LAB, Larouze B. Mortalidade e causas de óbitos nas prisões do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(9):e00224920.. Outro fator que contribuiu para aumentar a dificuldade para identificação de óbitos de PPL e de suas causas durante a pandemia foi a modificação do fluxo dos corpos, a partir da publicação de portaria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 28 de abril de 20201414 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Portaria Conjunta nº 2, de 28 de abril de 2020. Estabelece procedimentos excepcionais para sepultamento de corpos durante a situação de pandemia do Coronavírus, com a utilização da Declaração de Óbito emitida pelas unidades notificadores de óbito, na hipótese de ausência de familiares, de pessoa não identificada, de ausência de pessoas conhecidas do obituado e em razão de exigência de saúde pública, e dá outras providências [Internet]. 2020. [acessado 2023 abr 10]. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/08/portaria-conjunta-28-abril-2020-cnj.pdf
https://www.cnj.jus.br/wp-content/upload... e, no âmbito do RJ, da Resolução Conjunta SEPOL/SEAP/RJ (Secretaria de Polícia/Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro) de 23 de março de 20201515 Secretaria de Estado de Polícia Civil do Rio de Janeiro. Resolução Conjunta SEPOL/SEAP nº 10, de 23 de março de 2020. Disciplina o procedimento a ser adotado por ocasião de óbitos ocorridos no interior de unidades prisionais hospitalares durante a emergência de importância internacional decorrente do enfrentamento do Coronavirus. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro 2023; 25 mar., que autorizaram a emissão de declaração de óbito por qualquer serviço de saúde. A identificação das PPL falecidas e a necrópsia pelo Instituto Médico Legal (IML) deixaram então de ser obrigatórias. Enquanto a primeira foi rapidamente revogada após forte crítica de organizações de direitos humanos, a segunda permaneceu em vigor até março de 2022.
Diante da imprecisão dos dados oficiais sobre número e causas das mortes nas prisões no SIM e no Painel COVID-19 do DEPEN, e da importância de estimar o impacto da pandemia na mortalidade de PPL, estendemos até 2021 o estudo realizado na ENSP/Fiocruz em 2016-2017 sobre o tema55 Sánchez A, Toledo CRS, Camacho LAB, Larouze B. Mortalidade e causas de óbitos nas prisões do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(9):e00224920..
O objetivo do presente estudo é avaliar o impacto da COVID-19 na mortalidade das pessoas privadas de liberdade no estado do Rio de Janeiro e comparar as taxas observadas com as da população geral. Buscamos assim subsidiar a discussão sobre estratégias para adequação das ações de vigilância, prevenção e assistência à saúde no sistema prisional e contribuir para a implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP)1616 Brasil. Ministério da Saúde (MS), Ministério da Justiça (MJ). Portaria Interministerial nº 1, de 2 de janeiro de 2014 Institui a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2014; 3 jan..
População e métodos
Estudo quantitativo, retrospectivo, que associa componente baseado na análise de dados agregados (série temporal) e estudo seccional com coleta e análise de dados individualizados, incluindo todos os óbitos de pessoas custodiadas no Sistema Penitenciário do ERJ no período de 1º de janeiro de 2016 a 31 de dezembro de 2021, tenham eles ocorrido nas próprias penitenciárias, em unidades de saúde prisional ou em serviços de saúde extramuros. As causas dos óbitos ocorridos em 2018 e 2019 não foram estudadas pela inacessibilidade aos registros de saúde e prontuários médicos necessários para qualificar as informações sobre as causas dos óbitos, como realizado para os demais anos. Os dados para as PPL, incluindo distribuição por sexo e idade, foram obtidos junto à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP). Para cálculo da taxa de mortalidade bruta anual, foi utilizada como denominador a população encarcerada em junho de cada ano. Foi construída a série temporal das taxas anuais de mortalidade por todas as causas de 2016 a 2021 e calculada a tendência por meio de regressão linear.
Em março de 2020 as prisões do ERJ abrigavam cerca de 52.000 PPL com 18 anos ou mais, sendo 50.232 homens (96,4%) e 1.868 mulheres (3,6%), dos quais 35,7% (18.595/52.100) aguardavam julgamento. Estavam distribuídos em 47 unidades prisionais superlotadas (taxa média de ocupação de 178%, chegando a 293% em algumas prisões)1717 Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil. Departamento Penitenciário Nacional. Painéis de Monitoramento dos Sistemas Prisionais [Internet]. [acessado 2022 jul 7]. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/acoes-contrapandemia/painel-de-monitoramento-dos-sistemas-prisionais
https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/... , com celas que chegam a abrigar cerca de 150 PPL e com acesso limitado a água. Do total de PPL, cerca de 780 (1,7%) tinham > 60 anos1818 Minayo MCS, Constantino P. Condições de saúde e qualidade de vida dos presos idosos do Estado do Rio de Janeiro - Sumário Executivo [Internet]. 2021. [acessado 2023 mar 10]. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/357128824
https://www.researchgate.net/publication... . A estrutura de saúde era composta por ambulatório de saúde em cada unidade prisional, que contava apenas com técnicos de enfermagem, um pronto-socorro e um hospital para tuberculose. Os casos mais graves eram transferidos para os hospitais públicos da proximidade.
Para avaliar a mortalidade bruta e por grupos de causa em 2020 e 2021, em plena epidemia de COVID-19, os óbitos ocorridos nesses anos informados pela SEAP foram vinculados ao banco de dados do SIM por meio do aplicativo RecLink II, versão 3.11919 Camargo Jr. KR, Coeli CM. RECLINK: aplicativo para o relacionamento de banco de dados implementando o método probabilistic record linkage, versão: 3.1.6.3160. Rio de Janeiro; 2007., utilizando nome do falecido, nome da mãe, data de nascimento e data do óbito. A causa básica e outras condições significativas que contribuíram para a morte foram obtidas no SIM, e aquelas obtidas a partir da consulta a prontuários de saúde, e que não estavam incluídas na cadeia inserida na parte I da declaração de óbito (causas contribuintes) foram incluídas e codificadas segundo a 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10).
Dessa forma, para todos os óbitos declarados no SIM como COVID-19, isto é, codificados como CID-B34.2 e U07.1 ou U07.2 (marcadores para óbitos com menção de COVID-19 com e sem confirmação laboratorial) em qualquer das linhas da declaração de óbito (DO), os prontuários de saúde foram consultados para coleta de informações complementares, como resultados de exames laboratorias e existência de comordidades. Esse procedimento diagnóstico também foi aplicado aos óbitos declarados como síndrome respiratória aguda grave (SRAG, CID-10 U04.9), visando identificar óbitos por COVID-19 eventualmente não declarados.
Para identificação de casos adicionais não registrados na DO como COVID-19, foram verificados os registros laboratoriais de testes RT-PCR e pesquisa de antígeno por teste rápido (TR-Ag) do pronto-socorro prisional. Conforme a definição OMS de casos de COVID-192020 World Health Organization (WHO). WHO COVID-19: case definitions: updated in Public health surveillance for COVID-19, 22 July 2022 [Internet]. 2022. [cited 23 fev 10]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/WHO-2019-nCoV-Surveillance_Case_Definition-2022-1
https://www.who.int/publications/i/item/... , atualizada em 22 de julho de 2022, os casos sem confirmação laboratorial só foram considerados como casos de COVID-19 quando a existência de vínculo epidemiológico com caso de COVID-19 confirmado laboratorialmente pode ser verificada.
Para avaliar o impacto da COVID-19 na evolução da mortalidade, foram estimadas as taxas brutas de mortalidade para 2020 e 2021 com base na tendência linear de 2016 a 2019. As taxas estimadas foram comparadas com as taxas observadas em 2020 e 2021 antes e após exclusão das mortes por COVID-19. Ainda foi calculada a mortalidade proporcional por grandes grupos: óbitos por causa externa e por causa natural. A mortalidade proporcional por capítulos da CID-10 em 2020 e 2021 foi comparada à observada em 2016 e 2017.
Embora a COVID-19 esteja incluída no capítulo I da CID-10, para avaliar o impacto da doença sobre a mortalidade nas prisões, optamos por analisá-la separadamente, tanto na distribuição proporcional quanto na comparação com a população geral.
Para comparar a mortalidade na população prisional com a da população geral do ERJ, ajustando para as diferenças nas distribuições etárias, a razão de mortalidade padronizada (standardized mortality ratio, SMR) foi calculada pelo quociente do número observado de óbitos (total e por grupos de causas) nas prisões do ERJ, e a soma dos óbitos estimados, por faixa etária da população prisional, aplicando as taxas de mortalidade específicas correspondentes na população do ERJ (http://sistemas.saude.rj.gov.br/tabnet/deftohtm.exe?sim/obito.def, acessado em 06/Set/2019). Mortes por acidentes de transporte foram excluídas da análise por não serem esperadas em uma população encarcerada e por não terem sido observadas nessa população no período de estudo. Dado o baixo número de óbitos entre mulheres presas, a padronização por idade foi limitada aos homens. As faixas etárias foram definidas a partir das categorias utilizadas pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). A razão de mortalidade padronizada e entre PPL e população geral foi estimada para os grupos de causa.
Para a análise dos dados foram utilizados os softwares SPSS for Windows, versão 20.0 (https://www.ibm.com/), e WINPEPI, versão 11.65 (http://www.brixtonhealth.com/pepi4windows.html), para estimar os limites de 95% de confiança dos SMR2121 Abramson JH. WINPEPI updated: computer programs for epidemiologists, and their teaching potential. Epidemiol Perspect Innov 2011; 8(1):1.. As taxas de mortalidade na população geral foram calculadas a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do SIM. Foi calculada a mortalidade proporcional por causas externas e por causas naturais segundo capítulos da CID-10.
O Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fiocruz, aprovou o protocolo do estudo (nº 4.168.197).
Resultados
A análise da série histórica de mortalidade nas PPL (2016-2021) (Figura 1) mostra queda anual média de 13% até 2019 (525/100.000 em 2016 para 387/100.000 em 2019). Entretanto, em 2020 se observa uma reversão da tendência de queda, com taxa de 371/100.000 em 2020 (180 mortes) e 434/100.000 em 2021 (185 mortes). As taxas de mortalidade geral observadas nas PPL foram superiores à esperada para 2020 e 2021 (335,7 e 283,9/100.000, respectivamente). Após a exclusão dos óbitos por COVID-19, a taxa observada nas PPL (294/100.000) foi inferior à esperada em 2020 (335,7/100.000), entretanto volta a subir (348.000/100.000), superando a taxa estimada (283,9/100.00) para 2021.
Taxas brutas anuais de mortalidade no Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, observadas por todas as causas em 2016-2021, por todas as causas, exceto COVID-19 em 2020-2021, e estimadas para todas as causas em 2020-2021, segundo tendência em 2016-2019.
A COVID-19 representou cerca de 20% do total de óbitos em 2020 e 2021. A distribuição segundo os capítulos do CID-10 (Tabela 1) mostra redução substancial na contribuição proporcional e no número total de óbitos em quase todos os grupos de causas em 2020 e 2021, quando comparado a 2016 e 2017, exceto nas mortes por causa indeterminada, que tiveram importante elevação em 2020 em relação a 2017, de 5,4% para 18,3% (11 para 33 óbitos), com regressão parcial em 2021 (15 óbitos). Cabe ressaltar que houve redução da população prisional, que passou de 51.451 em dezembro de 2017 para 45.018 e 42.770 em dezembro de 2020 e de 2021, respectivamente.
Houve discreta redução da contribuição proporcional das doenças infecciosas (excluída a COVID-19), que passou de 28,5% em 2016-2017 para 24,3% em 2021 (Tabela 1). Entre as causas por morte natural, o diabetes mellitus foi citado como causa básica ou contribuinte em 9,2% (15/163) dos óbitos em 2020 e em 7,2% (12/167) em 2021. Essas proporções tinham sido 7,1% (15/211) em 2016 e 7,8% (18/230) em 2017. Entre os óbitos por diabetes ocorridos em 2020 e 2021, 40% (6/15) e 42% (5/12), respectivamente, estavam associados à COVID-19.
Das 73 mortes por COVID-19, 71 (97,3%) eram do sexo masculino e 48 (65,8%) pretos ou pardos. A média de idade foi de 47 anos (22-89 anos), com 28 óbitos (38,4%) na faixa etária de 18 a 39 anos, 27 (36,9%) na de 40 a 59 anos e 18 (24,7%) na de 60 a 89 anos. Embora as PPL com mais de 60 anos representassem apenas 1,7% da população carcerária, elas contribuíram com 25% dos óbitos por COVID-19. Portadores de comorbidades e/ou idosos contribuíram com 54,8% dos óbitos (40/73). Apenas dois óbitos por COVID-19 ocorreram entre mulheres presas. Das 73 mortes por COVID-19, 19,2% ocorreram nas unidades prisionais, 67,1% no pronto-socorro prisional e 13,7% em hospitais extramuros.
Comorbidades sabidamente associadas a formas graves de COVID-19 foram observadas em 49,3% (36/73) dos óbitos. A doença mais frequentemente citada foi a infecção pelo HIV/aids, 33,3% (12/36) principalmente nas PPL de 18 a 59 anos, seguida do diabetes mellitus em 30,6% (11/36), principalmente nos maiores de 60 anos, e doenças cardiovasculares em 22,2% (11/36). A tuberculose foi citada na declaração de óbito e/ou no registro de atendimento médico em 19,4% (7/36) dos óbitos, na maioria dos casos (5/7) associada à infecção por HIV. Outras comorbidades foram identificadas em menor frequência: asma, insuficiência renal crônica e obesidade mórbida.
No que se refere à frequência de mortes por doenças infecciosas (excluída a COVID-19), quando comparamos os períodos 2020-2021 com 2016-2017, a tuberculose permanece como a principal causa de óbito e esteve implicada, como causa básica ou contribuinte, em 48,8% (21/43) dos óbitos por doenças infecciosas em 2020 e em 60,0% (30/50) em 2021, seguida pela infecção por HIV/aids, 48,8% (21/43) e 36,0% (18/50), e as septicemias, 23,3% (10/43) e 15,7% (8/50), respectivamente.
Em 2020 e 2021, as taxas de mortalidade por COVID-19 foram muito mais elevadas nas PPL com mais de 60 anos de idade, assim como nos idosos da população geral, em comparação com as faixas etárias mais jovens (Tabela 2). No entanto, os idosos representavam apenas 1,7% da PPL e 18,6% da população geral, cuja taxa global foi, consequentemente, muito superior à das PPL.
A comparação da mortalidade entre PPL e população geral masculina do ERJ após padronização por idade (Tabela 3) mostra taxa global 27% e 23% inferior entre as PPL, respectivamente, em 2020 e 2021 (SMR: 0,73 e 0,77), e mortalidade por causas externas 80% maior fora das prisões (SMR: 0,20 e 0,23, respectivamente).
Entretanto, a mortalidade por doenças infecciosas foi muito superior entre PPL (SMR: 2,68 e 3,46, em 2020 e 2021). Entre as doenças infecciosas (excluída a COVID-19), destaca-se a tuberculose (Tabela 4), com risco de morte 6 e 11 vezes superior, e a infecção por HIV/aids, 2 e 2,5 vezes superior ao da população geral, respectivamente, em 2020 e 2021. A taxa de mortalidade por COVID-19 entre PPL (Tabela 2) foi similar à observada na população geral do ERJ em 2020, e inferior em 2021.
Discussão
Este estudo realizado no sistema prisional do ERJ, único publicado até o momento com essa abordagem sobre a mortalidade associada à COVID-19 nas prisões do país, traz novas informações sobre o impacto da pandemia na mortalidade das PPL, na medida em que não se limita à análise de dados secundários agregados. Procura complementar e qualificar a informação a partir da consulta de diferentes fontes primárias e secundárias não agregadas, buscando maior precisão quanto ao número, à causa dos óbitos e às circunstâncias de sua ocorrência. Os achados deste estudo reposicionam a mortalidade por COVID-19 nessa população, até então considerada baixa segundo registros oficiais. Nosso estudo revela um importante sub registro de óbitos no Painel de Monitoramento do DEPEN1717 Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil. Departamento Penitenciário Nacional. Painéis de Monitoramento dos Sistemas Prisionais [Internet]. [acessado 2022 jul 7]. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/acoes-contrapandemia/painel-de-monitoramento-dos-sistemas-prisionais
https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/... , cujo número declarado para o ERJ corresponde a apenas 1/3 das mortes ocorridas por COVID-19. As taxas de mortalidade específicas por faixa etária da população privada de liberdade foram comparáveis às da população geral, considerando a margem de incerteza das taxas geradas com numeradores pequenos.
Um importante resultado deste estudo é a demonstração do impacto negativo da COVID-19 sobre a tendência de queda da mortalidade observada a partir de 2020. A reversão da tendência de queda se manteve em 2021, mesmo com a exclusão dos óbitos por COVID-19, possivelmente pela prioridade dada a esta no atendimento. Durante a pandemia, os serviços de saúde prisional foram fortemente afetados, sem que houvesse acréscimo de estrutura e recursos humanos para lidar com a demanda extra gerada pela epidemia, com evidente prejuízo no diagnóstico e acompanhamento de outras doenças, como tuberculose, aids e diabetes, cujo impacto na mortalidade já se tornou evidente. Esse prejuízo não foi exclusivo dos serviços de saúde prisional, uma vez que a queda das taxas de incidência de tuberculose foi observada na população geral do país2222 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente. Boletim Epidemiológico de Tuberculose 2023 - número especial [Internet]. 2023. [acessado 2023 abr 2]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/especiais/2023/boletim-epidemiologico-de-tuberculose-numero-especial-mar.2023/view
https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-... . No entanto, o efeito da disseminação foi mais evidente nas prisões, onde a transmissão da tuberculose é amplificada. Também ilustra a acentuação das falhas na assistência o aumento proporcional das mortes por septicemias (incluídas no Capítulo I do CID-10) e de portadores de diabetes, em grande parte associadas à COVID-19.
O declínio gradual da mortalidade no início da série histórica foi consequência de melhoria na gestão da saúde nas prisões do ERJ, com maior implicação de órgãos de fiscalização e organizações da sociedade civil, motivados e impulsionados pelas taxas alarmantes de mortalidade em 2016-2017, reveladas pelo estudo realizado anteriormente55 Sánchez A, Toledo CRS, Camacho LAB, Larouze B. Mortalidade e causas de óbitos nas prisões do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(9):e00224920.. A reversão na tendência da taxa de mortalidade pode ser atribuída à COVID-19, já que nenhuma outra grande mudança nas questões relacionadas à saúde ocorreu no período estudado e revela a incapacidade de um sistema de saúde prisional desestruturado e frágil, em um contexto de insalubridade e superlotação, de responder a emergências de saúde pública como a COVID-19.
A comparação entre dados de 2016-2017 e de 2020-2021 mostra que, embora a taxa global de mortalidade tenha sido semelhante à da população geral do ERJ, a mortalidade por doenças infecciosas (excluída a COVID-19) permaneceu alta nas prisões do estado, com risco de morte duas vezes mais elevado para as PPL. A tuberculose e a infecção por HIV/aids continuaram em 2021 como as principais causas de morte nas prisões, com risco de morte ainda muito elevado para PPL, mas menor do que o observado no período 2016-2017 (SMR: 16,21, IC95%: 12,41-20,08).
Por outro lado, a mortalidade por COVID-19 foi similar dentro e fora das prisões, situação diversa do relatado em várias prisões dos EUA, onde foram observadas taxas cerca de três vezes superiores na população encarcerada2323 Marquez N, Ward JA, Parish K, Saloner B, Dolovich S. COVID-19 Incidence and Mortality in Federal and State Prisons Compared with the US Population, April 5, 2020, to April 3, 2021. JAMA 2021; 326(18):1865-1867.,2424 Saloner B, Parish K, Ward JA, DiLaura G, Dolovich S. COVID-19 Cases and Deaths in Federal and State Prisons. JAMA 2020; 324(6):602-603.. Entretanto, é plausível que nas prisões do ERJ tenha havido sub diagnóstico. O acesso ao teste diagnóstico foi mais limitado do que nos serviços que atendiam à população geral. Houve, no sistema prisional, retardo na disponibilização do RT-PCR e, posteriormente, do TR-Ag, centralização da testagem no pronto-socorro prisional e limitação dos testes aos casos graves, além da interrupção da realização de necrópsias. Diante disso, deve ser também considerada a existência de casos não diagnosticados de COVID-19 entre os óbitos por causa indeterminada observados em 2020 e 2021, em sua maioria ocorridos nas unidades prisionais e em maior proporção do que em anos precedentes.
Conforme a lógica do encarceramento que caracteriza a política penal brasileira, as medidas de liberação provisória editadas pela Recomendação nº 62 do CNJ, de 17 de março de 20202525 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Recomendação nº 62, de 17 de março de 2020. Recomenda aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus - COVID-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo [Internet]. 2020. [acessado 2023 abr 4]. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf
https://www.cnj.jus.br/wp-content/upload... , que tinham por objetivo reduzir a superlotação, foram adotadas com muita parcimônia. Limitaram-se às PPL que estavam em regime aberto ou semiaberto, com direito a visitas periódicas ao lar ou com trabalho extramuros, isto é, já saíam para trabalhar durante o dia e retornavam à noite para a prisão. Esses critérios, somados à redução na admissão de novos presos por ocasião das audiências de custódia no período inicial da pandemia, tiveram efeito na redução do efetivo carcerário, que passou, no ERJ, de 52.013 em março/2020 a 42.770 em dezembro/2021, ou seja, redução de 18%.
Entretanto, não foram considerados como beneficiários da liberdade provisória, como preconizado pela mesma Recomendação nº 62 do CNJ, os idosos e portadores de doenças consideradas como de maior risco para evolução fatal da COVID-19, o que poderia ter reduzido o número de mortes, já que esses grupos contribuíram com cerca da metade do total dos óbitos. Apesar dos esforços do MP e da Defensoria Pública em ações coletivas, somente casos individuais de presos “famosos” pertencentes a esses grupos foram beneficiados com liberdade provisória2626 Diuana FA, Diuana V, Constantino P, Larouzé B, Sanchez A. COVID-19 in prisons: what telejournalism (not) showed - a study on the criteria for newsworthiness during the pandemic. Cien Saude Colet 2022; 27(9):3559-3570..
Sem a possibilidade de liberdade provisória, o isolamento coletivo de idosos provenientes de várias unidades prisionais, sem teste prévio, resultou em surto de COVID-19, com a morte de seis idosos no período de 12 dias. Somente a partir deste episódio, ocorrido em abril de 2020, o sistema penitenciário do RJ começou a realizar RT-PCR para COVID-19 na sua unidade de pronto-socorro, mas apenas para casos graves. O acesso ao teste diagnóstico nas unidades prisionais do país foi limitado e tardio, como testemunham os dados disponibilizados pelo CNJ2727 Brasil. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Monitoramento GMF's/Tribunais de Justiça. Boletim de 16 de setembro de 2020, edição 7 [Internet]. 2020. [acessado 2021 set 21]. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/%20uploads/2020/09/Monitoramento-CNJ-GMFs-Covid-19-16.09.20.pdf
https://www.cnj.jus.br/wp-content/%20upl... , segundo os quais foram testadas, no período de abril a agosto de 2020, cerca de 34% das PPL no Distrito Federal, 17% no Mato Grosso, 11% em Goiás, 10% no Mato grosso do Sul, 7% no Pará e 6% em Pernambuco, sugerindo testagem insuficiente naquele período epidêmico. No ERJ não foi diferente, e mesmo após a disponibilização do teste rápido de antígeno para a população prisional a partir de setembro de 2020, a descentralização efetiva deste teste só ocorreu em 2022. Isso pode ter contribuído para a maior disseminação da doença e o retardo na identificação e no tratamento dos casos de COVID-19.
A precariedade do sistema de saúde prisional foi agravada pelo afastamento de profissionais de saúde idosos ou portadores de comorbidades. As medidas adotadas para limitar a circulaçao do SARS-CoV-2, como a quarantena de 15 dias imposta aos ingressantes no sistema penitenciário ou após qualquer movimentação fora da unidade prisional, como ida ao pronto-socorro intramuros, a limitação da transferência entre prisões e a interdição das visitas, medidas que se inscrevem na lógica penitenciária, não foram suficientes para limitar a difusão do novo coronavírus. Essas medidas restritivas de movimentação, sem o necessário acesso ao teste diagnóstico nas próprias unidades prisionais, podem, paradoxalmente, ter contribuído para maior disseminação da infecção e retardo diagnóstico, uma vez que casos suspeitos de COVID-19 protelavam ao máximo a ida ao pronto-socorro prisional, para evitar os transtornos impostos pela quarentena obrigatória após o retorno à unidade prisional, em celas com superlotação e inadaptadas para esse fim. Isso, associado à centralização da realização do teste, pode contribuir para explicar em parte o alto percentual (23%) de óbitos por COVID-19 nas unidades prisionais em 2021, já que não houve teste de sintomáticos e rastreamento de contatos, estratégia considerada efetiva para prevenção do contágio em ambientes onde o distanciamento social não é possível99 World Health Organization (WHO). Preparedness, prevention and control of COVID-19 in prisons and other places of detention [Internet]. 2021. [cited 2022 jul 12]. Available from: https://www.who.int/europe/publications/i/item/WHO-EURO-2021-1405-41155-57257
https://www.who.int/europe/publications/... ,1010 Gouvea-Reis FA, Oliveira PD, Silva DCS, Borja LS, Percio J, Souza FS et al. COVID-19 outbreak in a large penitentiary complex, April-June 2020, Brazil. Emerg Infect Dis 2021; 27(3):924-927..
Além disso, as PPL idosas e portadoras de comorbidades não foram incluídas no calendário de vacinação para grupos prioritários (idosos, asilados etc.) da população geral, o que representou um retardo de cerca de seis meses no acesso à vacina para esses PPL de maior risco. Isso certamente contribuiu para um excesso de mortes em 20211212 Simas L, Larouze B, Diuana V, Sánchez A. Por uma estratégia equitativa de vacinação da população privada de liberdade contra a COVID-19. Cad Saude Publica 2021; 37(4):e0006822.,2828 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a COVID-19 [Internet]. 2021. [acessado 2021 set 21]. Disponível em: https://www.conasems.org.br/wp-content/uploads/2021/04/PLANONACIONALDEVACINACAOCOVID19_ED06_V3_28.04.pdf
https://www.conasems.org.br/wp-content/u... ,2929 Barroso BW. O sistema prisional em 2020-2021: entre a COVID-19, o atraso na vacinação e a continuidade dos problemas estruturais. In: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2021. p. 206-213..
Como sugerido pelo aumento da mortalidade em 2021 entre PPL, a pandemia de COVID-19 pode ter impactado no manejo de outras doenças. Em nosso estudo, a infecção por HIV foi a comorbidade mais comumente associada ao óbito por COVID-19, dado que contrasta com achados da literatura e sugere inadequação do tratamento antiretroviral. Os achados de uma meta-análise recente3030 Dzinamarira T, Murewanhema G, Chitungo I, Ngara B, Nkambule SJ, Madziva R, Herrera H, Mukwenha S, Cuadros DF, Iradukunda PG, Mashora M, Tungwarara N, Rwibasira GN, Musuka G. Risk of mortality in HIV-infected COVID-19 patients: a systematic Review and meta-analysis. J Infect Public Health 2022; 15(6):654-661. que mostra impacto da COVID-19 na mortalidade em pacientes cuja infecção pelo HIV não estivesse controlada sustentam essa hipótese. Nesse sentido, revisão sistemática da literatura realizada por Cooper et al.3131 Cooper TJ, Woodward BL, Alom S, Harky A. Coronavirus disease 2019 (COVID-19) outcomes in HIV/AIDS patients: a systematic review. HIV Med 2020; 21(9):567-577. sugere que pessoas vivendo com HIV/aids com a doença bem controlada não apresentam maior risco de desfecho desfavorável para COVID-19 do que a população geral.
Entre as limitações deste estudo estão a impossibilidade de estimar a letalidade por COVID-19, pela indisponibilidade de dados dos casos diagnosticados que sobreviveram, a incompletude das informações em prontuários de saúde e a indisponibilidade de dados primários sobre óbitos por tuberculose e infecção por HIV/aids ocorridos em 2018 e 2019.
A mortalidade nas prisões é um indicador fundamental de acesso à saúde e de direitos humanos, e como tal, deveria estar facilmente acessível a gestores, órgãos da Justiça e sociedade civil para ser utilizado como ferramenta de planejamento, gestão e fiscalização. Entretanto, como evidenciado por este estudo, a dificuldade para localizar óbitos de PPL no SIM não permite a avaliação sistemática e rotineira da mortalidade nessa população. Isso implica a necessidade de aprimoramento dos sistemas de informação em nível nacional, de forma a permitir a identificação dos óbitos ocorridos durante o encarceramento. Nesse sentido, está em curso a implementação de um sistema de vigilância em tempo real da mortalidade em PPL no ERJ. Isso é resultado, sob a coordenação do MPRJ, da articulação entre órgãos de saúde, Justiça, administração penitenciária, da Fiocruz e da sociedade civil, especialmente o Mecanismo de Prevenção de Combate à Tortura/ALERJ.
Conclusão
Os achados deste estudo reforçam a importância da implementação da PNAISP no ERJ com vistas à melhoria da atenção à saúde da PPL, especialmente para agravos crônicos que necessitam de tratamento continuado e eventuais surtos e epidemias. Reflete as deficiências de um sistema de saúde prisional frágil e essencialmente curativo. Maior integração entre a administração penitenciária e as secretarias municipais e estadual de saúde, com clara definição das respectivas responsabilidades, é necessária para o adequado funcionamento dos serviços de saúde prisional e a consequente redução das iniquidades em saúde que afetam as PPL3232 Amon JJ. COVID-19 and Detention: Respecting Human Rights. Health Hum Rights J. 2020; 22(1):367-370..
A inadequação e a aplicação tardia das medidas sanitárias, somadas à aplicação limitada das recomendações judiciais de desencarceramento, constituem, no contexto da pandemia de COVID-19, violações dos direitos humanos dessa população que vive sob a responsabilidade do estado. Essa situação se insere em uma perspectiva de necropolítica, muitas vezes denunciada, porém sem impacto, mesmo no caso de uma emergência sanitária. Na prática, as PPL permanecem invisíveis, seja no contexto de uma nova pandemia como a de COVID-19, seja em relação a doenças antigas e bem conhecidas como tuberculose, que acomete, com alta mortalidade, mais de 10% das pessoas presas no ERJ. A utilização da mortalidade como indicador de saúde e direitos humanos nas prisões implica o aprimoramento da informação sobre PPL no SIM.
Agradecimentos
À Angela Cascão, responsável pelo Sistema Informação de Mortalidade (SIM) SES/RJ e à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro.
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Financiamento
Programa INOVA Fiocruz Encomendas Estratégicas e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), edital Universal 2021.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
01 Dez 2023 - Data do Fascículo
Dez 2023
Histórico
- Recebido
04 Maio 2023 - Aceito
20 Out 2023 - Publicado
22 Out 2023