A pesquisa qualitativa é demarcada pelo forte fator humanístico e interacional. Esse tipo de pesquisa está alicerçado sobre um complexo conjunto de sentidos, valores, crenças e comportamentos sociais. No campo da saúde, possibilita a apreensão das concepções de diferentes sujeitos (usuários, gestores, profissionais) sobre inúmeras questões importantes, como o vivenciar ou experimentar a saúde, a doença, a morte, o acesso aos serviços de saúde, iniquidades sociais, dentre outras situações que não seriam passíveis de quantificação¹1 Minayo MCS, Guerriero ICZ. Reflexividade como éthos da pesquisa qualitativa. Cien Saude Colet 2012; 19(4):1103-1112..

Os estudos qualitativos em saúde vêm ganhando notoriedade, principalmente a partir da década de 1990 e muitos dilemas e questionamentos ainda a cercam, isso ocorre, dentre outras questões, pela hegemonia das pesquisas fundamentadas nos cânones positivistas, representados pelo modelo biomédico e pela hipervalorização de estudos epidemiológicos. Nessa égide, considera-se que a ciência está pautada em suposta neutralidade do pesquisador e na possibilidade de generalização dos resultados de pesquisa, por meio da replicabilidade dos achados e experimentação²2 Bosi MLM, Gastaldo D, organizadoras. Tópicos Avançados em Pesquisa Qualitativa em Saúde: fundamentos teórico-metodológicos. Petrópolis: Vozes; 2021..

Dessarte, no intuito de colaborar com o avanço da pesquisa qualitativa em saúde, as pesquisadoras Maria Lúcia Magalhães Bosi e Denise Gastaldo organizaram o livro intitulado Tópicos avançados em pesquisa qualitativa em saúde: fundamentos teórico-metodológicos, publicado em 2021 que tem o objetivo de explorar o construto da pesquisa qualitativa em saúde, buscando preencher importante lacuna do Brasil e da região ibero-americana²2 Bosi MLM, Gastaldo D, organizadoras. Tópicos Avançados em Pesquisa Qualitativa em Saúde: fundamentos teórico-metodológicos. Petrópolis: Vozes; 2021.. O livro reúne escritos de estudiosos de diferentes países das Américas, incluindo o Brasil, Canadá, México e a Colômbia.

As organizadoras do livro pensaram o “todo” da obra, a partir do pensamento complexo de Edgar Morin³3 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre: Sulina; 2015.. O intuito foi construir partes (capítulos) articuladas entre si e interdependentes, a partir de um processo multidimensional que busca ser compreensivo ao que se propõe: aprofundar aspectos teórico-metodológicos em pesquisa qualitativa em saúde a partir de tópicos já consagrados na área.

Os 11 capítulos que compõe o livro surgem e se articulam da seguinte maneira: no primeiro capítulo, são abordados criticamente alguns aspectos sobre ciência e objetividade na pesquisa qualitativa, o autor desse capítulo traça um panorama histórico sobre a ciência, baseado no construcionismo. O autor destaca a perspectiva hierárquica que habita o senso comum e, em parte, o meio científico, que valoriza mais as ciências exatas em detrimento das ciências humanas e sociais. Além disso, busca desmistificar suposta objetividade em pesquisa, que alicerçada no cânone positivista, prevê que o conhecimento científico é passivamente ligado à mente do pesquisador por uma realidade externa e sem interferência humana.

O tema tratado no segundo capítulo diz respeito à avaliação da qualidade na pesquisa qualitativa em saúde. A despeito disso, os autores relatam que o tema de avaliação da qualidade surge, especialmente, com o advento da pesquisa baseada em evidência, que busca estabelecer critérios universais para a pesquisa, bem como a homogeneização. Contrapondo esse paradigma, é apontado que os critérios de avaliação em pesquisa qualitativa devem considerar os aparatos institucionais morais, éticos e políticos que regulam este tipo de pesquisa, sem que limitem sua natureza crítica e criativa. Afirmam, ainda, que a qualidade da pesquisa qualitativa em saúde requer explicações do debate teórico e epistemológico sobre o método, articulando-os com as premissas das disciplinas humanas e sociais.

Por sua vez, o capítulo 3 introduz uma parte mais densa do livro, pois discute a congruência epistemológica como critério fundamental para conferir rigor na pesquisa qualitativa em saúde. Nesse tópico, apresentam-se dois passos básicos propostos pela autora, para que os pesquisadores iniciantes pensem em como lidar com o rigor em ciências da saúde: “1) praticá-lo; 2) demonstrá-lo, de acordo com determinada perspectiva teórica”²2 Bosi MLM, Gastaldo D, organizadoras. Tópicos Avançados em Pesquisa Qualitativa em Saúde: fundamentos teórico-metodológicos. Petrópolis: Vozes; 2021.(p.100). Nessa parte do livro, encontra-se um quadro com exemplos sobre as formas de praticar o rigor e de como demonstrá-lo.

Nos capítulos 4 e 5, os autores adentram nos paradigmas, nas tradições e terminologias, e no modo de usar teoria social do início ao fim em pesquisas qualitativas em saúde. Esse ponto do livro é marcado pela robustez dialética, que busca deixar o leitor afinado com o rigoroso embasamento teórico exigido em pesquisas de qualidade. Ainda, os capítulos supracitados apresentam terminologias e nomenclaturas que agregam valor no desenvolvimento de projetos de pesquisa.

O capítulo 6 debate uma questão complexa que envolve dilemas quase intermináveis: a amostragem em pesquisa qualitativa em saúde e o modo de escolher os participantes dessas pesquisas. A autora desse capítulo afirma que o tamanho da amostra não é o mais importante, a racionalidade que fundamenta a amostragem deve estar voltada para a busca das fontes que consigam oferecer a maior riqueza de informações possíveis sobre o tema estudado, de modo a considerar os aspectos éticos e de viabilidade que possam conferir generalização teórica e analítica das descobertas da pesquisa.

Ainda no capítulo 6, afirma-se que, para conferir validade às informações coletadas nas pesquisas qualitativas, pode-se utilizar ferramentas consolidadas, como a triangulação. Nesse entendimento, Flick⁴4 Flick U. Triangulation. In: Oelerich G, Otto H-U, editors. Empirische Forschung und Soziale Arbeit. Wiesbaden: VS Verlag für Sozialwissenschaften; 2011. p. 323-328. pontua que devido à pesquisa social estar preocupada com problemas diversos, é recomendado o uso de múltiplas perspectivas metodológicas. Para Flick⁴4 Flick U. Triangulation. In: Oelerich G, Otto H-U, editors. Empirische Forschung und Soziale Arbeit. Wiesbaden: VS Verlag für Sozialwissenschaften; 2011. p. 323-328., o termo triangulação refere-se à busca da compreensão de um fenômeno por duas ou mais perspectivas ou abordagens metodológicas, e é recomendada para conferir maior credibilidade aos estudos científicos.

O capítulo 7 introduz a problematização sobre à análise qualitativa. Nesse ínterim, os autores discorrem sobre recursos, instrumentos ou dispositivos analíticos que podem ser utilizados por pesquisadores, no intuito de “romper as interpretações do senso comum e fazer novas aquisições conceituais”²2 Bosi MLM, Gastaldo D, organizadoras. Tópicos Avançados em Pesquisa Qualitativa em Saúde: fundamentos teórico-metodológicos. Petrópolis: Vozes; 2021.(p.205), deste modo, tornando a pesquisa qualitativa rigorosa e confiável. Além disso, aponta-se que a reflexividade é fundamental para adequada análise dos dados. Nessa esteira, Strauss e Corbin⁵5 Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed; 2008. reiteram que a análise qualitativa possui natureza epistêmica própria, que está ancorada em processo não matemático de interpretação. Também no capítulo 7, os autores reiteram a noção que no desenvolvimento de pesquisas qualitativas “tudo são dados”, e, assim, os pesquisadores não são obrigados a analisar somente dados formalmente designados, podem também considerar analítica a trajetória na pesquisa.

Por conseguinte, no capítulo 8, disserta-se sobre os desafios da racionalidade estético-expressiva na escrita qualitativa, quando se busca o avanço nesse tipo de pesquisa. Sobre essa questão, a autora do capítulo explicita que a retórica na pesquisa qualitativa é caracterizada pela incorporação de múltiplas vozes, lançando mão de linguagem vívida que pode utilizar inúmeras formas de narrativas.

Ressalta-se que o livro possui aporte crítico e reflexivo que está embasado nos posicionamentos ético-políticos dos autores e das autoras. O capítulo 9 apresenta reflexão sobre a ética na pesquisa qualitativa, neste sentido, destaca-se que para realização adequada de pesquisas qualitativas, faz-se necessário o entendimento rebuscado de como ocorre a produção e reprodução de injustiças sociais, a fim de planejar a melhor maneira de abordar os participantes desses estudos que, notadamente, podem constituir grupos/populações vulnerabilizadas e/ou estigmatizadas. Portanto, as questões éticas devem atravessar todas as etapas da pesquisa, desde o planejamento.

O capítulo 10 ocupa-se em discutir a formação de pesquisadores qualitativos críticos no campo da saúde. Para a autora, a pesquisa qualitativa em saúde não é um tipo singular ou padronizado de práticas, envolve, sobretudo, variedade de tradições teóricas, estratégias e técnicas. Assim, para formar bons pesquisadores, é necessário mais que uma boa pedagogia nas salas de aula. Em razão das mudanças contextuais do mundo moderno, é salutar forte conteúdo curricular estratégico nas universidades e base organizacional da comunidade de cientistas qualitativos para fortalecer a formação de novos pesquisadores e elevar o status da pesquisa qualitativa em saúde.

Por fim, o capítulo 11 reflete sobre o uso da pesquisa qualitativa em saúde para além da divulgação dos resultados. As autoras do capítulo fazem reflexão sobre o destino atribuído aos resultados dessas pesquisas, considerando o panorama da América Latina. Ainda descrevem tópicos centrais para promoção de debates relacionados à difusão e aplicação adequadas dos resultados de pesquisa.

De modo conclusivo, fica evidente que, apesar do aumento na produção de pesquisas qualitativas em saúde nos últimos anos, esse livro é importante pelo enfoque dado aos aspectos teórico-metodológicos. Ainda, a construção da obra valoriza as dimensões epistemológicas e teóricas, a partir de temas indispensáveis para uma pesquisa de qualidade, que utilize, de modo correto, instrumentos, técnicas e abordagens que possibilitam a melhor difusão do conhecimento científico.

Referências

Datas de Publicação