Estrutura de pensamento social de agentes comunitárias de saúde sobre violência doméstica contra a mulher

Juliana Costa Machado Charles Souza Santos Antônio Marcos Tosoli Gomes Rita Narriman Silva de Oliveira Boery Vanda Palmarella Rodrigues Alba Benemérita Alves Vilela Sobre os autores

Resumo

Este estudo objetivou descrever a estrutura representacional de agentes comunitários de saúde sobre violência doméstica contra a mulher. Pesquisa quanti-qualitativa fundamentada na Teoria das Representações Sociais na abordagem estrutural. Participaram 107 agentes comunitárias de saúde vinculadas a 18 Unidades de Saúde da Família de um município do interior da Bahia, Brasil, durante os meses de maio a agosto de 2019. A coleta de dados ocorreu por meio das técnicas de evocações livres e de centralidade: choix-par-bloc, constituição de pares de palavras e mise-en-cause. Para a análise dos dados, utilizou-se o software EVOC (Ensemble de Programmes Permettant I’analyse des Evocations), análise de similitude e análise do mise-en-cause. A estrutura representacional das profissionais se organiza a partir dos elementos centrais desrespeito e tristeza, que atribuem à representação sentidos negativos relativos a seus posicionamentos e suas repercussões. Conclui-se que a organização do pensamento social das agentes comunitárias sobre o fenômeno apresenta uma dimensão atitudinal e afetiva que fortalece a elaboração de estratégias de enfrentamento a situação de violência contra mulheres, agressores e comunidade.

Palavras-chave:
Violência contra a mulher; Violência doméstica; Gênero e saúde; Agentes comunitários de saúde; Estratégia Saúde da Família

Introdução

A violência doméstica contra a mulher (VDCM) vem despertando interesse tanto de ordem pública quanto científica por configurar um problema de magnitude que atinge as famílias e a sociedade de forma multifatorial. Trata-se de um fenômeno com raízes histórico-culturais, permeado por crenças, tradições e valores que fundamentam sua interpretação e enfrentamento inclusive na área da saúde11 Acosta DF, Gomes VLO, Oliveira DC, Marques SC, Fonseca AD. Representações sociais de enfermeiras acerca da violência doméstica contra a mulher: estudo com abordagem estrutural. Rev Gaucha Enferm 2018; 39:e61308..

A construção social marcada pelas desigualdades entre homens e mulheres naturalizou o poder, a força, a figura do homem e a dominação à mulher22 Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real 1995; 20(2):71-99.. A relação assimétrica de poder torna-se um fator propulsor da violência por reforçar o modelo dominante de masculinidade que minimiza a mulher à ideia de passividade e vitimização33 Nóbrega VKM, Pessoa Júnior JM, Nascimento EGC, Miranda FAN. Renúncia, violência e denúncia: representações sociais do homem agressor sob a ótica da mulher agredida. Cien Saude Colet 2019; 24(7):2659-2666..

Nesse cenário, a VDCM constitui uma forma de violência direcionada à mulher, praticada em sua maioria por parceiro íntimo33 Nóbrega VKM, Pessoa Júnior JM, Nascimento EGC, Miranda FAN. Renúncia, violência e denúncia: representações sociais do homem agressor sob a ótica da mulher agredida. Cien Saude Colet 2019; 24(7):2659-2666.. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, em todo o mundo, uma a cada três mulheres já sofreram violência física e/ou sexual em algum momento de sua vida44 World Health Organization (WHO). Global Status Report on Violence Prevention. Geneva: WHO; 2014..

Pesquisa realizada pelo Instituto DataSenado sobre a VDCM no Brasil apontou que em 2019 o percentual de mulheres que sofreram algum tipo de violência correspondeu a 27% das entrevistadas, sendo que os responsáveis pelas agressões relatadas são companheiros e ex-companheiros em 37% dos casos55 Brasil. Senado Federal. Instituto de Pesquisa DataSenado. Observatório da Mulher contra a Violência. Violência doméstica contra a mulher: pesquisa DataSenado [Internet]. 2019. [acessado 2021 abr 17]. Disponível em: https://assets-compromissoeatitude-ipg.sfo2.cdn.digitaloceanspaces.com/2019/12/DataSenado_2019_Relatorio_-Viol%C3%AAncia_Dom%C3%A9stica_e_Familiar_Contra_a_Mulher_v13_Com_Tabelas.pdf
https://assets-compromissoeatitude-ipg.s...
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Os serviços de saúde fazem parte do primeiro contato das mulheres em situação de violência e devem apresentar abordagem ética, segura e respeitosa, com implementação de ações de busquem minimizar as consequências do agravo66 Nascimento VF, Rosa TFL, Terças ACP, Hattori TY, Nascimento VF. Desafios no atendimento aos casos de violência doméstica contra a mulher em um município mato-grossense. Arq Cienc Saude UNIPAR 2019; 23(1):15-22.. Considerando que a Estratégia Saúde da Família (ESF) conta com profissionais que vivenciam as necessidades da comunidade e mantém o vínculo, acredita-se ser uma grande aliada na identificação, prevenção e enfrentamento da VDCM77 Broch D, Gomes VLO, Silva CD, Gomes GC, Gautério-Abreu DP, Mattos MB. Violência doméstica contra a mulher: representações sociais de agentes comunitários de saúde. Rev enferm UFPE on line 2016; 10(10):3743-3750..

Entre os profissionais que fazem parte da equipe de saúde da família, o agente comunitário de saúde (ACS) apresenta a possibilidade de conhecer a dinâmica familiar e criar vínculos, sendo atores fundamentais no enfrentamento de situações de VDCM88 Arboit J, Costa MC, Silva EB, Colomé ICS, Prestes M. Violência doméstica contra mulheres rurais: práticas de cuidado desenvolvidas por agentes comunitários de saúde. Saude Soc 2018; 27(2):506-517.. Estudo realizado no município de São Paulo mostrou que há uma invisibilidade da VDCM na atenção primária à saúde (APS) e apontou que os ACSs são os profissionais que primeiro identificam os casos de VDCM no território, e que a partir disso compartilham a situação com a equipe99 Darmau EC, Terra MF. Registro de violência doméstica de gênero nos prontuários-família na Atenção Primária à Saúde. Arq Med Hosp Fac Cienc Med Santa Casa São Paulo 2019; 64(1):35-39..

Nesse contexto, as representações que os profissionais de saúde apresentam sobre a VDCM podem influenciar o direcionamento de suas condutas1010 Amarijo CL, Gomes VLO, Gomes AMT, Fonseca AD, Silva CD. Representação social de profissionais de enfermagem acerca da violência doméstica contra a mulher: abordagem estrutural. Rev Enferm UERJ 2017; 25:e23648.. As representações sociais (RS) constituem um conjunto de conceitos, afirmações e explicações das interações cotidianas, e devem ser consideradas como uma teoria do senso comum, pois não são criadas isoladamente, são compartilhadas e, uma vez criadas, adquirem vida própria e transformam a realidade1111 Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2012..

Acredita-se que descrever a estrutura do pensamento social de ACSs sobre a VDCM traz um aprimoramento do conhecimento por possibilitar compreender como estão alicerçadas as suas representações, ideias, imagens, valores e experiências, que se relacionam entre si e que influenciam o planejamento de ações e a forma de propor práticas sociais de enfrentamento sobre o agravo.

Dessa forma, o presente estudo teve como objetivo descrever a estrutura representacional de agentes comunitários de saúde sobre a violência doméstica contra a mulher.

Métodos

Trata-se de um estudo descritivo e exploratório de natureza quanti-qualitativa com suporte teórico e metodológico da Teoria das Representações Sociais, com enfoque na sua abordagem estrutural ou Teoria do Núcleo Central (TNC)1212 Abric JC. Pratiques sociales et représentations. Paris: Presses Universitaires de France; 1994.. A TNC propõe que as RS são um duplo sistema formado pelo núcleo central, que define, organiza e dá sentido aos elementos da representação, e pelo sistema periférico, que compreende as representações de natureza condicional, tem caráter mais flexível, prático e constitui um conteúdo essencial da representação1212 Abric JC. Pratiques sociales et représentations. Paris: Presses Universitaires de France; 1994.,1313 Sá CP. Núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes; 2002..

O cenário do estudo foi composto por 18 Unidades de Saúde da Família (USFs) da zona urbana do município de Jequié, Bahia, Brasil. Utilizou-se como critério de inclusão unidades da zona urbana, com equipes dupla ou única e com equipes completas segundo a Política Nacional da Atenção Básica1414 Brasil. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2017; 21 set. no período da coleta de dados.

As participantes da pesquisa foram as ACSs das referidas USFs. A seleção das participantes foi realizada por conveniência, por meio de contato por telefone com a enfermeira supervisora, quando foi solicitado um encontro com todas as ACSs de cada uma das equipes da ESF, para que a pesquisadora pudesse convidá-las a participar do estudo.

A primeira etapa ocorreu no mês de maio de 2019, em sala disponibilizada em cada USF. Participaram 107 ACSs que concordaram e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Os dados foram coletados pela pesquisadora de forma individual. Assim, as participantes responderam ao formulário contendo aspectos sociodemográficos (idade, sexo, estado civil, renda familiar, entre outros) e ao questionário da técnica de evocações livres. Trata-se de um teste projetivo/associativo e busca acessar a organização e estrutura internas da representação1515 Oliveira DC, Marques SC, Gomes AMT, Trigueiro MCTV. Análise das evocações livres: uma técnica de análise estrutural das representações sociais. In: Moreira ASP, Camargo BV, Jesuíno J, Nóbrega S, organizadores. Perspectivas teórico-metodológicas em representações sociais. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB; 2005. p. 573-603.. Foi solicitado que as participantes evocassem cinco palavras ou expressões que viessem à sua mente após ouvir o termo indutor “violência doméstica contra a mulher”.

Como critério de inclusão, a ACS deveria estar em atividade funcional e ter mais de seis meses de atuação na USF, e como critério de exclusão, as ACSs que estivessem de férias, licença prêmio ou tratamento de saúde. Os dados foram coletados no período de maio a agosto de 2019 em duas etapas.

Para análise das evocações, utilizou-se o software EVOC (Ensemble de Programmes Permettant I’analyse des Evocations) - versão 2005, que possibilita efetuar análise prototípica a partir da organização dos termos evocados em função da frequência e ordem de evocação; o cruzamento desses dois critérios produz o quadro de quatro casas1313 Sá CP. Núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes; 2002.,1616 Vergès P. Approche du noyau central: proprietés quantitatives et estructurales. In: Guimelli C, éditeur. Structures et transformation des representations sociales. Paris: Delachaux et Niestlé; 1994. p. 233-53..

O quadro corresponde a quatro quadrantes que organizam os termos da seguinte forma: no quadrante superior esquerdo está o provável núcleo central da RS, são os termos mais significativos para os sujeitos, uma vez que apresentam uma alta frequência e o menor rang (ordem média de evocação). As palavras localizadas no quadrante superior direito constituem a primeira periferia (possuem alta frequência e rang também elevado), enquanto o quadrante inferior direito representa a segunda periferia, palavras com baixa frequência e alto rang. No quadrante inferior esquerdo estão os elementos de contraste, que apresentam baixa frequência e baixo rang1313 Sá CP. Núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes; 2002.,1616 Vergès P. Approche du noyau central: proprietés quantitatives et estructurales. In: Guimelli C, éditeur. Structures et transformation des representations sociales. Paris: Delachaux et Niestlé; 1994. p. 233-53..

Na segunda etapa da coleta de dados, que ocorreu de junho a agosto de 2019, solicitou-se ao mesmo grupo de ACSs que contribuiu na primeira etapa que participasse de outras técnicas de coleta de dados. Neste segundo momento, 60 ACSs colaboraram.

De acordo com a TNC, existem métodos de identificação dos elementos que pertencem efetivamente ao núcleo central, e estes devem conduzir a uma apreensão final mais consistente da estrutura da representação, que é tão necessária quanto a apreensão do conteúdo das RS1313 Sá CP. Núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes; 2002.. Nessa etapa da pesquisa, utilizaram-se os testes para confirmação de centralidade dos elementos e a ligação entre eles: o choix-par-bloc, a constituição de pares de palavras e o mise-en-cause. Esses testes foram planejados a partir do resultado anterior, ou seja, as palavras foram organizadas a partir da análise prototípica, para que os candidatos ao núcleo central fossem testados.

O choix-par-bloc, ou escolha sucessiva por blocos, permite uma abordagem quantitativa para os elementos da representação. Com sua utilização, evidenciam-se as relações de similitude no interior da representação, bem como aquelas de antagonismo ou exclusão, permitindo comparar a importância relativa de certos elementos1313 Sá CP. Núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes; 2002.. Assim, elaborou-se uma lista com os 15 elementos do quadro de quatro casas relacionados ao termo indutor “violência doméstica contra a mulher” e solicitou-se que as participantes escolhessem as cinco palavras que mais caracterizavam o objeto, as cinco que menos o caracterizavam, anotando também as cinco palavras restantes.

A constituição de pares de palavras consiste na identificação da propriedade quantitativa do elemento central por meio de sua conexidade. O método requer solicitar ao sujeito que constitua, a partir de um corpus (neste caso as evocações sobre VDCM), um conjunto de pares de palavras que parecem “ir juntas”1313 Sá CP. Núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes; 2002..

O mise-en-cause, ou técnica do questionamento, é um método qualitativo de verificação da centralidade do núcleo central por meio da saliência dos itens constituintes do objeto de representação1313 Sá CP. Núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes; 2002.. Dessa forma, parte-se do pressuposto de que os elementos centrais de uma representação são inegociáveis, ou seja, através de uma pergunta negativa, tendo como resposta sim, não e talvez; toda vez que, sem a presença de um dos cognemas, os sujeitos considerarem o objeto irreconhecível, é porque este cognema é central1717 Wolter RP, Wachelke J, Naiff D. A abordagem estrutural das representações sociais e o modelo dos esquemas cognitivos de base: perspectivas teóricas e utilização empírica. Temas Psicol 2016; 24(3):1139-1152.. Assim, foi apresentado o questionamento: pode existir VDCM sem agressão física? E assim sucessivamente com as palavras desrespeito, xingamento, falta de amor, tristeza, abuso sexual, covardia, maus-tratos e raiva.

A análise dos dados dos testes de centralidade ocorreu em três momentos. No primeiro realizou-se a análise do choix-par-bloc, ou teste de escolha sucessiva por blocos: para cada cognema, pontuou-se o valor, que variou de +1 a -1, sendo +1 para as palavras do bloco mais característico, -1 é para o menos característico e 0 para o restante. Para cada grupo, calculou-se o destaque médio de cada item, somando o total de valores conferido pela soma das relações entre dois elementos e dividindo-o pelo número de indivíduos, encontrando-se o índice de distância1313 Sá CP. Núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes; 2002.,1818 Aubert J, Abdi G. Représentations sociales de la gymnastique chez des enseignants stagiaires d'éducation physique et sportive et choix d'enseignement. Staps 2002; 59(3):9-22.. A operação é executada para cada par de cognemas e permite desenvolver a “matriz de similitude”, e o resultado é disposto na árvore máxima de similitude1313 Sá CP. Núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes; 2002.. Os dados da constituição de pares de palavras foram analisados por meio da técnica de análise de similitude, sendo calculado para cada par de palavras um índice de similitude (número de co-ocorrências dividido pelo número de sujeitos), esses dados foram dispostos na matriz de similitude e, para facilitar a compreensão, construiu-se a árvore máxima1313 Sá CP. Núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes; 2002..

O mise-en-cause é uma técnica de dupla negação que define o cálculo percentual para identificar a resposta mais escolhida de cada cognema (sim, não e talvez). A confirmação de um cognema como núcleo central da representação é pautada nas respostas negativas, ou seja, se mais de 75% das respostas são negativas negativa, pode-se dizer que esse cognema é núcleo central1919 Flament C, Rouquette ML. Anatomie des idées ordinaires. Paris: Armand Colin; 2003..

Este estudo atende às resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, que normatizam a pesquisa envolvendo seres humanos, e foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, sob parecer nº 3.233.780/2019 e CAAE: 07558718.1.0000.0055.

Resultados

Participaram das evocações livres 107 ACSs, das quais 103 eram do sexo feminino, a idade variou entre 29 e 67 anos, com predominância (48) para a faixa etária entre 36 a 45 anos, cor parda (68) e casadas (62), o tempo de atuação como ACS variou de 10 a 23 anos, sendo que a maioria apresentava de 20 a 23 anos de atuação (52). Dos testes de centralidades participaram 60 ACSs, das quais 57 eram do sexo feminino, 37 eram evangélicas e apresentavam renda familiar variando de um a três salários-mínimos (46).

O corpus formado pelas evocações das ACS frente ao termo indutor “violência doméstica contra a mulher” totalizou 523 palavras, sendo 99 diferentes, a ordem média de evocações (rang) foi de 2,60, a frequência mínima foi de 11 e a frequência média de 21. A análise dos dados resultou no quadro de quatro casas (Quadro 1).

Quadro 1
Quadro de quatro casas formado pelas evocações das agentes comunitárias de saúde frente ao termo indutor “violência doméstica contra a mulher”. Jequié, Bahia, Brasil, 2019 (n = 107).

No quadrante superior esquerdo estão os termos mais relevantes e significativos, constituindo provavelmente o núcleo central da representação1515 Oliveira DC, Marques SC, Gomes AMT, Trigueiro MCTV. Análise das evocações livres: uma técnica de análise estrutural das representações sociais. In: Moreira ASP, Camargo BV, Jesuíno J, Nóbrega S, organizadores. Perspectivas teórico-metodológicas em representações sociais. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB; 2005. p. 573-603.. Observa-se que as palavras agressão física, desrespeito e xingamento apresentaram frequência maior e foram evocadas mais prontamente, justificando a presença no núcleo central1313 Sá CP. Núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes; 2002.. Agressão física foi o termo mais evocado e com a menor ordem média de evocação, xingamento apresentou alta frequência, entretanto o elemento desrespeito, apesar de não apresentar frequência tão alta como os termos agressão física e xingamento, apresentou uma ordem média de evocação menor do que xingamento, o que explica também sua importância como provável núcleo central.

Nos quadrantes superior e inferior direitos estão situados os elementos de primeira e segunda periferia. Na primeira periferia encontramos os termos falta de amor e tristeza colocados como elementos periféricos mais importantes, em função de suas elevadas frequências, que podem revelar-se centrais1515 Oliveira DC, Marques SC, Gomes AMT, Trigueiro MCTV. Análise das evocações livres: uma técnica de análise estrutural das representações sociais. In: Moreira ASP, Camargo BV, Jesuíno J, Nóbrega S, organizadores. Perspectivas teórico-metodológicas em representações sociais. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB; 2005. p. 573-603.. No quadrante inferior direito estão os elementos mais instáveis às mudanças, associados ao contexto de vida e às práticas sociais1515 Oliveira DC, Marques SC, Gomes AMT, Trigueiro MCTV. Análise das evocações livres: uma técnica de análise estrutural das representações sociais. In: Moreira ASP, Camargo BV, Jesuíno J, Nóbrega S, organizadores. Perspectivas teórico-metodológicas em representações sociais. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB; 2005. p. 573-603., são eles: ciúmes, dependência financeira, drogas, machismo, medo e morte.

No quadrante inferior esquerdo, ou zona de contraste, temos os elementos abuso sexual, covardia, maus-tratos e raiva, que apresentam baixas frequências e foram prontamente evocados, são termos evocados por poucos participantes mas que podem reforçar as ideias da primeira periferia, complementar e discutir o núcleo central ou ainda revelar a existência de um subgrupo com representação diferente1010 Amarijo CL, Gomes VLO, Gomes AMT, Fonseca AD, Silva CD. Representação social de profissionais de enfermagem acerca da violência doméstica contra a mulher: abordagem estrutural. Rev Enferm UERJ 2017; 25:e23648..

Desse modo, serão apresentados os resultados dos testes de centralidade, a fim de aprofundar as hipóteses de centralidade das representações das ACSs sobre a VDCM.

No método choix-par-bloc, as ligações estabelecidas entre os elementos apresentaram a conformação verificada na Figura 1.

Figura 1
Árvore máxima de similitude a partir do choix-par-bloc para os elementos do termo violência doméstica contra a mulher. Jequié, BA, Brasil, 2019 (n = 60).

O termo desrespeito aparece ligado apenas à palavra agressão física, sendo esta a ligação mais forte dos cognemas. Agressão física apresenta quatro ligações. Além de desrespeito, ligou-se a outros elementos da segunda periferia, como machismo, que por sua vez se ligou à covardia; aparece também outro elemento ciúmes, bem como maus-tratos. O cognema maus-tratos se ligou a três elementos; além de agressão física, possui conexidade com o termo da zona de contraste abuso sexual e apresenta forte ligação com o elemento do provável núcleo central xingamento. Este se ligou a tristeza, elemento da primeira periferia que foi o cognema que mais fez ligações. além de xingamento, faz laços com falta de amor, dependência financeira, raiva e medo, sendo que medo se ligou a outros elementos da segunda periferia: morte e drogas.

Dessa forma, além do termo agressão física já ter sido apontado na análise do quadro de quatro casas como provável elemento central, pode-se considerá-lo também na análise do choix-par-bloc e incluir outros elementos como prováveis termos centrais, como maus-tratos e tristeza.

Outro teste de confirmação de centralidade utilizado foi a constituição de pares de palavras, e como resultado da aplicação do instrumento, produziu-se outra árvore máxima considerando o cálculo do índice de similitude, conforme apresentado na Figura 2.

Figura 2
Árvore máxima de similitude por pares de palavras para o termo violência doméstica contra a mulher. Jequié, BA, Brasil, 2019 (n = 60).

Nessa árvore máxima, observa-se que o elemento tristeza apresentou o maior número de conexões, com quatro ligações aos termos; seguida de machismo, desrespeito, falta de amor, cada qual com três conexões com os demais termos. Nesse resultado, o termo desrespeito continua aparecendo como um elemento central, conforme o quadro de quatro casas, apresentando a conexão mais forte com o termo xingamento, que assim como o termo agressão física aparece como provável elemento centrais na análise prototípica, entretanto nesse resultado não se confirma.

Assim, os prováveis elementos centrais para esse teste, ou seja, que apresentam mais conexidades, são: desrespeito, machismo, falta de amor e tristeza. Constatou-se que aparecem como possíveis elementos centrais das RS de ACSs sobre a VDCM termos componentes do sistema periférico. Dessa forma, esses achados possibilitam compreender a necessidade de utilização de vários métodos nos estudos sobre as RS para certificar a centralidade dos elementos e definir a estrutura representacional.

O mise-en-cause, ou técnica do questionamento, contribuiu para o estudo com a identificação sistemática e da propriedade qualitativa dos elementos centrais2020 Wachelke J. Social representations: a review of theory and research from the structural approch. Univ Psychol 2012; 11:729-741.. Dessa maneira, foram testados os elementos que mais se destacaram na análise do quadro de quatro casas, como os termos do possível núcleo central, da primeira periferia e da zona de contraste. Os números de respostas negativas, positivas ou “talvez” referentes a cada elemento, seguido da porcentagem, estão demonstrados na Tabela 1.

Tabela 1
Distribuição das respostas à técnica do questionamento (mise-en-cause) para o termo violência doméstica contra a mulher. Brasil, 2019 (n = 60)

Na Tabela 1, observam-se os elementos mais característicos das RS da VDCM, entretanto, no pensamento social das ACSs, os elementos inegociáveis são: desrespeito, tristeza e covardia, ou seja, esses termos apresentaram mais de 75% de respostas negativas pela técnica do questionamento, demonstrando resultado positivo como pertencente ao núcleo central. O elemento desrespeito, presente no núcleo central do quadro de quatro casas, foi o que obteve maior porcentagem na confirmação, com 88,34%, entretanto os termos agressão física (5%) e xingamento (15%), também presentes no quadrante do provável núcleo central, não conseguiram atingir os 75%, tendo a centralidade refutada nesse teste.

O elemento tristeza presente na primeira periferia da análise prototípica teve a centralidade confirmada, com 78,34%, já a falta de amor, também presente nesse quadrante, apresentou apenas 31,67%, porcentagem muito baixa para confirmar centralidade. Os elementos da zona de contraste apresentaram importância nesse teste, o cognema covardia teve o segundo maior percentual (85%), confirmado como inegociável na representação da VDCM. Os demais termos, abuso sexual (3,34%), maus-tratos (71,67%) e raiva (56,67%) não foram centrais. Assim, para o método mise-en-cause, os elementos centrais são: desrespeito, tristeza e covardia.

A partir dos achados apresentados é possível identificar o núcleo central e descrever a estrutura do pensamento das ACS sobre a VDCM. Assim, como critério de análise para a definição de um elemento como central, estabeleceu-se um mínimo de três métodos com indicação para a centralidade do elemento2121 Nogueira, VPF. As representações sociais da espiritualidade e da religiosidade para pessoas que vivem com HIV/Aids: estrutura de pensamento, enfrentamento da síndrome e cuidado de enfermagem [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2019..

Verifica-se que os termos agressão física, desrespeito e xingamento se apresentaram como provável núcleo central na análise prototípica, mas só desrespeito confirmou a centralidade, por apresentar comprovação também em outros dois métodos: constituição de pares de palavras e o mise-en-cause. Falta de amor e tristeza são elementos pertencentes à primeira periferia, porém pode-se confirmar a centralidade do termo tristeza por apresentar resultado positivo para centralidade nos três testes: choix-par-bloc, pares de palavras e mise-en-cause. Os elementos pertencentes ao quadrante da zona de contraste, abuso sexual, covardia, maus-tratos e raiva, não confirmaram ser elementos centrais, de acordo os resultados. Dessa forma, pode-se verificar como elementos centrais que organizam a estrutura representacional das representações sociais de ACSs sobre a VDCM: desrespeito e tristeza.

Discussão

As RS, de acordo a abordagem estrutural, tendem a verificar a influência dos fatores sociais nos processos de pensamento por meio da identificação e organização de estrutura de relações2020 Wachelke J. Social representations: a review of theory and research from the structural approch. Univ Psychol 2012; 11:729-741.. Observou-se, a partir do conjunto de análises, que as RS de ACSs sobre VDCM se estruturam em dois elementos centrais: desrespeito e tristeza, que atribuem à representação sentidos negativos relativos ao posicionamento do grupo diante do agravo e suas repercussões.

O núcleo central de uma representação deve desempenhar o papel avaliativo e pragmático, para isso devem formar elementos normativos e funcionais2222 Silva CD, Gomes VLO, Oliveira DC, Marques SC, Fonseca AD, Martins SR. Representação social da violência doméstica contra a mulher entre técnicos de enfermagem e agentes comunitários. Rev Esc Enferm USP 2015; 49(1):22-29.. Dessa forma, observa-se que as representações dessas profissionais estão organizadas em torno da dimensão atitudinal por meio do termo desrespeito e da dimensão afetiva definida pela tristeza.

O desrespeito constitui um elemento normativo, refere-se ao sistema de valores dos sujeitos e atribui um aspecto social ao núcleo central. Percebe-se que, para as ACSs, o desrespeito pode ser compreendido como uma atitude ou comportamento do agressor em relação à mulher, sendo o desencadeador dos episódios de violência doméstica. Os elementos do núcleo central geram um significado global da representação, têm raízes históricas e ideológicas fortes e são consensuais no grupo2121 Nogueira, VPF. As representações sociais da espiritualidade e da religiosidade para pessoas que vivem com HIV/Aids: estrutura de pensamento, enfrentamento da síndrome e cuidado de enfermagem [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2019..

A violência é um desrespeito que ocorre dentro da própria casa da mulher, ambiente que serviria de proteção mas torna-se inseguro, pois o agressor encontra-se dentro do lar2323 Amarijo CL, Barlem ELD, Acosta DF, Marques SC. Assimilação teórica e prática da violência doméstica: profissionais de enfermagem atendendo vítimas na atenção primária. Rev Enferm UERJ 2018; 26:e33874.. Assim, o desrespeito está ancorado em valores perpetuados pela sociedade, e nesse contexto as relações de desigualdades entre homens e mulheres geram atitudes de intolerância e desrespeito e funcionam como alicerces para a violência11 Acosta DF, Gomes VLO, Oliveira DC, Marques SC, Fonseca AD. Representações sociais de enfermeiras acerca da violência doméstica contra a mulher: estudo com abordagem estrutural. Rev Gaucha Enferm 2018; 39:e61308..

No que diz respeito à análise prototípica, é observado que o desrespeito compõe, juntamente com os elementos agressão física e xingamento, o provável núcleo central. Esses termos, além de indicarem a dimensão conceitual e imagética da representação, demonstram a forma física e psicológica da VDCM. A violência física é a mais reconhecida pelos profissionais de saúde quando as mulheres procuram os serviços, pois deixa marcas físicas11 Acosta DF, Gomes VLO, Oliveira DC, Marques SC, Fonseca AD. Representações sociais de enfermeiras acerca da violência doméstica contra a mulher: estudo com abordagem estrutural. Rev Gaucha Enferm 2018; 39:e61308., já o xingamento é entendido como um tipo de violência psicológica que impacta na saúde com a mesma ou maior intensidade, pelo dano emocional e a diminuição da autoestima; e pode apresentar-se invisível às mulheres agredidas, por considerarem um comportamento normal dentro dos moldes familiares33 Nóbrega VKM, Pessoa Júnior JM, Nascimento EGC, Miranda FAN. Renúncia, violência e denúncia: representações sociais do homem agressor sob a ótica da mulher agredida. Cien Saude Colet 2019; 24(7):2659-2666..

Nesse contexto, há repercussões significativas para a saúde mental e física de todos os membros da família, não apenas para as mulheres que vivenciam a violência, devido principalmente à cultura perpetuada da violência2424 Walker-Descartes I, Mineo M, Condado LV, Agrawal N. Domestic Violence and Its Effects on Women, Children, and Families. Pediatr Clin North Am 2021; 68(2):455-464.. Estudo realizado em Bangladesh entrevistou 87 mulheres em situação de violência por parceiro íntimo que apresentaram a violência física como a principal forma de agressão, com repercussões na vida de outros membros familiares2525 Chowdhury MAK, Rahman AE, Morium S, Hasan MM, Bhuiyan A, Arifeen SE. Domestic Violence Against Women in Urban Slums of Bangladesh: A Cross-Sectional Survey. J Interpers Violence 2021; 36(9-10):NP4728-NP4742..

Pesquisa conduzida na cidade de Petrolina/PE constatou que muitas situações de agressões físicas estiveram ligadas à ocorrência de violência/abuso sexual2626 Viana AL, Lira MOSC, Vieira MCA, Sarmento SS, Souza APL. Violência contra a mulher. Rev Enferm UFPE 2018; 12(4):923-929.. No presente estudo, o abuso sexual encontra-se na zona de contraste no quadro de quatro casas, o que reforça a ideia das formas de violência no imaginário social das ACSs e dá sentido ao elemento maus-tratos. Na análise do choix-par-bloc, verifica-se que o elemento maus-tratos apresenta importância, com possível centralidade pelas conexões estabelecidas com os temos agressão física, abuso sexual e xingamento; entretanto, em outros testes de centralidade não se confirmou como central.

Nesse contexto, para essas profissionais de saúde, a VDCM é um desrespeito às mulheres, praticado em atos que correspondem a agressão física, xingamento, abuso sexual e maus-tratos, que colocam em risco a saúde física e psicológica de mulheres. A partir desse entendimento, as ACSs evidenciaram a imagem que criam dos agressores, associando-os aos elementos covardia e machismo, que reforçam o sistema de valores junto ao termo desrespeito.

O termo covardia integrou o núcleo central do quadro de quatro casas de outros estudos efetuados com profissionais de saúde sobre a VDCM1010 Amarijo CL, Gomes VLO, Gomes AMT, Fonseca AD, Silva CD. Representação social de profissionais de enfermagem acerca da violência doméstica contra a mulher: abordagem estrutural. Rev Enferm UERJ 2017; 25:e23648.,2222 Silva CD, Gomes VLO, Oliveira DC, Marques SC, Fonseca AD, Martins SR. Representação social da violência doméstica contra a mulher entre técnicos de enfermagem e agentes comunitários. Rev Esc Enferm USP 2015; 49(1):22-29.,2727 Broch D, Silva CD, Acosta DF, Mattos MB, Amarijo CL, Gomes VLO. Representações sociais da violência doméstica contra a mulher entre profissionais de saúde: um estudo comparativo. Rev Enferm Centro-Oeste Mineiro 2017; 7:e1630.,2828 Silva CD, Gomes VLO, Oliveira DC, Amarijo CL, Acosta DF, Mota MS. Representação da violência doméstica contra mulheres entre profissionais de saúde: idade como atributo de diferenciação. Rev enferm UERJ 2016; 24(3):e13212.. No presente estudo, o elemento covardia fez parte da zona de contraste do quadro de quatro casas e se demonstrou como um termo inegociável nas RS de ACSs sobre a VDCM no teste mise-en-cause, entretanto não confirmou sua centralidade em outros métodos. Já o elemento machismo apresentou-se como importante na organização da análise de similitude dos pares de palavras, com laços com os termos desrespeito, covardia e ciúmes.

A dimensão atitudinal traz as questões de gênero como reflexão, sendo fundamentais na interpretação do fenômeno, ao perceber que as condições histórico-culturais continuam a contribuir para a legitimação da subalternidade da mulher e a superioridade do homem, que por meio das relações hierárquicas exerce o poder sobre mulheres e filhos2929 Saffioti HIB. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2011..

Com isso, os papéis estereotipados, entendidos como algo natural, resultaram na desigualdade de gênero22 Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real 1995; 20(2):71-99., e a violência passa a ser utilizada como manifestação dessa dominação musculina, ou seja, a submissão do mais fraco ao mais forte traduzida em maus-tratos33 Nóbrega VKM, Pessoa Júnior JM, Nascimento EGC, Miranda FAN. Renúncia, violência e denúncia: representações sociais do homem agressor sob a ótica da mulher agredida. Cien Saude Colet 2019; 24(7):2659-2666.. Dessa forma, a mentalidade patriarcal, que preconiza o controle das mulheres pelos homens, estará sempre presente nas agressões, principalmente por ciúmes, refletindo o receio do homem pela perda do objeto sexual e social3030 Balbinotti I. A violência contra a mulher como expressão do patriarcado e do machismo. Rev ESMESC 2018; 25(31):239-264..

Nesse contexto, em torno da estrutura representacional das ACSs sobre a VDCM, a tristeza é revelada como elemento central e funcional; e como sentimento cultivado pelas profissionais frente aos atos de violência. Esse elemento assume a dimensão afetiva dessa representação e desempenha um papel funcional, pois por meio dele a representação pode se ancorar na realidade e mas práticas sociais das ACSs. Assim, neste estudo, pauta-se que a prática não deve ser entendida somente como comportamento físico, mas também o discurso em torno do objeto social3131 Arboit J, Padoin SMM, Vieira LB. Violence against women in Primary Health Care: Potentialities and limitations to identification. Atencion Primaria 2020; 52(1):14-21..

Pesquisa realizada com profissionais de saúde sobre a VDCM apontou que a tristeza é um sentimento demonstrado por eles ao presenciar uma situação de violência, além de referirem que esse sentimento é também experienciado pelas mulheres que vivenciam a violência2828 Silva CD, Gomes VLO, Oliveira DC, Amarijo CL, Acosta DF, Mota MS. Representação da violência doméstica contra mulheres entre profissionais de saúde: idade como atributo de diferenciação. Rev enferm UERJ 2016; 24(3):e13212.. Outro estudo efetuado com ACSs demonstrou que o sentimento de tristeza permeia as suas práticas assistenciais, pois são profissionais que reconhecem as fragilidades de suas ações frente à violência doméstica contra a mulher3232 Machado, JC, Santos CS, Simões AV, Souza SL, Rodrigues VP, Vilela ABA. Dimensión práctica de las representaciones sociales de los agentes de salud comunitarios sobre la violencia doméstica contra la mujer. Enferm Glob 2022; 21(68):216-257..

A partir da análise de similitude do choix-par-bloc, observa-se que a tristeza apresenta um maior número de conexões, trazendo outras cargas afetivas para a representação, como o medo, a raiva e falta de amor.

O medo traz um misto de sentimentos no contexto da VDCM tanto para profissionais de saúde quanto para as mulheres. Em relação às profissionais, esse termo afetivo está atrelado ao despreparo profissional para agir diante do agravo e o temor de sofrer represálias dos agressores, limitando sua prática assistencial. E para as mulheres, o medo de se sentirem culpadas pela situação, a subalternidade diante do agressor e o medo da morte1010 Amarijo CL, Gomes VLO, Gomes AMT, Fonseca AD, Silva CD. Representação social de profissionais de enfermagem acerca da violência doméstica contra a mulher: abordagem estrutural. Rev Enferm UERJ 2017; 25:e23648.,3131 Arboit J, Padoin SMM, Vieira LB. Violence against women in Primary Health Care: Potentialities and limitations to identification. Atencion Primaria 2020; 52(1):14-21..

A disputa de poder do homem sobre a mulher comporta o controle e o medo3131 Arboit J, Padoin SMM, Vieira LB. Violence against women in Primary Health Care: Potentialities and limitations to identification. Atencion Primaria 2020; 52(1):14-21.. Estudo realizado na Arábia Saudita apontou que as mulheres relutam em revelar a violência doméstica sofrida por vários fatores, entre eles o medo de perder a família e a vergonha3333 Wali R, Khalil A, Alattas R, Foudah R, Meftah I, Sarhan S. Prevalence and risk factors of domestic violence in women attending the National Guard Primary Health Care Centers in the Western Region, Saudi Arabia, 2018. BMC Public Health 2020; 20(1):239..

Todo esse contexto propicia que as ACSs exponham o sentimento de raiva, que pode ser refletido por toda a influência de papéis sociais entre o ser homem e o ser mulher naturalizados na sociedade e a ausência de tomada de decisão da mulher em busca de mudanças. Pesquisa feita com ACSs apontou que a revolta é vista como um sentimento do profissional resultante das repetidas reconciliações da mulher com o agressor, que o desmotiva a ajudar e apoiar as mulheres em situação de violência doméstica77 Broch D, Gomes VLO, Silva CD, Gomes GC, Gautério-Abreu DP, Mattos MB. Violência doméstica contra a mulher: representações sociais de agentes comunitários de saúde. Rev enferm UFPE on line 2016; 10(10):3743-3750..

As vivências de ACSs junto às mulheres em situação de violência vislumbram que a atenção à saúde deve possibilitar o desenvolvimento de estratégias de identificação e intervenção, com oferecimento de suporte3434 Couto MVO, Simões AV, Santos CS, Rodrigues VP, Vilela ABA, Machado JC. Estrutura representacional de agentes comunitários sobre atenção à saúde da mulher em situação de violência. Saud Coletiv (Barueri) 2022;12(81):11546-11555..

A falta de amor pode ser representada pelas ACSs por intermédio de suas experiências práticas, em que tendem a observar os conflitos interpessoais vivenciados pelas mulheres, refletindo-se na falta de amor-próprio e na relação homem e mulher. As situações de violência revelam um contraponto: o homem que, de marido idealizado, passa à condição de agressor. E apresentam nesse enfrentamento o limite entre o amor e a violência33 Nóbrega VKM, Pessoa Júnior JM, Nascimento EGC, Miranda FAN. Renúncia, violência e denúncia: representações sociais do homem agressor sob a ótica da mulher agredida. Cien Saude Colet 2019; 24(7):2659-2666..

As mulheres, primando pelo amor e pela família, passam a justificar o comportamento agressivo do parceiro pelo uso de álcool e/ou outras drogas ou por distúrbio de personalidade33 Nóbrega VKM, Pessoa Júnior JM, Nascimento EGC, Miranda FAN. Renúncia, violência e denúncia: representações sociais do homem agressor sob a ótica da mulher agredida. Cien Saude Colet 2019; 24(7):2659-2666.. Por sua vez, o uso abusivo de drogas é uma realidade comum entre os agressores, e os profissionais de saúde tendem a evidenciá-lo como um dos fatores desencadeadores da VDCM2828 Silva CD, Gomes VLO, Oliveira DC, Amarijo CL, Acosta DF, Mota MS. Representação da violência doméstica contra mulheres entre profissionais de saúde: idade como atributo de diferenciação. Rev enferm UERJ 2016; 24(3):e13212..

Desse modo, o núcleo central composto pelos elementos desrespeito e tristeza define e distingue as RS de ACSs sobre a VDCM, já os outros elementos integram as informações particulares à estrutura da representação, justificando-as e ligando-as às práticas.

Conclusão

A partir da análise prototípica, foi possível compreender o pensamento social das ACSs, alicerçados em elementos compartilhados e cognitivamente ativados, apresentando como possível núcleo central os termos “agressão física”, “desrespeito” e “xingamento”.

Ao longo da análise estrutural, a partir do quadro de quatro casas, foram realizados testes para definir a centralidade e o papel dos elementos que compõem a representação. No choix-par-bloc, observou-se que os elementos que apresentaram mais conexões foram “agressão física”, “tristeza” e “maus-tratos”. Na árvore máxima de similitude dos pares de palavras, os elementos com maior saliência foram “desrespeito”, “falta de amor”, “tristeza” e “machismo”. No mise-en-cause, os elementos inegociáveis para as ACSs no contexto da VDCM foram “desrespeito”, “tristeza” e “covardia”. Assim, a centralidade na RS sobre a VDCM ocorreu para os elementos “desrespeito” e “tristeza”, confirmada pelos três métodos aplicados.

Entende-se que as ACSs, por meio desses elementos, trazem a dimensão atitudinal e afetiva da representação da VDCM, assumindo um papel normativo e funcional. O desrespeito organiza o pensamento social a partir dos valores e julgamentos das ACSs frente aos atos dos agressores, e a tristeza traz a carga afetiva e prática dessas profissionais, por meio de suas experiências no contexto da VDCM.

Acredita-se que o entendimento da organização do pensamento social das ACSs sobre a VDCM possibilite a problematização na equipe de saúde da família sobre o fenômeno, assim como a elaboração de estratégias de prevenção e enfrentamento à situação de violência contra mulheres, a agressores e de atuação na comunidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2022
  • Aceito
    05 Dez 2022
  • Publicado
    07 Dez 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br