Benefícios acidentários e previdenciários concedidos a portadores de câncer no Brasil, 2008-2014

Nuria Sales-Fonseca Ubirani Barros Otero Rosalina Jorge Koifman Sabrina da Silva Santos Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é descrever a distribuição do câncer entre os benefícios concedidos pelo Registro Geral da Previdência Social (RGPS), de 2008 a 2014, no Brasil. Estudo ecológico com dados cedidos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Determinou-se a proporção de benefícios acidentários (relacionados ao trabalho) e previdenciários (gerais) concedidos por câncer no Brasil, entre os benefícios concedidos por todas as causas e realizou-se uma análise espacial para avaliar a distribuição geográfica dessas proporções, tendo os estados brasileiros como unidade de análise. O câncer foi motivo de concessão de 533.438 benefícios (2,9% do total de benefícios concedidos por todas as causas), com predomínio do sexo feminino nos benefícios previdenciários (53,7%) e do sexo masculino nos benefícios acidentários (71,6%). As maiores proporções de benefícios previdenciários por câncer ocorreram nas regiões Norte e Centro-Oeste. Em 19 dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal não houve concessão de benefício acidentário por câncer. A análise das ocorrências de câncer que geraram concessões de benefícios do RGPS sugere uma desproporcionalidade da concessão de benefícios previdenciários em relação aos acidentários, principalmente nas regiões Norte, Nordeste e Sul do Brasil.

Palavras-chave:
Neoplasias; Previdência Social; Saúde do trabalhador

Introdução

O câncer é um problema de saúde pública que afeta mundialmente cerca de 19,3 milhões de pessoas (taxa de incidência ajustada por idade de 201,0 casos por 100.000 habitantes) e gera quase 10,0 milhões de óbitos (100,7/100.000), a cada ano, de acordo com as estimativas para 2020. No Brasil, para o mesmo ano, estimou-se a ocorrência de 592.212 novos casos (241,3/100.000 em homens e 198,2/100.000 em mulheres) e 259.949 mortes11 Sung H, Ferlay J, Siegel RL, Laversanne M, Soerjomataram I, Jemal A, Bray F. Global cancer statistics 2020: GLOBOCAN estimates of incidence and mortality worldwide for 36 cancers in 185 countries. CA A Cancer J Clin 2021; 71(3):209-249..

O diagnóstico e o tratamento do câncer demandam recursos humanos e tecnológicos que geram gastos financeiros ao Sistema Único de Saúde22 Reis CS, Noronha K, Wajnman S. Envelhecimento populacional e gastos com internação do SUS: uma análise realizada para o Brasil entre 2000 e 2010. Rev Bras Estud Popul 2016; 33(3):591-612.. Adicionalmente, quando o indivíduo diagnosticado é um trabalhador protegido pela Previdência Social, a necessidade de afastamento de suas atividades laborais (devidamente avaliada pelo médico perito do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS) gera a concessão de benefícios previdenciários ou acidentários33 Brasil. Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União 1991; 24 jul..

A associação entre exposições ocupacionais e câncer está bem estabelecida para várias localizações de tumores. A Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) classifica 38 agentes presentes nos ambientes de trabalho e 12 circunstâncias de exposição (indústrias e ocupações) como reconhecidamente cancerígenas (grupo 1), e 41 agentes e 6 circunstâncias de exposição como prováveis de causar câncer (grupo 2A)44 IARC. World cancer report: cancer research for cancer prevention. Lyon: IARC; 2020.. Assim, a carga global do câncer atribuível a exposições ocupacionais tem sido estimada entre 2% e 5% desde a década de 1980. Para o câncer de pulmão, que é o câncer ocupacional mais prevalente, essa fração atribuível da população (PAF) à exposição ocupacional chega a 25%, sendo as exposições ocupacionais a asbestos, sílica e emissão de motores à diesel os fatores que mais contribuem para isso55 Olsson A, Kromhout H. Occupational cancer burden: the contribution of exposure to process-generated substances at the workplace. Mol Oncol 2021; 15(3):753-763.,66 Counil E, Henry E. Is it time to rethink the way we assess the burden of work-related cancer? Curr Epidemiol Rep 2019; 6(2):138-147..

A maioria dos países tem investido na estimativa de trabalhadores expostos a agentes cancerígenos e em sistemas de vigilância das exposições. No entanto, a não quantificação da verdadeira carga de casos de câncer que têm relação com o trabalho é um problema global. Para reduzir essa lacuna de informação é necessário investir em outras estratégias, como a identificação de casos suspeitos de câncer relacionados ao trabalho e melhorias dos sistemas de vigilância77 Shrivastava S, Shrivastava P, Ramasamy J. Occupational Cancer: public health interventions to minimize its burden and impact on the society. Iran J Cancer Prev 2014; 7(2):111-113..

No Brasil, desde 2004, há o módulo “câncer relacionado ao trabalho” no Sistema de Informações de Agravos de Notificação, porém o quantitativo de casos notificados é incipiente, considerando o grande número de trabalhadores no país e o número anual de casos de câncer88 Grabois M, Souza M, Guimarães R, Otero U. Completude da informação "ocupação" nos registros hospitalares de câncer do Brasil: bases para a vigilância do câncer relacionado ao trabalho. Rev Bras Cancerol 2014; 60(3):207-214., o que inviabiliza a utilização desses dados para fins de vigilância epidemiológica. Nesse contexto, os bancos de dados do Registro Geral da Previdência Social (RGPS) são formas alternativas de informações sobre adoecimento por câncer e sua relação com o trabalho, permitindo a análise de variáveis que geralmente não são obtidas em registros de câncer. Entretanto, esses dados ainda são pouco utilizados para fins de pesquisa. Assim, considerando que para fins de vigilância o câncer requer estudos de sua distribuição epidemiológica, não só na população geral, mas em populações específicas, como a população economicamente ativa, o objetivo deste trabalho é descrever a distribuição do câncer entre os benefícios concedidos pelo RGPS, no período de 2008 a 2014, no Brasil, comparando as proporções de benefícios acidentários (relacionados ao trabalho) e previdenciários (gerais).

Métodos

Trata-se de um estudo descritivo do tipo ecológico, relativo ao padrão de concessão de benefícios pelo RGPS por neoplasias malignas, em homens e mulheres integrantes do referido regime, no período de 2008 a 2014, no Brasil. Os dados foram disponibilizados de forma agregada pelo INSS, em mídia física, após solicitação realizada por meio do Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (https://falabr.cgu.gov.br/publico/Manifestacao/SelecionarTipoManifestacao.aspx?ReturnUrl=%2f), criado a partir da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que regulamentou o direito constitucional de acesso à informação99 Brasil. Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 18 nov..

Foram selecionados para o estudo quatro tipos de benefícios: auxílio-doença previdenciário (B31), aposentadoria por invalidez previdenciária (B32), auxílio-doença acidentário (B91) e aposentadoria por invalidez acidentária (B92), para todas as neoplasias malignas (C00 a C97), demais causas e causas não classificadas, segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Os benefícios do tipo auxílio-doença (B31 e B91) são concedidos ao segurado quando este estiver incapaz para o exercício de sua atividade rotineira por um período superior a 15 dias consecutivo. As aposentadorias por invalidez (B32 e B92) são concedidas aos segurados considerados incapazes e insuscetível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e será paga enquanto permanecer nessa condição. Os benefícios acidentários (B91 e B92) diferem dos benefícios previdenciários (B32 e B92) pelo fato de o segurado ter sofrido um acidente de trabalho e pela estabilidade provisória que o benefício acidentário estabelece ao trabalhador após o retorno ao trabalho (3). Há de se ressaltar que, de acordo com o artigo 20 da Lei 8.213/91, as doenças decorrentes de determinada atividade, ou surgidas ou agravadas pelo trabalho ou condições de seu desempenho, são consideradas acidente do trabalho. Dessa forma, deve-se entender que o câncer relacionado ao trabalho também deve ser classificado como acidentário1010 Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Auxílio-doença: comum ou acidente de trabalho? [Internet]. 2020. [acessado 2020 jun 19]. Disponível em: https://www.inss.gov.br/beneficios/auxilio-doenca/auxilio-doenca-comum-ou-acidente-de-trabalho
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As variáveis inseridas foram: sexo (masculino e feminino), clientela (urbana e rural) e filiação (desempregado; empregado; segurado especial; trabalhador avulso; empregado doméstico; facultativo; contribuinte individual; e optante pela Lei 6.184/74). Em relação à filiação, valem algumas definições, exceto para os status desempregado e empregado, que não exigem maiores detalhes. Segurado especial: pessoa física que, individualmente ou em regime de economia familiar, desenvolve atividades como produtor rural, pescador artesanal ou a esse assemelhado, cônjuge ou companheiro, bem como filho maior de 16 anos de idade que comprovadamente tenham participação ativa nas atividades rurais do grupo familiar; trabalhador avulso: todos aqueles que prestam serviços a várias empresas mas são contratados por sindicatos e órgãos gestores de mão de obra; empregados domésticos: os que prestam serviços na casa de outra pessoa ou família, desde que essa atividade não tenha fins lucrativos para o empregador; facultativos: pessoas com mais de 16 anos que não possuem renda própria mas decidem contribuir para a Previdência Social; contribuintes individuais: os que trabalham por conta própria (de forma autônoma) ou que prestam serviços de natureza eventual a empresas, sem vínculo empregatício1010 Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Auxílio-doença: comum ou acidente de trabalho? [Internet]. 2020. [acessado 2020 jun 19]. Disponível em: https://www.inss.gov.br/beneficios/auxilio-doenca/auxilio-doenca-comum-ou-acidente-de-trabalho
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Análise dos dados

Foram calculadas as distribuições proporcionais das concessões de benefícios do período selecionado. Para isso, os numeradores foram os números de benefícios de cada espécie (B31; B32; B91 e B92) concedidos segundo grupos da CID-10 (neoplasias malignas - C00-C97 - e demais causas); sexo, clientela e filiação.

Adicionalmente, foram utilizados como numeradores: (a) número de benefícios de cada espécie concedido por cada código da CID-10, referente as neoplasias malignas (C00-C97), segundo sexo, para o Brasil, de 2008 a 2014; (b) número de benefícios de cada espécie concedido por neoplasias malignas, para cada estado brasileiro, de 2008 a 2014.

Os denominadores apropriados neste estudo foram: (a) o quantitativo de benefícios de cada espécie concedido por todas as causas, no período de 2008 a 2014, nos estados e no Brasil segundo cada variável do estudo; (b) o quantitativo de benefícios de cada espécie concedido por neoplasias malignas, no período de 2008 a 2014, no Brasil, segundo sexo.

Métodos de análise espacial foram utilizados para avaliar a distribuição geográfica das proporções de benefícios previdenciários e acidentários concedidos por câncer entre os benefícios concedidos por todas as causas, por região e estado brasileiro, no período de 2008 a 2014. Para esta etapa foi utilizado o programa QGIS, versão 2.18.15.

Aspectos éticos

Este trabalho foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, sendo dispensado de registro no Sistema CEP-CONEP.

Resultados

No Brasil, no período entre 2008 e 2014, foram concedidos a segurados da Previdência Social um total de 17.875.518 benefícios previdenciários e acidentários por todas as causas de doenças, sendo 9.929.530 para o sexo masculino (55,5%) e 7.945.988 para o sexo feminino (44,5%); (Tabela 1).

Tabela 1
Distribuição proporcional dos benefícios previdenciários e acidentários por câncer e demais causas, segundo sexo, Brasil - 2008 a 2014.

O câncer foi motivo de concessão de 533.438 benefícios, que representaram 2,9% do total de benefícios concedidos. Desses, 248.293 (46,5%) foram concedidos para o sexo masculino e 285.145 (53,4%) para o feminino. Observou-se um número 100 vezes maior de concessões de auxílios-doença previdenciários (B31) (443.714), em comparação aos auxílios-doença acidentários (B91) (4.263). Em relação ao auxílio-doença previdenciário (B31), o maior número de concessões por todas as causas foi observado nos homens (52,6%) e por câncer nas mulheres (55,1%). Nos benefícios acidentários por auxílio-doença (B91), a relação se inverte, com um maior número de benefícios concedidos por câncer para o sexo masculino (71,6%) em relação ao sexo feminino (28,4%) (Tabela 1).

A Tabela 2 apresenta a distribuição proporcional dos benefícios gerados por câncer segundo clientela, filiação e idade. Para os benefícios acidentários, pode-se observar uma maior proporção de concessões por câncer para a clientela rural (1,70%) em comparação com a urbana (0,12%). Em relação à filiação, para os auxílios previdenciários, destacam-se “empregado doméstico” (4,11%), “contribuinte facultativo” (5,55%) e “contribuinte individual” (5,44%). Nos auxílios por acidente de trabalho, a filiação com maior proporção de concessões por câncer foi a dos “segurados especiais” (1,71%). Na análise da distribuição por faixa etária, pode-se observar que, à medida que aumenta a idade, aumenta-se também a proporção da distribuição dos benefícios por neoplasia. No entanto, é importante ressaltar que a análise dessa variável apresenta algumas limitações, como a falta de homogeneidade na largura das faixas etárias apresentadas e a não classificação dos benefícios concedidos para as faixas etárias < 20 anos e > 64 anos (Tabela 2).

Tabela 2
Distribuição proporcional dos benefícios previdenciários e acidentários, por câncer e demais causas, segundo clientela, filiação e idade, Brasil - 2008 a 2014.

A Tabela 3 apresenta a distribuição proporcional das dez principais localizações neoplásicas que motivaram a concessão dos benefícios previdenciários e acidentários no Brasil segundo o sexo. Para os benefícios previdenciários (B31), em homens, as principais localizações foram o câncer de próstata (17,9%), seguido pelos cânceres de estômago (6,2%), cólon (6,2%), brônquios e pulmões (4,3%), reto (4,1%), esôfago (3,8%), outras neoplasias malignas da pele (3,4%), testículos (3,2%), laringe (3,2%) e encéfalo (3,2%). Em mulheres foram os cânceres de mama (42,4%), colo do útero (10,4%), glândula tireoide (6,4%), cólon (4,4%), ovário (3,4%), reto (2,3%), estômago (2,3%), brônquios e pulmões (2,2%), corpo do útero (2,1%) e outras neoplasias malignas da pele (1,7%). O padrão de concessões por auxílio-doença acidentário (B91) evidencia diferenças importantes em relação aos benefícios previdenciários (B31). Em homens, as neoplasias malignas da pele (56,7%) assumem o primeiro lugar das concessões, seguidas pelos cânceres de brônquios e pulmões (8,1%), leucemia mieloide (7,3%), estômago (6,7%), bexiga (3,5%), laringe (3,4%), leucemia linfoide (3,0%), pâncreas (2,1%), ossos (1,42%) e leucemia não especificada (0,9%). Alguns cânceres presentes nesta lista, como os hematológicos, os de bexiga, pâncreas e ossos, não apareceram nos tipos de concessões B31. Em mulheres, observa-se o mesmo padrão, dessa vez os cânceres de pele (62,3%), brônquios e pulmões (6,4%), estômago (4,9%) e a leucemia mieloide (4,8%) ganham destaque nos benefícios B91. Adicionalmente, esse ranking inclui os cânceres de pâncreas (1,5%), bexiga (1,5%) e seios da face (1,1%), que não apareceram nos B31 como os dez tipos que mais geraram concessões.

Tabela 3
Distribuição proporcional das dez principais localizações de câncer que geraram concessão de benefícios, segundo sexo e tipo de benefício, Brasil, 2008 a 2014.

Os benefícios por aposentadoria se assemelham em relação a algumas concessões por câncer, com a inserção ou substituição de algumas localizações neoplásicas no ranking dos dez mais concedidos em ambos os sexos. Nos benefícios por invalidez previdenciária (B32), observam-se mais ou menos os mesmos tipos de cânceres concedidos por auxílio-doença previdenciário (B31) até a 5ª posição (próstata, brônquios e pulmões, estômago, cólon e reto, para homens), invertendo uma ou outra localização no ranking. Em mulheres, a diferença é observada para o câncer da glândula tireoide, que ocupa a 3ª posição no ranking dos auxílios-doença previdenciários e não aparece nas aposentadorias previdenciárias por invalidez. Os outros tipos são semelhantes. Entre os gerados por invalidez acidentária (B92), esses se aproximam dos gerados por auxílio-doença acidentário (B92), mas com a inserção no B92 de casos de laringe, que ganham maior destaque em homens, e os casos de mieloma múltiplo em ambos os sexos.

A Figura 1 apresenta a distribuição espacial da proporção de benefícios previdenciários (B31 e B32) concedidos por câncer entre o total de benefícios (previdenciários e acidentários) concedidos por todas as causas, em cada estado, no período de 2008 a 2014. Todos os estados do Brasil concederam benefícios previdenciários por câncer. Pode-se observar que as proporções variaram de 2,24% a 42,46% (amplitude de 40,22%; intervalo interquartil de 7,65%) entre as unidades federativas. Os estados que ficaram acima do percentil 75 foram: Rondônia (42,46%), Mato Grosso (22,87%), Tocantins (14,69%), Acre (12,50%), Amapá (12,50%) e Amazonas (11,76%); e os estados abaixo do percentil 25 foram: Rio Grande do Norte (2,24%), Pernambuco (2,79%), Paraná (2,86%), Minas Gerais (2,90%), São Paulo (3,02%) e Espírito Santo (3,21%). Esta análise reflete uma grande discrepância entre as regiões do país. Na região Norte, a proporção de benefícios variou de 10,00% a 42,46% (amplitude de 32,46%); já na região Sudeste, a proporção variou de 3,33% a 2,90% (amplitude de 0,43%).

Figura 1
Proporção de benefícios previdenciários concedidos por câncer, dentre os benefícios concedidos por todas as causas, em cada estado do Brasil, 2008 a 2014.

A análise das proporções de benefícios acidentários (B91 e B92) concedidos por câncer entre o total de benefícios (previdenciários e acidentários) concedidos por todas as causas em cada estado no período de 2008 a 2014 demonstrou que em 19 dos 26 estados (incluindo todos os estados da região Sul) e no Distrito Federal não houve concessão de benefício acidentário por câncer. Os oito estados que geraram estas concessões foram: na região Nordeste, a Bahia (0,03%); na região Norte, Rondônia (0,79%); na região Centro-Oeste, Mato Grosso (0,51%) e Mato Grosso do Sul (0,06%); na região Sudeste, todos os estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais (0,01% cada um) e Espírito Santos (0,03%). Essas proporções são apresentadas entre parênteses na Figura 1.

Discussão

O presente estudo encontrou um número elevado de benefícios concedidos por neoplasias malignas (> 500.000 de 2008 a 2014). No entanto, esse número representa menos de 3% do total de concessões para o período.

De maneira geral, no país, as estatísticas relacionadas à morbidade por doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) mencionam a hipertensão, a depressão, a artrite e o diabetes como as mais prevalentes. Porém, o câncer apresenta cada vez mais relevância, não apenas pela morbidade, mas pela mortalidade, pelas incapacidades geradas pela doença1111 World Health Organization (WHO). Cancer: key facts [Internet]. 2018. [cited 2021 jan 10]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/cancer
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e pela repercussão na concessão de benefícios da previdência social. Moura et al. (2007), ao analisarem as principais DCNT que geraram concessões de benefícios no período de 2000 a 2002 em Recife identificaram que, para a concessão de auxílio-doença, as prevalentes foram hipertensão arterial, diabetes mellitus, artroses e cânceres de mama e intestino. E para as aposentadorias por invalidez, foram as doenças cerebrovasculares, a diabetes mellitus, as artroses, o câncer do aparelho digestivo e a esquizofrenia1212 Moura AAG, Carvalho EF, Silva NJC. Repercussão das doenças crônicas não-transmissíveis na concessão de benefícios pela previdência social. Cien Saude Colet 2007; 12(6):1661-1672..

No setor saúde, foram notificados no Sistema de Informação sobre Agravos de Notificação 1.023 casos de câncer relacionado ao trabalho desde que o sistema foi criado, em 2004, até 2016. Ou seja, uma média de 78 casos/ano1313 Centro Colaborador da Vigilância aos Agravos à Saúde do Trabalhador (CCVISAT). Sistema de Informação de Agravos de Notificação - SINAN [Internet]. 2021 [acessado 2021 jun 30]. Disponível em: http://www.ccvisat.ufba.br/sinan-2/
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. Considerando a fração atribuível a fatores de risco ocupacionais para o câncer, de aproximadamente 5%, e a estimativa de 625.000 casos de câncer em 2021, no Brasil, seriam esperados 31.250 casos novos de câncer relacionado ao trabalho apenas neste ano. Deve-se ressaltar que o problema do pouco reconhecimento da relação do câncer com o trabalho não é exclusividade brasileira, mas mundial. Em Taiwan, por exemplo, são registrados de 3.500 a 4.000 casos por ano, e o esperado seria de 75.000 casos. Na Noruega foram notificados apenas 300 casos de câncer suspeitos de terem relação com o trabalho, quando se esperaria cerca de 1.200-1.300 casos por ano. Apenas 200 destes (66,7% dos casos notificados) são reconhecidos pelo Sistema de Seguro Nacional para requerer compensação por doença ocupacional1414 Otero UB, Mello MSC. Fração atribuível a fatores de risco ocupacionais para câncer no Brasil: evidências e limitações. Rev Bras Cancerol 2016; 62(1):43-45.. Langard e Lee (2011) relatam ainda que na Austrália, em Singapura, no Japão e na África do Sul existem números significativos de casos de câncer identificados como relacionados ao trabalho, mas distante do esperado, considerando a fração atribuível de 5%1515 Langård S, Lee L. Methods to recognize work-related cancer in workplaces, the general population, and by experts in the clinic, a Norwegian experience. J Occup Med Toxicol 2011; 6(1):24..

Em nosso estudo, acredita-se que a discrepância quantitativa entre a concessão de benefícios previdenciários (B31, B32) e acidentários (B91, B92) pode estar centrada em alguns fatores, tais como: (I) dificuldade na identificação e reconhecimento do nexo causal entre o câncer diagnosticado e a ocupação e/ou exposições a agentes químicos, físicos ou biológicos com potencial cancerígeno nos locais de trabalho1616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Doenças relacionadas ao trabalho: manual de procedimentos para os serviços de saúde. Brasília: MS; 2001.; (II) restrição de categorias para concessão de benefícios acidentários, que permite inclusão apenas das filiações empregados, trabalhadores avulsos e segurados especiais, diferentemente dos previdenciários, que contemplam todas as filiações33 Brasil. Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União 1991; 24 jul.; (III) ausência de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) e outros documentos emitidos pelo médico do trabalho, pela rede hospitalar pública ou privada sinalizando a possibilidade de aquele câncer ser atribuído ao trabalho. Essa responsabilidade cabe ao perito médico, que, baseado na sua autonomia decisória, pode negar a caracterização acidentária do nexo se não estiver imbuído em fazer uma anamnese do histórico ocupacional e tiver em mãos outros instrumentos que o auxiliem nessa decisão1414 Otero UB, Mello MSC. Fração atribuível a fatores de risco ocupacionais para câncer no Brasil: evidências e limitações. Rev Bras Cancerol 2016; 62(1):43-45..

Outra dificuldade diz respeito aos longos períodos de latência entre exposição e doença observada para a maioria dos tumores sólidos (média de 20 anos)1717 Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Investigating suspected cancer clusters and responding to community concerns. Atlanta: CDC; 2013.. Assim, se o histórico ocupacional não for recuperado, o nexo causal pode não ser estabelecido, uma vez que a ocupação atual pode não ser a mesma que levou ao adoecimento, ou o trabalhador já pode estar aposentado no momento do diagnóstico, não sendo mais elegível para os benefícios analisados no presente estudo1414 Otero UB, Mello MSC. Fração atribuível a fatores de risco ocupacionais para câncer no Brasil: evidências e limitações. Rev Bras Cancerol 2016; 62(1):43-45..

Observando as proporções de benefícios concedidos por todas as causas no Brasil, os homens receberam 55,55% e as mulheres 44,45% dos benefícios. Essa distribuição pode ser reflexo da população de 16 a 59 anos protegida pela Previdência Social, que em 2014 era composta por 55,95% de homens e 44,05% de mulheres1818 Ministério da Fazenda (MF). Dataprev. Anuário estatístico da Previdência Social/Ministério do Trabalho e Previdência Social, Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social - ano 1. Brasília: ASCOM; 2015.. No entanto, observou-se um predomínio do sexo feminino no total de benefícios concedidos por câncer e nos auxílios previdenciários por câncer. Esse predomínio feminino nos beneficiários previdenciários por neoplasia também foi verificado em um estudo sobre os beneficiários da previdência social da Holanda (64%)1919 Muijen P, Duijts S, Bonefaas-Groenewoud K, Beek A, Anema J. Factors associated with work disability in employed cancer survivors at 24-month sick leave. BMC Cancer 2014; 14:236.. Entretanto, é interessante notar que as taxas de incidência de câncer são mais elevadas em homens do que em mulheres, tanto no Brasil quanto na Holanda11 Sung H, Ferlay J, Siegel RL, Laversanne M, Soerjomataram I, Jemal A, Bray F. Global cancer statistics 2020: GLOBOCAN estimates of incidence and mortality worldwide for 36 cancers in 185 countries. CA A Cancer J Clin 2021; 71(3):209-249..

Em relação aos auxílios acidentários, por todas as causas e também por câncer, o maior quantitativo foi concedido para o sexo masculino. Esse resultado é consistente com o maior quantitativo masculino em setores econômicos com maior contato com agentes químicos, físicos e biológicos com potencial carcinogênico, como construção civil, indústria e agricultura2020 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Retrato das desigualdades de gênero e raça. Mercado de trabalho. Distribuição percentual da população ocupada com 16 anos ou mais de idade, por cor/raça, segundo sexo e setor de atividade - Brasil, 1995 a 2015 [Internet]. 2020. [acessado 2021 mar 10] Disponível em: https://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores_mercado_trabalho.html.

Na distribuição dos benefícios segundo clientela, no Brasil, observou-se um predomínio da clientela urbana sobre a rural. No entanto, houve um discreto predomínio da clientela rural no benefício acidentário concedido por câncer. Como este artigo não tem informações sobre as localizações neoplásicas que motivaram as concessões dos benefícios segundo o tipo de clientela, não há como levantar hipóteses de exposição ocupacional nesse caso, porém deve-se pontuar que, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-2014), a taxa de urbanização, medida pela proporção de pessoas que viviam em áreas urbanas, foi de 84,8%2121 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de indicadores sociais - uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE; 2014., diante disso, seria esperado que houvesse mais concessão de benefícios para a clientela urbana, diferentemente do resultado deste trabalho. No entanto, estudos realizados no Brasil vêm sinalizando um aumento de casos e óbitos por câncer em trabalhadores rurais2222 Miranda Filho AL, Koifman RJ, Koifman S, Monteiro GTR. Brain cancer mortality in an agricultural and a metropolitan region of Rio de Janeiro, Brazil: a population-based, age-period-cohort study, 1996-2010. BMC Cancer 2014; 14:320. e em comparação com trabalhadores de outros setores econômicos2323 Boccolini PMM, Asmus CIRF, Chrisman JR, Câmara VM, Markowitz SB, Meyer A. Stomach cancer mortality among agricultural workers: results from a death certificate-based case-control study. Cad Saude Colet 2014; 22(1):86-92., reforçando nossos achados.

Na Finlândia verificou-se que os tipos de neoplasias malignas que representaram os maiores custos para o país foram: mama, próstata, colorretal, pulmão e leucemia2424 Torkki P, Leskelä R-L, Linna M, Mäklin S, Mecklin J-P, Bono P, Kataja V, Karjalainen S. Cancer costs and outcomes for common cancer sites in the Finnish population between 2009-2014. Acta Oncol 2018; 57(7):983-988.. Aparentemente, os cânceres de mama, próstata, colorretal e pulmão também geram elevados custos para a Previdência Social brasileira, uma vez que aparecem entre as principais localizações de câncer que geram benefícios. Para o Instituto Mexicano de Seguridade Social, as principais neoplasias malignas que motivaram a concessão de aposentadoria por invalidez no período de 2006 a 2012 foram: mama, colón, encéfalo, pulmão e estômago2525 Zitle-García EJ, Sauceda-Valenzuela AL, Ascencio-Montiel IJ, García-Paredes J. Malignant tumors as cause of disability at the Instituto Mexicano del Seguro Social. Rev Med Inst Mex Seguro Soc 2018; 56(2):173-179..

A análise das principais localizações de câncer que concederam benefícios demonstra também que os tipos de câncer que geraram benefícios acidentários ou previdenciários são diferentes. No tipo previdenciário, as primeiras neoplasias observadas são o câncer de mama e de colo do útero em mulheres, e o câncer de próstata, de estômago e de pulmão em homens, refletindo principalmente as elevadas taxas de incidência dessas neoplasias estimadas para o Brasil em 20142626 Ministério da Saúde (MS). Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca). Estimativa 2014 - incidência de câncer no Brasil. Rev Bras Cancerol 2014; 60(1):63.. No tipo acidentário, o câncer de pele e o de pulmão são os mais concedidos. Observa-se que as leucemias aparecem apenas no ranking das dez principais topografias que geraram benefícios acidentários. Esses resultados são consistentes com a literatura, uma vez que as leucemias, de maneira geral, estão relacionadas à exposição ao benzeno2727 Khalade A, Jaakkola MS, Pukkala E, Jaakkola JJ. Exposure to benzene at work and the risk of leukemia: a systematic review and meta-analysis. Environ Health 2010; 9:31., ao formaldeído 2828 Zhang L, Steinmaus C, Eastmond DA, Xin XK, Smith MT. Formaldehyde exposure and leukemia: A new meta-analysis and potential mechanisms. Mutat Res 2009; 681(2-3):150-168., aos agentes químicos utilizados durante a produção da borracha e vulcanização2929 Boniol M, Koechlin A, Boyle P. Meta-analysis of occupational exposures in the rubber manufacturing industry and risk of cancer. Int J Epidemiol 2017; 46(6):1940-1947., às radiações3030 Hauptmann M, Daniels RD, Cardis E, Cullings HM, Kendall G, Laurier D, Linet MS, Little MP, Lubin JH, Preston DL, Richardson DB, Stram DO, Thierry-Chef I, Schubauer-Berigan MK, Gilbert ES, Berrington de Gonzalez A. Epidemiological studies of low-dose ionizing radiation and cancer: summary bias assessment and meta-analysis. J Natl Cancer Inst Monogr 2020; 2020(56):188-200., entre outros agentes3131 International Agency for Research on Cancer (IARC). List of classifications by cancer sites with sufficient or limited evidence in humans, IARC monographs volumes 1-132a [Internet]. 2020. [cited 2021 mar 15]. Available from: https://monographs.iarc.who.int/wp-content/uploads/2019/07/Classifications_by_cancer_site.pdf
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. Outras neoplasias que podem ter relação com o trabalho, como os cânceres de estômago, bexiga, laringe, próstata e mama, estão presentes na lista de benefícios acidentários, em homens e mulheres, em maior ou menor grau.

Em relação ao câncer de mama, além dos fatores de risco bem conhecidos, ressalta-se os fatores relacionados ao trabalho, como as radiações, a exposição a agrotóxicos, às bifenilas policloradas e o trabalho noturno, alguns ainda com evidências limitadas3131 International Agency for Research on Cancer (IARC). List of classifications by cancer sites with sufficient or limited evidence in humans, IARC monographs volumes 1-132a [Internet]. 2020. [cited 2021 mar 15]. Available from: https://monographs.iarc.who.int/wp-content/uploads/2019/07/Classifications_by_cancer_site.pdf
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. Outros fatores citados são o trabalho administrativo, em virtude do estilo de vida e de fatores reprodutivos (longo período de estudo, primeira gravidez tardia, baixa paridade), em comparação com mulheres que trabalham com vendas, transporte e produção3232 Kullberg C, Selander J, Albin M, Borgquist S, Manjer J, Gustavsson P. Female white-collar workers remain at higher risk of breast cancer after adjustments for individual risk factors related to reproduction and lifestyle. Occup Environ Med 2017; 74(9):652-658., bem como a exposição ambiental a hidrocarbonetos policíclicos aromáticos3333 White AJ, Bradshaw PT, Herring AH, Teitelbaum SL, Beyea J, Stellman SD, Steck SE, Mordukhovich I, Eng SM, Engel LS, Conway K, Hatch M, Neugut A, Santella RM, Gammon MD. Exposure to multiple sources of polycyclic aromatic hydrocarbons and breast cancer incidence. Environ Int 2016; 89-90:185-92..

Os fatores de risco para o câncer de próstata são: idade, raça, etnia, obesidade3434 Pietro GD, Chornokur G, Kumar NB, Davis C, Park JY. Racial Differences in the Diagnosis and Treatment of Prostate Cancer. Int Neurourol J 2016; 20(Suppl. 2):S112-S119. e histórico familiar de primeiro grau do mesmo tipo de câncer3535 Beebe-Dimmer JL, Yee C, Paskett E, Schwartz AG, Lane D, Palmer NRA, Bock CH, Nassir R, Simon MS. Family history of prostate and colorectal cancer and risk of colorectal cancer in the women's health initiative. BMC Cancer 2017; 17(1):848.. Os fatores de risco ocupacionais associados (embora com evidência limitada) são: o arsênico e compostos arsenicais inorgânicos; o cádmio e seus compostos; a exposição ocupacional como bombeiro; o agrotóxico Malathion; o trabalho noturno; a exposição a agentes químicos durante a produção de borracha; e a exposição à radiação ionizante3131 International Agency for Research on Cancer (IARC). List of classifications by cancer sites with sufficient or limited evidence in humans, IARC monographs volumes 1-132a [Internet]. 2020. [cited 2021 mar 15]. Available from: https://monographs.iarc.who.int/wp-content/uploads/2019/07/Classifications_by_cancer_site.pdf
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. Chama atenção o número reduzido desse tipo de câncer entre os que geraram concessão de benefícios por auxílio-doença acidentário (apenas 32 casos por invalidez - B92), contra 35.762 do tipo previdenciário (B91).

Merece destaque a concessão de 2.486 benefícios do tipo auxílio-doença acidentário (B91) para o câncer de pele não melanoma em ambos os sexos, o que representa 60% de todos os benefícios desse tipo. Essa é também a principal neoplasia que gera concessão de aposentadorias por invalidez acidentária. Por um lado, um grande número de concessões por essa neoplasia é esperado, uma vez que o câncer de pele não melanoma foi a neoplasia mais incidente no ano de 2014 para o Brasil2626 Ministério da Saúde (MS). Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca). Estimativa 2014 - incidência de câncer no Brasil. Rev Bras Cancerol 2014; 60(1):63.. Além disso, sabe-se que a exposição solar cumulativa é um importante fator de risco para o câncer de pele do tipo não melanoma3636 World Health Organization (WHO). Radiation: ultraviolet (UV) radiation and skin câncer [Internet]. 2017. [cited 2020 set 20]. Available from: https://www.who.int/news-room/q-a-detail/ultraviolet-(uv)-radiation-and-skin-cancer
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e que muitos trabalhadores que exercem o seu ofício ao ar livre estão expostos, a maior parte de suas vidas, à radiação solar3737 Modenese A, Korpinen L, Gobba F. Solar Radiation Exposure and Outdoor Work: An Underestimated Occupational Risk. Int J Environ Res Public Health 2018; 15(10):2063.. Assim, pode-se crer que foi inequívoca para a perícia médica a exposição ocupacional ao sol em decorrência da atividade realizada ao ar livre. Por outro lado, é importante salientar que, em geral, o tratamento do câncer de pele não melanoma consiste em cirurgia curativa, realizada de forma ambulatorial3838 Basset-Seguin N, Herms F. Update in the management of basal cell carcinoma. Acta Derm Venereol 2020; 100(11):284-290., não necessitando afastamento.

Com relação ao câncer de tireoide, que foi a terceira neoplasia que mais motivou a concessão de benefícios por auxílio-doença previdenciário em mulheres, é importante ressaltar o aumento de incidência verificado nas três últimas décadas em países de alta e média renda, como o Brasil. Esse aumento foi chamado de epidemia de sobrediagnóstico, devido à detecção, por tecnologia de imagem, de lesões sem significado clínico. Dados recentes sugerem que esse aumento de incidência e os sobrediagnósticos estão desacelerando44 IARC. World cancer report: cancer research for cancer prevention. Lyon: IARC; 2020.. Assim, futuros estudos que investiguem a concessão de benefícios por câncer em períodos mais recentes podem verificar uma redução na concessão de benefícios por câncer de tireoide em relação ao presente trabalho.

Observou-se maior proporção de benefícios do tipo acidentário por câncer em todos os estados da região sudeste, incluindo Mato Grosso do Sul, na região Centro-Oeste, e o estado da Bahia, na região Nordeste. Este estudo ocorreu após a implementação do Nexo Epidemiológico Previdenciário, e ainda assim 19 estados não concederam benefícios por câncer por acidente de trabalho, sugerindo que, nesses estados, não se vislumbra ainda o nexo exposição ocupacional e câncer.

Reconhecer os carcinógenos ocupacionais é importante para a prevenção primária, a compensação financeira e a vigilância ao trabalhador exposto, assim como para identificar as causas de câncer na população mundial3939 Loomis D, Guha N, Hall AL, Straif K. Identifying occupational carcinogens: an update from the IARC Monographs. Occup Environ Med 2018; 75(8):593-603.. Todas essas constatações apontam que são necessários mais estudos para a avaliação da associação entre atividades ocupacionais e o câncer. Para isso, os dados da Previdência Social são um bom instrumento. Adicionalmente, é preciso garantir que outros sistemas de informação, como os registros de câncer de base populacional e os registros de câncer de base hospitalar, possuam informações completas sobre ocupação, permitindo futuros estudos. Também é importante frisar a importância do preenchimento do módulo câncer relacionado ao trabalho do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), estabelecido pela Portaria 777, de 28 de abril de 2004, para dar visibilidade ao câncer como doença relacionada ao trabalho4040 Brasil. Lei no 6.184, de 11 de dezembro de 1974. Dispõe sobre a integração de funcionários públicos nos quadros de sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações resultantes de transformação de órgãos da Administração Federal Direta e autárquicas; revoga a Lei no 5.927, de 11 de outubro de 1973, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1974; 11 dez..

Estudar as ocorrências de câncer que geraram concessões de benefícios no RGPS requer uma ampla reflexão. Primeiramente, sobre os interesses envolvidos no recebimento de um benefício, e posteriormente, sobre a vigilância em saúde do trabalhador. A principal limitação desse trabalho é a utilização de dados secundários disponibilizados pelo INSS em diferentes planilhas, uma para cada variável estudada, em vez de um único banco de dados, impossibilitando assim o intercruzamento entre as variáveis analisadas. Adicionalmente, os dados coletados só puderam ser analisados como frequências absolutas e relativas de benefícios concedidos, uma vez que a falta da informação do número médio mensal de contribuintes impossibilitou a estimativa da incidência de câncer na população de segurados do RGPS. Entretanto, os dados foram analisados com cautela, para que essas limitações, inerentes ao desenho de estudo ecológico, não produzissem viés nos dados apresentados. Apesar dessas limitações, deve-se pontuar a singularidade dos dados utilizados, devido à presença de variáveis que geralmente não são obtidas em registros de câncer. Além disso, o presente estudo tem como ponto forte a avaliação dos dados por um período de oito anos, permitindo uma análise mais homogênea e precisa, por diminuir eventuais oscilações anuais.

Não há dúvidas que o Brasil vem melhorando a sua atenção sobre a vigilância do câncer relacionado ao trabalho1616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Doenças relacionadas ao trabalho: manual de procedimentos para os serviços de saúde. Brasília: MS; 2001., mas parece que, começando pelos profissionais que compõem o primeiro atendimento ao paciente, até os que registram as informações nesses sistemas, não é dada a devida importância à completude das informações. Talvez devesse haver, na formação desses profissionais, a sensibilização para a temática, visto que o controle do câncer requer informações concretas.

O presente artigo não visa mostrar o nexo entre o câncer e o trabalho, mas permitir uma reflexão sobre a não mensuração das neoplasias malignas peculiares ao ambiente de trabalho no Brasil.

Conclusão

A distribuição das ocorrências de câncer que geraram concessões de benefícios da Previdência Social de 2008 a 2014 sugere uma desproporcionalidade na concessão de benefícios previdenciários em relação aos acidentários, principalmente nas regiões Norte, Nordeste e Sul do Brasil.

Agradecimentos

À Coordenação Geral de Planejamento e Gestão Estratégica do INSS, pela disponibilização dos dados para a referida pesquisa e à Vice-Direção de Pesquisa e Inovação da ENSP/Fiocruz, pelo apoio financeiro.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Fev 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2022
  • Aceito
    12 Ago 2022
  • Publicado
    14 Ago 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br