Resumo
Análise da gestão estadual da atenção primária à saúde (APS) em resposta à pandemia de COVID-19 na Bahia. Estudo de caso de natureza qualitativa mediante entrevistas com gestores e documentos normativos analisados segundo as categorias de projeto e capacidade de governo. Proposições estaduais de APS foram debatidas na Comissão Intergestores Bipartite e no Comitê Operacional de Emergência em Saúde Pública. O conteúdo propositivo do projeto da APS concentrou-se na definição de ações específicas de gestão da crise sanitária junto aos municípios. O apoio institucional do estado aos municípios modulou as relações interfederativas e foi determinante na elaboração dos planos municipais de contingência, da capacitação das equipes, produção e difusão de normas técnicas. A capacidade do governo estadual foi condicionada pelo grau de autonomia municipal e disponibilidade de referências técnicas estaduais nas regiões. O estado fortaleceu parcerias institucionais para interlocução com gestores municipais, mas não foram identificados mecanismos de articulação com o nível federal e o controle social. Este estudo contribui para a análise do papel dos estados na formulação e implementação de ações de APS mediadas por relações interfederativas em contextos de emergência em saúde pública.
Palavras-chave:
Federalismo; Governo estadual; Atenção primária à saúde COVID-19
Introdução
Em sistemas universais de saúde cuja gestão está sustentada em arranjos interfederativos para a formulação e implementação de políticas de saúde, o enfrentamento da COVID-19 tem sido condicionado pela cooperação entre esferas subnacionais11 Carvalho ALB, Rocha E, Sampaio RF, Ouverney ALM. Os governos estaduais no enfrentamento da COVID-19: um novo protagonismo no federalismo brasileiro? Saude Debate 2022; 46(1):62-77.
2 Downey DC, Myers WM. Federalism, intergovernamental relatioships, and emergency response: a comparison of Australia and the United States. Am Rev Public Adm 2020; 50(6-7):526-535.-33 Vampa D. COVID-19 and territorial policy dynamics in Western Europe: comparing France, Spain, Italy, Germany, and the United Kingdom. Publius 2021; 51(4):601-626.. Respostas adequadas e oportunas à crise sanitária provocada pela pandemia de COVID-19 requerem ações de fortalecimento dos sistemas de saúde e aumento da capacidade da gestão pública nas articulações intersetorial e intergovernamental e de compensação das desigualdades sóciossanitárias44 Pereira AMM, Machado CV, Veny MB AMY, Recio SN. Governança e capacidade estatal frente à COVID-19 na Alemanha e na Espanha: respostas nacionais e sistemas de saúde em perspectiva comparada. Cien Saude Colet 2021; 26(10):4425-4437.
5 Carvalho SR, Santos AR, Oliveira CF, Paschoalotte LM, Cunha GTC. Sistemas públicos universais de saúde e a experiência cubana em face da pandemia de COVID-19. Interface (Botucatu) 2021; 25:e210145.-66 Rocha R, Atun R, Massuda A, Rache B, Spinola P, Nunes L, Lago M, Castro MC. Effect of socioeconomic inequalities and vulnerabilities on health-system preparedness and response to COVID-19 in Brazil: a comprehensive analysis. Lancet Glob Health 2021; 9(6):e782-e792..
No âmbito internacional, países com gestões mais exitosas da pandemia combinaram respostas que envolveram o suporte social e investimentos no sistema de saúde com articulação de medidas de mitigação77 Machado CV, Pereira AMM, Freitas CM. As respostas dos países à pandemia em perspectiva comparada: semelhanças, diferenças, condicionantes e lições. In: Machado CV, Pereira AMM, Freitas CM, organizadores. Políticas e sistemas de saúde em tempos de pandemia: nove países, muitas lições [online]. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz/Editora Fiocruz; 2022. p. 323-342.. O maior envolvimento de governos centrais com esferas subnacionais propiciou respostas mais efetivas à crise sanitária88 Prado NMBL, Biscarde DGDS, Pinto Junior EP, Santos HLPCD, Mota SEC, Menezes ELC, Oliveira JS, Santos AMD. Primary care-based health surveillance actions in response to the COVID-19 pandemic: contributions to the debate. Cien Saude Colet 2021; 26(7):2843-2857.. Nos cenários de iniciativas tardias e omissão dos governos nacionais, a exemplo de México99 Bautista-González E, Werner-Sunderland J, Pérez-Duarte Mendiola P, Esquinca-Enríquez-de-la-Fuente CJ, Bautista-Reyes D, Maciel-Gutiérrez MF, Murguía-Arechiga I, Vindrola-Padros C, Urbina-Fuentes M. Health-care guidelines and policies during the COVID-19 pandemic in Mexico: a case of health-inequalities. Health Policy Open 2021; 2:100025. e Brasil1010 Freitas CM, Pereira AMM, Machado CV. A resposta do Brasil à pandemia de Covid-19 em um contexto de crise e desigualdades. In: Machado CV, Pereira AMM, Freitas CM, organizadores. Políticas e sistemas de saúde em tempos de pandemia: nove países, muitas lições [online]. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz/Editora Fiocruz; 2022. p. 295-322., as ações foram fragmentadas e dificultaram o controle da pandemia.
No Brasil, a posição deliberada do governo federal contrária à ciência se caracterizou pela negação da crise sanitária. A esse fato, associou-se a crise federativa, produto do modelo atual adotado pela União de redução do apoio aos entes subnacionais e consequente acirramento do conflito com governos estaduais e municipais1111 Abrucio FL, Grin EJ, Franzese C, Segatto CI, Couto CG. Combate à COVID-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev Adm Publica 2022; 54(4):663-677.. Tais elementos confluíram para a desresponsabilização federal na resposta à pandemia1212 Caponi S. COVID-19 no Brasil: entre o negacionismo e a razão neoliberal. Estud Av 2020; 34(99):209-224.,1313 Grin EJ. The perfect COVID-19 storm in Brazil. MARLAS 2020; 4(1):31-35., colaborando para a ausência de um padrão das ações de prevenção e controle da COVID-19.
A descoordenação nacional impôs a necessidade de maior cooperação entre estados e municípios na tentativa de assegurar ações sinérgicas e oportunas1111 Abrucio FL, Grin EJ, Franzese C, Segatto CI, Couto CG. Combate à COVID-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev Adm Publica 2022; 54(4):663-677.
12 Caponi S. COVID-19 no Brasil: entre o negacionismo e a razão neoliberal. Estud Av 2020; 34(99):209-224.-1313 Grin EJ. The perfect COVID-19 storm in Brazil. MARLAS 2020; 4(1):31-35.. Nos sistemas descentralizados de saúde, como o brasileiro, tem-se a complexa combinação de múltiplos entes subnacionais para a gestão de crises sanitárias com a complexidade da COVID-191111 Abrucio FL, Grin EJ, Franzese C, Segatto CI, Couto CG. Combate à COVID-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev Adm Publica 2022; 54(4):663-677.. Diante desse cenário, torna-se mais desafiador44 Pereira AMM, Machado CV, Veny MB AMY, Recio SN. Governança e capacidade estatal frente à COVID-19 na Alemanha e na Espanha: respostas nacionais e sistemas de saúde em perspectiva comparada. Cien Saude Colet 2021; 26(10):4425-4437. para a gestão estadual coordenar respostas em cooperação com gestores municipais.
Além disso, vale ressaltar o apagamento histórico do papel dos estados na gestão do SUS dada a ênfase na municipalização da saúde enquanto estratégia de descentralização do sistema1414 Viana ALD'Ávila, Lima LD. O processo de regionalização na saúde: contextos, condicionantes e papel das Comissões Intergestores Bipartite. In: Vianna ALD, Lima LD, Vieira CM. Regionalização e relações federativas na política de saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. p. 11-26., o que pode ter modulado a ação das secretarias estaduais de saúde (SES) na gestão da pandemia. Isso pode ter contribuído para a criação de novos desenhos de articulação interfederativa, sejam verticais, entre estados e municípios, como horizontais, entre estados ou entre municípios da mesma região ou de outra, mas que não se desvinculam de obstáculos já existentes quanto às desigualdades territoriais de vulnerabilidade social para a COVID-19 e de acesso aos serviços de saúde.
Nesse sentido, reforça-se o papel estratégico das SES no planejamento e na gestão de ações e serviços de saúde1515 Mota HCN, Silva AP. APS no enfrentamento da COVID-19 no Rio Grande do Norte. Rev Dialogos 2022; 1(1):46-68.,1616 Nunes CA, Pereira RAG, Vilasbôas ALQ, Prado NMBL, Ribeiro AMVB, Rodrigues FF. O lugar da atenção primária à saúde nos planos de contingência estaduais para o enfrentamento da pandemia de COVID-19. Boletim Observa COVID 2022; 15(3):1-5.. Na atenção primária à saúde (APS), iniciativas de outros países revelaram estratégias de gestão intergovernamental entre esferas nacionais e autoridades sanitárias regionais para definição de critérios de monitoramento dos territórios quanto ao risco de transmissão do Sars-Cov-2 e de sistemas de vigilância integrados à APS88 Prado NMBL, Biscarde DGDS, Pinto Junior EP, Santos HLPCD, Mota SEC, Menezes ELC, Oliveira JS, Santos AMD. Primary care-based health surveillance actions in response to the COVID-19 pandemic: contributions to the debate. Cien Saude Colet 2021; 26(7):2843-2857..
No Brasil, há escassez de evidências sobre a gestão estadual de serviços primários em resposta à crise sanitária provocada pela pandemia de COVID-19. A análise dos planos de contingência dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal no primeiro ano da pandemia revelou a incipiência de proposições para a APS em uma grande parcela desses documentos1616 Nunes CA, Pereira RAG, Vilasbôas ALQ, Prado NMBL, Ribeiro AMVB, Rodrigues FF. O lugar da atenção primária à saúde nos planos de contingência estaduais para o enfrentamento da pandemia de COVID-19. Boletim Observa COVID 2022; 15(3):1-5..
Assim, este estudo teve como objetivo analisar a gestão estadual da APS em resposta à pandemia de COVID-19 na Bahia de janeiro de 2020 a agosto de 2021, de modo a contribuir para a análise do papel das SES em sua capacidade de formulação e gestão de ações centradas na APS junto aos territórios municipais.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que adotou como estratégia de investigação o estudo de caso, cuja unidade de análise foi a gestão estadual da APS em resposta à pandemia de COVID-19 na Bahia. Neste artigo, analisaram-se as variáveis “projeto de governo” e “capacidade de governo”, componentes do triângulo de governo, constructo elaborado por Carlos Matus1717 Matus C. Política, planejamento e governo. Brasília: Ipea; 1993..
O estudo tomou como cenário investigativo a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab). O estado está dividido em nove macrorregiões e 28 regiões de saúde, onde estão distribuídos os 417 municípios. A gestão regional da Sesab é desconcentrada em nove Núcleos Regionais de Saúde (NRS), que reúnem suas Bases Regionais de Saúde (BRS) e respectivas Comissões Intergestores Regionais (CIR)1818 Bahia. Decreto nº 16.075, 14 de maio de 2015. Define o âmbito de atuação territorial dos Núcleos Regionais de Saúde, instituídos pela Lei nº 13.204, de 11 de dezembro de 2014, e dá outras providências. Diário Oficial do Estado da Bahia 2015; 15 maio..
A Política Estadual da Atenção Básica da Bahia (PEAB), instituída por decreto do governador em 20131919 Bahia. Decreto nº 14.457 de 3 de maio de 2013. Aprova a Política Estadual de Atenção Básica. Diário Oficial do Estado da Bahia 2013; 4-5 maio., está sob gestão da Diretoria de Atenção Básica (DAB). A educação permanente e a integração entre atenção básica e vigilância à saúde são consideradas ações estratégicas de qualificação da atenção básica desenvolvidas pela DAB em conformidade com a PEAB. O Telessaúde Bahia, estrutura da Fundação Estatal Saúde da Família subordinada à DAB, operacionaliza ações de educação permanente dos profissionais de atenção básica dos municípios. O apoio institucional é um dos eixos da implementação da PEAB, e a DAB organiza seu processo de trabalho em nove equipes de apoiadores institucionais que oferecem suporte técnico e acompanham, com a mediação dos NRS, os 417 municípios.
Até 2020, a Bahia dispunha de 3.695 Unidades Básicas de Saúde, uma cobertura de atenção básica de 84,34% e da Estratégia de Saúde da Família de 77,54%, sendo todas as equipes cofinanciadas com recursos estaduais2020 Bahia. Secretaria da Saúde do Estado da Bahia. Cobertura populacional estimada pelas Equipes de Atenção Básica. Caderno de Avaliação e Monitoramento da Atenção Básica - CAMAB [Internet]. 2020. [acessado 2022 jun 16]. Disponível em: http://www.saude.ba.gov.br/atencao-a-saude/dab/camab/
http://www.saude.ba.gov.br/atencao-a-sau... . O primeiro caso de COVID-19 no estado foi confirmado em 6 de março de 2020, e até o dia 10 de junho de 2021 havia 1.053.031 casos confirmados, 1.016.780 casos recuperados e 22.195 óbitos pela doença2121 Bahia. Secretaria de Saúde. Boletim epidemiológico COVID-19 Bahia nº 473 [Internet]. [acessado 2021 jun 10]. Disponível em: http://www.saude.ba.gov.br/temasdesaude/coronavirus/boletins-epidemiologicos-COVID-19/
http://www.saude.ba.gov.br/temasdesaude/... . Durante a pandemia, a Sesab instituiu o Comitê Operacional de Emergência em Saúde Pública (COES), responsável pela articulação de atores envolvidos no desenho de respostas estaduais à pandemia, sendo a Comissão Intergestores Bipartite (CIB) o espaço decisório responsável pela homologação de tais proposições.
A produção do material empírico da pesquisa combinou análise documental e entrevistas semiestruturadas com informantes-chave. Analisaram-se três edições do Plano Estadual de Contingência para Enfrentamento do Sars-Cov-2 (PEC), a primeira edição de Plano Estadual de Vacinação contra COVID-19 (PEV), 184 resoluções da CIB e outros documentos de interesse, disponíveis no site da Sesab, publicados entre janeiro de 2020 e agosto de 2021. Foram feitas 44 entrevistas guiadas por um roteiro que abordou questões relativas ao planejamento e à gestão estadual da APS na pandemia, com equipe técnica e dirigentes vinculados à Atenção Básica, Vigilância Epidemiológica e COES da Sesab e de três municípios selecionados por conveniência, entre 28 de novembro de 2020 e 12 de abril de 2021. No caso dos municípios, foram selecionados os excertos das entrevistas que tratavam das relações com a Sesab para o enfrentamento da pandemia.
A análise dos dados foi realizada nas seguintes etapas: a primeira relativa ao processamento e análise lexical pelo Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRAMUTEQ), versão 0.7 alpha 2. Nessa etapa, organizou-se a transcrição das entrevistas na íntegra; leitura exaustiva para apropriação do discurso de entrevistados; pré-codificação segundo dimensões do roteiro de entrevista; e disposição dos dados em único corpus textual. Na segunda etapa, analisou-se o corpus textual pela classificação hierárquica descendente (método de Reinert), agrupando-se novas classes temáticas mediante o teste do qui-quadrado (chi2) para medir a associação entre as palavras e suas classes (análise de similitude), confirmada quando o valor do qui-quadrado era superior a 3,84 e o valor inferior a 5% (p < 0,05).
Em seguida, procedeu-se à análise de discurso de Bardin para interpretação de sentido das palavras dos entrevistados, recuperando-se os segmentos de texto onde tais palavras apareciam, e o léxico mais frequente passou a fazer sentido em relação ao contexto da discussão. Posteriormente, esse material foi cotejado com a análise documental e confrontado com as categorias que conformam o plano analítico do estudo (Quadro 1), a saber: “projeto de governo”, relativa ao processo decisório, seus atores e conteúdo das propostas estaduais de APS para enfrentamento da pandemia de COVID-19, e “capacidade de governo”, correspondente a mecanismos, instrumentos, formas de articulação e condicionantes da capacidade de gestão da DAB que modularam as relações do estado com outras esferas administrativas em resposta à pandemia.
O estudo é parte da pesquisa “Análise de modelos e estratégias de vigilância em saúde da pandemia do COVID-19 (2020-2022)”, financiada pela Chamada MCTIC/CNPq/FNDCT/MS/SCTIE/Decit nº 07/2020, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, parecer 4.420.126, de 25 de novembro de 2020.
Resultados
Compuseram o corpus de análise dos dados 88 textos das entrevistas, e a análise estatística textual clássica obteve 19.618 ocorrências, 2.481 formas e 1.315 hapax (palavras que aparecem apenas uma vez). Na análise de similitude, observou-se a interconexão entre as palavras, considerando o índice de coocorrências que podem ser mais fortes ou mais fracos, a depender da espessura das linhas (teste chi2). Desse modo, identificaram-se conteúdos temáticos a partir do elemento lexical central “pandemia” e suas distintas conexões, com destaque para as relações mais fortes com os termos: APS, município, estado.
Atores e espaços envolvidos no processo de formulação do projeto de governo estadual em resposta da APS à pandemia
A DAB foi o ator principal da formulação do projeto de governo estadual para a APS na pandemia. Outros atores partícipes foram as estruturas da Vigilância Epidemiológica da Sesab e o Conselho Estadual de Secretarias Municipais de Saúde da Bahia (COSEMS). Propostas estaduais de APS foram debatidas e pactuadas entre a Sesab e o COSEMS na CIB, principal espaço homologatório das estratégias de gestão estadual da crise sanitária, no qual o diretor da DAB tinha assento.
Outro espaço institucional de decisão mencionado pelos gestores foi o COES, em que a DAB era convidada a participar, visto que não era integrante do Comitê. Neste espaço, as proposições foram traduzidas em notas técnicas emitidas como recomendações aos serviços de saúde. Segundo relatos, houve a elaboração de documentos técnicos mediante colaboração entre DAB, Vigilância Epidemiológica e COSEMS, debatidos com gestores municipais nos Colegiados de Coordenadores de Atenção Básica (COCAB) das regiões de saúde.
Elaboramos conjuntamente, porque essa ação optamos que fosse coordenada pela DAB e deve ser coordenada por eles, e elaboramos conjuntamente algumas Notas Técnicas (NT). Tivemos algumas reuniões com o COSEMS, inclusive, e com os profissionais da APS para discutir notas (EGE9).
Conteúdo propositivo das decisões estaduais dirigidas à APS no enfrentamento da pandemia
No período do estudo, vale destacar que, segundo entrevistados e análise das resoluções da CIB, o tema central das reuniões dessa comissão sobre o enfrentamento da pandemia foi a distribuição de leitos clínicos e de UTI nas regiões de saúde, a fim de assegurar o cuidado aos casos moderados e graves de COVID-19 diante da deficiência crônica de leitos hospitalares, especialmente no interior do estado. Outro tema relevante que surgiu no primeiro semestre de 2021 foi a distribuição, entre os municípios, das doses de vacina para os grupos prioritários definidos no Plano Nacional de Operacionalização, em meio a um cenário de escassez dos imunizantes e descoordenação nacional.
Foi simbólico, uma certa vez, um técnico que trabalhava dando suporte para acontecer as reuniões da CIB, disse assim, a reunião dos leitos já vai começar (EGE11).
O levantamento documental permitiu identificar o conteúdo propositivo das decisões estaduais sobre a resposta da APS à pandemia em duas edições do PEC e no Plano de Vacinação aprovados pela CIB, além de duas resoluções específicas exaradas por essa comissão (Quadro 2). Documentos técnicos também revelaram decisões da gestão quanto às condutas a serem observadas pelos profissionais de APS na atenção e vigilância da COVID-19.
Os entrevistados referiram a produção de várias Notas Técnicas. No entanto, no site da Sesab foram localizados apenas um Protocolo Operacional Padrão (POP) emitido pela DAB em março de 2020 e o documento denominado “Estratégias de flexibilização das medidas de distanciamento social”, datado de julho de 2020, de autoria da Vigilância Estadual. Na sequência, será apresentada uma sistematização do conteúdo propositivo em ordem de relevância: edições do PEC, Plano de Vacinação, resoluções CIB específicas sobre APS e documentos técnico-operacionais.
A primeira edição do PEC, de fevereiro de 2020, não apresentou detalhamento sobre o papel da APS no enfrentamento da pandemia. A segunda edição, publicada em março e atualizada em junho de 2020, definiu um eixo específico de APS cujas ações destacam o papel do estado na orientação do trabalho dos profissionais na atenção e vigilância da COVID-19, na identificação de estratégias para aquisição e uso racional de insumos e EPI e na oferta do apoio do telessaúde às demandas do enfrentamento da pandemia. O PEC explicita a APS como uma das possíveis portas de entrada aos casos suspeitos, mas não incluiu as unidades básicas na modelagem da rede assistencial para o enfrentamento da pandemia, estruturada em Centros de Atendimento, Pronto Atendimento Exclusivo, Unidade de Referência e de Retaguarda COVID-19.Em junho de 2021, foi publicada a terceira edição do Plano2222 Bahia. Secretaria de Saúde do Estado da Bahia. Plano Estadual de Contingências para Enfrentamento do Novo Coronavírus - SARS-CoV-2 [Internet]. 2021. [acessado 2021 jul 7] Disponível em: http://www.saude.ba.gov.br/wp-content/uploads/2021/07/Plano-estadual-de-contingencia-SARS-COV2_Com-Linhas.pdf
http://www.saude.ba.gov.br/wp-content/up... , sem modificação da modelagem da rede assistencial, mas é declarado o papel da APS no enfrentamento da pandemia, em consonância com a Política Estadual de Atenção Básica, a saber:
A Atenção Primária à Saúde é a porta de entrada preferencial do Sistema Único de Saúde, tendo, durante surtos e epidemias, papel fundamental na resposta à doença em questão. Oferece atendimento resolutivo, além de manter a longitudinalidade e a coordenação do cuidado em todos os níveis de atenção à saúde, com grande potencial de identificação precoce de casos graves que devem ser manejados em serviços especializados2222 Bahia. Secretaria de Saúde do Estado da Bahia. Plano Estadual de Contingências para Enfrentamento do Novo Coronavírus - SARS-CoV-2 [Internet]. 2021. [acessado 2021 jul 7] Disponível em: http://www.saude.ba.gov.br/wp-content/uploads/2021/07/Plano-estadual-de-contingencia-SARS-COV2_Com-Linhas.pdf
http://www.saude.ba.gov.br/wp-content/up... (p. 11).
Nessa edição, aprimora-se o conteúdo do eixo da APS quanto ao escopo das ações direcionadas aos municípios na organização da resposta em relação à oferta de suporte técnico, normativo e de ações de educação permanente sobre COVID-19 na APS. Havia proposições específicas para produção de informações sobre capacidade instalada de unidades básicas que atendiam a casos suspeitos, monitoramento de ações executadas pelo nível local e estímulo aos municípios para o preenchimento da Ficha B - Síndrome Gripal. O papel do ACS na pandemia, nesse documento, foi mencionado para atendimento às demandas provocadas pelo retorno às aulas nos territórios.
Ainda que apoiar tecnicamente os municípios na qualificação da APS fosse um dos objetivos específicos dos PEC, as proposições se restringiram ao suporte a ações específicas de enfrentamento da pandemia e não trataram do papel estadual para assegurar condições necessárias para seu fortalecimento na coordenação do cuidado e no ordenamento das redes de atenção de modo abrangente.
No início de 2021, foi publicado o PEV da Bahia com sucessivas atualizações em decorrência da ampliação dos grupos prioritários. A definição da estratégia mais adequada para a vacinação contra COVID-19 foi uma atribuição conjunta de estado e municípios. Há clara indicação das salas de vacinação das unidades de saúde como local de oferta dos imunizantes, o que reitera a relevância da APS no enfrentamento da pandemia. O documento também apresentou recomendações para organização do fluxo de circulação do público-alvo nesses serviços, buscando evitar aglomerações.
Alguns aspectos específicos da APS no enfrentamento da COVID-19 foram tratados em reuniões da CIB, com as seguintes pautas: padronização de EPI, solicitação do COSEMS sobre o fluxo de casos de síndrome respiratória aguda grave na atenção básica, curso para identificação e cuidado precoce da COVID-19, uso da Ficha B - Síndrome Gripal como estratégia de busca ativa de casos, e uso de tecnologias de informação e comunicação (TIC) por via remota para o cuidado da APS de modo geral.
Entre esses temas, apenas dois deles foram objeto de resolução da CIB, em julho de 2020, em meio a 184 resoluções sobre a pandemia exaradas entre março de 2020 e agosto de 2021. A Resolução 107/2020 aprovou o Programa de Telecompartilhamento da Saúde com a Atenção Básica do Estado da Bahia, em que se propunha utilizar TIC a distância para a retomada, ampliação e fortalecimento do cuidado em APS nos municípios. A Resolução 112/2020 tratou da organização da atenção básica no acompanhamento e monitoramento dos casos, com a aprovação do fluxo de acompanhamento e o envio do consolidado municipal semanalmente, mediante implantação da Ficha B de registro dos casos de síndrome gripal.
O POP sobre o fluxo de atendimento de casos suspeitos de COVID-19 para profissionais das unidades básicas de saúde foi a primeira orientação técnica sobre as ações de APS emitida em março de 2020. Continha instruções sobre procedimentos clínicos e epidemiológicos, acionamento de transporte sanitário, medidas de biossegurança e prevenção populacional.
Quanto às recomendações para flexibilização das medidas de distanciamento social, publicadas em julho de 2020, destaca-se o papel da APS no fortalecimento da vigilância no território como parte da capacidade do sistema de saúde a ser considerada no retorno das atividades econômicas. Para melhorar a sensibilidade do sistema de vigilância, foi proposto o uso do aplicativo “Monitora Covid”, desenvolvido pelo Consórcio Nordeste, e a implantação da Ficha B de busca ativa dos casos, elaborada pela DAB.
Capacidade da gestão estadual para APS em resposta à pandemia de COVID-19
A articulação inicial do estado com gestores regionais e municipais teve como instrumento norteador um plano de trabalho que priorizou as macrorregiões com maior transmissão comunitária do Sars-Cov-2 e orientou o processo de elaboração dos planos de contingência municipais (PCM). O modelo de PCM desenhado pela DAB foi inspirado na versão do PEC, e os NRS e BRS foram estratégicos na articulação entre o estado e gestores locais no processo de planejamento municipal. A experiência prévia do apoio institucional da DAB junto aos territórios facilitou a atuação do estado para coordenar a elaboração dos PCM.
Sempre trabalhamos com essa questão de planejamento junto com o território, não apenas envolvendo município, mas também e principalmente as regionais de saúde [...], cada apoiador ficou lotado em determinada região, para poder estar fazendo atendimento tanto dos municípios quanto a própria regional. Fomos articulando... (EGE12).
Fizemos um modelo de plano de contingência municipal com o que era necessário que contivesse em cada um desses planos. Encaminhamos para as bases e a bases fizeram a oferta para os municípios para que eles pudessem fazer um plano mais real (EG12).
A gestão estadual das ações dirigidas à APS foi operacionalizada, principalmente, de forma remota, mediante ampliação de recursos de telessaúde para ofertar salas virtuais destinadas ao debate entre a DAB e representações regionais e locais no cenário de distanciamento social. Os debates envolveram a divulgação de recomendações científicas, oferta de cursos de curta duração e webpalestras para profissionais da APS e vigilância em saúde, com apoio dos COCAB neste processo. Outros mecanismos incluíram o uso de mensagens por WhatsApp, redes sociais e plataformas virtuais de telessaúde para divulgação das informações dirigidas aos gestores municipais de APS.
Como Núcleo de Telessáude, antes de iniciar a pandemia, ampliamos o escopo de tecnologia que tínhamos. Buscamos conseguir salas a mais virtuais para que pudesse dar conta das webreuniões diante da necessidade de se fazer orientação dos municípios à distância (EGE3).
Apesar dos mecanismos de articulação estadual-municipal apresentados, a capacidade institucional da Sesab foi assimétrica. Primeiro porque os gestores estaduais não conseguiram instituir discussões e monitoramento da implementação dos PCM em todos os municípios baianos. A relação da DAB com coordenadores de APS e vigilância foi relativa ao grau de organização e autonomia das SMS, revelando que nos territórios de secretariais municipais com maior capacidade técnica e administrativa pode ter havido menor dependência do nível central estadual e, consequentemente, menor aderência às ações propostas.
Têm coordenadores da APS que eles têm um processo de trabalho um pouco mais independente e conseguem fazer essa articulação com outros que tem uma certa dificuldade. Por exemplo, Salvador tem uma estrutura organizacional mais estruturada, então esse apoio mais direto eles não demandam (EGE13).
Segundo porque a insuficiência de referências técnicas para a APS em alguns Núcleos e BRS comprometeu a disposição territorial de técnicos com expertise para apoiar as ações estaduais. Além disso, em algumas regiões de saúde, os técnicos da DAB tinham relações mais consolidadas, e em outras, mais incipientes.
Tem base que não tem ninguém de referência para a APS e tem pra vigilância, mas não tem pra APS. Tem bases que têm um profissional que acumula todas as seções e que o erro na verdade está em ter um, mas que ele faz toda a vigilância e ainda faz APS, entendeu? (EGE12).
Depende das relações interpessoais com os técnicos. Temos relações mais fortalecidas em algumas bases e em alguns núcleos nós temos mais dificuldades (EGE13).
A DAB fortaleceu a parceria com o COSEMS destinada à interlocução com gestores municipais, principalmente em agendas conflitivas de pactuação envolvendo a distribuição de EPI e insumos encaminhados pelo Ministério da Saúde. Contudo, não foram identificados mecanismos de articulação entre o âmbito estadual com o nível federal e o controle social. O cenário de descoordenação nacional foi mencionado pelos entrevistados, que reconheceram o apoio do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) em substituição ao papel que deveria ser desempenhado pelo governo federal.
O COSEMS foi um parceiro. A DAB fez toda uma organização para estar distribuindo o que o MS garantiu. Inicialmente, pela dificuldade mesmo de compra. Nem o município conseguia comprar, nem o estado. O que foi disponibilizado pelo MS, a DAB teve esse papel de uma forma articulada junto com o COSEMS numa planilha conjunta, inclusive foi algo que foi pactuado (EGE13).
Nossos interlocutores passaram a ser o CONASS e o CONASEMS, que assumiram o papel que era do MS fazendo articulação com fundações, captando recursos para os estados. Foi uma coisa muito complicada. Não tinha um direcionamento a não ser a partir de Notas Técnicas, e muitas surgiram depois que já havíamos publicado a NT estadual (EGE3).
Não tivemos uma articulação maior em relação a isso. Já falamos assim, esses espaços de trazer mais a sociedade civil para as discussões... esses espaços estão mais fragilizados. Infelizmente, essa também é uma articulação que precisa ser fortalecida (EGE11).
Discussão
Na CIB, foi tímida a visibilidade da APS nas pautas sobre a pandemia, em contraponto à ênfase dos debates e das resoluções sobre atenção hospitalar. Essas evidências indicam a centralidade do modelo hospitalocêntrico no enfrentamento da pandemia, lógica predominante no Brasil e em outras experiências internacionais2323 Giovanella L, Vega R, Tejerina-Silva H, Acosta-Ramirez N, Parada-Lezcano M, Rios G, Iturrieta D, Almeida PF, Feo O. ¿Es la atención primaria de salud integral parte de la respuesta a la pandemia de COVID-19 en Latinoamérica? Trab Educ Saude 2021; 19:e00310142.,2424 Barro K, Malone A, Mokede , Chevance C. Gestion de l'épidémie de la COVID-19 par les établissements publics de santé - analyse de la Fédération hospitalière de France. J Chir Visc 2020; 157(3):S20-S24..
Tornar a APS coordenadora do cuidado e ordenadora da rede de atenção, dado o modelo hegemônico hospitalocêntrico, é uma proposta radical de mudança da organização do SUS, um projeto de governo audacioso. A direcionalidade do projeto condiciona e é condicionada pela capacidade de governo de um ator social1717 Matus C. Política, planejamento e governo. Brasília: Ipea; 1993.. Projetos que significam mudanças substantivas no trabalho de uma organização lhe exigirão mais capacidade de governo. Em que medida o apoio institucional oferecido pela DAB às coordenações municipais de APS era suficiente diante da complexidade da mudança requerida? Essa é uma questão a ser respondida em estudos posteriores.
O espaço da CIB se destacou como estratégico na tomada de decisão e regulamentação das ações de enfrentamento à pandemia, em acordo com o papel institucional desse colegiado na implementação de políticas do âmbito estadual. A ação da CIB na resposta à pandemia, como espaço responsável pela produção das regulamentações de ações para a COVID-19, também foi uma evidência encontrada em outros estados2525 Fernández M, Souza SR, Ferreira RC. As relações intergovernamentais durante a pandemia da COVID-19 no Brasil: uma análise da atuação dos estados. Reflexión Política 2021; 23(48):98-109..
A gestão da pandemia poderia ser uma oportunidade para criação de condições necessárias ao fortalecimento da APS na Bahia, considerando a capacidade de governo que a DAB acumulou por sua trajetória de apoio institucional junto às gestões municipais. Entretanto, vale destacar os constrangimentos institucionais provocados pela precária cooperação entre Sesab e Ministério da Saúde, assim como os desmontes da APS de base territorial e a orientação comunitária já em curso, derivados da revisão da Política Nacional de Atenção Básica desde 20172626 Morosini, MVGC, Fonseca AF, Lima LD. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saude Debate 2018; 42(116):11-24., tudo isso comprometeu uma resposta sustentada na APS como coordenadora do cuidado e ordenadora da rede.
A capacidade de governo trata do domínio de técnicas, métodos e habilidades necessários para os atores conduzirem processos teóricos, metodológicos e técnicos de governo1717 Matus C. Política, planejamento e governo. Brasília: Ipea; 1993.. Evidenciou-se que a capacidade de governo estadual foi maior em estratégias de maior expertise da gestão central, a exemplo do manejo das TIC e da cooperação com os níveis regional/municipal.
Por outro lado, a capacidade de gestão estadual na pandemia foi heterogênea no âmbito regional, o que condicionou o apoio e monitoramento das ações municipais e se relaciona com a lógica de recentralização da gestão regional no estado da Bahia, implementada a partir de 2015, quando houve extinção das diretorias regionais e a criação dos NRS e BRS, muitos deles sem estrutura de pessoal necessária para desempenhar as funções requeridas junto aos municípios.
Outro condicionante da capacidade de gestão estadual foi o grau de autonomia das SMS. Estudos indicam que municípios de maior porte dispõem de mais autonomia na implementação de políticas de saúde, pela maior estruturação de suas secretarias, o que implica menor dependência do governo estadual2727 Tasca R, Carrera MBM, Malik AM, Schiesari LMC, Bigoni E, Costa CF, Massuda A. Gerenciando o SUS no nível municipal ante a COVID-19: uma análise preliminar. Saude Debate 2022; 46(1):15-32.. Esse cenário, que combina autonomia e interdependência entre os entes subnacionais, evidencia desafios históricos da gestão regional do SUS2828 Carvalho ALB, Jesus WLA, Senra IMVB. Regionalização no SUS: processo de implementação, desafios e perspectivas na visão crítica de gestores do sistema. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1155-1164..
Cabe destacar que ações de APS na pandemia são respostas predominantemente implementadas pelo nível municipal2525 Fernández M, Souza SR, Ferreira RC. As relações intergovernamentais durante a pandemia da COVID-19 no Brasil: uma análise da atuação dos estados. Reflexión Política 2021; 23(48):98-109., mas deve-se ressaltar que a autonomia relativa dos gestores, numa lógica municipalista aliada ao apagamento do papel estadual1414 Viana ALD'Ávila, Lima LD. O processo de regionalização na saúde: contextos, condicionantes e papel das Comissões Intergestores Bipartite. In: Vianna ALD, Lima LD, Vieira CM. Regionalização e relações federativas na política de saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. p. 11-26., pode colaborar para um forte viés local, em detrimento de respostas regionalizadas2929 Aikes S, Rizzoto MLF. Integração regional em cidades gêmeas do Paraná, Brasil, no âmbito da saúde. Cad Saude Publica 2018; 34(8):e00182117.,3030 Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG. Quem governa e como se governam as regiões e redes de atenção à saúde no Brasil? Contribuições para o estudo da governança regional na saúde. Novos Caminhos 2017; 8:1-13.. Tratando-se da complexidade da pandemia de COVID-19, isso pode limitar efeitos sinérgicos da resposta de cada esfera local no território regional3131 Lima L, Pereira AMM, Machado CV. Crise, condicionantes e desafios de coordenação do Estado federativo brasileiro no contexto da COVID-19. Cad Saude Publica 2020; 36(7):e00185220..
As evidências deste estudo ratificaram a multiplicidade de atores necessários para construir a viabilidade das proposições estaduais para a APS, o que se coaduna com as proposições de Matus1717 Matus C. Política, planejamento e governo. Brasília: Ipea; 1993. a respeito da construção de capacidade institucional para governar enquanto processo que envolve múltiplos atores sociais. A participação de diferentes atores e espaços de gestão na resposta estadual à pandemia de COVID-19 demonstrou a necessidade de articulação entre atores dos níveis estadual, regional e municipal.
A construção da capacidade de governo requer a ampliação da competência institucional para a implantação de um projeto1717 Matus C. Política, planejamento e governo. Brasília: Ipea; 1993.. No cenário estudado, a expertise acumulada da Bahia no manejo da telessaúde permitiu que esta estratégia fosse incorporada oportunamente às ações de gestão para ampliar a capilaridade institucional da DAB em cooperação com municípios, reconfigurando o escopo das TIC para além da capacitação profissional de equipes de APS e do matriciamento da atenção especializada à atenção básica. Esse achado difere de experiências nacionais3232 Caetano R, Silva AB, Guedes ACCM, Paiva CCN, Ribeiro GR, Santos DL, et al. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela COVID-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cad Saude Publica 2020; 36(5):e00088920. e internacionais3333 Mahmoud K, Jaramillo C, Barteit S. Telemedicine in low- and middle-income countries during the covid-19 pandemic: a scoping review. Front Public Health 2022; 22(10):914423. de uso das TIC, comumente vinculadas ao cuidado de usuários no contexto da COVID-19.
Por fim, o ato de governar envolve uma diversidade de projetos em disputa e pode refletir interesses divergentes entre os atores sociais1717 Matus C. Política, planejamento e governo. Brasília: Ipea; 1993.. Neste estudo, constatou-se uma articulação estadual-federal incipiente, que pode ser explicada por evidências nacionais sobre a disputa de projetos políticos distintos quanto às medidas de enfrentamento à COVID-19, que revelaram a competição e a judicialização das relações federativas1010 Freitas CM, Pereira AMM, Machado CV. A resposta do Brasil à pandemia de Covid-19 em um contexto de crise e desigualdades. In: Machado CV, Pereira AMM, Freitas CM, organizadores. Políticas e sistemas de saúde em tempos de pandemia: nove países, muitas lições [online]. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz/Editora Fiocruz; 2022. p. 295-322.,3030 Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG. Quem governa e como se governam as regiões e redes de atenção à saúde no Brasil? Contribuições para o estudo da governança regional na saúde. Novos Caminhos 2017; 8:1-13.. Esse cenário se afasta de experiências internacionais que obtiveram melhores respostas à pandemia, evidenciadas pela maior capacidade de articulação intergovernamental77 Machado CV, Pereira AMM, Freitas CM. As respostas dos países à pandemia em perspectiva comparada: semelhanças, diferenças, condicionantes e lições. In: Machado CV, Pereira AMM, Freitas CM, organizadores. Políticas e sistemas de saúde em tempos de pandemia: nove países, muitas lições [online]. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz/Editora Fiocruz; 2022. p. 323-342..
Ao considerar a situação de transmissão comunitária da COVID-19, torna-se necessária a priorização do papel dos cuidados primários de saúde nas ações de prevenção e controle de crises sanitárias dessa natureza. Os projetos centrados na APS de base territorial, orientação comunitária, abrangente e resolutiva requerem viabilidade técnico-operacional, financeira e política para sua operacionalização. Entretanto, a resposta à pandemia ocorreu num cenário de enfraquecimento da Estratégia Saúde da Família (ESF) enquanto modelo prioritário de organização da APS no Brasil.
Os achados deste estudo reforçam o papel das SES na coordenação da gestão da APS e a relevância de iniciativas de apoio institucional e educação permanente para mediar a cooperação interfederativa entre estados e municípios, com vistas a aumentar a capacidade local de enfrentamento de crises sanitárias. Vale salientar a necessidade de reduzir assimetrias de gestão das SES entre as regiões de saúde, de modo a produzir ações sinérgicas em territórios desiguais, mas interdependentes.
Em suma, a gestão estadual das ações de APS no curso de uma pandemia como a de COVID-19 requer a confluência de projetos e uma ação coordenada entre as três esferas de governo; a criação de espaços decisórios emergenciais, com a inclusão das diretorias estaduais de atenção básica como membros efetivos; a cooperação entre estados e municípios nos espaços intergestores regionais; a suficiência de referências técnicas regionais em APS para apoiar as ações implementadas no âmbito municipal; a ampliação de tecnologias de comunicação para articulação interfederativa no distanciamento social e um maior apoio aos municípios com baixa capacidade técnica e administrativa.
Entre as limitações do estudo, destacam-se a não inclusão de informantes-chave do nível federal, regional e de municípios de porte diferenciado, o que não permitiu confrontar informações segundo a percepção de outros atores que também compõem o cenário de implementação de resposta à pandemia. Recomenda-se a realização de estudos futuros que permitam elucidar quais condições são necessárias para tornar a APS coordenadora do cuidado e ordenadora da rede de atenção, em um cenário de “guerra” imposto por crises sanitárias com a magnitude e a complexidade da pandemia de COVID-19.
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Financiamento
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Chamada MCTIC/CNPq/FNDCT/MS/SCTIE/Decit nº 07/202.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
12 Maio 2023 - Data do Fascículo
Maio 2023
Histórico
- Recebido
08 Ago 2022 - Aceito
08 Nov 2022 - Publicado
10 Nov 2022