Resumo
Objetivo:
analisar ações de educação permanente em saúde nos Planos Nacional e Estaduais de Contingência para enfrentamento à pandemia de COVID-19 no Brasil.
Metodologia:
pesquisa documental, com utilização de 54 planos nas versões iniciais e finais, publicados entre janeiro de 2020 e maio de 2021. A análise do conteúdo contemplou identificação e sistematização das propostas voltadas para capacitação e reorganização do processo de trabalho e cuidados à saúde física e mental dos trabalhadores de saúde.
Resultados:
as ações voltaram-se à capacitação dos trabalhadores com ênfase em síndrome gripal, medidas de controle de riscos de infeção e conhecimento sobre biossegurança. Poucos planos abordaram jornadas e processo de trabalho das equipes, promoção e assistência à saúde mental dos trabalhadores principalmente no âmbito hospitalar.
Conclusão:
superficialidade nas abordagens das ações de educação permanente nos planos de contingência, necessidade de inclusão de ações na agenda estratégica do Ministério da Saúde e das secretarias estaduais e municipais de saúde com qualificação dos trabalhadores para enfrentar esta e outras epidemias. Propõe adoção de medidas de proteção e promoção da saúde no cotidiano da gestão do trabalho em saúde no âmbito do SUS.
Palavras-chave:
Coronavírus; Sistema Único de Saúde; Planos de contingência; Educação permanente em saúde; Planejamento em saúde
Introdução
A pandemia de COVID-19 constitui o maior desafio enfrentado pelos sistemas de saúde do mundo desde que surgiram os primeiros casos na China, em 2019¹. No Brasil, a epidemia se instalou nos primeiros meses de 2020, de modo que em março de 2020 foi decretada a situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), desencadeando-se o planejamento das estratégias de enfrentamento à pandemia nos âmbitos federal, estadual e municipal².
O Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Vigilância em Saúde, lançou o Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo Novo Coronavírus COVID-19, instrumento orientador das estratégias de preparação e resposta em três níveis, incluindo ações de detecção precoce, isolamento, vigilância epidemiológica, medidas de prevenção e controle e avaliação de impactos sanitários³.
Entre as ações planejadas, a educação permanente em saúde (EPS) se tornou estratégica, dada sua importância para adequação e melhoria do desempenho dos trabalhadores de saúde no enfrentamento da COVID-1933 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Brasília: MS; 2020.,44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? Brasília: MS; 2018.. De fato as ações de EPS potencializam a reflexão sobre o processo de trabalho, a gestão compartilhada e participativa e a identificação de mudanças necessárias às práticas, transformando as realidades locais em objeto de aprendizagem individual, coletiva e institucional44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? Brasília: MS; 2018..
O cenário pandêmico trouxe impactos para a prestação do cuidado, em consequência da necessidade de atuação imediata no controle e prevenção de uma doença, a princípio, com etiologia pouca conhecida. Nesse sentido, identificou-se nos estudos iniciais sobre a pandemia a preocupação com as intervenções educacionais para orientar procedimentos a serem adotados no sentido de evitar contaminação, como ação orientadora para o alinhamento dos processos de trabalho das equipes, tendo em vista as mudanças nos protocolos de funcionamento dos serviços de assistência à saúde55 Wang J, Zhou M, Liu F. Exploring the reasons for healthcare workers infected with novel coronavirus disease 2019 (COVID-19) in China. J Hosp Infect 2020; 105(1). DOI: 10.1016/j.jhin.2020.03.002.
https://doi.org/10.1016/j.jhin.2020.03.0... ,66 Pinto ICM, Paim MC. Educação e comunicação para profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia: estratégias e ações das escolas estaduais de saúde pública. In: Santos AO, Lopes LT, organizadores. Profissionais de saúde e cuidados primários. Brasília: CONASS; 2021. p. 54-71..
No conjunto dos artigos revisados, destaca-se que os profissionais não estavam preparados para atuar no enfrentamento da COVID-19. Estudos realizados em diferentes países, a exemplo da China, destacam por exemplo a importância da qualificação dos médicos para atuarem nas UTIs77 Yan Y, Chen H, Chen L, Cheng B, Diao P, Dong L, Gao X, Gu H, He L, Ji C, Jin H, Lai W, Lei T, Li L, Li L, Li R, Liu D, Liu W, Lu Q, Shi Y, Song J, Tao J, Wang B, Wang G, Wu Y, Xiang L, Xie J, Xu J, Yao Z, Zhang F, Zhang J, Zhong S, Li H, Li H. Consensus of Chinese experts on protection of skin and mucous membrane barrier for healthcare workers fighting against coronavirus disease 2019. Dermatol Ther 2020; 33(4):e13310..
Desse modo, tornou-se imprescindível a formação e a organização da força de trabalho, visto que os trabalhadores de saúde são responsáveis por assegurar uma atenção qualificada e que atenda às necessidades de saúde da população88 Esposti CDD, Ferreira L, Szpilman ARM, Cruz MM. O papel da educação permanente em saúde na atenção primária e a pandemia de COVID-19. RBPS 2020; 22(1):4-8.,99 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 278, de 27 de fevereiro de 2014. Institui diretrizes para implementação da Política de Educação Permanente em Saúde, no âmbito do Ministério da Saúde (MS). Diário Oficial da União 2014; 28 fev.. Como alertam Pinto e Paim66 Pinto ICM, Paim MC. Educação e comunicação para profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia: estratégias e ações das escolas estaduais de saúde pública. In: Santos AO, Lopes LT, organizadores. Profissionais de saúde e cuidados primários. Brasília: CONASS; 2021. p. 54-71., há necessidade de qualificação dos trabalhadores da saúde como medida fundamental para a adequação dos serviços no enfrentamento da pandemia, o que implica também a reorganização de outras atividades assistenciais.
No Brasil existem hoje cerca de 3,5 milhões de trabalhadores da saúde envolvidos, direta ou indiretamente, na prestação de serviços nos vários níveis de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS) e nos estabelecimentos do setor privado. Um contingente expressivo dessa força de trabalho vem atuando na linha de frente do enfrentamento da pandemia pelo novo coronavírus, particularmente no âmbito hospitalar, e merece ser objeto de atenção, tanto por sua relevância no cuidado direto a casos de COVID-19 como por sua exposição ao risco de infecção¹.
Vale ressaltar a necessidade de ampliação da força de trabalho em saúde para responder de forma adequada às necessidades dos serviços, fornecendo um quantitativo ideal de trabalhadores de saúde, fato que produz outra necessidade: o treinamento para assumir novas atribuições impostas pelo cenário pandêmico1010 Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Checklist para a gestão dos recursos humanos em saúde em resposta à COVID-19 [Internet]. 2020. [acessado 2022 ago 3]. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52158/OPASBRAHSSHRCOVID19200011_por.pdf?sequence=1&isAllowed=y
https://iris.paho.org/bitstream/handle/1... . Para tanto, um conjunto de prioridades devem ser consideradas na conformação da agenda estratégica governamental, tal como atentar ao risco de contaminação dos trabalhadores, readequar os processos de trabalho e qualificar os profissionais que atuam na assistência à pacientes com suspeita ou confirmação de COVID-19.
Além disso, as instituições de saúde devem apoiar os trabalhadores de saúde, cumprindo suas responsabilidades para a proteção da saúde da força de trabalho. Portanto, uma gestão efetiva permite que o sistema de saúde tenha melhores desfechos em saúde, atenção à saúde capaz de atender às necessidades da população de forma oportuna, maior eficiência no uso de recursos físicos e materiais e redução de temores e estresse da equipe de saúde frente às constantes mudanças nas práticas assistenciais1010 Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Checklist para a gestão dos recursos humanos em saúde em resposta à COVID-19 [Internet]. 2020. [acessado 2022 ago 3]. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52158/OPASBRAHSSHRCOVID19200011_por.pdf?sequence=1&isAllowed=y
https://iris.paho.org/bitstream/handle/1... .
Com vistas a fomentar reflexões sobre o planejamento da resposta brasileira à pandemia, o objetivo deste trabalho é analisar as ações de educação permanente em saúde definidas em Planos Nacional e Estaduais de Contingência à COVID-19 no Brasil.
Procedimentos teórico metodológicos
Trata-se de uma pesquisa documental que utilizou como fontes de informações 54 planos de contingência (PC) à COVID-19, sendo as primeiras e últimas versões elaboradas pelo Ministério da Saúde (duas versões), secretarias estaduais de saúde (26 versões iniciais e 24 versões finais, uma vez que os estados de Sergipe e Mato Grosso não atualizaram seus planos) e Distrito Federal (duas versões).
Esses documentos foram acessados por meio dos respectivos websites institucionais, salvos eletronicamente e identificados como versões iniciais (Vi) e finais (Vf) - respeitando suas datas de edição, compreendidas entre dezembro de 2020 e junho de 2021. Posteriormente, foi feita a leitura na íntegra, localizando as seguintes palavras-chave: “trabalhadores”, “profissionais de saúde”, “técnicos da saúde”, “educação”, “educação permanente”, “educação continuada”, “capacitação” e “treinamento”.
A escolha dessas palavras-chave levou em conta as diversas dimensões do objeto de estudo, ou seja, as ações educativas dirigidas aos trabalhadores de saúde, tratando-se, portanto, de incluir na busca os diferentes termos que são utilizados nos documentos oficiais para se referir tanto às ações educativas em si - educação, educação permanente, educação continuada, treinamento e capacitação - quanto aos sujeitos dessas ações - trabalhadores, profissionais de saúde e técnicos de saúde.
Assim, cabe chamar a atenção para a distinção teórico-conceitual entre “educação permanente”, “educação continuada”, expressões que aparecem indistintamente nos documentos, embora tenham significados diferentes. A EPS tem sido definida como uma ação educativa que coloca o cotidiano do trabalho, ou da formação em saúde em análise, de modo que a produção de conhecimentos se dá a partir da realidade vivida pelos atores envolvidos, sendo os problemas enfrentados e as experiências desses atores no dia a dia do trabalho base para construção de estratégias de superação e mudanças44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? Brasília: MS; 2018.,1111 Ceccim RB, Ferla AA. Educação permanente em saúde. In: Pereira IB, Lima JCF, organizadores. Dicionário da educação profissional em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008.. A “educação continuada”, por sua vez, contempla as atividades com período definido para execução e utiliza, em sua maior parte, os pressupostos do ensino tradicional, por exemplo as ofertas formais nos níveis de pós-graduação44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? Brasília: MS; 2018..
Considerando as evidências científicas apresentadas em artigos internacionais que identificaram os principais problemas que afetam os profissionais de saúde envolvidos diretamente no enfrentamento da pandemia11 Teixeira CFS, Soares CM, Souza EA, Lisboa ES, Pinto ICM, Andrade LR, Espiridião AM. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de COVID-19. Cien Saude Colet 2020; 25(9):3465-3474., foram definidas as categorias de análise do conteúdo dos planos, de maneira que as propostas neles contidas foram organizadas na seguinte tipologia: a) medidas preventivas para redução de risco de infecção entre trabalhadores; b) monitoramento clínico dos profissionais de saúde; c) reorganização do processo de trabalho e adequação da jornada de trabalho; d) capacitação profissional à normas de biossegurança; e) atenção à saúde mental dos trabalhadores de saúde.
O estudo faz parte da pesquisa “Análise de modelos e estratégias de Vigilância em Saúde da Pandemia de COVID-19”, que tem aprovação no Comitê de Ética na Pesquisa (CAAE nº 36866620.2.0000.503) e contou com o apoio financeiro do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, do Ministério da Saúde e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. O desafio metodológico se relacionou com as variações dos tópicos abordados nos planos e a dificuldade de localização nos endereços eletrônicos institucionais das secretarias de saúde.
Resultados e discussão
Os planos de contingência estaduais e do Distrito Federal são documentos normativos com recomendações imediatas, responsabilidades, prioridades e orientações para investimento de recursos. Foram constituídos pela coordenação e departamentos da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), subsidiando a organização, coordenação e operacionalização da resposta às emergências em saúde pública²,3, sendo notória sua importância enquanto instrumento de planejamento.
Estruturalmente, os PC se caracterizam pela multiplicidade de formatos, com versões iniciais e atualizadas, decorrentes da necessidade de incorporar medidas não planejadas no momento inicial mas identificadas à medida que os conhecimentos sobre a COVID-19 iam sendo adquiridos e revisados. Assim, justifica-se a análise das suas versões iniciais e finais.
Como instrumento orientador de políticas públicas, os planos de contingência apontaram medidas para enfrentamento à infecção humana pelo SARS-CoV-2 que contemplam estratégias de vigilância, suporte laboratorial, medidas de controle da infecção, assistência médica e assistência farmacêutica, vigilância sanitária, comunicação de risco e gestão. As possíveis estratégias de educação permanente em saúde poderiam advir dos objetivos estabelecidos, especialmente do propósito de limitar a transmissão, incluindo a redução de infecções secundárias entre contatos próximos aos pacientes infectados, bem como a garantia de assistência à saúde aos trabalhadores de saúde³.
O que dizem os planos de contingência quanto às ações de EPS
O Plano de Contingência Nacional não contempla algumas ações recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS)1010 Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Checklist para a gestão dos recursos humanos em saúde em resposta à COVID-19 [Internet]. 2020. [acessado 2022 ago 3]. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52158/OPASBRAHSSHRCOVID19200011_por.pdf?sequence=1&isAllowed=y
https://iris.paho.org/bitstream/handle/1... , tais como cálculo de recursos necessários para conter as ocorrências de COVID-19 no país e articulação de estratégias multissetoriais para prover aportes financeiros necessários, que constam no documento “COVID-19: Operacional Planning Guidelines to Support Country Preparedness and Response”¹22 Brasil. Portaria nº 188, de 3 de fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo Novo Coronavírus (2019-nCoV). Diário Oficial da União 2020; 4 fev.. Não verificamos estratégias multissetoriais para prover aporte financeiro necessário para conter as ocorrências de COVID-19 no país.
Quanto ao direcionamento do processo de planejamento estadual, no PC Nacional há apenas recomendações para que estados, municípios e serviços de saúde público e privados tomem nota e elaborem seus respectivos PC, ficando a cargo das secretarias de saúde sua elaboração. Desse modo, a leitura dos PC estaduais revelou grande heterogeneidade e diversidade de qualidade técnica e metodológica, o que certamente decorre do fato de não ter sido elaborada nenhuma nota técnica ou orientação com relação aos elementos obrigatórios e básicos para a elaboração dos planos.
A identificação e classificação das propostas relativas à EPS dos PC estaduais, segundo as categorias de análise definidas, conduziu à elaboração do Quadro 1.
O primeiro grupo de propostas diz respeito às medidas de prevenção e redução dos riscos de infecção entre os trabalhadores de saúde, que foi a categoria com maior destaque nos PC estaduais, na medida em que a todos os PC continham propostas dessa natureza, incluindo a capacitação de profissionais de saúde no manejo clínico da síndrome gripal com enfoque no novo coronavírus, que causa COVID-19, e as orientações sobre medidas de prevenção e proteção dos trabalhadores para evitar e reduzir os riscos de contaminação.
Percebe-se, portanto, a dupla preocupação que norteou a elaboração dessas propostas, isto é, a necessidade de se qualificar os trabalhadores de saúde para lidar com uma doença nova, cuja fisiopatologia ainda era desconhecida, sem se dispor de tratamento específico, ao mesmo tempo que, diante das evidências que mostraram a alta transmissibilidade do vírus, se colocava a necessidade premente de proteger os trabalhadores que assistiam diretamente os casos clínicos.
As propostas relativas à capacitação para o manejo clínico dos pacientes constavam, inicialmente, em 11 dos 26 PC estaduais, número que se elevou a 19 nas versões atualizadas. Já as medidas de proteção dos trabalhadores de saúde constavam em apenas dois PC estaduais em suas versões iniciais, passando a 16 nas versões atualizadas. Como se pode constatar, configurou-se uma lacuna importante nos PC dos estados que não incorporaram essas propostas.
Assim, cabe chamar a atenção para a importância da inclusão dessas propostas nos planos a serem periodicamente atualizados, além da necessidade de avaliação do grau de implantação dessas ações nos estados, uma vez que a capacitação dos trabalhadores é fundamental para manter as equipes atualizadas sobre as medidas para controle de novos casos de COVID-19, bem como para as adequações técnicas e reformulações de protocolos assistenciais¹3,¹44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? Brasília: MS; 2018. à medida que avança o conhecimento e as tecnologias diagnósticas e terapêuticas da COVID-19. Por outro lado, é importante que, em estudos futuros, avalie-se o grau de implantação das medidas de proteção aos trabalhadores, pois o adoecimento de trabalhadores de saúde impõe o afastamento do serviço, comprometendo o quantitativo de recursos humanos necessário e disponível para o desempenho de uma assistência qualificada¹³.
O segundo grupo de propostas contempla as ações de EPS voltadas à reorganização dos processos de trabalho, aspecto pouco desenvolvido nos documentos analisados, o que sugere uma baixa problematização sobre a gestão do trabalho nos planos de contingência. Um único estado citou a garantia de espaços institucionalizados para EPS no cotidiano das equipes, seja por meio de reuniões, fóruns e videoconferências, em seus planos inicial e final. E apenas dois estados priorizavam parcerias interinstitucionais em suas últimas versões dos planos de contingência.
Essa lacuna chama a atenção, já que alguns estudos têm apontado a importância da reorganização do processo de trabalho nos diversos níveis de atenção, notadamente no âmbito hospitalar, priorizado no primeiro momento de enfrentamento à pandemia, o que ocasionou a rápida expansão do número de leitos e da contratação de pessoal a partir da implantação dos “hospitais de campanha” destinados exclusivamente a pacientes de COVID-19. O aumento acelerado de pessoal contratado, bem como a necessidade de garantir a qualidade da assistência¹33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Brasília: MS; 2020., implicaram necessariamente a reorganização do processo de trabalho das equipes, com a readequação da jornada de trabalho, a implantação de monitoria on-line ou presencial, o realinhamento procedimental das práticas assistenciais, a paramentação e retirada de EPIs, além de mudanças organizacionais na APS para garantir o acesso, a longitudinalidade e a coordenação do cuidado¹55 Wang J, Zhou M, Liu F. Exploring the reasons for healthcare workers infected with novel coronavirus disease 2019 (COVID-19) in China. J Hosp Infect 2020; 105(1). DOI: 10.1016/j.jhin.2020.03.002.
https://doi.org/10.1016/j.jhin.2020.03.0... . A incipiência nos PC estaduais, ou mesmo a ausência completa de propostas nessa direção, é certamente um aspecto bastante preocupante e deve ser objeto de debate no âmbito das secretarias estaduais de saúde, uma vez que a pandemia ainda está em curso.
Entendendo-se que os trabalhadores de saúde estão expostos diretamente ao risco de contaminação, o terceiro grupo de propostas trata da capacitação profissional sobre normas de biossegurança e contemplou quatro recomendações: 1) elaboração e divulgação de textos informativos sobre a COVID-19 entre os trabalhadores de saúde; 2) a capacitação de trabalhadores para investigação de casos suspeitos de infecção humana pelo novo coronavírus (2019-nCoV); 3) procedimentos para assegurar a saúde e segurança do trabalhador durante o manuseio e contato com substâncias causadoras de agravos à saúde, a exemplo da situação provocada pelo vírus SARS-CoV; 4) estratégias de educação em saúde para capacitar profissionais na orientação à comunidade
A análise dos PC revelou que, nas versões iniciais, 12 planos incluíram propostas de elaboração e difusão de material informativo (textos, vídeos, cartilhas etc.) sobre a COVID-19 entre os profissionais e trabalhadores de saúde, número que passou a 17 nas últimas versões. Quanto à capacitação para investigação de casos suspeitos de infecção humana pelo novo coronavírus (2019-nCoV), apenas 8 dos 26 planos abordaram inicialmente, sendo que outros 5 incluíram propostas desse tipo em suas versões finais, elevando o total a 13 PC. Com relação a medidas de biossegurança e saúde do trabalhador, 11 planos incluíram tais propostas em suas versões iniciais, subindo para 20 nas versões finais. Finalmente, no que diz respeito às ações de educação em saúde para profissionais e comunidade, apenas seis PC incluíram propostas desse tipo em sua primeira versão, sendo que nas versões finais chegou-se a sete planos com essas propostas.
Constata-se que as preocupações com a implementação de medidas de biossegurança e saúde do trabalhador foram traduzidas primordialmente em propostas relativas à difusão de material educativo e recomendações acerca do uso de equipamentos de proteção individual (EPI) e coletivos (EPC). Mesmo assim, essas propostas não foram incluídas em todos os PC estaduais, sete planos não continham nem mesmo a proposta de difusão de material educativo, e quatro sequer incluíram em suas propostas as medidas de biossegurança e saúde do trabalhador. Além disso, constata-se a incipiência com que foram contempladas as ações de capacitação para investigação de casos novos e as ações educativas junto à comunidade para difusão de conhecimentos e medidas de proteção contra o vírus, estratégia defendida inclusive em alguns estudos sobre a pandemia1616 Pfaffenbach G, Zanatta AB, Tenani CF, De Checchi MHR, Santana ABC. Recomendações de biossegurança para proteção de profissionais da Atenção Primária à Saúde durante o enfrentamento da COVID-19: análise dos documentos técnicos do Brasil, São Paulo e Amazonas referentes ao uso de equipamentos de proteção individual. Vigil Sanit Debate 2020; 8(3):94-103..
O quarto grupo de propostas analisadas nos PC estaduais diz respeito à atenção à saúde mental dos trabalhadores de saúde, mencionadas somente em quatro deles em suas versões finais, tratando sobre ocorrência de sintomas de ansiedade, depressão e insônia, que se tornaram mais recorrentes entre os trabalhadores de saúde no contexto da pandemia. De acordo com estudos sobre o tema, esses sintomas estão relacionados ao medo de transmitir o vírus para os membros da família¹, à exaustão por extensas jornadas de trabalho, a efeitos do distanciamento social1717 Faro A, Bahiano MA, Nakano TC, Reis C, Silva BFP, Vitti LS. COVID-19 e saúde mental: a emergência do cuidado. Estud Psicol 2000; 37:e200074., a incertezas impostas pela doença até então pouco conhecida e a processos de perda de colegas e amigos (luto).
Tais condições exigiram institucionalização de estratégias de apoio psicológico e fortalecimento de ações educativas com vistas a minimizar ansiedades de origem ocupacionais¹,18, por isso é preocupante o fato de que apenas quatro PC estaduais incluam atividades dessa natureza, o que representa uma lacuna significativa na gestão do trabalho desenvolvido pelas secretarias estaduais de saúde.
Finalmente, o último grupo de propostas que se buscou identificar nos PC diz respeito ao monitoramento clínico dos profissionais de saúde, porém este não foi mencionado em nenhum dos planos analisados, seja em suas primeiras ou últimas versões. A ausência dessa proposta nos planos de contingência pode revelar a fragilidade das ações de vigilância à saúde do trabalhador de saúde, de forma a detectar de maneira precoce os casos de COVID-19 nesse contingente populacional, não havendo a adoção de medidas de acompanhamento dos profissionais e trabalhadores de saúde que porventura sejam acometidos pela doença.
Esse monitoramento deveria ter sido entendido como necessário, como extensão das ações de atenção à saúde física e mental dos trabalhadores de saúde, sobretudo para minimização das ansiedades e riscos de disseminação do coronavírus. De modo que, institucionalmente, a segurança do trabalhador1919 Neto FRGX, Araújo CRC, Silva RCC, Ribeiro MA, Sousa LA, Serafim TF, Dorneles JÁ, Gadelha LA. Coordenação do cuidado, vigilância e monitoramento de casos da COVID-19 na Atenção Primária à Saúde. Enferm Foco 2020; 11(1):239-245. , o monitoramento clínico, a busca ativa dos sintomáticos respiratórios e as orientações sobre os fatores de risco da doença como ações de EPS contribuiriam para o enfrentamento a COVID-19, tal qual o isolamento social25 e o rastreamento dos contatos, medidas necessárias para o fortalecimento do controle da pandemia 1212 World Health Organization (WHO). COVID-19 strategic preparedness and response plan operational planning guidelines to support country preparedness and response. Geneva: WHO; 2020..
Considerações finais
A análise dos 54 planos de contingência para infecção humana por COVID-19 permitiu identificar as propostas e recomendações dos gestores com relação às ações de educação permanente em saúde, assim como suas potencialidades e limitações diante do cenário pandêmico do país e de cada estado.
Verificamos que as ações elencadas nos planos foram prioritariamente direcionadas à educação permanente de profissionais de saúde para qualificar o manejo clínico da síndrome gripal, em paralelo à adoção de medidas de biossegurança e saúde do trabalhador, com enfoque no uso de equipamentos de proteção individual, inclusive para funcionários de limpeza, laboratórios, portos e aeroportos, com vistas à redução dos riscos de contaminação, adoecimento e morte dos trabalhadores que lidam cotidianamente com pacientes suspeitos e confirmados de COVID-19.
Verifica-se que, apesar da fragilidade metodológica e de conteúdo, os PC ainda se caracterizam como instrumento de gestão, refletindo a estrutura e o funcionamento do SUS enquanto sistema e como principal opção para o enfrentamento da crise sanitária. Cabe ressaltar, entretanto, que os PC, apesar de sua importância e relevância, apresentam limitações, uma vez que nem tudo que está escrito foi operacionalizado, e nem tudo que foi operacionalizado pela gestão e pelos serviços de saúde está contido ou expresso nos diversos PC analisados.
No caso específico da EPS, as lacunas identificadas nos PC centraram-se na ausência de ações com foco na promoção e proteção à saúde mental e no monitoramento clínico dos profissionais de saúde, evidenciando a necessidade de articulação de trabalhadores, sistemas, serviços de saúde e secretariais estaduais, de modo a acompanhar os profissionais da saúde em suas diversas categorias e loci de trabalho.
A ausência de proposições voltadas para o trabalhador da saúde deve ser motivo de grande preocupação e de mobilização para o debate sobre os investimentos que precisam ser assumidos pelos gestores da saúde, tanto em nível federal como por estados e municípios. A priorização dos trabalhadores na organização e gestão de serviços é fundamental para a assistência à COVID-19 e outras patologias e agravos, visto que ações de proteção à saúde implicam menor número de profissionais afastados e, consequentemente, sua disponibilidade para participarem de atividades de EPS que visam modificar e criar processos de trabalho que vão ao encontro das demandas e necessidades dos serviços de saúde.
Assim, é necessário que o governo priorize a agenda de desafios relacionados aos trabalhadores de saúde, sobretudo na atualidade, em que diversas formas de flexibilização do trabalho alcançam o setor de saúde, deixando-o cada vez mais precarizado. Nesse sentido, é preciso destacar que esta agenda deve contemplar em sua formulação a participação dos trabalhadores e gestores interessados no debate sobre as mudanças necessárias na gestão do trabalho e na educação na saúde, principalmente as ações de EPS. Espera-se que a situação pandêmica tenha evidenciado a importância dos trabalhadores para o funcionamento adequado do Sistema Único de Saúde, e que os aprendizados desse evento venham a colaborar para a luta pela busca de melhores condições de trabalho para os trabalhadores da saúde e do SUS, que foram considerados heróis nas fases mais difíceis da pandemia no Brasil e no mundo.
Para isso, cabe concluir mencionando a contribuição do Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da COVID-19, elaborado pela Frente Pela Vida (FPV)1818 Frente pela Vida. Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da COVID-19 [Internet]. 2020. [acessado 2021 out 13]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/uploads/documentos/PEP-COVID-19_v3_01_12_20.pdf
https://frentepelavida.org.br/uploads/do... , resultado da contribuição das organizações e do movimentos críticos à abordagem do Ministério da Saúde frente à gestão da pandemia no Brasil. O plano aponta a situação de vulnerabilidade e risco epidemiológico a que estavam (e estão) expostos os trabalhadores do SUS e recomenda com veemência uma série de medidas de proteção aos trabalhadores de saúde, que podem servir de subsídio necessário aos gestores do novo governo que se inicia em 2023.
Referências
- 1Teixeira CFS, Soares CM, Souza EA, Lisboa ES, Pinto ICM, Andrade LR, Espiridião AM. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de COVID-19. Cien Saude Colet 2020; 25(9):3465-3474.
- 2Brasil. Portaria nº 188, de 3 de fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo Novo Coronavírus (2019-nCoV). Diário Oficial da União 2020; 4 fev.
- 3Brasil. Ministério da Saúde (MS). Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Brasília: MS; 2020.
- 4Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? Brasília: MS; 2018.
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» https://doi.org/10.1016/j.jhin.2020.03.002 - 6Pinto ICM, Paim MC. Educação e comunicação para profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia: estratégias e ações das escolas estaduais de saúde pública. In: Santos AO, Lopes LT, organizadores. Profissionais de saúde e cuidados primários. Brasília: CONASS; 2021. p. 54-71.
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- 8Esposti CDD, Ferreira L, Szpilman ARM, Cruz MM. O papel da educação permanente em saúde na atenção primária e a pandemia de COVID-19. RBPS 2020; 22(1):4-8.
- 9Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 278, de 27 de fevereiro de 2014. Institui diretrizes para implementação da Política de Educação Permanente em Saúde, no âmbito do Ministério da Saúde (MS). Diário Oficial da União 2014; 28 fev.
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Financiamento
Este artigo contou com apoio financeiro do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
12 Maio 2023 - Data do Fascículo
Maio 2023
Histórico
- Recebido
15 Out 2022 - Aceito
06 Fev 2023 - Publicado
08 Fev 2023