Organização da atenção e vigilância em saúde na atenção primária frente à COVID-19 em municípios do Nordeste brasileiro

Nília Maria de Brito Lima Prado Ana Luiza Queiroz Vilasbôas Cristiane Abdon Nunes Ítalo Ricardo Santos Aleluia Rosana Aquino Sobre os autores

Resumo

O estudo objetivou analisar a organização e o desenvolvimento das ações de vigilância e atenção na APS, desde o arcabouço normativo até a execução das ações sanitárias nos territórios de abrangência das equipes de saúde. Estudo exploratório, analítico-descritivo, de natureza qualitativa, de casos múltiplos em três municípios-sede de região de saúde na Bahia. Foram feitas 75 entrevistas e análise documental. Os resultados consideraram a lógica de organização tecnológica e o desenvolvimento das ações de atenção e vigilância em saúde pelas equipes no nível local. No caso do M1, constatou-se uma concepção bem definida sobre a integração das ações, com vistas à organização do processo de trabalho das equipes. Contudo, não houve aumento da capacidade técnica dos distritos sanitários para apoiar as ações de vigilância junto às equipes. Em M2 e M3, a demora na definição da APS como porta de entrada e a priorização de serviço central de telemonitoramento realizado pela vigilância municipal reforçou a fragmentação das ações, revelando um baixo protagonismo da APS nas respostas. Diretrizes políticas e técnicas e condições estruturais mostraram-se fundamentais para a reorganização do trabalho, de modo a fomentar arranjos permanentes que promovam condições e incentivem a colaboração intersetorial.

Palavras-chave:
Atenção primária à saúde; Vigilância da saúde; COVID-19

Introdução

Os sistemas de saúde de diversos países enfrentaram desafios para lidar com a pandemia de COVID-19, diante da velocidade de disseminação do vírus Sars-Cov-211 Holstein B. Coronavirus 101. J Nurse Pract 2020; 16(6):416-419. e das fragilidades pré-existentes na organização e infraestrutura de serviços de saúde pública22 Rifkin SB, Fort M, Patcharanarumo W, Tangcharoensathien V. Primary healthcare in the time of COVID-19: breaking the silos of healthcare provision. BMJ Glob Health 2021; 6(11):e007721.,33 World Health Organization (WHO). Health systems resilience during COVID-19: lessons for building back better. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe; 2021.. Os esforços empreendidos evidenciaram a necessidade de integração de ações e serviços para uma resposta efetiva no controle da pandemia44 Aquino R, Medina MG, Castro DN, Gomes CA, Escarcina JEP, Pinto Junior EP, Vilasbôas ALQ. Experiências e legado da atenção primária em saúde no enfrentamento da pandemia de COVID-19: como seguir em frente? In: Barreto ML, Pinto Junior EP, Aragão E, Barral-Netto M, organizadores. Construção de conhecimento no curso da pandemia de COVID-19: aspectos assistenciais, epidemiológicos e sociais. Salvador: EDUFBA; 2020. p. 1-47.,55 Julia C, Le Joubioux C, Caihol J, Lambrail P, Bouchaud O. Organizing community primary care in the age of COVID-19: challenges in disadvantaged areas. Lancet Public Health 2020; 5(6):e313..

Nessa perspectiva, sistemas públicos universais ancorados num modelo de atenção primária à saúde (APS) robusta, resolutiva, integral, acessível, social e culturalmente orientada apresentaram maior potencial de abordagem abrangente e proativa de atenção e vigilância à saúde dos usuários sintomáticos na pandemia66 Sarti TD, Lazarini WS, Fontenelle LF, Almeida APSC. Organization of primary health care in pandemics: a rapid systematic review of the literature in times of COVID-19. Rev Bras Med Fam Comunidade 2021; 16(43):2655.

7 Keppel G, Cole AM, Ramsbottom M, Nagpal S, Hornecker J, Thomson C, Nguyen V, Baldwin LM. Early Response of Primary Care Practices to COVID-19 Pandemic. J Prim Care Community Health 2022; 13. DOI: 21501319221085374.
https://doi.org/21501319221085374....

8 Wanat M, Hoste M, Gobat N, Anastasaki M, Böhmer F, Chlabicz S, Colliers A, Farrell K, Karkana MN, Kinsman J, Lionis C, Marcinowicz L, Reinhardt K, Skoglund I, Sundvall PD, Vellinga A, Verheij TJ, Goossens H, Butler CC, van der Velden A, Anthierens S, Tonkin-Crine S. Transformation of primary care during the COVID-19 pandemic: experiences of healthcare professionals in eight European countries. Br J Gen Pract 2021; 71(709):e634-e642.
-99 Pou MA, Gayarre R, Ferrer-Moret S, Fernández-San-Martín MI, Feijoo MV, Diaz-Torne C. El papel de la atención primaria en la crisis sanitaria por COVID-19. Experiencia de un equipo de Atención Primaria urbano. Aten Primaria 2021; 53(7):102082..

Países como Bélgica, Holanda, Inglaterra e Irlanda adotaram a APS como porta de entrada para casos de COVID-19, reorganizando as instalações físicas para atenção e gerenciamento dos fluxos internos1010 Mash R, Goliath C, Perez G. Re-organising primary health care to respond to the Coronavirus epidemic in Cape Town, South Africa. Afr J Prim Health Care Fam Med 2020; 12(1):e1-e4.,1111 Costa LP, Lira LT, Magalhães A, Garuta I, Esperanço N, Real V, Silva H, Cardoso SB, Vicente A. COVID-19: adaptação de uma unidade de saúde familiar a novos desafios de acessibilidade aos cuidados de saúde. Rev Port Med Geral Fam 2022; 38(1):125-128.. Consultas remotas se destacaram como estratégia de prestação de cuidados em muitos países, permitindo o atendimento e acompanhamento dos casos e encaminhamentos para serviços, conforme a complexidade e gravidade da doença1212 Mughal F, Mallen CD, McKee M. The impact of COVID-19 on primary care in Europe. Lancet Reg Health Eur 2021; 6:100152.

13 Thayer EK, Pam M, Al Achkar M, Mentch L, Brown G, Kazmerski TM, Godfrey E. Best practices for virtual engagement of patient-centered outcomes research teams during and after the COVID-19 pandemic: qualitative study. J Particip Med 2021; 13(1):e24966.

14 Kalicki AV, Moody KA, Franzosa E, Gliatto PM, Ornstein KA. Barriers to telehealth access among homebound older adults. J Am Geriatr Soc 2021; 69(9):2404-2411.

15 Goodyear-Smith F, Kidd M, Oseni TIA, Nashat N, Mash R, Akman M, Phillips RL, Weel C. International examples of primary care COVID-19 preparedness and response: a comparison of four countries. Fam Med Com Health 2022; 10(2):e001608.
-1616 Lapão LV, Peyroteo M, Maia M, Seixas J, Gregório J, Mira da Silva M, Heleno B, Correia JC. Implementation of digital monitoring services during the COVID-19 Pandemic for Patients with chronic diseases: design science approach. J Med Internet Res 2021; 23(8):e24181.. Em outros países o potencial da APS na pandemia foi subestimado, havendo centralidade dos cuidados hospitalares1717 Rincón, EHH, Pimentel González JP; Aramendiz Narváez MF, Araujo Tabares RA, Roa González JM. Descripción y análisis de las intervenciones fundamentadas en la atención primaria para responder al COVID-19 en Colombia. Medwave 2021; 21(3):e8147.,1818 Verhoeven V, Tsakitzidis G, Philips H, Royen PV. Impact of the COVID-19 pandemic on the core functions of primary care: will the cure be worse than the disease? A qualitative interview study in Flemish GPs. BMJ Open 2020; 10(6):e039674..

No Brasil, o modelo da APS centrado na Estratégia de Saúde da Família (ESF), com enfoque territorial e vínculo comunitário1919 Fernandez MV, Castro DM, Fernandes LMM, Alves IC. Reorganizar para avançar: a experiência da Atenção Primária à Saúde de Nova Lima/MG no enfrentamento da pandemia da COVID-19. APS em Revista 2020; 2(2):114-121.

20 Daumas RP, Silva GA, Tasca R, Leite IDC, Brasil P, Greco DB, Grabois V, Campos GWDS. O papel da atenção primária na rede de atenção à saúde no Brasil: limites e possibilidades no enfrentamento da COVID-19. Cad Saude Publica 2020; 36(6):e00104120.

21 Ximenes Neto FRG, Araújo CRC, Silva RCC, Aguiar MR, Sousa LA, Serafim TF, Dorneles JA, Gadelha LA. Coordenação do cuidado, vigilância e monitoramento de casos da COVID-19 na atenção primária à saúde. Enferm Foco 2020; 11(Esp. 1):239-245.
-2222 Frota AC, Barreto ICHC, Carvalho ALB, Ouverney ALM, Andrade LOM, Machado, NMS. Vínculo longitudinal da Estratégia Saúde da Família na linha de frente da pandemia da COVID-19. Saude Debate 2022; 46(Esp. 1):131-151., poderia viabilizar ações de manejo, vigilância e prevenção em saúde, necessários ao enfrentamento da pandemia. Entretanto, o processo de desfinanciamento do SUS e a resposta tardia e negacionista do governo federal conformaram um conjunto de dificuldades político-operacionais que constrangeram a capacidade dos sistemas estaduais e municipais de orientar as políticas para a gestão de riscos2323 Prado NMBL, Rosana A, Vilasboas ALQ. Atenção Primária à Saúde e o modelo da Vigilância à Saúde [Internet]. Nota técnica. Rede de Pesquisa em APS/Abrasco. 2021. [acessado 2022 out 27]. Disponível em: https://redeaps.org.br/wp-content/uploads/2022/01/NT_Vigilancia.pdf
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,2424 Santos AO, Silva JF, Cataneli RCB. COVID-19: respostas em construção. In: Santos AO, Lopes LT, organizadores. Reflexões e futuro. Brasília: CONASS; 2021. p. 248-268., comprometendo o planejamento de ações estratégicas voltadas à pandemia2525 Medina MG, Giovanella L, Bousquat A, Mendonça MHM, Aquino R, Comitê Gestor da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde da Abrasco. Atenção primária à saúde em tempos de COVID-19: o que fazer? Cad Saude Publica 2020; 36(8):e00149720..

Os cuidados primários e comunitários foram amplamente negligenciados. Além disso, as abordagens de vigilância à saúde, embora aparentemente “consensuais”, revelam concepções distintas, ainda que não antagônicas2323 Prado NMBL, Rosana A, Vilasboas ALQ. Atenção Primária à Saúde e o modelo da Vigilância à Saúde [Internet]. Nota técnica. Rede de Pesquisa em APS/Abrasco. 2021. [acessado 2022 out 27]. Disponível em: https://redeaps.org.br/wp-content/uploads/2022/01/NT_Vigilancia.pdf
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, que podem contribuir para diferentes respostas à pandemia. Assim, este estudo teve como objetivo analisar a organização e o desenvolvimento das ações de vigilância e atenção na APS, desde o arcabouço normativo até a execução das ações sanitárias nos territórios de abrangência das equipes de saúde.

Método

Delineamento do estudo

O estudo integra o Projeto ObservaCovid, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob parecer nº 4.420.126, de 25 de novembro de 2020.

Trata-se de um estudo qualitativo, analítico-descritivo, de casos múltiplos, visando captar os principais aspectos que contribuíram para a reorganização das ações de atenção e vigilância em saúde na APS durante a pandemia.

Buscou-se responder centralmente aos seguintes questionamentos: quais proposições e ações estratégicas organizaram a atenção e vigilância nos serviços de APS nos cenários municipais? Em que medida as equipes desenvolveram ações integradas de atenção e vigilância na APS?

Cabe destacar que a intenção não foi o julgamento de cada município, mas a compreensão de processos de integração entre as ações nos territórios de municípios, por meio de cenários representativos que permitem as múltiplas inter-relações dos aspectos observados2626 YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5. Porto Alegre: Bookman; 2015..

Locais de estudo de casos

Os municípios em foco foram selecionados intencionalmente, por conveniência, no conjunto dos maiores municípios de um estado do Nordeste do Brasil.

Em 2021, esses municípios ocupavam os três primeiros lugares em população estimada. Em 2019, a cobertura da atenção básica e da ESF era de, respectivamente, 42,1% e 31,9% em M1; 77,4% e 66,2% em M2; e de 60,6% e 48,9% em M3.O primeiro caso de COVID-19 foi confirmado em 6 de março de 2020 em M2. No período de março de 2020 a agosto de 2021, o estado registrou 1.209.284 casos de COVID-19 e 26.484 óbitos pela doença2727 Estado da Bahia. Portal da transparência, Secretaria de saúde do Estado da Bahia. Dados abertos COVID-19 [Internet]. 2022. [acessado 2022 ago 3]. Disponível em: https://dadosabertos.ba.gov.br/dataset/?tags=COVID-19
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. No período, os municípios 1 e 2 figuraram entre os dois primeiros em número de casos acumulados e óbitos: M1 com 234.881 (19,3%) casos e 7.849 (30,0%) óbitos; e em M2, 54.472 (4,5%) casos e 1.046 (4,0%) óbitos. O município 3 registrou 35.608 (2,9%) casos e 618 (2,4%) óbitos.

Produção dos dados

A produção dos dados foi obtida mediante cotejamento das entrevistas e análise documental para compor as informações do objeto de estudo. Analisaram-se normas técnicas, planos, fluxogramas emitidos pelo estado e pelos três municípios com orientações e recomendações quanto à organização das ações de atenção e vigilância da COVID-19 no âmbito da APS.

As entrevistas foram conduzidas em locais agendados e tiveram duração média de 80 minutos. Foram incluídos 79 participantes, entre eles 35 gestores e técnicos de atenção básica e vigilância e 44 profissionais da APS.

Análise dos dados

A produção dos resultados contemplou a análise de conteúdo de todo material, com suas respectivas etapas de categorização, descrição e interpretação. A análise dos dados foi composta por duas etapas. A primeira correspondeu ao processamento e à análise lexical dos dados, com a utilização do software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRAMUTEQ)2828 Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol 2013; 21(2):513-518., versão 0.7 alpha 2. Para tanto, procedeu-se à organização e preparação dos dados, com a transcrição das entrevistas na íntegra e codificação e disposição dos dados em formato de corpus textual. Ao final, o arquivo foi salvo como documento de texto com a codificação de caracteres utf8 laguages no idioma português.

Nesse recorte, a classificação hierárquica descendente pelo método de Reinert permitiu agrupar classes temáticas, utilizando o teste do qui-quadrado (chi2) para medir a associação entre as palavras e sua respectiva classe, confirmada quando o valor era superior a 3,84 e inferior a 5% (p < 0,05). A partir da análise e interpretação, recuperou-se os segmentos de texto e o léxico mais frequente passou a fazer sentido em relação ao contexto da discussão, agrupando as respostas de acordo com sua semelhança para formar categorias temáticas de análise2929 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011..

Considerou-se o modelo de APS de base territorial e orientação comunitária para a resposta à pandemia no que diz respeito à integração entre atenção e vigilância, a partir das perspectivas de Aquino e colaboradores44 Aquino R, Medina MG, Castro DN, Gomes CA, Escarcina JEP, Pinto Junior EP, Vilasbôas ALQ. Experiências e legado da atenção primária em saúde no enfrentamento da pandemia de COVID-19: como seguir em frente? In: Barreto ML, Pinto Junior EP, Aragão E, Barral-Netto M, organizadores. Construção de conhecimento no curso da pandemia de COVID-19: aspectos assistenciais, epidemiológicos e sociais. Salvador: EDUFBA; 2020. p. 1-47., com o intuito de identificar a lógica de organização tecnológica das ações de atenção e vigilância nos municípios (adoção de protocolos para readequação do espaço físico e organização do trabalho das equipes; capacitação dos profissionais; estabelecimento de fluxos logísticos e operacionais: articulação da APS com a rede de atenção), as ações de atenção e vigilância em saúde (cuidado individual - triagem, consultas, testagem e monitoramento clínico; e nos territórios, visitas e outras ações comunitárias) desenvolvidas pelas equipes no nível local.

Resultados

Mediante a nuvem de palavras foi possível observar a interconexão e também a relação entre elas, tendo em vista que o índice de co-ocorrências entre as palavras pode ser mais forte ou mais fraco, a depender da espessura das linhas (teste qui-quadrado). O núcleo central é a palavra “paciente”, e todas as demais palavras estão intrinsecamente ligadas a ela, agrupando os termos que possuíam coocorrências particulares entre si e que por isso se diferenciaram das demais, criando assim subgrupos, ainda que dentro do mesmo universo semântico.

Assim, mediante análise das conexidades entre as palavras e dos sentidos das respostas e dos documentos, foi possível perceber duas categorias, a partir dos dados empíricos apresentados a seguir conforme cada caso, considerando a lógica de organização tecnológica das ações de atenção e vigilância em saúde e o desenvolvimento dessas ações pelas equipes no nível local, sistematizadas no Quadro 1.

Quadro 1
Sistematização de critérios para organização e desenvolvimento da atenção e vigilância aos usuários sintomáticos para COVID-19 em cada local.

Município 1 (M1)

Documentos institucionais e relatos de gestores (Quadro 2) apontaram que a organização para o enfrentamento da pandemia envolveu a articulação de diversos setores da SMS. Quanto à Atenção Primária e Vigilância, a integração entre essas áreas foi objeto de propostas anteriores. No contexto da pandemia, retomou-se a necessidade de uma agenda forte de integração, sendo apontada a importância do modelo da ESF baseado no território para a integração das ações de APS e Vigilância.

Quadro 2
Síntese dos resultados centrais e falas expressivas dos entrevistados nos três locais.

Na resposta à pandemia, houve a inauguração de 16 Unidades de Saúde da Família (USF), com 51 novas equipes; contratação de profissionais; e inauguração de três salas para estabilização de pacientes graves em unidades ribeirinhas. Entretanto, prevalecia uma baixa cobertura de APS, o que, associada à insuficiência de profissionais nas coordenações dos Distritos Sanitários, parece ter comprometido a ampliação das ações de vigilância no território.

O arcabouço normativo (Quadro 3) detalhou normas de biossegurança e instruções para adaptação dos espaços físicos das unidades de saúde. Foram realizadas capacitações em diversos formatos para preparar os profissionais de APS. Os temas abordados contemplam normas de biossegurança, manejo clínico, testagem e ações de vigilância epidemiológica. Outras instituições participaram ou ofereceram capacitação, a exemplo do Ministério da Saúde (MS), da Fiocruz, da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), do Núcleo do Telessaúde e os conselhos de classe.

Quadro 3
Síntese do conteúdo propositivo de normativas e entrevistas com gestores sobre readequação estrutural nos três locais, 2022.

Foram normatizadas responsabilidades comuns a todos os profissionais na APS e particularidades de cada categoria. Os relatos e o conteúdo documental convergiram sobre atribuições dos profissionais do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) e das equipes de saúde bucal no apoio para identificação de sintomáticos respiratórios nas UBS e monitoramento dos pacientes em isolamento.

Os ACS desenvolveram suas atividades segundo as normas da SMS, com maior centralidade no trabalho interno das unidades. Houve participação importante dos ACS na vacinação contra a COVID-19, contudo, mudanças em atribuições reduziram a atenção à comunidade para outros problemas de saúde.

A organização dos fluxos de atendimento aos casos de COVID-19 prevista em diversas normativas municipais definiu como portas de entrada do sistema de saúde os serviços de APS (UBS com e sem ESF), as UPAs e as unidades de referência para síndromes gripais, denominadas gripários; houve a criação de Mini UPAs em UBS adaptadas para estabilização de casos moderados e graves. Como transporte sanitário, utilizou-se o SAMU 192. Buscou-se padronizar fluxos para regulação de leitos, pontos para testagem e oferta de cuidados integrados para a população em situação de rua e aos residentes de instituições de longa permanência para idosos (ILPI), crianças e adolescentes pelas UBS, além da previsão de pontos de atenção aos trabalhadores da saúde do município. Em relação às portas de entrada dos casos de COVID-19, os gestores da APS entrevistados destacaram a USF/UBS como locus prioritário para a triagem e o atendimento inicial dos casos suspeitos (Figura 1).

Figura 1
Síntese dos fluxos de atenção e vigilância de casos suspeitos para COVID-19 nos três casos analisados, janeiro 2020 a agosto 2021.

Cabe destacar as iniciativas para reorganizar a atenção e a vigilância, numa perspectiva ampliada nos territórios das UBS/USF, reunidas no programa criado para fortalecer o uso das tecnologias da informação e comunicação (TICs), contemplando o acolhimento à demanda espontânea de casos suspeitos (ADE), o monitoramento remoto do isolamento domiciliar (MID), a abordagem comunitária e a comunicação social (Acom) e a vigilância, gestão e educação permanente (VGEP).

As ações das equipes ADE e MID desenvolvidas pelos profissionais foram coincidentes com as normas estabelecidas. Casos leves eram orientados para o isolamento domiciliar e monitorados por via remota a cada 24-48h. Foram adquiridos aparelhos celulares (com chips adicionais) e cadastramento dos profissionais em uma conta da versão empresarial do aplicativo WhatsApp, mas a disponibilidade de equipamentos foi considerada insuficiente por alguns profissionais das equipes de APS.

Apesar de as normas indicarem que casos moderados e graves deveriam ser estabilizados na unidade, com acionamento do SAMU 192 para encaminhamento a outros níveis de atenção, há relatos que indicaram a insuficiência desses serviços frente à alta demanda provocada pelo aumento dos casos de COVID-19.

Considerando o primeiro semestre da pandemia e a disponibilidade dos testes laboratoriais, foi estabelecido um fluxo para a testagem dos casos suspeitos na APS. Algumas UBS foram consideradas referências, onde eram realizadas a coleta para o RT-PCR. As demais efetuavam coleta para exame sorológico, agendamento em turno específico para coleta do RT-PCR ou encaminhamento para outros pontos de coleta. Somente no segundo semestre de 2021 a coleta do RT-PCR foi descentralizada para a APS, com quantidade restrita.

As ações relativas à abordagem comunitária e comunicação social (Acom) para prevenção da COVID-19 foram incipientes. Havia preocupação quanto ao afastamento da abordagem familiar e comunitária no trabalho das equipes, indicando que o retorno ao território e o restabelecimento de uma comunicação comunitária são aspectos a serem fortalecidos na APS.

Atividades educativas foram restritas ao espaço interno das UBS/USF e à divulgação de informações por meio de mensagens de WhatsApp. Tais achados reforçam a insuficiência da comunicação de risco, de base comunitária, nos territórios das UBS/USF.

Além disso, o programa criado para fomentar o uso de recursos da telemedicina para o acompanhamento de atenção básica voltado ao combate ao coronavírus, incluía o eixo de Vigilância, Gestão e Educação Permanente (VGEP), em articulação com a Diretoria de Vigilância e com a Educação Permanente da SMS e dirigido às USF/USB. Em alguns distritos houve a designação de profissionais de vigilância epidemiológica para atuação como pontos focais para as UBS/USF. As ações de vigilância da COVID-19, a cargo dos profissionais das equipes, ficaram restritas à notificação e ao monitoramento dos casos leves que buscavam atendimento nas UBS/USF e à realização de testes.

Município 2 (M2)

A organização das ações em resposta à pandemia de COVID-19 foi protagonizada pela estrutura municipal de vigilância epidemiológica (VIEP), inicialmente com dificuldade de articulação com os demais setores, destacando-se a pouca participação da APS.

Não há registro de investimento municipal na ampliação da cobertura populacional da ESF nem houve reposição de profissionais em equipes que apresentavam déficit de trabalhadores, destacando-se a insuficiência de ACS, segundo relatos dos entrevistados.

Houve capacitações relacionadas a manejo clínico, fluxos de atendimento, monitoramento dos casos de COVID-19, prevenção contra o contágio e sobre as vacinas. Priorizou-se a utilização de estratégias de difusão rápida, tais como cards virtuais para divulgação em grupos criados na rede social WhatsApp, além da realização de palestras via web.

Outro aspecto restritivo foi o incipiente arcabouço normativo para ordenar as ações de enfrentamento da pandemia. Resumiu-se ao Plano Municipal de Contingência, único documento localizado em domínio público. Embora tenha sido exposto por gestores que adotaram protocolos para o enfrentamento da pandemia pautados em recomendações do Ministério da Saúde e da Secretaria Estadual de Saúde, esses documentos não foram localizados na página oficial da SMS nem disponibilizados para os pesquisadores.

Sobre o processo de trabalho, o plano recomendava que todos os profissionais da ESF/SB e NASF-AB realizassem monitoramento clínico de pacientes em isolamento domiciliar a cada 48h e avaliação do estado geral dos casos.

A organização dos fluxos de atendimento aos casos de COVID-19 previstos no plano de contingência apontam, como uma das portas de entrada no sistema de saúde, o serviço de telemonitoramento, conforme fluxograma resumido da atenção para casos suspeitos, a regulação dos considerados em maior gravidade para serviços emergenciais ou hospitalares, seguindo definições pactuadas com a Secretaria Estadual de Saúde no Plano de Contingência Estadual, mas não explicitou os critérios para articulação da APS com os demais pontos da rede de atenção. As equipes de APS, no primeiro momento, realizavam apenas a triagem dos casos que procuravam as USF presencialmente e encaminhavam os leves e moderados para as policlínicas para realização do diagnóstico clínico. Em seguida, assumiu o monitoramento clínico dos casos leves referenciados pelas policlínicas, predominantemente por via remota, por enfermeiros, dentistas e profissionais do NASF-AB.

A triagem dos usuários suspeitos, o monitoramento clínico e o rastreamento de contatos eram feitos pela equipe de vigilância municipal, mediante linha telefônica exclusiva com serviço de telemonitoramento dos sinais e sintomas. Posteriormente, quando o número de casos superou a capacidade da vigilância municipal, as equipes das UBS/USF passaram a realizar o acolhimento dos usuários de suas áreas de abrangência, indicados pela vigilância municipal, conforme lista de suspeitos triados pelo serviço de telemonitoramento e nos peri-domicílios, por ACS. Uma restrição importante ao trabalho das equipes foi a incipiente conectividade para o desenvolvimento de ações remotas. Alguns médicos da APS aderiram ao protocolo de uso precoce do tratamento para a doença, mesmo sem evidências científicas comprovadas

O atendimento de casos suspeitos de COVID-19 requereu mudanças no trabalho das UBS, destacando-se a redução do atendimento ou a desativação de atividades rotineiras para possibilitar a criação temporária de um setor exclusivo para sintomáticos respiratórios. Além disso, foi ressaltado que foram feitos arranjos internos de realocação de salas destinadas a outras atividades e improvisação de divisórias.

Segundo relatos dos profissionais, os ACS fizeram visitas peri-domiciliares para acompanhamento dos usuários em isolamento, em busca de sinais de gravidade e de familiares sintomáticos para comunicação à equipe. Destacaram-se como obstáculos a ausência de ACS em alguns territórios e a recusa da população em receber esse profissional nos domicílios pelo receio de contaminação. Tal cenário fragilizou as ações de comunicação em saúde e prevenção comunitária, restringindo-se a informações veiculadas nas salas de espera dos serviços direcionadas aos usuários que buscavam atendimento.

A logística de coleta de teste PCR estava prevista para ser coordenada e realizada pela equipe da VIEP em unidades de coletas (fixas ou volantes). Nas unidades eram disponibilizados apenas os testes rápidos, e em outros pontos específicos o exame de PCR para COVID-19, mediante encaminhamento. Havia um fluxo diferenciado para a realização de testes PCR em ILPIs. Somente no segundo semestre de 2020, gestores e profissionais entrevistados explicitaram que o exame de PCR passou a ser referenciado também para as USF/UBS, assim como a notificação dos casos atendidos.

Município 3 (M3)

Em M3, embora os documentos normativos e alguns gestores expressassem a perspectiva de articulação entre os setores de APS e vigilância em saúde, os profissionais indicaram um processo de gestão desarticulada e com evidentes dificuldades para a coordenação integrada da crise sanitária. As ações para resposta e enfrentamento da pandemia foram capitaneadas pela Vigilância à Saúde, com baixo protagonismo da APS.

Diante da incipiente capacidade técnica da gestão municipal da saúde, foi contratado um consultor externo para apoiar a organização dos fluxos organizacionais, assistenciais e monitorar a situação epidemiológica local. As principais referências técnicas foram recomendações do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), dos Estados Unidos, e normativas publicadas pelo Ministério da Saúde, com consideração ao apoio técnico da Secretaria Estadual de Saúde. Mas o processo de tomada de decisão foi sustentado pela retórica de que o enfrentamento da pandemia deveria ser direcionado para os grupos de risco e pela defesa de medicamentos sem comprovação de eficácia científica para a COVID-19.

Uma das primeiras medidas para enfrentamento foi a abertura de uma unidade especializada em tratamento de COVID-19 e a organização de um serviço central de telemonitoramento denominado call center, localizado no prédio da SMS, para realizar telerrastreio, telemonitoramento e notificação de pacientes suspeitos, sem priorizar, no primeiro ano, a participação da APS. Para tanto, conforme gestor entrevistado, foram alugadas e/ou transferidas, linhas telefônicas e os dados lançados em um sistema na plataforma web para acompanhamento de casos de COVID-19.

Posteriormente, foram propostas modificações estruturais em UBS/USF. Entretanto, a maioria dos serviços funcionavam em imóveis sem infraestrutura adequada, especialmente na zona rural. Segundo os profissionais, predominaram arranjos improvisados frente à indisponibilidade de condições materiais e físicas, o que, aliado à escassez de EPIs, restringiu o atendimento nos primeiros meses de 2020. Poucas unidades conseguiram manter um fluxo adequado, devido às condições estruturais, optando-se, como uma das estratégias para ofertar a atenção, pela separação de turnos das equipes para atendimento de sintomáticos e não sintomáticos.

Em razão da escassez de testes PCR e de profissionais aptos, no início da pandemia foi apontada certa centralização de pontos de testagem, sendo disponibilizado em algumas USF apenas os testes rápidos.

Em um cenário de baixa cobertura de APS, não houve ampliação de equipes para atenção e vigilância, predominando a seleção de profissionais para serviço de referência COVID-19, conforme Decreto nº 20.289, de maio de 2020. Houve realocação de profissionais para outras atribuições, principalmente aqueles que não integravam as equipes mínimas, em especial de equipes NASF-AB, para atuarem no serviço central de telemonitoramento.

No plano de contingência foram definidas, de forma genérica, atribuições comuns aos profissionais da ESF, da equipe de Atenção Domiciliar e da vigilância, com algumas especificações para os ACS. Foram explanadas fragilidades nas ações de educação permanente, prioritariamente direcionadas para as equipes de referência para casos de COVID-19 e do serviço central de telemonitoramento.

O fluxo assistencial descrito no plano de contingência sofreu modificações durante o período analisado. No primeiro ano, descreveu-se como porta de entrada preferencial o serviço de telemonitoramento, que efetuava a triagem e a notificação dos casos suspeitos, bem como a regulação para locais de testagem e o envio diário de lista de casos leves para o monitoramento clínico remoto pelas equipes de APS. Em caso de sinais de gravidade, o serviço central de telemonitoramento encaminhava para a unidade de referência de COVID-19.

Apesar de estar delineado um fast-track a ser adotado pelas equipes de APS, persistiram indefinições quanto ao fluxo assistencial. Somente no segundo ano, com o aumento dos casos, que superaram a capacidade da vigilância municipal, as UBS/USF passaram a receber os sintomáticos respiratórios por demanda espontânea, mediante acolhimento, mantendo-se o monitoramento clínico remoto dos casos, em especial para aqueles de grupo de risco.

Contudo, a triagem dos usuários suspeitos permaneceu sendo efetuada pelo serviço central de telemonitoramento no período estudado. Apenas para usuários sem contato telefônico observou-se uma triagem nas UBS, com apoio dos ACS. Mas, segundo relatos, o preenchimento da ficha B, quando possível, era feito por telefone.

É importante destacar a inexistência de previsão de fluxos assistenciais para usuários sintomáticos residentes em áreas rurais, incluídos apenas na segunda versão do plano. Isso dificultou, inicialmente, o diagnóstico laboratorial, o monitoramento clínico e os encaminhamentos dos casos moderados para o centro de referência de COVID-19 e dos graves para unidades emergenciais e hospitalares, devido à possível demora de transporte sanitário.

Não foi aludida a identificação de sintomáticos respiratórios na comunidade por meio de busca ativa ou mapeamento das redes de interação social ou em locais de convívio dos casos. Apesar de gestores declararem uma organização de fluxo de testagem e disponibilidade de profissionais capacitados, profissionais de áreas mais remotas declararam ausência de fluxo e profissional específico.

A educação em saúde para a população ficou restrita a recursos virtuais em grupos de WhatsApp e não constituiu uma prioridade estratégica nos diferentes territórios.

Discussão

Nos três municípios a resposta da APS foi caracterizada por atenção, notificação e monitoramento de casos, estratégias de educação em saúde restritas aos grupos de WhatsApp e às unidades de saúde, e incipiência de ações de vigilância da saúde relacionadas à busca ativa e à comunicação dos riscos nos territórios.

Em M2 e M3, a demora na definição da APS como porta de entrada e a priorização do serviço central de telemonitoramento realizado pela vigilância municipal reforçou a fragmentação das ações, revelando um baixo protagonismo da APS na resposta à pandemia. Apenas em M1 houve preparação e gestão da resposta sanitária com produção de um arcabouço normativo e concepção bem definida sobre a integração das ações de APS e vigilância, com vistas à organização do processo de trabalho das equipes de atenção primária, assim como esforços na ampliação da cobertura da APS e implementação de estratégias para ampliação da resolutividade da atenção aos casos de COVID-19. Entretanto, evidências apontaram que essas estratégias não foram suficientes para uma mudança nas práticas de saúde.

Teoricamente, o que se esperava enquanto resposta abrangente à pandemia era um modelo de APS que incorporasse as ações de vigilância em saúde e vice-versa. Entretanto, nos municípios estudados, apenas M1 se aproximou do referido modelo no plano ideológico/normativo. Nos demais municípios, observou-se uma vigilância passiva, com ações de vigilância epidemiológica reativa “por demanda”; da estrutura central da vigilância e/ou dos usuários sintomáticos que buscavam as unidades por iniciativa própria; controle de danos, com processos de trabalho divergentes e individualizados. A base territorial foi utilizada para compor as listas de usuários identificados pela vigilância municipal a serem acompanhados pelas UBS, mas não houve ações sistemáticas de “vigilância ativa” para identificação de sintomáticos respiratórios nos domicílios.

Chama atenção a contradição demonstrada pelos sujeitos a partir da ênfase dada a mecanismos institucionais insuficientes para romper com a lógica dos modelos de atenção hegemônicos, caracterizados pela fragmentação do processo de trabalho em saúde.

Adequar as ações emergenciais em um modelo de atenção à saúde que prioriza a APS, de base territorial e comunitária no Brasil, exigiu esforços adicionais dos estados e municípios brasileiros3030 Carvalho EMR, Soster JC, M ELC, Santana AF, Alves DCM, Prates MVB. Estratégias da gestão estadual da atenção básica diante da pandemia de COVID-19, Bahia, 2020/2021. Rev Baiana Saude Publica 2021; 45(Esp. 3):43-52.. Experiências exitosas no enfrentamento da pandemia congregaram um misto de ações de vigilância de base comunitária e reforçaram a necessidade de medidas para fortalecer a posição central da APS na rede, bem como sua legitimidade profissional e social ante a crise sanitária mundial. Em países onde os sistemas universais de saúde com atenção primária abrangente, como nas nações escandinavas, Nova Zelândia, Austrália, Canadá, Japão e Coréia do Sul, obteve-se maior êxito no controle da pandemia. Assim como países como Vietnã, Cuba, Sri Lanka e Tailândia, conhecidos por sistemas de saúde relativamente mais universais3131 Sundararaman T, Muraleedharan VR, Ranjan A. Pandemic resilience and health systems preparedness: lessons from COVID-19 for the 21st century. J Soc Eco Dev 2021; 23(Suppl. 2):290-300..

A introdução de vigilância abrangente é recomendada como medida urgente de saúde pública para controlar e mitigar a propagação da doença em todo o mundo. No entanto, sua implementação tem se mostrado desafiadora, pois requer coordenação interorganizacional entre vários atores. Na América Latina3232 Giovanella L, Bousquat A, Medina MG, Mendonça MHM, Facchini LA, Tasca R, Nedel FB, Lima JG, Mota PHS, Aquino R . Desafios da atenção básica no enfrentamento da pandemia de COVID-19 no SUS. In: Portela MC, Reis LGC, Lima SML, organizadores. COVID-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022.,3333 Prado NMBL, Biscarde DGDS, Pinto Junior EP, Santos HLPCD, Mota SEC, Menezes ELC, Oliveira JS, Santos AMD. Primary care-based health surveillance actions in response to the COVID-19 pandemic: contributions to the debate. Cien Saude Colet 2021; 26(7):2843-2857., merece destaque a implementação de estratégias de coordenação interorganizacional para a vigilância da COVID-19 na Colômbia, em particular as cidades de Bogotá, Cali e Cartagena.

A abordagem cubana de rastreamento manual massivo de contatos foi coordenada pelo amplo sistema de saúde primário, que viabilizou uma vigilância “porta-a-porta”, facilitada por condições preexistentes, como o sistema de saúde primário amplo e bem organizado e a alta taxa de médicos por milhões de habitantes, possibilitando uma exitosa resposta cubana3434 Miranda B. Coronavirus in Cuba: how the aggressive epidemiological surveillance model against COVID-19 works [Internet]. BBC Mundial. 2020. [cited 2022 out 27]. Available from: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-52496344
https://www.bbc.com/mundo/noticias-ameri...
.

Nesse sentido, é importante refletir sobre a viabilidade dos processos integrados de saúde nos territórios. Existem diferentes perspectivas sobre os principais fatores que influenciam os arranjos de coordenação entre as instituições. Uma diz respeito aos desafios estruturais ou impedimentos à coordenação de diferentes instituições dentro dos sistemas de saúde, o que inclui coordenar programas de vigilância coletiva (por exemplo, estratégias comunitárias) com intervenções individuais (por exemplo, tratamento clínico) e priorizar as necessidades da população3535 Furlanetto DLC, Santos W, Scherer MDA, Oliveira KHD, Santos LMP, Cavalcante FV, Oliveira A, Santos RR, Leite TA, Poças KC. Estrutura e responsividade: a Atenção Primária à Saúde está preparada para o enfrentamento da COVID-19? Saude Debate 2022; 46(134):630-648..

Ao analisar o modelo da vigilância em saúde adotado como eixo orientador da concepção da gestão, desvela-se um desafio persistente quanto à reorganização dos processos de trabalho das equipes, apontado como principal dificultador à existência de lógicas próprias entre as ações desenvolvidas tradicionalmente nas vigilâncias. Evidências apontam que os papéis organizacionais em resposta à COVID-19 foram mal definidos, inicialmente, devido à falta de comunicação entre a diversidade de atores dentro do sistema de saúde3636 Anger JA, Millar R, Greenhalgh J, Mannion R, Rafferty AM, McLeod H. Why do some interorganizational collaborations in healthcare work when others do not? A realist review. Syst Review 2021; 10:82..

Tais questões revelam a necessidade de maior colaboração em resposta a crises imediatas ou desafios em longo prazo. Assim, para planejar novas estratégias de vigilância com base no trabalho coordenado, é fundamental entender a influência e a interação entre mecanismos de coordenação interorganizacional em contextos específicos. Por outro lado, cabe pontuar que diretrizes políticas e técnicas e condições estruturais são fundamentais para a reorganização do trabalho entre os setores, de modo a fomentar arranjos permanentes que promovam condições e incentivem a colaboração intersetorial3737 Turner S, Segura C, Niño N. Implementing COVID-19 surveillance through interorganizational coordination: a qualitative study of three cities in Colombia. Health Policy Plan 2022; 37(2):232-242.. Contudo, como institucionalizar essa colaboração em um cenário de “guerra sanitária” e permeado pela descoordenação nacional?

Examinar a organização da APS e sua posição na rede assistencial enquanto ordenadora do cuidado em saúde perpassa fundamentalmente por refletir sobre os processos de descontinuidade agudizados a partir da revisão da Política Nacional de Atenção Primária3838 Melo EA, Mendonça MHM, Oliveira JR, Andrade GCL. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saude Debate 2018; 42(1):38-51., o que recrudesce fatores restritivos à atenção à saúde. Assim, os obstáculos na práxispara operacionalizar a integração entre APS e vigilância em saúde nos territórios por si só já constituem um dilema, que precisa ser problematizado amplamente, não apenas em período pandêmico.

Este estudo compreendeu a análise da lógica da atenção e vigilância da COVID-19 na APS em três municípios do Nordeste brasileiro para atender às novas demandas no cenário pandêmico. Cabe ressaltar que uma possível limitação do estudo se refere à abordagem metodológica utilizada, que permite inferências literais e teóricas, mas não permite generalização dos achados. A despeito de tal limitação, este trabalho procura lançar mais um debate sobre o tema no contexto brasileiro, principalmente no que diz respeito à perspectiva de integração das ações de APS e vigilância em saúde frente à pandemia, que ao ser relatada de modo abrangente e contextualizado apresenta potencial para suscitar reflexões em outros cenários.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2022
  • Aceito
    25 Jan 2023
  • Publicado
    27 Jan 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br