Novos desafios na avaliação de tecnologias em saúde (ATS): o caso Zolgensma

Reinaldo Guimarães Sobre o autor

Resumo

As doenças raras ou órfãs entraram de modo importante nos negócios da indústria farmacêutica. Por outro lado, o impacto das novas tecnologias derivadas da pesquisa genômica vêm tendo presença crescente nessa indústria, com novos medicamentos sendo lançados no mercado a preços não sustentáveis para sistemas de saúde e pacientes. Essa dupla tendência coloca desafios importantes e crescentes para as políticas públicas de avaliação e incorporação de tecnologias, cujo racional hegemônico está lastreado em análise de custo-benefício entre terapias. Os preços muito altos desses medicamentos exigem revisitar esse racional e a recente tratativa entre o Ministério da Saúde e a Novartis relativa a um possível acordo de compartilhamento de risco para a incorporação do medicamento Zolgensma é uma oportunidade para essa revisita.

Palavras-chave:
Avaliação de tecnologias; Incorporação de tecnologias; Política de saúde

A incorporação de medicamentos: os novos desafios para os sistemas nacionais de saúde

Os sistemas de saúde, em particular os públicos e universais, mas não apenas estes, vêm sendo cada vez mais pressionados com relação à incorporação de novos medicamentos no rol de produtos que devem oferecer às populações sob sua responsabilidade. A pressão deriva essencialmente dos preços cada vez maiores impostos pelas grandes farmacêuticas (ou mesmo não tão grandes, mas em vias de tornarem-se ou desaparecer), ao mesmo tempo proprietárias das tecnologias protegidas por patentes e detentoras de grande poder político por meio de lobbies sobre parlamentos, governos, judiciários e imprensa.

Essa escalada de preços decorre da complexidade de processos decorrentes do deslocamento, ainda em curso, de uma rota tecnológica e produtiva baseada principalmente em síntese química para uma rota biológica na qual o relativo desconhecimento enseja uma taxa maior de insucessos e, em consequência, quantidade também maior de subsídios cruzados (a precificação dos produtos que chegam ao mercado inclui o ressarcimento do “prejuízo” realizado com os que não chegam). Por outro lado, a escalada decorre também dos investimentos das grandes farmacêuticas na aquisição de ativos que são, essencialmente, “protótipos” promissores de novos medicamentos, muitas vezes biológicos. Para exemplificar, no caso do medicamento de que trata este texto - Zolgensma -, foram US$ 8,7 bilhões da Novartis à empresa que o desenvolveu (AveXis) e que foi absorvida por ela11 Fierce Biotec. Novartis inks $8.7B AveXis buyout to build gene therapy unit [Internet]. [cited 2023 fev 20]. Available from: https://www.fiercebiotech.com/biotech/novartis-inks-8-7b-avexis-buyout-to-build-gene-therapy-unit
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.

Há ainda uma característica da indústria, não apenas a farmacêutica, nessa etapa de financeirização do capitalismo, que contribui para a explosão de preços de medicamentos. Em artigo recente, Belluzzo lembra que “alterou-se a relação entre os recursos destinados ao investimento e aqueles utilizados para propiciar a elevação ‘solidária’ dos ganhos dos acionistas e da remuneração dos administradores...”22 Belluzzo LG. Os vândalos e as Americanas. Carta Capital. 2023. [acessado 2023 fev 20]. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/economia/os-vandalos-e-as-americanas/
https://www.cartacapital.com.br/economia...
. Em outros termos, se os altos executivos não entregarem a expectativa de dividendos esperada pelos acionistas, saem do jogo.

Uma das consequências dessa conjuntura relativamente nova é o seu impacto na compreensão e nos mecanismos da avaliação de tecnologias (ATS) com vistas à incorporação pelos sistemas de saúde. O atual patrimônio intelectual e técnico da ATS é baseado no racional nascido no Reino Unido (NHS) desde os anos 1960 e cujo principal marco de transformação em política pública foi a fundação do National Institute for Health and Care Excellence (NICE) em 1999. Nos 20 anos seguintes, o modelo se espalhou por muitos países, tendo se institucionalizado no Brasil em 2011 com a CONITEC. Esse racional pode ser definido sintética e grosseiramente como um cruzamento da “medicina baseada em evidências” com a epidemiologia, e estabeleceu um padrão-ouro baseado em análises de custo-benefício entre terapias. Com sofisticação maior ou menor, este é o modelo prevalente de ATS no mundo e é ele quem vem passando por crescentes dificuldades em razão dos motivos citados.

Em 2017, Mazzucato e Roy publicaram um artigo conceitual em que é debatida (e criticada) a lógica do que denominam “precificação baseada em valor” (value-based precification)33 Mazzucato M, Roy V. Rethinking value in health innovation: from mystifications towards prescriptions. Working Paper IIPP WP 2017; 4.. Na proposição de um novo modelo conceitual de precificação, partem de três assertivas: (1) não há uma única direção nas escolhas a respeito das inovações a serem perseguidas, tudo dependendo de orientação de política pública; (2) a criação de valor resulta de várias etapas e atores, e não apenas do detentor final das patentes; (3) os riscos e recompensas das inovações devem ser compartilhados e distribuídos para todos os atores envolvidos em sua criação.

A primeira assertiva toca na missão de uma política de inovação, que não deve ser deixada exclusivamente nas razões do mercado, mas contemplar objetivos estratégicos de cada país ou sistema. A segunda, fala da crescente complexidade das atividades científicas, tecnológicas e produtivas envolvidas nos produtos industriais voltados à saúde, que englobam sempre a atuação de inúmeros atores públicos e privados, desde a bancada de pesquisa (aqui, predominantemente com dinheiro público) até o produto acabado, nem todos devidamente contemplados no estabelecimento do preço final do produto. E a terceira assertiva, que é a de maior interesse neste texto, diz respeito à divisão dos riscos e recompensas - tanto financeiros quanto sanitários - envolvidos na incorporação de produtos, principalmente medicamentos, cada vez mais complexos e cujos mecanismos de ação e precisão no atingimento dos alvos terapêuticos almejados são bastante incertos.

Entre esses medicamentos cuja complexidade tecnológica/produtiva compete em importância com a incerteza de sua efetividade, estão aqueles destinados às doenças raras ou órfãs (os termos “doenças raras” e “doenças órfãs” aqui utilizados são intercambiáveis. A expressão “doença rara” é mais comum no Brasil e na Europa, enquanto “doença órfã” é mais usada nos Estados Unidos). A complexidade decorre do fato de que, em número crescente (mas ainda não majoritária), são medicamentos desenvolvidos em rota biotecnológica. A incerteza é consequência muitas vezes do desconhecimento preciso da história natural dessas doenças, de sua fisiopatologia e das incertezas que envolvem as tecnologias utilizadas para enfrentá-las. Complexidade e incerteza somam-se quando essas doenças raras têm uma etiologia genética, e isso faz com que os riscos no investimento para desenvolver esses medicamentos aumentem muito.

Por outro lado, doenças raras são, via de regra, doenças letais ou muito incapacitantes, e essa gravidade, somada à sua baixa prevalência, fazem com que as famílias dos pacientes, com o objetivo de socializar sua angústia e de aumentar seu poder de pressão, se organizem em associações para reivindicar a incorporação de medicamentos e outros procedimentos de sustentação dos pacientes. Algumas têm vínculos com indústrias farmacêuticas que produzem medicamentos destinados à patologia que seus associados apresentam. Quando a angústia das famílias esbarra nas limitações orçamentário-financeiras dos sistemas de saúde, instala-se uma crise.

A Lei de Medicamentos Órfãos e a regulamentação para registro de doenças raras no FDA

Uma Orphan Drug Act (Lei de Medicamentos Órfãos) foi aprovada em 1983 nos Estados Unidos para incentivar o desenvolvimento de tratamentos para doenças raras/órfãs. Essa lei oferece incentivos financeiros e regulatórios para empresas farmacêuticas que desenvolvem medicamentos para tratar doenças que afetam um número limitado de pessoas - menos de 200 mil pessoas nos Estados Unidos. No Brasil, uma doença é considerada órfã/rara quando afeta até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos (~150 mil pacientes). Essa definição é baseada nos critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS), que considera uma doença rara quando afeta menos de 1 em cada 2 mil indivíduos. A União Europeia estabeleceu suas regras para drogas órfãs em 1999.

A Lei de Medicamentos Órfãos concedeu à FDA regras para aprovar esse tipo de medicamento, além de proteger o seu mercado após o registro. A lei concede para eles sete anos de exclusividade de mercado após o registro, contra os cinco anos para os demais medicamentos. Outras regras posteriores que afetam o regramento para doenças raras são o registro acelerado com base em resultados clínicos preliminares e a permissão para que os fabricantes realizem estudos clínicos mais flexíveis, com menos participantes e duração mais curta. Além disso, é permitido o uso de desfechos substitutos em ensaios clínicos (desfechos substitutos são indicadores de evolução que não dizem respeito à evolução clínica da doença. São, por exemplo, desfechos baseados em evidências laboratoriais sem necessariamente correspondência clínica). Em face de evidências limitadas de eficácia e segurança, também são admitidas rotulagem e bula com informações incompletas, quando comparadas às dos demais medicamentos. Por fim, a FDA pode atuar como agência de fomento, apoiando projetos de desenvolvimento de produtos órfãos que demandam sua aprovação.

Há muita variação nas estimativas sobre o valor atual do mercado de medicamentos para doenças raras. Uma das mais conservadoras estima o mercado mundial em 2021 em 119 bilhões de dólares (cerca de 8% do valor do mercado mundial de medicamentos), com uma taxa de crescimento anual projetada de 12,8% entre 2022 e 203044 Grand View Research. Rare diseases treatment market size [Internet]. [cited 2023 fev 21]. Available from: https://www.grandviewresearch.com/industry-analysis/rare-diseases-treatment-market-report
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. Até 2017, a FDA havia aprovado mais de 600 terapias para doenças raras desde a promulgação da Lei de Medicamentos Órfãos. Desde 1983, o crescimento do número de registros foi sempre crescente, havendo maior aceleração a partir de 201455 Miller KL, Lanthier M. Investigating the landscape of US orphan product approvals. Orphanet J Rare Dis 2018; 13:183..

Doenças raras e terapias gênicas

A maior parte das doenças raras não pode ser rotulada como doença genética. Estas se referem às doenças em que a falta ou o mau funcionamento de um ou mais genes é a causa principal da doença. Apesar dos mais de 600 produtos aprovados, até dezembro de 2022 o FDA aprovou apenas três produtos farmacêuticos que utilizam terapias para doenças genéticas. São eles:

  • Hemgenix (etranacogene dezaparvovec) - para o tratamento de hemofilia B. Produzido por CSL Behring e oferecido pelo preço de US$ 3,5 milhões em dose única.

  • Luxturna (voretigene neparvovec) - para o tratamento de distrofia hereditária de retina associada à mutação do gene RPE65. Produzido pela empresa Spark Therapeutics e licenciada para a Novartis. Oferecida pelo preço de US$ 850 mil.

  • O Zolgensma (onasemnogene abeparvovec-xioi) - poduzido pela AveXis, absorvida pela Novartis, foi oferecido nos Estados Unidos em 2019 para o tratamento de atrofia muscular espinhal pelo preço de 2,5 milhões de dólares em dose única.

A terapia gênica é uma abordagem promissora para o tratamento de diversas doenças genéticas, bem como de algumas doenças adquiridas, como determinados tipos de câncer. No entanto, em seu desenvolvimento persistem desafios importantes, e entre eles destacam-se:

  • O aprimoramento das técnicas de edição de genes: as tecnologias de edição de genes, como CRISPR/Cas9, têm evoluído rapidamente nos últimos anos, permitindo que os cientistas modifiquem o genoma de maneira mais precisa e eficiente (o CRISPR/Cas9 é uma tecnologia de edição genética que permite alterar com alguma precisão o genoma de um ser vivo. O sistema CRISPR/Cas9 utiliza uma enzima chamada Cas9 para cortar o DNA em um local específico, permitindo que os pesquisadores adicionem, removam ou alterem genes. No caso de doenças genéticas, a tecnologia objetiva substituir um gene defeituoso por um funcional). Isso abre novas possibilidades para o desenvolvimento de terapias gênicas. Não obstante, restam incertezas quanto à precisão da edição genética realizada com essa tecnologia.

  • A maior disponibilidade de vetores de entrega: os vetores de entrega são necessários para transportar o material genético terapêutico até as células do paciente. A produção de vetores de alta qualidade e seguros tem sido um desafio, mas a disponibilidade de vetores aprimorados, como lentivírus, adenovírus e vírus adenoassociados (AAVs), está aumentando.

  • Melhoria da regulamentação: a regulamentação de terapias gênicas é complexa e varia de país para país. À medida que mais terapias gênicas forem aprovadas, a regulamentação deve se tornar mais clara e consistente, o que pode aumentar a confiança do público, dos médicos e das autoridades sanitárias em relação a esses tratamentos.

  • Aumento da produção em larga escala: a produção de terapias gênicas em larga escala é um desafio, mas avanços na tecnologia de bioprocessamento e na fabricação de vetores estão ajudando a tornar esse aumento de escala mais viável. E devem ajudar a reduzir os custos e tornar as terapias gênicas mais acessíveis a um número maior de pacientes.

  • A segurança a longo prazo das terapias gênicas: sendo boa parte das doenças genéticas patologias de baixas incidência e prevalência, a análise dos efeitos de longo prazo nos pacientes que fazem uso dessas terapias torna mais complexa a avaliação desses efeitos com significância estatística para a tomada de decisão quanto ao registro e à incorporação nos sistemas de saúde.

  • O alto custo das terapias para pacientes de diferentes países e classes sociais: além da escala de produção, o status regulatório privilegiado conferido a esses produtos, associado ao regime global de patentes vigente na OMC (acordos Trips), tendem a reduzir o alcance dessas terapias em termos de número de pacientes atendidos. Vale lembrar ainda os dispositivos Trips-plus inseridos em leis de patentes em muitos países, inclusive no Brasil.

  • Desafios no campo bioético: o desenvolvimento da genética molecular e da genômica está avançando em velocidade bem maior do que a normatização bioética relacionada aos seus efeitos potenciais. No campo dos medicamentos, até agora se trata de corrigir defeitos genéticos causadores de doenças, mas a húbris científica e tecnológica pode se deslocar para “melhorar” genomas humanos, como aliás já ocorreu com o cientista chinês He Jiankui, que afirmou em 2018 ter criado humanos geneticamente modificados para torná-los resistentes ao HIV mediante a utilização da tecnologia CRISP-cas9.

O compartilhamento de risco relacionado a medicamentos de alto custo para doenças raras, em particular as terapias gênicas

O compartilhamento de risco para medicamentos de alto custo (risk sharing agreements - RSAs) é uma estratégia decorrente de acordos entre governos, empresas farmacêuticas e financiadores privados para tornar os medicamentos para doenças raras mais acessíveis e sustentáveis. Essa estratégia envolve a divisão dos custos entre diferentes partes interessadas, incluindo os pacientes, os sistemas de saúde públicos e privados e os fabricantes de medicamentos.

No contexto de medicamentos para doenças raras, além do alto custo, o RSA é frequentemente utilizado para lidar com a incerteza em relação à sua eficácia e segurança a longo prazo. Isso pode ser feito de várias maneiras, como será exposto mais adiante.

A estratégia de RSA tem sido utilizada em vários países, incluindo Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Espanha, Portugal, Canadá, Austrália e Japão. Os modelos de acordo listados a seguir mostram alguns medicamentos que foram objeto de RSA em diferentes países, tais como o Nusinersen (Spinraza) para tratamento da atrofia muscular espinhal. Kymriah (tisagenlecleucel) para tratamento de leucemia infoblástica aguda. Orkambi (lumacaftor/ivacaftor) para tratamento da fibrose cística. Soliris (eculizumab) para tratamento da síndrome hemolítica urêmica atípica.

Entre os mecanismos envolvidos nos acordos de compartilhamento em diferentes países e para diferentes medicamentos, destacam-se:

  • Pagamento por resultados: neste tipo de RSA, o preço do medicamento é baseado no desempenho do tratamento, medido por critérios específicos, como melhora na sobrevida ou na qualidade de vida do paciente. Se o medicamento não atender aos critérios acordados, o preço é reduzido ou o pagamento é devolvido.

  • Compartilhamento de custos: os custos do medicamento são compartilhados entre o fabricante e o sistema de saúde. O fabricante concorda em reduzir o preço do medicamento se o sistema de saúde concordar em compartilhar os custos do tratamento, como hospitalização ou cuidados de suporte.

  • Acesso condicional: o medicamento é aprovado para uso em condições específicas, como pacientes com sintomas graves ou que não responderam a outras terapias. Os resultados são monitorados e, se o medicamento não apresentar os resultados esperados, o uso pode ser descontinuado. Um exemplo é o acordo entre o NHS e a empresa Gilead para o tratamento da doença de Fabry com o medicamento Galafold.

  • Preço escalonado: o preço do medicamento é baseado no resultado do tratamento para cada paciente. Por exemplo, o preço do medicamento pode ser mais alto se o paciente apresentar uma melhora significativa, mas pode ser reduzido se o paciente não apresentar melhora.

  • Contrato de desempenho: o fabricante e o sistema de saúde concordam com metas específicas de desempenho para o medicamento, como redução de hospitalizações ou diminuição da necessidade de outros tratamentos. Se as metas forem alcançadas, o preço do medicamento é mantido, mas se as metas não forem atendidas, o preço pode ser reduzido. Um exemplo é o acordo entre o NHS e a empresa Vertex para o tratamento da fibrose cística com os medicamentos Orkambi e Symkevi.

O acordo a ser firmado entre o Ministério da Saúde e o laboratório Novartis, relativo ao medicamento Zolgensma, para pacientes com atrofia muscular espinhal do tipo 1

A atrofia muscular espinhal (AME) é uma doença genética rara que afeta os sistemas nervoso e muscular e é causada por uma mutação no gene SMN1, responsável pela expressão da proteína SMN (survival motor neuron), necessária para a sobrevivência dos neurônios motores que controlam o movimento muscular.

A falta ou redução dessa proteína leva à degeneração progressiva dos neurônios motores, resultando na atrofia dos mesmos com consequente fraqueza. Os sintomas da AME variam de acordo com a gravidade da doença e a idade de início, mas podem incluir dificuldade para respirar, engolir, mover os braços e as pernas, além de problemas de postura e equilíbrio.

Existem vários tipos de AME, que são classificados de acordo com a idade de início e a gravidade da doença. O tipo mais grave é a AME tipo 1, que geralmente se manifesta nos primeiros meses de vida e pode levar à morte precoce. Os tipos 2 e 3 são menos graves, mas ainda assim causam deficiência física importante e podem ter um impacto significativo na qualidade de vida. Há ainda o tipo 4, que permite ao paciente levar uma vida mais ativa.

A maioria dos tratamentos disponíveis não é curativa. Elas ajudam a gerenciar os sintomas e retardar a progressão da doença. Esses medicamentos têm mecanismos de ação diferentes, que não incluem alterações gênicas e exigem administração continuada. Além disso, a fisioterapia e a terapia ocupacional podem ajudar a manter a força muscular e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.

Atualmente, existem alguns medicamentos aprovados para o tratamento da AME. Eles foram desenvolvidos para tratar diferentes tipos de AME, com base nas mutações específicas que causam a doença. A seguir, alguns dos medicamentos disponíveis e as empresas que os produzem:

  • Spinraza (nusinersen) - é um medicamento injetável aprovado para o tratamento de todas as formas de AME. É produzido pela empresa Biogen.

  • Evrysdi (risdiplam) - medicamento oral aprovado para o tratamento de todas as formas de AME em pacientes com dois meses ou mais. É produzido pela empresa Roche.

  • Zolgensma (onasemnogene abeparvovec) - é um tratamento gênico aprovado para a AME tipo 1. Foi desenvolvido e produzido pela empresa AveXis, absorvida pela Novartis. Se for confirmada a efetividade desse medicamento para todos os pacientes elegíveis, incluída a expressão permanente e funcional da proteína faltante, com melhora significativa na qualidade de vida e na ausência de efeitos colaterais importantes, ele poderia ser considerado um produto curativo.

Em 2021, seguindo orientação do NICE, o NHS assinou um acordo de compartilhamento de risco relativo ao Zolgensma com a Novartis. Seus principais termos envolvem:

O pagamento pelo medicamento será feito apenas se a terapia produzir melhorias clínicas significativas (e não desfechos substitutos) em pacientes com AME tipo 1, o tipo mais grave da doença.

  • O pagamento do medicamento será parcelado ao longo de cinco anos, com uma porcentagem do pagamento inicial (20% do preço total), sendo reembolsado se a terapia não cumprir os resultados clínicos esperados.

  • O acordo prevê o acesso gratuito à terapia para os pacientes que a receberam como parte do estudo clínico original da Novartis. Este item será, provavelmente, caduco, exceto se a Novartis continuar a recrutar pacientes expandindo o ensaio clínico em fase III. Finalmente, o acordo prevê ainda o acesso a dados clínicos e de resultados para avaliar a eficácia a longo prazo da terapia.

  • Os pacientes elegíveis devem ter menos de seis meses de vida com AME tipo I e que passem mais de 16 horas diárias sem necessidade de utilizar métodos de ventilação invasiva.

  • Com mais de seis meses e até dois anos de vida, a elegibilidade deve ser avaliada por uma comissão independente de experts.

A íntegra do acordo entre o NHS e a Novartis, ressalvadas as informações comerciais sob sigilo, está publicada e pode ser vista em: https://www.nice.org.uk/guidance/hst15.

Em 30 de dezembro de 2022, o Ministério da Saúde e a Novartis assinaram um termo de compromisso para o compartilhamento de risco com vistas à incorporação do medicamento Zolgensma no SUS. O medicamento teve sua incorporação sugerida pela CONITEC e, após a assinatura do eventual contrato de compartilhamento, deverá ser construído um Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas necessário para que o acordo entre em funcionamento e o medicamento comece a ser utilizado.

Pelo que se pode extrair do noticiário da imprensa, dado que até o momento ainda não há um acordo contratado, trata-se de um projeto de compartilhamento na modalidade de pagamento por resultados, similar ao assinado entre NHS e Novartis.

Os detalhes do entendimento entre a Novartis e o SUS ainda não foram divulgados e o que segue foi retirado de notícias em órgãos de imprensa e de uma nota da CONITEC publicada na internet: https://www.gov.br/conitec/pt-br/assuntos/noticias/2022/dezembro/ms-e-novartis-firmam-compromisso-para-elaboracao-do-acordo-de-compartilhamento-de-risco-para-ame.

Originalmente, a empresa solicitou o preço de R$ 12 milhões/tratamento no país, e a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamento (CMED) definiu preço máximo de venda no Brasil em R$ 6,5 milhões. O remédio foi oferecido inicialmente ao SUS por R$ 6,4 milhões/tratamento e, no entendimento com o Ministério da Saúde, chegou-se ao preço de R$ 5,7 milhões. A Novartis ofereceu também um desconto de 3% no valor de cada dose, cerca de R$ 170 mil, para ser destinado à triagem de crianças com AME. O pagamento será em cinco anos, com prestações de 20% do total por ano. A empresa só receberá todas as parcelas se a criança atingir determinados marcos de desenvolvimento - como sustentar a cabeça e sentar-se - e se eles forem mantidos até o quinto ano. O acordo prevê a compra de no máximo 250 doses nos primeiros dois anos, e o fornecimento de 40 tratamentos adicionais pela empresa sem custo, caso necessário. Não está claro se o recurso financeiro será restituído ao ministério caso não haja evolução adequada atestada por um comitê de especialistas.

A proposta final recomendada pela CONITEC foi do pagamento parcelado em cinco anos, sendo 20% do preço do medicamento divididos anualmente. Segundo as informações disponíveis, a fabricante só receberá as parcelas após o primeiro ano da infusão se a criança atingir os marcos motores e a manutenção dos mesmos ao final do quarto e quinto ano. Ou seja, a empresa recebe a primeira parcela no momento da infusão e o pagamento das demais parcelas estará vinculado ao resultado - ausência de morte, não evolução para ventilação mecânica e bons avanços motores de acordo com a escala Chop-intend (a Children’s Hospital of Philadelphia Infant Test of Neuromuscular Disorders é uma escala de avaliação clínica que foi desenvolvida para avaliar a função neuromuscular em bebês com AME do nascimento até os 18 meses de idade). O paciente passará por uma avaliação de equipe médica especializada, indicada pelo Ministério da Saúde, e se atingir os marcos motores, a empresa receberá a segunda parcela. Caso contrário, não recebe mais os valores. De acordo com o ex-ministro Queiroga, “Na prática, vamos detalhar ainda junto com a empresa alguns termos desse contrato sobre a aquisição, os locais especializados que estarão aptos a fazer a infusão dessa terapia, e principalmente uma equipe que tenha capacidade de monitorar esses desfechos para que a gente possa ter o ateste desses resultados e, posteriormente, o pagamento à empresa”.

A dispensação do medicamento deverá atender a todos os pacientes cadastrados no Componente Especializado da Assistência Farmacêutica que se enquadrem nos critérios de inclusão para uso do medicamento conforme preconizado no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Atrofia Muscular Espinhal.

A previsão legal para a oferta da nova tecnologia no SUS é de até 180 dias a contar da data da publicação da portaria de incorporação. O acordo inclui também o treinamento de profissionais para lidar com o produto, que é administrado mediante infusão venosa.

Algumas incertezas e preocupações

Desse material de divulgação do termo de compromisso, que é bastante precário, a primeira coisa a fazer é reivindicar que ele seja divulgado amplamente na sua integridade, ressalvadas as restrições comerciais que incluam cláusulas de sigilo. Além disso, restam algumas dúvidas que valem a pena enunciar.

. A primeira delas é estimar com a precisão possível a prevalência da AME no Brasil. As informações disponíveis na internet são amplamente divergentes segundo a fonte utilizada. Segundo o Instituto Nacional de AME, são 1.509 pacientes, sendo 511 do tipo 1, 508 do tipo 2 e 367 do tipo 3. Já a Associação Brasileira de AME estima uma prevalência entre 5 mil e 10 mil pacientes dos quatro tipos. E o portal para as doenças raras e os medicamentos órfãos (ORPHANET) estima prevalência de 1 caso para cada 30 mil pessoas, o que fornece um número aproximado de 7 mil pacientes no país. É essencial esclarecer com qual estimativa o MS trabalha. O já mencionado Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal estima que mais de 900 pacientes estejam atualmente em tratamento com o Nusinersena, 108 com o Risciplam e 119 receberam o Zolgensma, sendo que 84 deles receberam a medicação pelo poder público, pela via judicial.

. Outro aspecto importante é saber com clareza como serão escolhidos os especialistas que avaliarão a evolução clínica dos pacientes, bem como os critérios utilizados nessa escolha. O acordo entre a Novartis e o NHS prevê um grupo multidisciplinar. É importante garantir a ausência de conflito de interesses na constituição dessa comissão.

. De acordo com o regramento vigente, produtos e processos incorporados pelo SUS devem necessariamente ser incorporados no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Portanto, na vigência do acordo entre o SUS e a Novartis, os planos de saúde devem obrigatoriamente fornecer o medicamento, provavelmente segundo o mesmo modelo estabelecido no acordo com o SUS. Será necessário, portanto, estabelecer critérios estritos de inclusão no programa do SUS para estabelecer as regras de divisão dos pacientes (e das despesas) entre a ANS e o SUS. Se todos os pacientes enquadráveis nos termos do acordo, com ou sem planos de saúde, estiverem cadastrados no Componente Especializado da Assistência Farmacêutica do DAF/SCTIE, como será estabelecida a repartição das despesas com o medicamento entre o SUS e os planos? A experiência de reembolso das despesas realizadas pelo SUS com pacientes que têm planos de saúde tem sido malsucedida e talvez não seja uma boa solução. Uma alternativa seria a de definir uma regra ex-ante de repartição dos pacientes que constasse do acordo com a farmacêutica. O acordo seria, portanto, um acordo tripartite - MS, ANS e Novartis. Ou, no mínimo, entre o MS e a Novartis com a anuência da ANS.

Pesquisas sobre AME no Brasil

Há estudos em andamento sobre a AME país. Entre eles, destacam-se:

  • O projeto SOBRES (Estudo Observacional Brasileiro da Realidade e Epidemiologia da Atrofia Muscular Espinhal) é um estudo observacional multicêntrico conduzido pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em parceria com a Associação Brasileira de Distrofia Muscular (ABDIM) e a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). O estudo iniciou-se em 2017 e prevê a inclusão de cerca de mil participantes, entre crianças e adultos, com todos os tipos de AME. Até o momento, foram recrutados mais de 500 participantes em 20 centros de pesquisa distribuídos por todas as regiões do Brasil. Seu objetivo é estimar a prevalência, a sobrevida e a qualidade de vida de pessoas com AME no Brasil, além de avaliar a qualidade dos cuidados e a disponibilidade de tratamentos para a doença no país. Entre os principais resultados obtidos até o momento, destaca-se a identificação de uma prevalência da doença maior do que a previamente estimada, com uma média de 1 caso a cada 10 mil nascidos vivos, o que representa uma população potencialmente afetada de cerca de 2 mil pessoas no Brasil, o que se aproxima da estimativa do Instituto Nacional de AME.

  • O Projeto AME Unidos é um estudo multicêntrico coordenado pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Seu objetivo é avaliar o impacto da AME na qualidade de vida dos pacientes e seus familiares. O projeto também busca identificar fatores que possam influenciar na evolução da doença. O projeto foi iniciado em 2015 e atualmente conta com a participação de 19 centros de pesquisa distribuídos por 11 estados brasileiros. Os pacientes com AME e seus familiares são convidados a participar do projeto e são submetidos a avaliações clínicas, genéticas e neurológicas. O projeto também avalia a efetividade de diferentes tratamentos para a AME, como a terapia gênica, os medicamentos modificadores da doença e a fisioterapia. Finalmente, o projeto pretende criar um registro nacional de pacientes com AME.

Algumas referências de trabalhos publicados

  • Araujo APQC, Zanoteli E, Lorenzoni PJ, et al. Clinical and molecular characterization of Brazilian patients with spinal muscular atrophy type 3. Neuromuscul Disord 2021; 31(3):241-246.

  • Magalhães M, Zanoteli E, Rodrigues e Silva G, et al. Long-term survival and functional outcomes of patients with spinal muscular atrophy: a Brazilian cohort study. Muscle Nerve 2021; 63(5):677-684.

  • Magalhães M, Zanoteli E, Tinós R, et al. Spinal muscular atrophy: natural history, early diagnosis, and clinical features in a Brazilian cohort of 225 patients. Orphanet J Rare Dis 2020; 15(1):152.

  • Mazzotti DR, Azevedo PM, Oliveira ASB, et al. The use of cough assist device in patients with spinal muscular atrophy. Respir Med 2015; 109(3):369-375.

  • Mazzotti DR, Evangelista T, Nunes ML, et al. Progressive scoliosis in spinal muscular atrophy: a retrospective study of 25 Type I patients. Arq Neuropsiquiatr 2014; 72(11):851-855.

  • Vieira AS, Zanoteli E, Araujo APQC, et al. Early diagnosis of spinal muscular atrophy: results from a Brazilian cohort. Eur J Paediatr Neurol 2021; 31:45-51.

  • Zanoteli E, Felício AC, Pavanello RC, et al. Long-term follow-up in spinal muscular atrophy: a Brazilian cohort of patients. Arq Neuropsiquiatr 2012; 70(3):175-180.

  • Zanoteli E, Oliveira AS, Lopes VSD, et al. The natural history of spinal muscular atrophy type I (Werdnig-Hoffmann disease): a study of 39 patients. J Neurol Sci 1997; 146(1):67-72.

  • Zanoteli E, Torrieri MC, Vieira AS, et al. Epidemiology of spinal muscular atrophy in a Brazilian cohort: a cross-sectional study. Neurology 2019; 93(6):e585-e594.

Coda

A partir da análise de um caso concreto, este texto pretendeu suscitar um debate sobre um tema geral de grande importância para a política pública de saúde. O processo atual de pesquisa, desenvolvimento e produção de medicamentos governados pela química médica (random screening e rational design screening) vai lentamente dando lugar a itens produzidos por rota biológica66 Buvailo Andrii. Will biologics surpass small molecules in the pharmaceutical race? [Internet]. BiopharmaTrend. 2022. [cited 2023 mar 10]. Available from: https://www.biopharmatrend.com/post/67-will-small-molecules-sustain-pharmaceutical-race-with-biologics/
https://www.biopharmatrend.com/post/67-w...
,77 Domainex. An integrated drug discovery CRO - Will the rise of biologics be the death of traditional medicinal chemistry? [Internet]. 2021. [cited 2023 mar 10]. Available from: https://www.domainex.co.uk/news/will-rise-biologics-be-death-traditional-medicinal-chemistry
https://www.domainex.co.uk/news/will-ris...
. Esse processo, que está longe de ser concluído, coloca desafios em vários terrenos, um dos quais é a avaliação e incorporação de tecnologias, que se vê às voltas com novos medicamentos com preços inacessíveis para os sistemas de saúde e, ainda mais, para os pacientes e suas famílias. Talvez as doenças raras sujeitas a terapias gênicas sejam a ponta desse iceberg que, se não for adequadamente debatido, poderá levar os sistemas públicos de saúde a crises importantes na definição do que é justo, ético e sustentável.

Agradecimentos

O autor agradece aos membros do Comitê de Assessoramento em Ciência, Tecnologia e Inovação da Abrasco que participaram de um debate sobre o tema em 3 de março de 2023 (Carlos Morel, Claudio Maierovitch, Moisés Goldbaum, Pedro Villardi e Vera Pepe. Participou também Renata Curi, especialista em avaliação e incorporação de tecnologias). Entretanto, o texto e suas conclusões são de exclusiva responsabilidade do autor.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    Jul 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2023
  • Aceito
    13 Mar 2023
  • Publicado
    15 Mar 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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