Resumo
O estudo buscou compreender os efeitos produzidos pelo uso de Práticas Integrativas e Complementares no cuidado a pessoas com obesidade atendidas em um centro de referência estadual do Sistema Único de Saúde, a partir da narrativa dos usuários. Utilizou-se a metodologia qualitativa exploratório-descritiva, tendo como técnica de produção de dados as entrevistas semiestruturadas. O universo empírico foi composto por oito pessoas, dos gêneros masculino e feminino, na faixa etária adulta, com diagnóstico médico de obesidade e em acompanhamento no Ambulatório de PICS. Observou-se o sentir-se bem como sentimento marcante e definidor para a continuidade da vivência nas PICS, resultante da terapêutica, concretizado nos diferentes efeitos produzidos pelas práticas e articulador de uma reorganização da vida do sujeito, do cuidado de si e do outro. Foi possível observar que a presença orgânica das PICS assume um lugar híbrido e dinâmico no fluxo do cuidado, ainda que tenha se sobressaído uma perspectiva que vincula as PICS à obesidade por meio do controle da ansiedade, do corpo e da alimentação Além disso, as PICS parecem colaborar com o deslocamento da centralidade da gestão do peso corporal para a pessoa em sua integralidade, atuando ainda como mediadoras do processo de aceitação corporal.
Palavras-chave:
Práticas Integrativas e Complementares; Obesidade; Saúde Pública
Abstract
The scope of this study was to understand the effects resulting from Integrative and Complementary Practices (ICPs) in the treatment of people with obesity cared for at a state center of reference of the Brazilian Unified Health System, based on the reports of users. Qualitative exploratory-descriptive methodology was used, employing semi-structured interviews as a technique for data production. The empirical universe was composed of eight male and female members in the adult age group, with a medical diagnosis of obesity and being monitored at the ICP Outpatient Clinic. Feeling well was observed as a significant and pivotal sensation for the ongoing experience in the ICPs, resulting from the therapy, materialized in the different effects produced by the practices and bringing about a reorganization of the subject’s life, the care of oneself and of others. It was possible to observe that the organic presence of the ICPs assumes a hybrid and dynamic place in the process of care, although a perspective has emerged that links the ICPs to obesity through the control of anxiety, the body, and food. Furthermore, the ICPs seem to collaborate with the displacement of the focus of body weight management to the person as a whole, also acting as mediators in the process of body acceptance.
Key words:
Integrative and Complementary Practices (ICPs); Obesity; Public Health
Introdução
Esse estudo buscou compreender os efeitos produzidos pelo uso de Práticas Integrativas e Complementares no cuidado a pessoas com obesidade atendidas em um centro de referência estadual do Sistema Único de Saúde, a partir da narrativa dos usuários. Justifica-se tal investigação pelo fato de que, nas quatro últimas décadas, o fenômeno da obesidade enquanto problema de saúde pública vem ganhando destaque na agenda pública internacional e nacional, promovendo assim a busca por modelos ampliados de cuidado e atenção à saúde das pessoas com obesidade que inclui as Práticas Integrativas e Complementares (PICS).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a obesidade como uma condição crônica, caracterizada pelo acúmulo excessivo de gordura decorrente de um desequilíbrio do balanço energético, e que traz repercussões à saúde, sendo categorizada, na Classificação Internacional de Doenças (CID-11), como doença endócrina, nutricional e metabólica, além de estar associada a riscos para a saúde devido a sua relação com várias complicações11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Perspectivas e desafios no cuidado às pessoas com obesidade no SUS: resultados do Laboratório de Inovação no manejo da obesidade nas Redes de Atenção à Saúde. Brasília: MS; 2014.. Os documentos institucionais e as pesquisas desenvolvidas neste campo, reconhecem a complexidade da obesidade, marcando o seu caráter múltiplo e heterogêneo. Entretanto, as ações empreendidas, seja no âmbito mundial ou local, não têm sido suficientes para gerir o problema da obesidade, caracterizando-a como um fenômeno de proporções globais e de prevalência crescente, sendo, portanto, um dos principais desafios da saúde pública ao redor do mundo22 Dias PC, Henriques P, Anjos LA, Burlandy L. Obesidade e políticas públicas: concepções e estratégias adotadas pelo governo brasileiro. Cad Saude Publica 2017; 33(7):1-12.
3 World Health Organization (WHO). Obesity: preventing and managing the global epidemic. Geneva: WHO; 2000.-44 Organización de las Naciones Unidas para la Alientación y la Agricultura (FAO), Organización Panamericana de la Salud (OPS), Programa Mundial de Alimentos (WFP), Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia (UNICEF). Panorama de la seguridad alimentaria y nutrición en América Latina y el Caribe 2020. Santiago de Chile: FAO; 2020..
Nesse contexto, a utilização das PICS tem sido apontada como uma estratégia que pode contribuir para um cuidado ampliado e integral à pessoa com obesidade. As PICS podem ser entendidas como sistemas terapêuticos que estimulam os mecanismos naturais de prevenção e recuperação da saúde, com ênfase na escuta acolhedora, no vínculo interpessoal, na visão ampliada do processo saúde-doença e na integração do indivíduo com o meio ambiente e com a sociedade55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS - PNPIC-SUS. Brasília: MS; 2006.. Um movimento de inserção de diferentes racionalidades e saberes médicos no SUS, que foram legitimados a partir da homologação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) pelo Ministério da Saúde, em 2006, vem se fortalecendo. Para Aguiar et al.66 Aguiar J, Kanan LA, Masiero AV. Práticas Integrativas e Complementares na atenção básica em saúde: um estudo bibliométrico da produção brasileira. Saude Debate 2020; 43:1205-1218., a PNPIC trouxe ao SUS abordagens que anteriormente eram disponíveis especialmente por meio de prestadores privados, aspecto que contribui significativamente com o fortalecimento do SUS.
Considerando a complexidade e a multidimensionalidade da obesidade, o cuidado à saúde dessa população inspira uma coexistência entre estratégias terapêuticas que podem incluir as PICS e as práticas convencionais na Rede de Atenção à Saúde. Essa coexistência pode resultar em uma configuração de atenção em saúde focada não somente nos aspectos biológicos, mas também nos demais aspectos que influenciam no bem-estar dos indivíduos, tais como socioculturais, espirituais, políticos e econômicos77 Silva EDC, Tesser CD. Experiência de pacientes com acupuntura no Sistema Único de Saúde em diferentes ambientes de cuidado e (des)medicalização social. Cad Saude Publica 2013; 29(11):2186-2196.. Deste modo, esse artigo apresenta elementos que emergiram das narrativas de pessoas com obesidade atendidas no Ambulatório em estudo, cuja análise direciona para uma discussão ampliada sobre a multiplicidade de situações, efeitos e significações existentes na busca pela integralidade presente no contexto das PICS para o cuidado a pessoas com obesidade.
Metodologia
Utilizou-se metodologia qualitativa exploratório-descritiva, uma vez que o objeto é pouco estudado cientificamente e tal abordagem metodológica proporciona uma análise mais próxima das realidades e especificidades do processo de cuidado a pessoas com obesidade. Segundo Denzin e Lincoln88 Denzin N, Lincoln Y. A disciplina e a prática da pesquisa qualitativa. In: Denzin N, Lincoln Y, organizadores. O Planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2ª ed. Porto Alegre: ArtMed; 2006. p.15-41., a pesquisa qualitativa envolve uma abordagem interpretativa dos fenômenos a partir dos significados que as pessoas a eles conferem, valorizando não somente os discursos trazidos pelos atores sociais envolvidos, mas também os espaços e as histórias que constroem as narrativas de cada pessoa.
O universo empírico da pesquisa foi composto por pessoas usuárias do Ambulatório de PICS do Centro de Diabetes e Endocrinologia da Bahia (CEDEBA). Em funcionamento desde 1994, o CEDEBA é uma Unidade de Referência Estadual do SUS que atua na Atenção Secundária e tem como um dos papéis o matriciamento e suporte especializado à Atenção Primária de Saúde (APS), prestando assistência especializada a pessoas com Diabetes, Obesidade, Disfunção tireoidiana e outras doenças hormonais, encaminhadas por profissionais de medicina e enfermagem da Atenção Básica do Estado da Bahia.
Na assistência ao usuário, o Centro promove atenção multidisciplinar em diferentes áreas, como Angiologia, Nefrologia, Ginecologia, Cardiologia, Oftalmologia, Urologia, Psiquiatria, Psicologia, Nutrição e Exames laboratoriais e de Imagem. A unidade também fornece medicamentos conforme Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) do Ministério da Saúde, além de grupos de educação tanto para pacientes, quanto para familiares.
Por sua vez, o Ambulatório de PICS oferece atendimento aos usuários que já são acompanhados por profissionais de especialidades médicas e não médicas da referida unidade de saúde. Estes usuários podem ser encaminhados para as práticas oferecidas, a saber: Reflexologia Podal, Reiki, Cromoterapia, Auriculoterapia e Meditação por qualquer profissional de saúde da unidade, necessitando somente que este profissional identifique demandas que justifiquem a inserção do paciente na rotina deste.
Para a convocatória de participantes, inicialmente foi realizada uma reunião com a equipe de profissionais do Ambulatório de PICS, que indicaram a informante-chave, que frequenta o referido Ambulatório desde o início do seu funcionamento e já participou de sessões de todas PICS oferecidas pela unidade. Tais características permitiram que a rede de contatos da pesquisadora fosse ampliada, além de promover o estabelecimento de certo espaço de segurança entre a pesquisadora e demais participantes da pesquisa, uma vez que o contato inicial foi mediado por uma pessoa já conhecida.
Assim, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com oito pessoas, dos gêneros masculino e feminino, na faixa etária entre 18 e 64 anos, que, atendendo os critérios de inclusão - diagnóstico médico de obesidade e encaminhadas para o Ambulatório de PICS do CEDEBA -, foram convidadas e aceitaram participar da pesquisa. Cabe destacar que, seis entrevistas foram realizadas presencialmente no CEDEBA, nos meses de janeiro e fevereiro de 2020, e duas foram realizadas por telefone, no mês de agosto de 2020, por conta das restrições causadas pela pandemia da COVID-19.
Para as entrevistas, que foram gravadas, utilizou-se das seguintes perguntas disparadoras: a) Primeira parte - Biografia e Itinerário Terapêutico: “Você poderia me contar como foi o encontro com as PICS?”; b) Segunda parte - Caracterização das PICS e como lida com o peso corporal: “Você poderia me contar como está sendo sua experiência com as PICS?”; c) Terceira parte - Bem-estar integral: “Como você se sente, de forma geral, depois que começou a utilizar as PICS?”. Alguns dados sociodemográficos foram coletados por meio da aplicação de um questionário, a saber: nome; PICS que frequenta na unidade; idade; sexo/gênero; formação; raça/cor da pele autorreferida; profissão/atuação/cargo.
Ao propor para o entrevistado discorrer livremente a partir de uma questão aberta, a investigação possibilitou o não condicionamento das respostas, compreendendo os participantes da pesquisa como sujeitos compreensivos livres. Nesse sentido, a proposta de utilizar como mecanismo para interpretação dos dados produzidos a análise compreensiva, fundamenta-se em boa parte na lógica de compreensão fundamentada por Morin99 Morin E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1998.,1010 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget; 2003., Marcuse1111 Marcuse H. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. São Paulo: Paz e Terra; 2004. e Weber1212 Weber M. A "objetividade" do conhecimento nas Ciências Sociais. São Paulo: Ática; 2005..
Após a transcrição das entrevistas, seguiu-se com a etapa de leitura, análise e categorização. As categorias foram estabelecidas por meio da construção de uma matriz de análise, que objetivou sistematizar os elementos presentes nos relatos e que possuíam relevância para o estudo, compondo os resultados deste estudo. A primeira categoria, “dores no corpo, dores na alma”, discute a multiplicidade de eventos e situações que direcionam a pessoa com obesidade às PICS. A segunda, intitulada de “sentir-se bem”, expõe as conexões existentes entre os efeitos produzidos pelas PICS, a categoria central desse estudo, considerando as significações atribuídas ao corpo e à obesidade.
Os aspectos éticos deste trabalho observam a Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, para pesquisa em seres humanos, e foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (ENUFBA), sob parecer número 2.732.859. As identidades dos sujeitos entrevistados foram preservadas e os nomes verdadeiros substituídos por fictícios.
Resultados e discussão
Caracterizando o universo empírico
O ambulatório de PICS iniciou em 2015, e, desde então, envolve uma equipe multiprofissional (uma médica, duas enfermeiras, uma psicóloga, uma nutricionista e duas técnicas de enfermagem) do referido centro e pessoas voluntárias advindas de uma outra unidade de saúde parceira1313 Dacal MPO, Silva IS. Impactos das práticas integrativas e complementares na saúde de pacientes crônicos. Saude Debate 2018; 42(118):724-735.. O atendimento é exclusivamente voltado para pacientes matriculados na unidade e funciona semanalmente, às quartas-feiras à tarde, tendo seu funcionamento interrompido por conta da pandemia da COVID-19, quando ainda decorria a pesquisa, retornando os atendimentos ao final do ano de 2021. Os pacientes que participam do Ambulatório de PICS são encaminhados por profissionais de saúde da referida unidade de saúde, podendo ser diretamente encaminhados para práticas específicas ou escolhendo a prática consensualmente no momento do acolhimento.
A sala de espera do ambulatório é um importante espaço em que os pacientes trocam suas experiências com as PICS e atribuem significados às relações ali estabelecidas, sendo o sentimento de empatia o mais presente nos discursos ecoados. Durante as idas a campo, foi possível notar a rede de apoio formada nesse espaço: todos se conhecem, conhecem os acompanhantes, conhecem a agenda de consultas. Esse espaço de cuidado, que é repleto de histórias e vivências, fortalece os diferentes atores envolvidos: as pessoas que recebem o cuidado, os profissionais que mediam esse cuidado e o SUS que proporciona esse cuidado:
Eu criei um espaço de amizade muito grande, às vezes a gente tenta ajudar as pessoas a ter melhoramento, porque eu tive melhoramento, então eu falo para todo mundo fazer as práticas (Hermione, 59 anos).
Assim, as PICS aparecem como potencial instrumento de cuidado não apenas individual, mas também coletivo, que espera qualificar o cuidado a pessoas com obesidade. No estudo desenvolvido por Pereira et al.1414 Pereira LF, Rech CR, Morini S. Autonomia e Práticas Integrativas e Complementares: significados e relações para usuários e profissionais da Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu) 2021; 25:e200079. foi observado que a troca de saberes e o compartilhamento das experiências foram compreendidos como fatores positivos para o fortalecimento das ações em saúde no contexto de um cuidado integral e humanizado.
Seguindo nessa perspectiva, cabe discutir a aproximação entre as PICS e o cuidado humanizado. Para Schveitzer et al.1515 Schveitzer MC, Esper MV, Silva MJP. Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária em Saúde: em busca da humanização do cuidado. Mundo Saude 2012; 36(3):442-451. todo cuidado que media o resgate da capacidade natural de autopromoção da saúde, é considerado um cuidado humanizado. A Política Nacional de Humanização (PNH), idealizada pelo Ministério da Saúde (MS), surgiu como uma proposta para requalificar a atenção em saúde, de modo a impulsionar a efetivação de um SUS inclusivo, democrático, resolutivo e acolhedor, mantendo uma fluida relação entre as formas de produzir saúde e produzir subjetividades1616 Lopes AS, Vilar RLA, Melo RHV, França RCS. O acolhimento na Atenção Básica em saúde: relações de reciprocidade entre trabalhadores e usuários. Saude Debate 2015; 39(104):114-123..
No que se refere aos participantes do estudo, todos foram adultos entre 33 e 59 anos que estavam sendo acompanhados há mais de um ano e meio, com exceção de uma das entrevistadas que, no momento da entrevista, frequentava o ambulatório há dois meses. No Quadro 1 encontra-se descrita a caracterização das pessoas que participaram deste estudo. Das oito entrevistas realizadas, sete foram com pessoas do gênero feminino e dessas, seis se declararam pretas. Sobre isso, Gelsleichter e Zucco1717 Gelsleichter MZ, Zucco LP. Quanto Pesa a Mulher com Obesidade Obesidade? Textos Contextos 2017; 16(1):100-114. apontam que os estudos indicam a prevalência da obesidade em mulheres, além de apontarem que as desigualdades geradas pelas questões estruturais de gênero na sociedade podem interferir em um bom estado de saúde. Apesar de bem documentada, a relação entre ganho de peso e fatores sociodemográficos não é totalmente elucidada nos estudos que consideram raça/cor1818 Oraka CS, Faustino DM, Oliveira E, Teixeira JAM, Souza ASP, Luiz OC. Raça e obesidade na população feminina negra: uma revisão de escopo. Saude Soc 2020; 29(3):e191003..
Dores no corpo, dores na alma
Inicialmente, destaca-se que a maioria dos participantes desse estudo desconheciam as PICS, tendo seu primeiro contato através do encaminhamento dos profissionais, refletindo ainda em certa descrença nos seus efeitos - “como eu não conhecia, nem sabia o que era, achei que não ia funcionar não” (Petúnia, 38 anos). Nascimento et al.1919 Nascimento MC, Romano VF, Chazan ACS, Quaresma CH. Formação em práticas integrativas e complementares em saúde: desafios para as universidades públicas. Trab Educ Saude 2018; 16(2):751-772. afirmam que as PICS ainda são estratégias terapêuticas pouco conhecidas, tanto por profissionais de saúde, quanto por usuários do SUS, originando preconceitos e descrenças, tornando-se um grande desafio para sua ascensão e aplicabilidade.
Em contraponto, Barros et al.2020 Barros NF, Spadacio C, Costa MV. Trabalho interprofissional e as Práticas Integrativas e Complementares no contexto da Atenção Primária à Saúde: potenciais e desafios. Saude Debate 2018; 42:163-173. apresentam em seu estudo que, os profissionais de saúde que conhecem as PICS, consideram-nas como importante dispositivo de prevenção e promoção da saúde. Essa expectativa pela melhora também é encontrada no relato de Minerva, 45 anos: “Foi a endocrinologista que falou para eu começar, ela falou que era muito bom”. Quando Ariana, 51 anos, conta que “chegou” “às práticas através do endocrinologista, porque estava sentindo muitas dores”, ela se dirigiu ao ambulatório com uma expectativa de melhora da sua condição de saúde a partir do ponto de vista da profissional de saúde que a acompanha.
Das oito entrevistadas, três foram encaminhadas por uma psicóloga da unidade, duas foram encaminhadas por nutricionista e três foram encaminhadas por endocrinologista. Os motivos que justificaram o encaminhamento referem-se a elementos que atuam como coadjuvantes no tratamento para perda de peso como, por exemplo, do controle das dores físicas e do sofrimento psíquico emocional.
Sem a pretensão de reforçar a dualidade corpo e alma que impera na racionalidade biomédica hegemônica, os elementos que estão sendo direcionados para as “dores no corpo” se referem às dores de ordem física, enquanto que as “dores na alma” representam os sintomas de ansiedade e estresse relatados pelos participantes da pesquisa, que foram compreendidas como limitantes no processo de cuidado à pessoa com obesidade. A maioria das pessoas participantes do estudo relataram dores no corpo e dificuldade de locomoção associando ambos com a obesidade, tendo sido um dos fatores principais para a busca do cuidado à saúde. Tal situação pode ser observada no relato de Ronald, 38 anos:
Aqui nas práticas eu comecei por causa das dores no joelho e no pé, por causa do peso, né? A nutricionista disse que ia ser bom eu começar, que ia ajudar nas dores.
Moraes et al.2121 Moraes AL, Almeida EC, Souza LB. Percepções de obesos deprimidos sobre os fatores envolvidos na manutenção da sua obesidade: investigação numa unidade do Programa Saúde da Família no município do Rio de Janeiro. Physis 2013; 23(2):553-572. discutem em seu estudo que a percepção da dor pode ser um limitante tanto para o desenvolvimento de práticas de saúde, como a atividade física, apontada como estratégica para manejo da obesidade, como para a realização de atividades rotineiras55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS - PNPIC-SUS. Brasília: MS; 2006.. Além disso, as sensações emocionais produzidas pelas dores físicas em pessoas com excesso de peso podem ser intensificadas devido ao estigma social construído sobre a inaptidão física do corpo da pessoa com obesidade, o qual usualmente é visto como sedentário, preguiçoso e incapaz de realizar atividades físicas2121 Moraes AL, Almeida EC, Souza LB. Percepções de obesos deprimidos sobre os fatores envolvidos na manutenção da sua obesidade: investigação numa unidade do Programa Saúde da Família no município do Rio de Janeiro. Physis 2013; 23(2):553-572.,2222 Paim MB, Kovaleski DF. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saude Soc 2020; 29(1):e190227.. Diante disso, as dores no corpo são impregnadas de dores na alma; e as dores na alma podem repercutir em dores no corpo.
Nessa perspectiva, discute-se outra motivação para o encaminhamento ao Ambulatório de PICS: o alívio de situações de estresse e ansiedade, as dores da alma. Para Cotter e Kelly2323 Cotter EW, Kelly NR. Stress-related eating, mindfulness, and obesity. Health Psychol 2018; 37(6):516., as PICS se colocam como estratégias terapêuticas para o cuidado de condições psicossomáticas no contexto da pessoa com obesidade, atuando como práticas que podem mitigar o estresse decorrente de situações do cotidiano - “A energia positiva que as pessoas [profissionais] passam, sabe, que às vezes você precisa e que em casa você não tem, sempre está tendo um problema, eu sinto aqui nas práticas” (Minerva, 45 anos); “a médica disse que ia ser bom para eu relaxar sabe” (Minerva, 45 anos).
Esse sofrimento psíquico pode também ser compreendido como resultado das relações sociais construídas em torno do corpo da pessoa com obesidade. A sociedade contemporânea legitima a magreza como sendo condição de saúde ideal que aponta a gordura corporal como um símbolo de falência moral. A opressão social vivida pelas pessoas com obesidade se coloca como fator preditor de estresse psicossocial - “É porque muitas vezes eu ando nervosa, por causa do meu peso né, eu sou obesa, então a gente fica tensa” (Minerva, 45 anos) -, sendo assim um gatilho para adoecimento2424 Cuevas AG, Chen R, Thurber KA, Slopen N, Williams DR. Psychosocial stress and overweight and obesity: findings from the Chicago Community Adult Health Study. Ann Behav Med 2019; 53(11):NP..
Assim, o peso corporal surge nos discursos como um elemento que irá se alterar a partir da mitigação dos sintomas de ansiedade, aspecto que tende a interferir no comportamento alimentar das pessoas: “eu estava comendo demais e não estava perdendo peso, então a nutricionista perguntou se eu não queria fazer uma coisa diferente, que ia me ajudar a acalmar e a controlar a comida” (Petúnia, 57 anos). Por meio das análises dos relatos foi possível observar que as PICS são compreendidas pelos profissionais de saúde como indutoras de um estado de relaxamento, o qual poderá refletir em uma redução no consumo alimentar, e, por consequência, na perda de peso. Tal mecanismo é observado no seguinte relato: “a doutora que me acompanha disse que ia me fazer bem, que ia me ajudar a não comer tanto” (Narcisa, 52 anos).
Observa-se que, mesmo que as PICS sejam oriundas de culturas milenares, impregnadas de uma visão de integralidade e de unidade físico/energética, o modelo de atenção construído em torno do Ambulatório de PICS do CEDEBA pode sinalizar certo apagamento das potencialidades desta abordagem terapêutica. Tal condição pode ser resultado do fato de que, ainda que os serviços de saúde utilizem das PICS como estratégias terapêuticas holísticas e centradas nas pessoas, tais espaços ainda encontram certa dificuldade para ultrapassar a dimensão da racionalidade biomédica, por vezes centrada na doença. Com a análise dos relatos, percebeu-se que, o ciclo estabelecido nos encaminhamentos no campo dos sintomas de estresse e ansiedade podem direcionar para uma redução das cosmologias presentes nas racionalidades das diferentes PICS, tornando-as estratégias terapêuticas situadas, sobretudo, em uma dimensão biológica: a busca de um equilíbrio energético a partir da redução da ingesta calórica.
É possível aqui observar certa consonância com o estudo de Aguiar et al.66 Aguiar J, Kanan LA, Masiero AV. Práticas Integrativas e Complementares na atenção básica em saúde: um estudo bibliométrico da produção brasileira. Saude Debate 2020; 43:1205-1218., no qual destacam-se como as principais demandas referidas pelos usuários de PICS estão na esfera dos sintomas psicossomáticos e da complementaridade à medicalização. Tais elementos apontam para as PICS inseridas em um modelo integrado de atenção à saúde, num caráter complementar. Cabe destacar a discussão epistemológica presente na terminologia para identificar as PICS como terapias integrativas, complementares ou alternativas.
A revisão sistemática conduzida por Otani e Barros2525 Otani MAP, Barros NF. A Medicina Integrativa e a construção de um novo modelo na saúde. Cien Saude Colet 2011; 16(3):1801-1811. aponta a existência de certo distanciamento entre a Medicina Alternativa e Complementar e a Medicina Integrativa, visto que, esta última, fundamenta-se na abordagem holística, compreendendo o homem como um ser pleno, integrando corpo físico, mente e espírito. Em contraponto, a Medicina Alternativa e Complementar se coloca como prática não-convencional que atuará como coadjuvante das estratégias terapêuticas convencionais já praticadas no modelo biomédico. Ainda nesse mesmo estudo, Otani e Barros2525 Otani MAP, Barros NF. A Medicina Integrativa e a construção de um novo modelo na saúde. Cien Saude Colet 2011; 16(3):1801-1811. consideram que, para bem exercer a Medicina Integrativa é necessário que haja uma mudança de pensamento com relação à saúde e ao processo saúde-doença.
Tal perspectiva coaduna com a noção de integralidade, princípio normativo do SUS que tem como objetivo orientar, no âmbito dos serviços públicos e da ação de seus profissionais, uma atenção à saúde de boa qualidade, por meio de uma abordagem integral, ampla e pluridimensional da saúde individual e coletiva. Essa coexistência também pode ser discutida a partir da interculturalidade em saúde, que, segundo Raymundo2626 Raymundo MM. Uma aproximação entre bioética e interculturalidade em saúde a partir da diversidade. Rev HCPA 2011; 31(4):491-496., compreende a existência de certa complementaridade entre diversas perspectivas de cuidado para uma mesma condição de saúde, sendo estabelecida sem preconceitos ou imposição de uma sobre a outra.
Deste modo, o enfoque da atenção em saúde passa de apenas biológico para biopsicossociocultural. Tal perspectiva auxilia na construção do cuidado à pessoa com obesidade, visto que, historicamente, a sociedade marginaliza os corpos gordos, gerando um estigma social, o qual compromete a saúde, suas relações sociais e a saúde mental, afetando assim seu bem-estar2727 Rubino F, Puhl RM, Cummings DE, Eckel RH, Ryan DH, Mechanick JI, Nadglowski J, Ramos Salas X, Schauer PR, Twenefour D, Apovian CM, Aronne LJ, Batterham RL, Berthoud HR, Boza C, Busetto L, Dicker D, De Groot M, Eisenberg D, Flint SW, Huang TT, Kaplan LM, Kirwan JP, Korner J, Kyle TK, Laferrère B, le Roux CW, McIver L, Mingrone G, Nece P, Reid TJ, Rogers AM, Rosenbaum M, Seeley RJ, Torres AJ, Dixon JB. Joint international consensus statement for ending stigma of obesity. Nat Med 2020; 26(4):485-497..
O sentir-se bem
Dentre os efeitos que puderam ser identificados por meio da análise das narrativas dos entrevistados, pode-se destacar os relacionados a indicadores de saúde - “meu açúcar tá direitinho, nunca mais aumentou” (Narcisa, 52 anos) - e à melhora na qualidade do sono - “eu tenho o meu sono assim, tipo assim, um sono de paz tão grande” (Hermione, 59 anos). Além destes, a sensação de analgesia também esteve presente entre os relatos - “todas as vezes que eu faço reflexo [reflexoterapia] melhora as dores e as cãibras nos pés, daí alivia e eu consigo dormir melhor e fico mais calminho” (Ronald, 38 anos).
Ainda no escopo dos efeitos relatados, observa-se forte presença de atuação das PICS num contexto de condições psicossomáticas: “é uma das melhores coisas boas que acontece ao fazer o Reiki, relaxar mentalmente e tirar o estresse” (Ronald, 38 anos), e “eu melhorei muito, até o meu estado de ansiedade” (Gina, 56 anos). Resultados semelhantes foram encontrados no estudo de Dacal e Silva1313 Dacal MPO, Silva IS. Impactos das práticas integrativas e complementares na saúde de pacientes crônicos. Saude Debate 2018; 42(118):724-735., cujos participantes relataram melhora nas dores crônicas, no estado de estresse, nos sintomas de ansiedade, na insônia, e em sintomas como pressão arterial e glicemia alta.
Diante disso, cabe retomar a discussão trazida na categoria anterior e destacar a sinergia produzida nos entrevistados: melhora nos sintomas de ansiedade, melhora na alimentação e controle do peso. Relatos como o de Gina, 56 anos: “Eu melhorei muito, o meu estado de ansiedade”, Ariana, 51 anos: “E isso ajuda né? Porque eu não comendo de noite, significa que tô comendo menos, então eu não ganho peso”, e Petúnia, 57 anos: “Quando é dia de prática, às vezes nem vontade de comer eu sinto, porque a gente sai de lá com uma paz, que você nem imagina”, dialogam diretamente com aspectos discutidos anteriormente.
Ainda que este ciclo possa sugerir certo reducionismo das potencialidades das PICS utilizadas pelos participantes desta pesquisa, constata-se que o efeito das PICS na produção do cuidado pode ir além das expectativas iniciais, enfatizando assim a sua mediação como um modelo de atenção à saúde humanizado, situado na integralidade e que considera aspectos para além do manejo do peso corporal. A construção e a execução de uma prática de cuidado é o resultado esperado do atendimento em saúde, visto que, a reinterpretação produzida pelo profissional de saúde no momento das consultas não tem outra finalidade ética e epistemológica que não seja a produção de ações terapêuticas que promovam a saúde e o bem-estar das pessoas2828 Tesser CD, Luz MT. Uma categorização analítica para estudo e comparação de práticas clínicas em distintas racionalidades médicas. Physis 2018; 28(1):e280109..
É neste cenário que emana a categoria do “sentir-se bem”, sentimento marcante e definidor para a continuidade da vivência e do cuidado nas PICS, uma vez que se concretiza por meio dos diferentes efeitos produzidos, sejam eles mais objetivos ou subjetivos. A partir dos relatos, observa-se que o “sentir-se bem”, enquanto categoria subjetiva, aglutina as sensações emocionais e corporais produzidas pelas PICS, sendo identificada como resultante da terapêutica, mas também como articuladora de uma reorganização da vida do sujeito e do cuidado de si e do outro.
Um efeito produzido pelas PICS nos participantes da pesquisa e que representa o “sentir-se bem” é a melhora na autoestima, como pode ser observado nos seguintes relatos: “As práticas [PICS] fez com que eu passasse a me arrumar, me arrumar mesmo, isso quer dizer que aumentou minha autoestima [...]. Eu estou pensando muito em mim hoje, a gente tem que pensar mais primeiro na gente” (Hermione, 59 anos); “Hoje saio [do CEDEBA] com a autoestima melhor” (Ariana, 51 anos). A autoestima, sendo identificada como uma avaliação afetiva que cada pessoa faz de si própria, relaciona-se de forma significativa com as subjetividades que permeiam a sensação de bem-estar, sendo também importante para o autoconhecimento e refletindo no autocuidado com o corpo, conforme pontuado nos relatos anteriores.
Para Lima et al.2929 Lima KMSV, Silva KL, Tesser CD. Práticas integrativas e complementares e relação com promoção da saúde: experiência de um serviço municipal de saúde. Interface (Botucatu) 2014; 18(49):261-272. pode-se afirmar que as potencialidades das PICS em contribuir para o desenvolvimento da autoestima favorece também o empoderamento psicológico da pessoa, na direção de um maior cuidado à saúde e ao desenvolvimento pessoal. Nesse sentido, outro elemento materializa o “sentir-se bem” nos relatos: o crescimento pessoal. Hermione, 59 anos, afirma que “fazer as práticas, me cresceu por dentro”, e esse crescimento, pode ser associado à mudança e à busca pelo desenvolvimento pessoal, movimento que pode resultar numa sensação de bem-estar.
Ademais, uma outra dimensão presente nas subjetividades do “sentir-se bem” é o estabelecimento de relações baseadas em empatia, autonomia e capacidade de independência, contribuindo também para a consolidação de uma autoestima. Luna, 33 anos, conta em seu relato que antes de frequentar o Ambulatório de PICS “não gostava de sair para canto nenhum, até para arranjar namorado, eu arranjei do lado de casa”, depois que iniciou as práticas, começou a sentir disposição para realizar diversas atividades: “agora eu estou saindo para a aula de dança, caminhar, para a festa”.
Por fim, cabe trazer mais um efeito narrado pelos participantes da pesquisa, que se interliga com os conceitos de bem-estar e autoestima, uma vez que resulta, sobretudo, da satisfação com a vida que o sujeito tem: a felicidade3030 Seligman MEP. Florescer: Uma nova compreensão sobre a natureza da felicidade e do bem-estar. Rio de Janeiro: Objetiva; 2011.. A felicidade narrada por Petúnia, 57 anos - “E eu acho que consegui ficar feliz de novo também, sabe? Consegui rir mais” -, pode ser identificada pelo próprio profissional que está realizando o atendimento, a partir da expressão facial e corporal que aquele indivíduo exterioriza durante o processo - “a doutora tava até comentando isso outro dia, que eu chego pra consulta muito mais feliz agora” (Narcisa, 52 anos). Pode-se intercruzar a essa discussão o fato de que o “sentir-se bem” não se refere tão somente aos resultados objetivos obtidos, mas também ao processo terapêutico vivenciado por intermédio das PICS.
Pode-se observar este fenômeno através do resgate da autoestima para se dirigir ao Ambulatório: “nos primeiros dias eu não me arrumava, parecia que eu estava em casa sabe, e a prática fez com que eu passasse a me arrumar” (Hermione, 59 anos). Outra situação que materializa o “sentir-se bem” no processo terapêutico é o reconhecimento de um “fluxo energético” sentido naquele espaço: “A energia positiva que as pessoas (profissionais) passam, sabe, que às vezes você precisa e que em casa você não tem, sempre está tendo um problema, eu sinto aqui nas práticas” (Minerva, 45 anos).
Como afirma Souza et al.3131 Souza IN, Silva GB, Silva KTS, Scremin M, Dias CLO, Monteiro SC, Pinto BGM, Oliveira JNA, Gusmão ROM, Silva Junior RF. Produção científica acerca da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Rev Eletr Acervo Saude 2020; 12(10):e4386., o estado de bem-estar emocional também pode ser promovido por meio do ambiente no qual as práticas de saúde estão sendo realizadas. Tal elemento se destaca nessa análise uma vez que a vivência no Ambulatório de PICS foi atravessada pelas medidas restritivas relacionadas à pandemia da COVID-19, que resultaram em um afastamento repentino das pessoas que o frequentavam, sendo um limitante para o “sentir-se bem” nesse contexto tão desafiador, como se pode perceber no seguinte relato:
Agora que tá triste né, tá um vazio sem as práticas. Eu fico fazendo em casa, mas não é a mesma coisa. Eu acendo um incenso, coloco uma música, mas não é a mesma coisa. Eu me sinto bem também, mas lá no CEDEBA eu saía como se tivesse flutuando, levinha, levinha. Em casa não, a gente até começa a relaxar, aí depois vem alguém e liga, aí vê uma notícia triste na TV né minha filha? Aí como que relaxa? (Petúnia, 57 anos).
Nesse contexto, as PICS parecem induzir uma reorganização simbólica e emocional, acalmando medos, angústias e ansiedades, iniciando assim uma mobilização, também simbólica, de processos fisiológicos e afetivo-emocionais, convergindo, por fim, no “sentir-se bem”. Além disso, a partir da análise dos relatos, foi possível observar que, ainda que exista certo direcionamento do cuidado para o peso corporal e as condições clínicas correlatas, como melhoria nos indicadores de saúde, as PICS provocaram um deslocamento do papel da perda do peso corporal no cuidado.
Sobre isso, Ralston et al.3232 Ralston J, Brinsden H, Buse K, Candeias V, Caterson I, Hassell T, Kumanyika S, Nece P, Nishtar S, Patton I, Proietto J, Salas XR, Reddy S, Ryan D, Sharma AM, Swinburn B, Wilding J, Woodward E. Time for a new obesity narrative. Lancet 2018; 392(10156):1384-1386. afirma que urge a necessidade de novas narrativas sobre a obesidade, que incluam as vivências das pessoas no centro, alinhando o cuidado direcionado a elas com estratégias intersetoriais, que considerem os determinantes ambientais, sociais e comerciais da obesidade. Ou seja, práticas de saúde que considerem, de maneira contextualizada com a realidade, aspectos epigenéticos, biológicos, psicossociais, ambientais e oriundos dos sistemas alimentares e da contemporaneidade3333 Contrera L, Cuello N. Cuerpos sin patrones: resistencias desde las geografías desmesuradas de la carne. Buenos Aires: Editorial Madreselva; 2016..
Com isso, o “sentir-se bem” parece deslocar do peso do corpo a carga principal para justificar a continuidade da utilização das PICS. Quando Hermione, 59 anos, relata que “não se preocupa muito com o peso, mas com a saúde”, nota-se que, ainda que a gestão do peso corporal seja o alvo principal do cuidado, as PICS parecem colaborar para um deslocamento desta centralidade em direção da pessoa, na sua integralidade. Além disso, o uso das PICS parece colaborar também na ressignificação na relação das pessoas com obesidade com seu próprio corpo, que possibilita inferir que as práticas integrativas podem estar atuando como mediadoras do processo de aceitação corporal de forma similar aos efeitos produzidos na autoestima dessas pessoas.
Considerações finais
Como limitações para este estudo, cabe considerar também que, apesar de ter sido possível identificar as dimensões dos efeitos produzidos pelas PICS, não se pode atribuí-los tão somente a estas práticas, uma vez que as ações de cuidado do CEDEBA pautam-se na articulação coordenada de diferentes racionalidades médicas, envolvendo também práticas de saúde fundamentadas na biomedicina.
Ainda assim, mesmo sobressaindo uma perspectiva que parece menos ampliada que vincula as práticas de PICS ao fenômeno da obesidade - a exemplo do ciclo controle da ansiedade, controle do corpo e da alimentação -, foi possível observar a presença orgânica das PICS como mediadora de um fluxo de cuidado acolhedor e humanizado. Deste modo, o cuidado a pessoas com obesidade no contexto das PICS assume um lugar híbrido e dinâmico, se entremeando na complementaridade e na integralidade, frutos do processo terapêutico.
A sumarização dos efeitos produzidos pelas PICS no cuidado a pessoas com obesidade, a partir de suas narrativas, permitiu considerar a incidência de elementos subjetivos e sensitivos promovidos pelo uso das PICS, essenciais à compreensão da condição de saúde dessas pessoas. Todos os participantes da pesquisa reconheceram os benefícios das práticas realizadas, seja na dimensão da saúde integral, nas atividades profissionais, nas relações interpessoais e no autoconhecimento e autocuidado, e que tais efeitos coadunam no “sentir-se bem”, categoria que pode representar toda potência e sensibilidade presente no processo terapêutico no contexto das PICS.
Além disso, observou-se, que as PICS operam um deslocamento do peso corporal, reordenando os objetivos do processo terapêutico, ou seja, a redução do peso corporal não assume uma centralidade exclusiva, mas cede espaço para outros aspectos como melhora na autoestima, crescimento pessoal, felicidade e, sobretudo, “sentir-se bem”. Esse mecanismo indica que as PICS podem atuar como instrumentos políticos para se discutir as diretrizes e estratégias de intervenção aos corpos de pessoas com obesidade, pautando abordagens que considerem aspectos para além do peso corporal.
Por fim, cabe destacar que as investigações realizadas evidenciaram a pertinência e necessidade de articulação de outros aportes teóricos e metodológicos no sentido de compreender os fenômenos em tela para além de sua presença nos serviços, quantificação de seus efeitos e validação científica de seu tratamento por categorias advindas estritamente do campo biomédico, para estudos que aprofundem as experiências vivenciadas pelos corpos de pessoas com obesidade, nos quais os fenômenos da saúde-doença-cuidado se imprimem e se expressam de modo plural.
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Financiamento
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Edital N° 13/2017. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Código de Financiamento 001. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia - Edital N° 13/2017.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
12 Maio 2023 - Data do Fascículo
Maio 2023
Histórico
- Recebido
08 Jul 2022 - Aceito
24 Out 2022 - Publicado
26 Out 2022