A redução de risco de desastres, a agenda dos Objetivos Sustentáveis e os princípios do SUS, no contexto da pandemia de COVID-19

Renato França da Silva André Machado de Siqueira Lucia Teresa Côrtes da Silveira Alexandre Barbosa de Oliveira Sobre os autores

Resumo

O objetivo foi analisar os nexos entre o Marco de Sendai para a Redução do Risco de Desastres, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), no contexto da emergência de saúde pública da pandemia de COVID-19, e suas potenciais implicações para a saúde da população. O estudo é qualitativo, transversal, exploratório, com dados coletados junto a profissionais de saúde com experiência em práticas assistenciais e de gestão de risco de emergências e desastres, e tratados pelo software Iramuteq para análise lexical. O corpus textual foi apresentado através da classificação hierárquica descendente, que originou sete classes aglutinadas em três categorias denominadas: resposta a desastres no contexto do SUS; prevenção de futuros riscos de desastres; e ações de preparação e recuperação a partir do Marco de Sendai e dos ODS. Ressaltou-se aspectos sobre os efeitos diretos e indiretos da pandemia de COVID-19 e os desafios relacionados à redução do risco de desastres preconizados no Marco de Sendai, apontando a necessidade de fortalecer a cultura de segurança e sustentabilidade no âmbito do SUS, o que se coaduna com os ODS, bem como aos determinantes sociais da saúde.

Palavras-chave:
Etapas do desastre; Sistema Único de Saúde; Saúde Pública; Desenvolvimento sustentável; COVID-19

Introdução

A Política Nacional de Vigilância em Saúde define “emergência em saúde pública” (ESP) como situação que impõe o emprego urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública, o que se aplica ao exemplo contemporâneo da pandemia de COVID-1911 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de Saúde (CNS). Resolução n° 588, de 12 de julho de 2018. Política Nacional de Vigilância em Saúde. Brasília: MS; 2018.. Na Classificação e Codificação Brasileira de Desastres (COBRADE), esta pandemia pode também ser tipificada como desastre de origem natural de tipologia biológica22 Brasil. Ministério da Integração Nacional. Classificação e Codificação Brasileira de Desastres (Cobrade) [Internet]. 2012 [acessado 2018 maio 6]. Disponível em: http://www.integracao.gov.br/documents/3958478/0/Anexo+V+-Cobrade_com+simbologia.pdf/d7d8bb0b-07f3-4572-a6ca-738daa95feb0.
http://www.integracao.gov.br/documents/3...
, uma vez que o desastre é caracterizado como um evento que combina ameaça natural e/ou tecnológica, exposição, condições de vulnerabilidade e capacidade de resposta insuficiente33 Narváez L, Lavell A, Ortega GP. La gestión del riesgo de desastres: un enfoque basado en procesos. Lima: Maiteé Flores Piérola - PullCreativo S.R.L; 2009..

No contexto brasileiro, os desastres são agravados pelos determinantes sociais e iniquidades em saúde, o que envolve maiores riscos entre famílias e grupos mais empobrecidos. Como resultado, geralmente observam-se expressivos efeitos nos campos sanitário, social, econômico, político e cultural, o que carece de atenção da comunidade científica em termos de serem desenvolvidos melhores padrões de prevenção, preparação, resposta e recuperação frente a tais eventos44 Valencio N. Desastre como prática sociopolítica de solapamento da segurança humana. In: Carmo R, Valencio N, organizadores. Segurança humana no contexto dos desastres. São Carlos: RiMa; 2014. p. 15-44.

5 United Nations Office for Disaster Risk Reduction (UNDRR). Sendai Framework for Disaster Risk Reduction 2015-2030. Geneva: UNDRR; 2015.

6 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Agenda de saúde sustentável para as Américas 2018-2030: um chamado à ação para a saúde e o bem-estar na região. In: Anais da 29ª Conferência Sanitária Pan-Pmericana, na 69a Sessão do Comitê Regional da OMS para as Américas. Washington, D.C.; 2017 set 25-29.
-77 Almeida LS, Cota ALS, Rodrigues DF. Saneamento, arboviroses e determinantes ambientais: impactos na saúde urbana. Cien Saude Colet 2020; 25(10):3857-3868..

No que tange à vulnerabilidade, enquanto conceito central para a compreensão dos fenômenos de emergências e desastres, a COVID-19 demonstrou certas especificidades por suas características sindêmicas. Com efeito, esta “sindemia”, neologismo formado a partir da associação das palavras sinergia (synergy) e epidemia (epidemic)88 Singer M, Bulled N, Ostrach B, Mendenhall E. Syndemics and the biosocial conception of health. Sci Direct 2017; 389(10072):941-950., que foi concebido por Merrill Singer na década de 1990, demonstra a interação sinérgica de doenças distintas em populações específicas, onde, por um lado, há uma doença infecciosa que causa quadro de síndrome respiratória aguda grave e, por outro lado, uma série de doenças não transmissíveis, cujos efeitos são potencializados ao se agregar a essas condições o contexto de disparidades social e econômica da população99 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet 2020; 396(10255):874.. Tal situação fez da pandemia de COVID-19 um desastre atípico e complexo, o que demanda alinhamentos futuros de marcos e agendas internacionais e esforço científico coletivo para assunção de melhores medidas de gestão de risco frente a novas pandemias.

Um exemplo emblemático é o Marco de Sendai 2015-2030, adotado na 3ª Conferência Mundial para Redução do Risco de Desastresrealizada na cidade de Hyogo (Japão), em março de 2015, ocasião em que se reiterou o compromisso dos Estados de minorar os potenciais riscos de desastres e aumentar a resiliência, no contexto da erradicação da pobreza, mote para o desenvolvimento sustentável. É sabido que mulheres, crianças, idosos e pessoas em situações de vulnerabilidade são afetadas de forma desproporcional nessas situações, fazendo-se necessário reduzir a exposição às ameaças para se evitar o desenvolvimento de novos riscos e se obter sistemas de responsabilização em todos os níveis55 United Nations Office for Disaster Risk Reduction (UNDRR). Sendai Framework for Disaster Risk Reduction 2015-2030. Geneva: UNDRR; 2015.. A gestão eficaz para redução do risco de desastres é investimento custo-efetivo ao prevenir perdas futuras, além de contribuir para o desenvolvimento sustentável. Este Marco deu continuidade ao Marco de Ação de Hyogo 2005-2015, objetivando avaliar, rever e identificar, neste último, lacunas, lições aprendidas e futuros desafios55 United Nations Office for Disaster Risk Reduction (UNDRR). Sendai Framework for Disaster Risk Reduction 2015-2030. Geneva: UNDRR; 2015..

Ademais, a agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram aprovados em setembro de 2015 pelos 193 países membros das Nações Unidas, quando visou-se aprimorar o desenvolvimento do mundo e a qualidade de vida das pessoas por meio de 17 objetivos com 169 metas a serem alcançadas por ações conjuntas locais, nacionais e internacionais, por todos os níveis de governo, organizações, empresas e sociedade. A Agenda apontou cinco áreas de importância, conhecidas como “5 Ps”: Pessoas, Planeta, Prosperidade, Paz e Parceria. Com o propósito de “não deixar ninguém para trás”, a Agenda de Saúde Sustentável para as Américas 2018-2030 representa a resposta da Saúde aos compromissos dos seus países membros. Entre os 17 objetivos ressaltam-se especialmente os objetivos 1 e 3, embora todos os demais sejam igualmente relevantes. Visa o objetivo 1 “acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares”, e o 3, “assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos e todas, em todas as idades”. Este último tem como meta 3.3: acabar, até 2030, “com epidemias de AIDS, tuberculose, malária e doenças tropicais negligenciadas, e combater a hepatite, doenças transmitidas pela água, e outras doenças transmissíveis”66 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Agenda de saúde sustentável para as Américas 2018-2030: um chamado à ação para a saúde e o bem-estar na região. In: Anais da 29ª Conferência Sanitária Pan-Pmericana, na 69a Sessão do Comitê Regional da OMS para as Américas. Washington, D.C.; 2017 set 25-29., segmento onde a COVID-19 está inserida.

Por seu turno, o Sistema Único de Saúde (SUS), que é a instituição jurídica que organiza as ações e serviços de saúde no Brasil criada pela Constituição de 19881010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Manual de direito sanitário com enfoque na vigilância em saúde. Brasília: MS; 2006., é estruturado de forma descentralizada, com atendimento integral, com prioridade às atividades preventivas e participação da sociedade, além de executar ações de vigilância epidemiológica, participar da formação de recursos humanos, da formulação das políticas e da execução das ações de saneamento básico, além de incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico, dentre outras atribuições constitucionais1111 Merhy EE, Bertussi DC, Santos MLM, Rosa NSF, Slomp Junior H, Seixas CT. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: composições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu) 2021; 26:e210491.. O SUS opera com princípios doutrinários: universalidade, equidade e integralidade; e com princípios operacionais: descentralização, regionalização, hierarquização e participação social1212 Gleriano JS, Fabro GCR, Tomaz WB, Goulart BF, Chaves LDP.Reflexões sobre a gestão do Sistema Único de Saúde para a coordenação no enfrentamento da COVID-19. Esc Anna Nery 2020; 24(n. esp.):e20200188..

Nesse sentido, este Sistema tem papel estratégico no cotidiano da população, inclusive nas emergências e desastres, situações em que os determinantes e condicionantes da saúde acabam por agravar as dificuldades operacionais e logísticas de resposta a tais eventos, como os de alimentação, moradia, urbanização, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação, transporte, lazer e acesso aos bens e serviços essenciais77 Almeida LS, Cota ALS, Rodrigues DF. Saneamento, arboviroses e determinantes ambientais: impactos na saúde urbana. Cien Saude Colet 2020; 25(10):3857-3868.,1313 Silva AM, Xavier DR, Rocha V. Do global ao local: desafios para redução de riscos à saúde relacionados com mudanças climáticas, desastre e Emergências em Saúde Pública. Saude Debate 2020; 44(n. esp. 2):48-68..

Nas emergências e desastres, o SUS demanda planejamento estratégico, interação, interlocução e articulação da rede assistencial e seus diferentes níveis e atores, sendo fundamentais, para tal, três medidas consideradas estratégicas: instituição de sala de situação, articulação e interação de atores e setores e plano estratégico emergencial, visando garantir a assistência à saúde da população com maior segurança e resolutividade1414 Oliveira AB, Freitas CM, Barcellos C, Vater MC, Fehn AC, Silveira LTC, Dal Poz MR, Galliez RM, Medronho RA. Organização emergencial da rede de atenção à saúde no estado do Rio de Janeiro para enfrentamento da pandemia do novo coronavírus (COVID-19): nota Técnica conjunta de pesquisadores da UFRJ, Uerj e Fiocruz. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020.. Na atualidade, as instâncias governamentais têm sido constantemente exigidas no que diz respeito à gestão de risco frentea esses eventos, os quais vêm determinando expressivas taxas de morbimortalidade, além dos impactos ambientais e societais. Preparar-se melhor interfere na redução dos efeitos dessas emergências no âmbito da saúde coletiva, e responder oportuna e efetivamente envolve necessariamente a integração das três esferas de gestão - Federal, Estadual e Municipal - do SUS1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Plano de resposta às emergências em saúde pública. Brasília: MS; 2014..

A gestão do risco de desastres em suas diferentes fases (prevenção/mitigação, preparação, resposta, recuperação) estáancorada em campos distintos de especialidade e ação, tanto internamente, nos diferentes níveis, como externamente, por meio de articulação e acordos internacionais33 Narváez L, Lavell A, Ortega GP. La gestión del riesgo de desastres: un enfoque basado en procesos. Lima: Maiteé Flores Piérola - PullCreativo S.R.L; 2009.. Para tanto, congregam-se decisões administrativas, organizacionais e operacionais, governamentais e não governamentais, em conjunto com a sociedade, tendo em vista políticas públicas e estratégias que possam levar à redução do impacto1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Plano de resposta às emergências em saúde pública. Brasília: MS; 2014.. O conjunto dessas ações, por se configurar como um processo de planejamento dinâmico e contínuo, é representado pelo ciclo de desastres (Figura 1).

Figura 1
Ciclo de desastres.

É no bojo do desenvolvimento de uma gestão de risco de desastres baseada em processos que se deve construir as práticas em saúde, de forma transversal, perscrutando os condicionantes sociais e econômicos, para que se alcance de forma equânime todos os cidadãos, sem fragmentar a atenção, o que às vezes ocorre nas emergências em saúde pública e nos desastres no país1616 Silveira LTC, Oliveira AB. Desafios e estratégias para a organização do setor saúde frente à pandemia de COVID-19. Res Soc Develop 2020; 9(8):e543985987.. Assim, buscar alinhamentos com os instrumentos ora existentes para a sistematização de ações para enfrentamento de tais eventos é oportuno e urgente. No cenário internacional destacam-se os postulados do Marco de Sendai para Redução do Risco de Desastres e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável; enquanto que, no cenário nacional, encarrega-se o SUS de dar conta da complexa tarefa de organização da resposta do setor saúde a tais situações, como no caso da pandemia de COVID-19.

Por essa via, o presente estudo objetiva analisar os nexos entre o Marco de Sendai para a Redução do Risco de Desastres, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e os princípios do SUS, no contexto de emergência de saúde pública da pandemia de COVID-19, e suas potenciais implicações para a saúde da população.

Metodologia

Trata-se de estudo qualitativo, transversal, de natureza exploratória, cujos dados foram coletados no primeiro semestre de 2021 junto a profissionais de saúde inscritos na disciplina eletiva “Seminário de Temas Emergentes da Prática Profissional: ênfase em Saúde em Emergências e Desastres (gestão de risco frente à COVID-19)”, do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu da Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, estando aprovado por comitê de ética e pesquisa (Parecer nº 3.653.634; CAE: 18207019.0.0000.5238). A coleta foi conduzida por membros do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão de Saúde em Emergências e Desastres (GEPESED), por meio de formulários aplicados junto aos 16 profissionais inscritos na disciplina, os quais possuíam experiência em assistência e gestão de risco de emergências e desastres.

Parte do curso foi desenvolvido em formato on-line com o título “Lições aprendidas em desastres: o caso da COVID-19”, e está disponível no canal do Youtube do GEPESED-UFRJ1717 Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão de Saúde em Emergências e Desastres (GEPESED-UFRJ). Curso online lições aprendidas em desastres: o caso da COVID-19 [Internet]. [acessado 2022 mar 3]. Disponível em: https://www.youtube.com/c/GEPESEDUFRJ/videos.
https://www.youtube.com/c/GEPESEDUFRJ/vi...
.

Os dados textuais obtidos das atividades complementares desenvolvidas, a fim de atender ao objetivo traçado, foram tratados por meio do Iramuteq®. Trata-se de software gratuito, licenciado por GNU GPL (v2), ancorado no software R para os cálculos estatísticos1818 The R Project for Statistical Computing. Software R para os cálculos estatísticos [programa de computador]. [acessado 2022 mar 3]. Disponível em: www.r-project.org.
www.r-project.org...
, que usa a linguagem Python1919 Python [programa de computador]. [acessado 2022 mar 3]. Disponível em: www.python.org.
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, interface de R, para análises multidimensionais de textos e questionários, em tradução livre do francês, Interface de R pourles Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires2020 Souza MAR, Wall ML, Thuler ACMC, Lowen IMV, Peres AM. O uso do software Iramuteq na análise de dados em pesquisas qualitativas. Rev Esc Enferm USP 2018; 52:1-7..

O uso desta tecnologia computacional permitiu melhor rigor metodológico e maior credibilidade na análise textual ao agregar a análise estatística, gráficos e elementos visuais, a fim de evoluir para além da análise apenas dos discursos2121 Silva S, Ribeiro EAW. O software Iramuteq como ferramenta metodológica para análise qualitativa nas pesquisas em educação profissional e tecnológica. Braz J Edu Technol Soc2021; 14(2):275-284..

Para análise lexical, o conteúdo advindo da discursividade dos 16 profissionais constituiu o corpus, onde cada participante foi codificado pela letra “E” seguida de número sequencial (E_1 a E_16). O corpus foi compactado em arquivo único salvo como documento de texto, por meio do Unicode Transformation Format 8 bit code units (UTF-8). Uniformizam-se as siglas, como por exemplo: Redução de Risco de Desastres para RRD; Unidade de Tratamento Intensivo para UTI. As palavras separadas que, juntas, têm o sentido de termo único, foram aglutinadas com o uso de traço subscrito, como por exemplo: pós_desastres, ventilador_mecânico, a fim de garantir maior aproveitamento do texto2020 Souza MAR, Wall ML, Thuler ACMC, Lowen IMV, Peres AM. O uso do software Iramuteq na análise de dados em pesquisas qualitativas. Rev Esc Enferm USP 2018; 52:1-7..

Resultados

O corpus textual trabalhado pelo software foi reconfigurado em segmentos de texto, os quais passaram por análise lexical que resultou em tabelas com a listagem dos vocábulos. Essa operação metodológica resultou na Classificação Hierárquica Descendente (CHD), onde segmentos do texto foram classificados pelos seus vocábulos e seu conjunto repartido, de acordo com a frequência das formas lematizadas em segmentos com tamanho de três linhas geradas em função do tamanho do corpus. Realizada a análise estatística, na aba resumo e no relatório rapport do programa, foi possível observar que o corpus foi processado em 22 segundos, e que os 16 textos foram processados, o que é importante para validar a análise realizada2121 Silva S, Ribeiro EAW. O software Iramuteq como ferramenta metodológica para análise qualitativa nas pesquisas em educação profissional e tecnológica. Braz J Edu Technol Soc2021; 14(2):275-284.. Ao todo foram obtidos 328 segmentos de texto, 11.927 ocorrências, 1.782 formas e 810 hapax ou formas com uma única incidência. Com a frequência das formas ativas ≥3: 566, divididas em sete classes com os 296 segmentos classificados, obteve-se um aproveitamento de 90,24%. Considera-se a retenção mínima de 75% dos segmentos de texto como um bom aproveitamento das análises de CHD2222 Camargo BV, Justo AM. Tutorial para uso do software de análise textual IRAMUTEQ [Internet]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2013 [acessado 2022 mar 3]. Disponível em: http://www.iramuteq.org/documentation/fichiers/tutoriel-en-portugais..

Uma vez realizada a classificação pelo método de Reinert e com a opção pela CHD simples, cada segmento de texto foi analisado de acordo com o vocabulário nele contido. O corpus foi composto por sete classes formadas após seis partições (Figura 2). A primeira partição dividiu o corpus em dois conjuntos temáticos, A e B, representados pelo dendrograma das classes, que inclui a demonstração da associação entre eles. O conjunto temático A, após a segunda partição separa as classes 3 e 7. O conjunto temático B, com a terceira partição, separa as classes 1 e 2 das classes 4, 5 e 6. A quarta partição separa as classes 4 e 5 da classe 6, enquanto a quinta partição separa as classes 4 e 5. Já a sexta partição separa as classes 1 e 2.

Figura 2
Dendrograma das classes.

A Figura 3 demonstra a representação gráfica da análise de similitude da estrutura da base de dados textual do corpus, ao ilustrar aspalavras e suas ligações próximas ou distantes entre si, enfatizando e estabelecendo nexos entre os léxicos referentes à saúde, ação, desastre, risco e desenvolvimento.

Figura 3
Análise de similitude.

Já o dendrograma representado na Figura 4 demonstra as palavras mais frequentes do corpus, com a unidade de contexto inicial (UCI) representada por cada construção textual dos 16 profissionais, dando origem às unidades de contexto elementar ou segmentos de texto de cada uma das classes, onde o vocabulário de cada classe guarda semelhanças entre si, sendo diferente do vocabulário das demais classes. O peso dos textos em cada classe e a força associativa entre as palavras e suas classes é analisada quando o teste do qui-quadrado é maior que 3,84, representando p<0,0001. Assim, quanto menor o valor do qui-quadrado menor é a relação entre as variáveis2020 Souza MAR, Wall ML, Thuler ACMC, Lowen IMV, Peres AM. O uso do software Iramuteq na análise de dados em pesquisas qualitativas. Rev Esc Enferm USP 2018; 52:1-7.. A classe 1 corresponde a 11,82% com 52 formas e três textos predominantes E_16, E_13 e E_09; a classe 2 corresponde a 13,18% com 62 formas e dois textos predominantes E_15 e E_12; a classe 3 corresponde a 23,29%, com 65 formas e dois textos predominantes E_08 e E_03; a classe 4 corresponde a 11,82%, com 48 formas e três textos predominantes E_02, E_04 e E_11; a classe 5 corresponde a 15,2%, com 57 formas e dois textos predominantes E_15 e E_01; a classe 6 corresponde a 12,5%, com 42 formas e dois textos predominantes E_15 e E_01; e a classe 7 corresponde a 15,88%, com 65 formas e três textos predominantes E_06, E_09 e E_10. Todos os textos predominantes têm p<0,05 e x²>3,80.

Figura 4
Classificação Hierárquica Descendente.

A seguir estão demonstradas as classes definidas pela CHD, as quais foram estruturadas por categorias, a partir do conteúdo dos segmentos de texto e frequência das palavras, levando em consideração os processos de gestão de risco de desastres.

Resposta a desastres no contexto do SUS

As classes predominantes nesta categoria são as 3, 6 e 7, com os conteúdos textuais construídos por meio da discursividade dos profissionais E_03 e E_08 classe 3, E_01, E_15 e E_06 classe 6, e E_09 e E_10 classe 7, e relacionam-se mais às ações de resposta assistencial, por conseguinte, às atividades da saúde e do SUS. A classe 3 traz palavras como: Emergência de Saúde Pública de Interesse Nacional (ESPIN), pandemia, evento, intervenções, saúde, enfrentamento, as quais dialogam mais com a gestão assistencial e à tomada de decisão propriamente dita, envolvendo a ideia de sala de situação ou de um ambiente minimamente decisório. A classe 6 tem palavras que se alinham mais às atividades relacionadas ao SUS, como: princípio, integralidade, preventivo, direito, universal, necessidade, recurso, equidade, região, em segmentos de texto que bem reportam um caráter de planejamento epolíticas de saúde, justamente por estar mais relacionada à resposta a emergências e desastres e, assim, à organização dos arranjos necessários ao desempenho assistencial, incluindo os recursos atinentes ao empreendimento das práticas de saúde. Já a classe 7 se relaciona mais à resposta assistencial, com intervenções na ponta, com palavras tais como: caso, UTI, máscara, leito, vacinação, terapia, infectado, que colocam peso no que diz respeito à atenção à saúde e vigilância, além de fornecerem elementos para a tomada de decisão quanto às práticas assistenciais diretamente aos indivíduos, mas que não necessariamente dizem respeito apenas aos operadores da ponta:

[...] Do ponto de vista de ações de gestão de risco voltadas ao setor saúde, tanto as diretrizes do Marco de Sendai, quanto os ODS são unânimes quanto à necessidade de ações intersetoriais, interdisciplinares e transversais a diversos entes públicos e privados. Uma ação absolutamente necessária é a sensibilização dos governantes, para tornar a resposta aos desastres e às emergências de saúde pública uma política pública, ou seja, uma política de governo. Sem isso, nenhuma ação da saúde será exeqüível a curto, médio e longo prazo. [...] O setor saúde não responde sozinho, nem é capaz de se estruturar por si só para dar conta de todas as ações necessárias ao enfrentamento de desastres. No entanto, isso não justifica que a saúde se distancie de sua responsabilidade interdisciplinar e transversal a todos os demais atores na resposta. (E_08).

[...] É necessário fortalecimento da Vigilância e integração com a Atenção Primária em Saúde, com o objetivo de estabelecer medidas de controle e atenção, como: ampliação da testagem [...]; ampliação da capacidade de atendimento assistencial, leitos clínicos e UTI para COVID-19; [...] aceleração de ações coordenadas pelo PNI do SUS para vacinação de todos os segmentos populacionais elegíveis... (E_10).

[...] O princípio do SUS de integralidade nos remete a um compromisso de atender integralmente todo ciclo vital do ser humano. [...] Já o princípio da equidade nos remete à necessidade da testagem em massa. [...] As áreas mais afetadas devem receber um atendimento diferenciado. [...] Diante de tal panorama faz-se necessário dispor de recursos humanos, materiais e financeiros, para o desenvolvimento das ações de atendimento, internação e reabilitação da população. (E_01).

Prevenção de futuros riscos de desastres

As classes 4 e 5 são as que predominam nesta categoria, junto aos conteúdos textuais relacionados aos profissionais E_02, E_04 e E_11 classe 4 e E_05 e E_13 classe 5, e relacionam-se mais especificamente às ações de prevenção/mitigação. Dentre as palavras da classe 4 destacam-se: grupo, cultura, oportunidade, deficiência, reconstruir, ambiente, pós-impacto, vulnerável, desastre e, na classe 5, tem-se: ambiental, cultura, infraestrutura, econômico, empresa, subsistência, social, alimento. O conteúdo dos segmentos de texto dessas classes alinha-se com as questões elencadas nos objetivos e metas de desenvolvimento sustentável, bem como com os preceitos da redução de risco de desastres do Marco de Sendai:

[...] Para a prevenção é necessário o desenvolvimento de plataformas digitais, com alertas locais para desastres, bem como realizar rede de apoio para pessoas com alta vulnerabilidade social, realizar capacitação profissional para pessoas que perderam seu emprego pós-impacto, com acompanhamento psicológico. [...] Campanhas de empoderamento para as mulheres desenvolverem e para estarem inseridas em planos e programas de redução de risco de desastres. (E_02).

[...] São importantes ações voltadas ao fatores de risco de desastres como, por exemplo, as consequências da pobreza e da desigualdade, mudanças e variabilidade climática, urbanização rápida e não planejada, má gestão do solo, mudanças demográficas, arranjos institucionais fracos, políticas não informadas sobre riscos, falta de regulamentação e incentivos para o investimento privado na redução de risco de desastre, cadeias de suprimentos complexas, limitada disponibilidade de tecnologias, usos insustentáveis de recursos naturais, ecossistemas em declínio, surgimento de epidemias e pandemias. [...] O desenvolvimento de mecanismos e ações para a prevenção e planejamento para redução de risco de desastres tem por finalidade proteger, de forma mais eficaz, pessoas, comunidades e países, seus meios de vida, saúde e patrimônio cultural. (E_04).

[...] O conhecimento sobre áreas de risco, grupos vulneráveis e capacidade de resposta do setor saúde disponíveis e como esses elementos se espalham no território é essencial para o planejamento das ações de saúde, em casos de desastres e em todas as suas fases: antes, durante e depois do evento. [...] Além dos indicadores, que revelam populações vulneráveis por sua condição socioeconômica, são importantes outros aspectos referentes à condição biológica e social, como os relacionados a crianças e adolescentes, mulheres, idosos, pacientes crônicos ou pessoas com necessidades especiais, por exemplo. [...] Ao elaborar um plano de ações de gestão de risco para o setor saúde é fundamental levar em consideração as vulnerabilidades da área de abrangência do plano. (E_11).

Ações de preparação e recuperação a partir do Marco de Sendai e dos ODS

Esta categoria é predominantemente formada pelas classes 1 e 2, e os conteúdos textuais mais expressivos referem-se aos profissionais E_09, E_13 e E_16 classe 1 e E_12 e E_15 classe 2, que melhor se relacionam com ações voltadas à preparação e recuperação. Na classe 1 foram destacadas palavras, como: mundial, redução do risco de desastre, abordar, sustentável, meta, climático, agendam conferência, Organização das Nações Unidas (ONU), investimento, ODS. Já na classe 2 tem-se: global, interesse, regional, país, nacional, Marco de Ação de Hyogo (MAH), prevenir, regional, risco, cooperação, internacional, político, desastre e autoridade, estando mais afinadas com os aspectos ressaltados nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e no Marco de Sendai:

[...] O Marco de Sendai é o principal instrumento para a gestão de riscos dedesastres de escala mundial [...], para fazer do mundo um local mais seguro e para reduzir o risco de desastres naturais e causados pelo homem. Instituições sólidas, leis e orçamentos para garantir a eficiente gestão do risco de desastres é uma prioridade que pode ser fortalecida pela meta de desenvolvimento sustentável, que visa promover o crescimento econômico sustentado e inclusivo, o emprego pleno e produtivo e o trabalho decente para todas e todos. (E_09).

[...] A erradicação da pobreza, prevista nos ODS, se relaciona com o Marco de Sendai. Cada estado tem a responsabilidade fundamental de prevenir e reduzir os riscos de desastres. [...] Exige também empoderamento e participação inclusiva acessível e não discriminatória, com especial atenção para as pessoas desproporcionalmente afetadas por desastres, especialmente os mais pobres. (E_15).

[...] O Marco de Sendai apresenta algumas metas e prioridades que fazem nexos com os ODS e com os princípios do SUS. Uma delas é a prioridade 3, que aborda a necessidade de investir na RRD para resiliência. [...] Esta prioridade especificamente refere-se [...] ao aumento da resiliência dos sistemas nacionais de saúde, promovendo a integração da gestão de risco de desastres de maneira transversal aos níveis de atenção. (E_16).

Discussão

Apesar da segmentação do conteúdo textual em classes, o contexto forma um conjunto articulador das três bases documentais consideradas, demarcando o caráter sinérgico que eles delineiam no que diz respeito à saúde da população, especialmente em situações de emergências e desastres. De certo modo, isso reforça a necessária interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e intersetorialidade, quando são abordados tais fenômenos, o que, por certo, também reitera a sua complexidade.

Um dado relevante para a discussão sobre os temas é o debate e a controversa permanente em torno do conceito de desastres2323 Marchenzini V. As ciências sociais nos desastres: um campo de pesquisa em construção. BIB 2018; 83(1):3-72., estando sua definição técnica ainda apartada dos debates sociológicos sobre eles2424 Valêncio N. Desastre, ordem social e planejamento em Defesa Civil: o contexto brasileiro. Saude Soc 2010; 19(4):748-762.,2525 Valencio N. Por um triz: ordem social, vida cotidiana e segurança ontológica na crise relacionada à pandemia de COVID-19. Soc Quest 2020; XXIII(48):53-44., que geralmente tratam dos desastres como eventos que têm origem na ação humana2626 Quarantelli EL, Perr RWA. Uma agenda de pesquisa do século 21 em ciências sociais para os desastres: questões teóricas, metodológicas e empíricas, e suas implementações no campo profissional. In: Perry RW, Quarantelli EL. What is a disaster? New answers to old question. Bloomington: Xlibris Corporation; 2005. p. 325-396.. Essa mudança de juízo da natureza dos desastres importa para a sociedade, quanto à geração social dos eventos, antes considerados externos e alheios a ela2727 Mateddi M. Dilemas e perspectivas da abordagem sociológica dos desastres naturais. Tempo Soc Rev Soc USP 2017; 29(3):261-285.. No horizonte das ciências sociais, os processos que se desdobram em desastres são um constructo temporal operado no interior dos sistemas sociais, que, ao vulnerabilizar os grupos sociais quando da ocorrência dos desastres, interferem na suficiência da resposta e da reabilitação, soma-se aos processos, os efeitos do desastre sobre os sistemas de saúde já onerados pela demanda cotidiana, o que debilita a montante sua capacidade de resposta2828 Silva IVM, Freitas CM, Freitas LE. Vulnerabilidade institucional do setor saúde a desastres: perspectiva dos profissionais e gestores de Nova Friburgo. Saude Debate 2020; 44(n. esp. 2):188-201.. Dada a natureza social dos desastres, sociedade e governos, precisam estar alinhados no sentido de construírem conjuntamente bases políticas e econômicas que permitam ir ao alcance dos ODS e da RRD, tendo como alicerce o SUS, partindo do princípio da equidade, mote deste, e presente nos ODS, como também no Marco de Sendai. Com efeito, a construção do arcabouço para a cultura de segurança e desenvolvimento sustentável não deve partir dos governos, e sim da sociedade, para então tomar expressão nos governos, compreendendo-se que o governo serve à sociedade e não ao contrário.

Apesar da COVID-19 ter certas características do Smog de Beck2929 Beck U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2ª ed. 2ª reimp. São Paulo: Editora 34; 2016.: “a miséria é hierárquica, o Smog é democrático”(p.43), ela impacta mais aos pobres do que aos ricos, uma vez que os riscos, assim como as riquezas, se distribuem em sistemas de classes2929 Beck U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2ª ed. 2ª reimp. São Paulo: Editora 34; 2016.(p.41).Tanto assim que as indústrias, onde o risco da produção é elevado, são transferidas para países pobres, que as aceitam, o que é reiterado na expressão de Beck2929 Beck U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2ª ed. 2ª reimp. São Paulo: Editora 34; 2016.:“o diabo da fome é combatido com o belzebu da potencialização do risco”(p.51). Embora ricos tenham mais a perder do que pobres, a fome atinge mais a estes últimos3030 Luhmann N. Sociología del riesgo. 1ª ed. México: Universidad Iberoamericana; 1992.(p.84).

É justamente pelos atributos de ter sido pensado para todos e de ter função de saúde pública, com equidade, acesso universal e igualitário, e ainda colaborar com a proteção do meio ambiente, que o SUS pode ser considerado, para além do campo da saúde, como um indutor da organização social, permitindo não separar os ricos dos pobres ecombater da fome, além de promovera cidadania, sem que os riscos sejam potencializados. Tal depreensão encadeia-se ao Marco de Sendai de tal maneira que, ao se gerir o risco de desastresde forma eficaz, contribui-se com o desenvolvimento sustentável. A prevenção e o planejamento aplicado às ações de redução de risco de desastres protegem as pessoas, as comunidades, os países, a saúde, o ecossistema e o patrimônio socioeconômico-cultural e, com isso, aumenta a resiliência55 United Nations Office for Disaster Risk Reduction (UNDRR). Sendai Framework for Disaster Risk Reduction 2015-2030. Geneva: UNDRR; 2015., tarefas da competência do Marco de Sendai, dos ODS e do SUS.

O Marco de Sendai aponta que deve ser dedicada especial atenção à limitada disponibilidade tecnológica, ao uso irresponsável de recursos naturais finitos e às epidemias e pandemias, o que se coaduna com as atribuições do SUS de incrementar o desenvolvimento científico e tecnológico, a organização de ações de vigilância epidemiológica, a participação no desenvolvimento e execução de políticas e medidas de saneamento básico, além de colaborar com a proteção do meio ambiente e com os ODS de combate à fome e de agricultura sustentável, saúde e bem-estar.

Desafio extra é o aprofundamento das desigualdades que a pandemia de COVID-19 levou às populações, principalmente onde existem as maiores disparidades sociais, evidenciando as fragilidades para se alcançar o desenvolvimento sustentável, que a Agenda 2030 das Nações Unidas abarca. No Brasil, a pandemia deixou sobressair mais questões que dizem respeito ao acesso a recursos da rede de proteção social, serviços públicos de saúde, emprego, renda, transporte e moradia. A partir da pandemia, outras desigualdades de maior força surgirão; no entanto, a recuperação ensejada por este desastre traz a oportunidade ímpar de repensar a sociedade com foco nos direitos humanos e no futuro melhor para todos, com menos riscos3131 Organização das Nações Unidas (ONU). Covid-19 e desenvolvimento sustentável: avaliando a crise de olho na recuperação. Brasília: UNICEF, ONU, OPAS; 2021.. Os efeitos diretos e indiretos da pandemia de COVID-19 na América Latina atingiram todas as áreas da vida humana, paralisou a economia e levou a profundas mudanças sociais, o que trouxe incertezas. As desigualdades são insustentáveis e profundas e impõem reconstrução igual e sustentável, “visando a criação de um verdadeiro estado de bem-estar, tarefa muito postergada na região”3232 Naciones Unidas. Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL). Panorama Social de América latina, 2020. Santiago: Naciones Unidas; 2021..

As desigualdades sociais levam à assimetria de acesso às tecnologias de cuidado disponíveis, assimetrias essas existentes em todos os países, independente do seu grau de desenvolvimento, incluindo as desigualdades de gênero, condição social e econômica, raça e etnia3333 Barreto LM. Desigualdade em saúde: uma perspectiva global. Cien Saude Colet 2017; 22(7):2097-2108.. No Brasil, as medidas políticas neoliberais agravam os impactos da pandemia3434 Sanhueza-Sanzana C, Aguiar IWO, Almeida RLF, Kendall C, Mendes A, Kerr LRFS. Desigualdades sociais associadas com a letalidade por COVID-19 na cidade de Fortaleza, Ceará, 2020. Epidemiol Serv Saude 2021; 30(3):1-12.. O neoliberalismo e o individualismo colocam o peso da responsabilidade do que ocorre nos indivíduos, e não no sistema social3535 Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Fundação Editora da UNESP; 1991.. Porém, no mundo das decisões são vários indivíduos decidindo ao mesmo tempo, mas não necessariamente todos os indivíduos são decisores e, assim, surgem os afetados, indivíduos que não participam das decisões, ou seja, decidir é o contrário de ser afetado. “O afetado sofre as ameaças daquilo que não tem o poder de controlar”3030 Luhmann N. Sociología del riesgo. 1ª ed. México: Universidad Iberoamericana; 1992.(p.84-90).

Para Giddens3535 Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Fundação Editora da UNESP; 1991., “o risco não é uma questão individual, existem riscos, como é o caso dos desastres ecológicos e das guerras nucleares, que criam ambientes de risco que atingem um grande número de indivíduos”3535 Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Fundação Editora da UNESP; 1991.(p.46). Ademais, em função das desigualdades sociais, estão imbricadas a elas as desigualdades em saúde, o que faz ser estratégico traçar ações relacionadas às questões sociais, que necessitam de intervenções coordenadas sobre vários aspectos da vida social. Isso implica em ações multissetoriais governamentais, que não são simples sob o aspecto técnico e político. Quando as desigualdades sociais são contornadas pelas iniciativas políticas advém o conceito de “saúde em todas as políticas”, onde a saúde é incorporada às ações de gestão dos diferentes setores políticos3434 Sanhueza-Sanzana C, Aguiar IWO, Almeida RLF, Kendall C, Mendes A, Kerr LRFS. Desigualdades sociais associadas com a letalidade por COVID-19 na cidade de Fortaleza, Ceará, 2020. Epidemiol Serv Saude 2021; 30(3):1-12.. Todas essas questões relativas às desigualdades sociais impactam de forma diferente em simetria, intensidade e profundidade, onde se aplicam os preceitos do Marco de Sendai, dos ODS e do SUS.

Considerações finais

Os textos analisados ressaltaram aspectos sobre os efeitos diretos e indiretos da pandemia de COVD-19, no que se referem aos desafios de redução do risco de desastres, a urgência de implementação do que o Marco de Sendai elenca em termos de objetivos, metas e esforços de governança, reconhecendo que o desenvolvimento sustentável advém também da eficácia da gestão de risco de desastres3131 Organização das Nações Unidas (ONU). Covid-19 e desenvolvimento sustentável: avaliando a crise de olho na recuperação. Brasília: UNICEF, ONU, OPAS; 2021., e que o SUS é partícipe fundamental de todas a ações por trabalhar com preceitos inclusivos e igualitários e com a saúde no contexto de seus determinantes sociais.

A pandemia de COVID-19 e seus desdobramentos e impactos sociais, econômicos e estruturais está inserida no contexto das desigualdades sociais e, por conseguinte, dos determinantes sociais da saúde. O grande desafio é aprender com ela e tentar responder melhor a futuros desastres biológicos e emergências de saúde pública no âmbito do SUS. As autoridades públicas e políticas devem reconhecer que as estratégias de redução do risco dos desastres só são eficazes quando trabalhadas por capacidades distintas, tais como: habilidades políticas, construção e adoção de normatizações e legislação específica, participação social e de distintos atores, gestão de conhecimento em perspectiva interdisciplinar, desenvolvimento de inovação e tecnologias, monitoramento dos avanços e correção dos desvios, informação e comunicação de risco. Neste contexto, a saúde trabalha com a abrangência da saúde coletiva e transcende lato sensu a saúde pública.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2022
  • Aceito
    14 Nov 2022
  • Publicado
    16 Nov 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br