Resumo
O desafio de analisar a distorção infodêmica e o ávido consumo das Fake News (FN) está ligado à complexidade das engrenagens de produção, divulgação e contaminação do imaginário social. As modalidades de situações desinformativas e lacunas no arcabouço conceitual desdobram-se em indeterminações, embora pouca atenção se tenha dedicado à recepção das mensagens. O presente ensaio refere-se às circunstâncias tecnológicas e culturais a partir das quais prospera a produção e consumo incoercível da mentira, não raro justificada sob diversos propósitos. Destaca-se a centralidade do engodo em massa como agressão à política e à saúde pública em um contexto sociocultural no qual o vício na excitação tornou-se estruturante. Serão usadas ferramentas analíticas da Filosofia da Excitação de Christoph Tücker para compreender o fenômeno da ininterrupta produção de estímulos e artefatos imagéticos que incitam ao vício nas narrativas de ludíbrio e das interações sem relacionalidade. Conclui-se que no contexto da atual “Idade Mídia”, novas modalidades de ideologia e alienação estão envolvidas em ciclos de consumo. As necessidades da identidade grupal geram discursos sem diálogo e deterioração dos processos comunicativos a partir do qual o poder da convicção impera sobre o factual.
Palavras-chave:
Comunicação em saúde; Mídias sociais; Internet e saúde; Desinformação; Sociedade Excitada
Introdução
A redução dos índices de analfabetismo e a popularização dos jornais na Europa fez crescer substancialmente uma expressiva parcela de produtores e consumidores de notícias falsas ou semifalsas. Os hoaxes alcançaram seu apogeu na Londres do século XVIII entre um público de leitores ampliado, ainda que inculto e com fracos poderes de deliberação política. Os “tuítes primordiais” eram textos curtos produzidos pelos “homens parágrafo”, protocronistas da época que circulavam pelos pubs e cafés distribuindo fragmentos de notícias potencialmente escandalosas (possivelmente um embrião dos tabloides), publicadas nos periódicos na medida de sua plausibilidade e impacto de recepção11 Darnton R. The True History of Fake News [Internet]. The New York Review; 2017 [cited 2022 jul 15]. Available from: https://www.nybooks.com/daily/2017/02/13/the-true-history-of-fake-news.
https://www.nybooks.com/daily/2017/02/13... . Essas mentiras se reproduziram em nichos anedóticos, de forma limitada em termos de mídias e receptores ao longo da História, até que chegaram ao século XX, quando a expansão vertiginosa da sociedade da informação, também fez prosperar a “sociedade da desinformação” com suas desastrosas implicações. Ao final do século XIX disseminou-se amplamente na Rússia Czarista um texto apócrifo Os protocolos dos sábios do Sião, plagiado escandalosamente de O diálogo no inferno entre Maquiavel e Montesquieu, publicado em 1864 como protesto contra o regime de Napoleão III. A doutrina rapidamente difundiu-se por nichos ideológicos afeitos em diversos países, sendo traduzido em dezenas de línguas. Como verdade banal já suficientemente consagrada, o fato não conteve o fake e o livro difamador conquistou a cabeceira de Adolf Hitler, entre muitos outros nazistas pelo mundo nas décadas e mídias posteriores. Umberto Eco, no prefácio da obra de Will Eisner sobre “Os Protocolos” ilumina um ponto essencial à compreensão da insuficiência do combate à desinformação centrado em estratégias esclarecedoras:
O aspecto mais extraordinário dos “protocolos” não é tanto a história do seu início, mas sua recepção […] e a história continua a mesma hoje, na Internet. É como se, depois de Copérnico, Galileu e Kepler se continuasse a publicar livros didáticos afirmando que o Sol gira ao redor da Terra [...] não são os “protocolos” que geram o antissemitismo, é a profunda necessidade das pessoas de isolar um inimigo que as leva a acreditar nos “protocolos”22 Eco U. In: Eisner W. O complô. A história secreta dos protocolos dos sábios do Sião. São Paulo: Cia das Letras; 2005. p. viii-ix.(p.viii-ix).
Pequenos estímulos sedutores, como esses textos plagiados, maquiados e distribuídos localmente, podem sobreviver às eras e alcançar proporções calamitosas. Considerando as condições de produção sociais, culturais e subjetivas, o interesse pelo espetacular, difamatório ou revoltante torna-se mais sedutor -abrindo amplas avenidas para o mercado da excitação em um sistema social que se nutre e valoriza o espetáculo - como discutido adiante. Assim, os “devotos” das teorias conspiratórias sedutoras seriam incitados pelo interesse dos comportamentos e vieses de confirmação. Sentem-se compelidos a consumir e disseminar inverdades incessante e compulsivamente, como se, nesse movimento de replicação, fosse possível converter convicções em fatualidade. Assim, mesmo as narrativas sobre as quais não se convenceram plenamente são ecoadas pela simples necessidade de reafirmar e repercutir uma vivência acrítica, embora contestatória (ou persecutória). O atributo em questão não se refere às mídias utilizadas, tampouco ao reconhecimento de momentos de alta sensibilidade a engodos e calúnias. De forma alegórica, pode-se dizer que o atributo-chave para o sucesso nesse mercado liga-se ao elemento “desejo” no ciclo da AIDA (Atenção-Interesse-Desejo-Aquisição) como formulado pelas ciências do Marketing.
A Idade Mídia da desinformação
Mais relevante que a sofisticação dos formatos e da autoridade/credibilidade de seus veiculadores, a Aquisição deu-se pela curiosidade e “necessidade” inconfessável pelas pérolas do embuste oferecidas e consumidas com avidez. O objeto de consumo liga-se à inerente índole sedutora das revelações exclusivas de comportamentos e situações moralmente condenáveis, sabido que as FN são sempre, de certa maneira, atraentes porque implicadas em segredos de potenciais desdobramentos estrondosos. Como todo mistério furtivo, funcionam bem em formatos abreviados que incitam, desviam atenções e estreitam ligações e dependência a seus emissores. Para enganar a razão, espetar o Desejo e seduzir opiniões dos mais vulneráveis, os produtores/veiculadores valiam-se da brevidade das mensagens para seduzir sua plateia inculta, ainda que alfabetizada (notar que a repulsa aos “textões” é um traço hoje persistente). Em outras eras já se identificava o incomensurável poder dos estímulos lacônicos e (imoralmente) potentes, embora houvesse obstáculos intransponíveis quanto ao anonimato dos emissores e na identificação e segmentação dos receptores mais afeitos a tal forma de estimulação.
As pequenas fofocas filiam-se à necessidade por aceitação e pertencimento a um coletivo - o que muito ajudou na organização grupal do Sapiens para superação dos obstáculos apostos pelo meio hostil assim como, e sobretudo, na organização de coletividades contra os inimigos da época33 Dunbar RIM. Gossip in evolutionary perspective. Rev Gen Psychol 2004; 8:100-110.. A veracidade das assertivas importa menos do que sua “força de lacração” e a plausibilidade das informações torna-se um atributo irrelevante sob a luxúria dos compartilhamentos. O que importa aos “lacradores” é o quanto essas versões reforçam seu posicionamento político ou a cosmovisão do grupo - sabendo-se que, quanto mais “orgânico” o ativista, mais grave será seu grau de miopia quanto a esses aspectos.
Elementos políticos, culturais e subjetivos em mútua potencialização viabilizada por ambientes digitais, podem se materializar em necessidade de consumo e disseminação de aspectos moralmente condenáveis de terceiros, muito mais do que por suas virtudes. Temos que admitir que nas redes digitais da sociedade da desinformação, as convicções têm falado mais alto que os fatos. O compartilhar de versões nos torna impulsivos porque o conteúdo dos “textões”, e a reflexão derivada destes, esvazia-se perante a necessidade de engajamento e de coesão do grupo ao redor de conceitos em processo de formação ou deformação. Em sua pesquisa sobre credibilidade em fake news e probabilidade de compartilhamento, Pennycook44 Pennycook G, Epstein Z, Mosleh M, Arechar AA, Eckles D, Rand DG. Shifting attention to accuracy can reduce misinformation online. Nature 2021; 592(7855):590-595. percebeu que 37,4% dos participantes tinham chances maiores de compartilhar FN que concordavam com seus pontos de vista, mesmo sabendo que eram inverídicas. Essa proporção caía a 24% se as notícias, mesmo quando verdadeiras, discordassem das crenças dos pesquisados44 Pennycook G, Epstein Z, Mosleh M, Arechar AA, Eckles D, Rand DG. Shifting attention to accuracy can reduce misinformation online. Nature 2021; 592(7855):590-595..
Segundo McAndrew e Milenkovic55 McAndrew FT, Milenkovic MA. Of tabloids and family secrets: The evolutionary psychology of gossip. J Applied Soc Psychol 2002; 32:1064-1082., é perfeitamente compreensível suscitar maior interesse sobre boatos que oferecem imagens de desgraças, desonras e escândalos que envolvam pessoas de alto status social e poder aquisitivo - eventualmente potenciais rivais no trabalho ou das vizinhanças. Por outro lado, informações negativas sobre pessoas consideradas socialmente inferiores têm um appeal extremamente reduzido. O mesmo vale para a função identitária, que reforça os laços de cooperação (ou antipatias de intolerância) entre núcleos sociais ao redor das mentiras e calúnias. Estas suscitam maior ou menor apetite dos glutões por FN de acordo com seu grau de distanciamento do alvo a que são dirigidas as calúnias. Ou seja, é pequeno o poder de sedução das mentiras infames sobre aliados, amigos e parentes, o que comprometeria o nível de coesão do grupo. No terreno oposto, quanto mais culturalmente distante ou forasteiro o alvo das maledicências, maior o desejo pelo consumo dos quitutes enganosos.
Luxúria, voyeurismo e adultérios no matrimônio com a verdade em uma sociedade excitada
Nas 211 teses da “sociedade do espetáculo”66 Debord G. A sociedade do espetáculo. Lisboa: Mobilis in Mobile; 1991., Debord descreve como esta torna-se o próprio “espetáculo do espetáculo”, como condição sine qua non para a reprodução dos sistemas intensamente orientados pelo mercado. Nesses contextos, o consumo de imagens trágicas, sensuais ou violentas - sensacionais em essência - são superestimadas pelas mídias e seus consumidores. Além disso, em mútua potencialização, o vício no “sensacional” - pelo menos nos meios jornalísticos e acadêmicos - associa-se ao imperativo da precedência - quem anuncia o sensacional em primeira mão, conquista os melhores créditos. A partir do século XX, surgem novas formas de consumo e dominação baseadas no dilúvio de imagens advindas, primeiramente, pelas TVs e revistas e, atualmente, pelas “mídias de distração” que se caracterizam pela descarga colossal de estímulos imagéticos que nos roubam o foco e o interesse por nossas vivências (Erlebnis) e perda de sentido para elaboração da experiência (Erfahrung).
Christoph Türcke77 Türcke C. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp; 2010., em seu livro Sociedade excitada: filosofia da sensação, atualiza as teses de Debord ressaltando que as sociedades turbocapitalistas são dirigidas por relações mediadas por imagens espetaculares cujo mercado imagético produz, ininterruptamente, choques que criam ciclos viciosos de excitação, entorpecimento e nova excitação. Esses choques, ou sustos, seriam sensações que nos arrebata toda a atenção - frutos do pavoroso e sensacional seriam, segundo Türcke, a “sensação por excelência”77 Türcke C. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp; 2010.(p.119). Nessa perspectiva, ingênuo seria crer que nossos Black Mirrors apenas preenchem nosso tempo livre com entretenimento instrutivo. Tamanha carga de estímulos desgasta a capacidade humana de manter o foco em aspectos essenciais como o enriquecimento de uma cultura política, o que Türcke chamou de “distração concentrada”77 Türcke C. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp; 2010.. Nossa atenção tanto esvanece pela luxúria/gula por desinformação e estimulação sedutora de outras ordens, que a vigilância sobre o que não se anuncia espetacular (ou não desperta nossa indignação) simplesmente não nos desperta de um sono acrítico88 Vasconcellos-Silva PR, Castiel LD. COVID-19, fake news, and the sleep of communicative reason producing monsters: the narrative of risks and the risks of narratives. Cad Saude Publica 2020; 36(7):e00101920.. Em outros termos, a “sensação” antes equivalia apenas ao que se colocava como objeto de nossa percepção. Na medida em que os estímulos se intensificaram, esta distanciou-se de sua conotação original e tornou-se o equivalente a algo “digno de ser percebido com pouco esforço” - ligando-se unicamente ao que é “sensacional”, que transborda da vivência ordinária no cotidiano, chocando, indignando, surpreendendo ou, em síntese, excitando - mesmo que por uma fração de segundo. A sensação é entendida por Türcke como o que seduz irresistivelmente a percepção como a indignação, o sensacional e o pitoresco propelidos pela luxúria, inveja e gula midiática. Interessante acrescentar à lista de Türcke os vícios na narrativa dos riscos, nomeadamente a inclinação das mídias para enfatizar o risco à frente da segurança e seu carácter paradoxal de “ser previsível embora não possa ser previsto”. A excitação oferecida pela noção de risco pode ser identificada, inclusive, no seio dos movimentos antivacinação99 Vasconcellos-Silva PR, Castiel LD, Griep RH. The media-driven risk society, the anti-vaccination movement and risk of autismo. Cien Saude Colet 2015; 20(2):607-616., assim como no coração das teorias conspiratórias, em geral. Tal estado de iminência persistente de perigos e estimulação cotidiana pelo alerta quanto a riscos eleva a catástrofe a um genuíno estado de “celebridade trágica”, como aconteceu no fim de abril de 1986 durante a contaminação decorrente do desastre na usina de Chernobyl. No nível político-comunicativo, como lidar com o medo se suas causas são ainda incompreensíveis, intangíveis ou inacessíveis no nível microbiológico? Em pleno clima de ignorância, indeterminação e espanto do início da pandemia de COVID-19, tanto pelas mídias oficiais como pelas redes sociais proliferaram as misinformations sobre nosso inimigo público número 1 - o que se justificava pelo contexto de escassos conhecimentos da Ciência sobre sua natureza, formas de replicação, contágio e medidas de proteção. Com o passar dos meses, além do destaque ao risco epidemiológico, cresceu de forma assombrosa o vício na repercussão ágil de informação incompleta, inexata ou mesmo contraditória sobre acontecimentos em curso como genuínos exemplos misinformation mesclados à desinformation necessária aos fins políticos sub-reptícios daquele momento.
Nossos sistemas de produção cultural mantem-se sob influência dessa lógica que “microeletronicamente engana mais facilmente o desejo de seus clientes”(p.10). “O choque da imagem se tornou o foco de um regime global de atenção, que insensibiliza a atenção humana por meio da sobrecarga ininterrupta”77 Türcke C. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp; 2010.(p.33). Türcke assim descreve, como característica central da sociedade excitada, a ininterrupta geração de artefatos tecnológicos para fruição de imagens mais nítidas desses elementos geradores de choques. Para tanto, no terreno da fruição imagética, surgem a cada Black Friday aparelhos de TV com definição de tela superior ao da realidade e o maior número de polegadas que couber em nossas salas. Do mesmo modo, proliferam os mais populares artefatos de “comunicação” propagandeados com base no poder de suas lentes e grau de definição das imagens produzidas por estas. Interessante notar que na sociedade excitada, as imagens de si - produzidas sob a demanda do espetacular e da estimulação máxima de sentidos - são quase que exclusivamente geradas pelos antigos telefones. Para a sociedade excitada a catástrofe, a indignação pela mentira ou como sua consequência, o engodo para capitalização política, a “lacração” e a sedução das selfies, entre outras formas de exercício dessa luxúria e gula, transformou a prática da comunicação humana. Engajamento sem participação e convicção sem diálogo ou reflexão foram incorporados ao novo ethos compromissado unicamente com excitação imagética, estímulos e choques audiovisuais. A sensação transformou-se em vício acrítico, que embriaga e nos desvia de um senso de sobriedade dado à reflexão e amadurecimento de nossa experiência (Erfahrung).
A pandemia do COVID-19, articulada à luxúria pelas FN que proliferaram em seu rastro, deram origem a novas formas de violência. Como se não fosse suficiente a devastação virótica do inimigo invisível - originado em circunstâncias mal compreendidas em sítios distantes do planeta - outras formas de violência consequente surgiram, como a infodêmica. Subitamente somos forçados a ter que saber tudo sobre “validação científica de ensaios clínicos” para poder optar pela “melhor marca de vacina”. Como se não fosse suficiente dar conta de tantas mensagens em tantos grupos de WhatsApp, ainda somos expostos ao sobre-esforço de ter que consultar agências de fact checking para compreender e praticar conceitos necessários à nossa biosegurança. Também nos é desgastante ter que, mantendo a civilidade, tolerar a intolerância. Os spin-doctors e engenheiros do caos há muito descobriram que nas redes midiáticas os estímulos que seduzem pela intolerância e as homilias de ódio alinhadas às agendas políticas também podem tornar-se commodities valiosas1010 Da Empoli G. Os engenheiros do caos. São Paulo: Editora Vestígio; 2021..
Conclusão
O conjunto de plataformas e mídias utilizadas para dispersão de discursos maliciosos expandiu-se desde os tempos da Ágora. Seu crescente exponencial, sobretudo a partir do século XX, alcançou domínios e recursos para desinformação incomparavelmente mais dilatados, céleres, baratos e segmentados do que a distribuição de panfletos em praça pública em tempos de escasso letramento da sociedade. Além de todas essas potências, importante assinalar, vivemos a penúria ética do império da fatuidade e da superficialidade, sob o controle cada vez mais nítido do surveillance capitalism1111 Zuboff S. Big other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization. J Inf Technology 2015; 30:75-89. que se amplia enredado na relação luxuriosa com a mentira, a manipulação e a excitação pelo engodo. Mas como colocar em prática as “atitudes de autodefesa digital” sugeridas por Naomi Klein1212 Kavenna J. Shoshana Zuboff: 'Surveillance capitalism is an assault on human autonomy' [Internet]. The Guardian; 2019 [acessado 2022 fev 18]. Disponível em https://www.theguardian.com/books/2019/oct/04/shoshana-zuboff-surveillance-capitalism-assault-human-automomy-digital-privacy.
https://www.theguardian.com/books/2019/o... nas confrontações cotidianas com o “Capitalismo de Vigilância”, assim como contra algumas outras modalidades de capitalismo do século XXI?
Determinados segmentos da Sociedade Excitada aderem cada vez mais frenética e acriticamente às fake news - quer como consumidores ou produtores - mas sempre contaminados por doses cada vez mais intensas da dopamina dos choques imagéticos, likes e compartilhamentos. A lógica da sociedade excitada tende a promover a comoditização do mórbido e do frenesi pela mentira, o que leva a um estado de letargia midiática que nos expõem a paradoxos: simultânea ou alternadamente estonteando e excitando. Importante notar, no entanto, que o vício na disseminação ou consumo de desinformação compromete a relação do sujeito consigo mesmo e o sentido de sua ligação com o outro. Na Mediosfera da sociedade excitada o poder da convicção tem se tornado bem maior que o da verdade uma vez que a capacidade de percepção é sobrecarregada por estímulos que excitam e anestesiam os sentidos, sobretudo nas comunidades virtuais pautadas por factoides enganosos. Os produtores-consumidores que “habitam” (isolados) tais grupos exercitam seus vícios pela disseminação instantânea de mentiras que acaba por contaminar os terrenos circundantes. Cometem assim um grave pecado: a ficção lhes turva o vínculo de fidelidade em seus relacionamentos com a realidade.
O Sapiens se desenvolveu pelo intermédio de um sistema de transmissão verbal de informações que, no decorrer do último século, foi suplantado por tecnologias que veiculam um volume gigantesco de conteúdos a qualquer recanto do planeta sem necessidade de conhecimento técnico para sua recepção. A ação comunicativa para superação de ideologias e emancipação do ser humano tem sido reduzida à reprodução alienada de memes e partículas de informação sensacional, por vezes enganadora. Na perspectiva evolutiva, assim como a oferta excessiva de açúcares levou à obesidade, a luxúria dopaminérgica pela sensação articulada à gula por seu consumo e replicação, nos levou às presentes corrupções infodêmicas da comunicação. Percebe-se que a desinformação tem funcionado perfeitamente bem nas dimensões de sua expansão e reprodutibilidade. Talvez isso se deva às redes digitais em seu efeito de potencialização de “afetos”, como inclinações não-conscientes, pré-linguísticas e absolutamente não-discursivas, ainda externas aos domínios das emoções verbalizáveis1313 Deleuze G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta; 2002.,1414 Spinoza B. Tratado da reforma do entendimento. São Paulo: Escala; 2007.. A capacidade de afetar e ser afetado no intermédio de um estado experiencial a outro, ou affectus em Spinoza, implica modificações na disposição à ação. Não possuem caráter representativo e não retratam nada que não inclinações volitivas em busca de objetos de representação o que, de certa forma, acrescenta uma interessante complexidade às questões aqui destacadas.
Em suma, no contexto dessa “Idade Mídia”, como superar as novas modalidades de alienação envolvidas nesses ciclos de consumo? Até lá, nos rincões do WhatsApp e do Telegram, nas planícies do Facebook e do Reddit e nas vitrines do Instagram prosseguiremos assim, produzindo imagens sensacionais e reproduzindo discursos sem diálogos, vivências midiatizadas e acríticas que obliteram oportunidades para experiência (como Erfahrung), incentivando a já referida “convicção sem reflexão e sem interlocuções”. Conclui-se que as necessidades da identidade grupal geram uma deterioração dos processos comunicativos a partir do qual o poder da convicção impera sobre o factual. Desenvolvem-se assim, interações sem relacionalidade, participações sem presenças, conhecimento sem sabedoria e discurso sem diálogo.
Referências
- 1Darnton R. The True History of Fake News [Internet]. The New York Review; 2017 [cited 2022 jul 15]. Available from: https://www.nybooks.com/daily/2017/02/13/the-true-history-of-fake-news
» https://www.nybooks.com/daily/2017/02/13/the-true-history-of-fake-news - 2Eco U. In: Eisner W. O complô. A história secreta dos protocolos dos sábios do Sião. São Paulo: Cia das Letras; 2005. p. viii-ix.
- 3Dunbar RIM. Gossip in evolutionary perspective. Rev Gen Psychol 2004; 8:100-110.
- 4Pennycook G, Epstein Z, Mosleh M, Arechar AA, Eckles D, Rand DG. Shifting attention to accuracy can reduce misinformation online. Nature 2021; 592(7855):590-595.
- 5McAndrew FT, Milenkovic MA. Of tabloids and family secrets: The evolutionary psychology of gossip. J Applied Soc Psychol 2002; 32:1064-1082.
- 6Debord G. A sociedade do espetáculo. Lisboa: Mobilis in Mobile; 1991.
- 7Türcke C. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp; 2010.
- 8Vasconcellos-Silva PR, Castiel LD. COVID-19, fake news, and the sleep of communicative reason producing monsters: the narrative of risks and the risks of narratives. Cad Saude Publica 2020; 36(7):e00101920.
- 9Vasconcellos-Silva PR, Castiel LD, Griep RH. The media-driven risk society, the anti-vaccination movement and risk of autismo. Cien Saude Colet 2015; 20(2):607-616.
- 10Da Empoli G. Os engenheiros do caos. São Paulo: Editora Vestígio; 2021.
- 11Zuboff S. Big other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization. J Inf Technology 2015; 30:75-89.
- 12Kavenna J. Shoshana Zuboff: 'Surveillance capitalism is an assault on human autonomy' [Internet]. The Guardian; 2019 [acessado 2022 fev 18]. Disponível em https://www.theguardian.com/books/2019/oct/04/shoshana-zuboff-surveillance-capitalism-assault-human-automomy-digital-privacy
» https://www.theguardian.com/books/2019/oct/04/shoshana-zuboff-surveillance-capitalism-assault-human-automomy-digital-privacy - 13Deleuze G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta; 2002.
- 14Spinoza B. Tratado da reforma do entendimento. São Paulo: Escala; 2007.
Financiamento
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Chamada CNPq/MCTI/FNDCT 18/2021 - Faixa A - Grupos.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
07 Abr 2023 - Data do Fascículo
Abr 2023
Histórico
- Recebido
20 Jul 2022 - Aceito
04 Out 2022 - Publicado
06 Out 2022