Efeitos e desempenho produtivo da agricultura urbana na saúde coletiva e ambiental na cidade do Rio de Janeiro, Brasil

Raphaela Soares da Silva Camelo Cristina Moll Hüther Carlos Rodrigues Pereira Elton de Oliveira Thelma de Barros Machado Sobre os autores

Resumo

A agricultura urbana pode auxiliar na promoção de indicadores importantes, como melhoria da saúde ambiental e da segurança alimentar e redução da desigualdade social. Nesse sentido, o presente trabalho teve como objetivo ajudar na compreensão da situação atual da agricultura urbana na cidade do Rio de Janeiro, com enfoque no Programa Hortas Cariocas (PHC). Para tanto, foram realizadas duas abordagens. Uma qualitativa, em que o método exploratório descritivo foi aplicado para reconhecer e analisar os impactos causados pelo programa nas comunidades envolvidas. E outra quantitativa, por meio de análise envoltória de dados (DEA), para avaliar e entender o desempenho produtivo do programa entre os anos de 2007 e 2019. O desempenho do programa apresentou dois picos, em 2012 com 80,21% e em 2016 com 100,00% de índice eficiência produtiva. O comportamento do desempenho anual pôde ser explicado pelos acréscimos no número de pessoas envolvidas diretamente (nº de hortelões) e na área ocupada (nº de canteiros), por refletirem o caráter socioambiental do PHC.

Palavras-chave:
Desenvolvimento sustentável; Hortas comunitárias; Segurança alimentar

Introdução

O acesso regular e permanente a alimentos, em quantidade e qualidade, é um direito fundamental que deve ser assegurado a todos os seres humanos. Em 2015, esse tema foi abordado na Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, que teve como finalidade a proposição de objetivos e metas para o desenvolvimento sustentável até 2030. Desde então, não são medidos esforços da comunidade científica para desenvolver metodologias que propiciem a segurança alimentar e o desenvolvimento sustentável da população mundial11 Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Agenda de la Alimentación Urbana [Internet]. [acessado 2020 abr 23]. Disponível em: http://www.fao.org/urban-agriculture/es/
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No continente americano há indícios históricos de paisagens agro urbanas das civilizações Inca e Maia22 Corrêa CJP, Tonello KC, Nnadi E, Rosa AG. Semeando a cidade: histórico e atualidades da agricultura urbana. Ambient Soc 2020; 23:e00751.. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação33 Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Caderno criar cidades mais verdes [Internet]. 2012. [acessado 2019 dez 12]. Disponível em http://www.fao.org/3/i1610p/i1610p00.pdf
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, 85% da população economicamente vulnerável da américa latina se concentrava em áreas urbanas. No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística44 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Conheça o Brasil: população rural e urbana [Internet]. 2015. [acessado 2019 dez 4]. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18313-populacao-rural-e-urbana.html
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estima que cerca de 85% da população brasileira vive no meio urbano. Na região Sudeste do país, aproximadamente 93% da população se concentra no meio urbano44 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Conheça o Brasil: população rural e urbana [Internet]. 2015. [acessado 2019 dez 4]. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18313-populacao-rural-e-urbana.html
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. A alta concentração populacional nos centros urbanos, aliada a questões sociais, fragilizam a segurança alimentar, serviços de suporte e infraestrutura, bem como cultura e lazer de determinados grupos.

A alimentação inadequada é um dos principais fatores que contribui para o aumento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) como um problema de saúde no mundo55 Malta DC, Andrade SSCA, Stopa SR, Pereira CA, Szwarcwald CL, Silva Júnior JB, Reis AAR. Estilos de vida da população brasileira: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Epidemiol Serv Saude 2015; 24(2):217-226.. Estudos apontam índices alarmantes de insegurança alimentar em todo o Brasil, que ainda foram agravados com a pandemia de COVID-1966 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil [Internet]. 2021. [acessado 2021 maio 11]. Disponível em: https://dssbr.ensp.fiocruz.br/inseguranca-alimentar-e-covid-19-no-brasil/
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A agricultura urbana é o começo para a reestruturação da urbanização, criando cidades mais verdes e contribuindo para a segurança alimentar e nutricional da população77 Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Comité de Agricultura - agricultura urbana [Internet]. 2017. Disponível em: http://www.fao.org/urban-agriculture/es/
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. A agricultura urbana é um importante dispositivo no equilíbrio dos ecossistemas urbanos, além de promover a sustentabilidade nas cidades, além da melhoria da qualidade de vida e a promoção de uma alimentação saudável88 Batitucci TO, Cortines E, Almeida FS, Almeida AA. A agricultura em ecossistemas urbanos: um passo para a sustentabilidade das cidades. Ambient Soc 2019; 22:e02773.,99 Yamamoto T, Moreira CMA. Hortas urbanas como intervenções temporárias: uma breve reflexão. Mosaico 2019; 10(16):73-86..

Nesse contexto, as hortas urbanas são descritas em diversas cidades do Brasil. Na cidade do Rio de Janeiro, a frente mais conhecida é o Programa Hortas Cariocas (PHC), desenvolvido pela Prefeitura do Rio de Janeir1010 Secretaria Municipal de Meio Ambiente da Cidade (SMAC). Hortas Cariocas [Internet]. [acessado 2019 dez 4]. Disponível em: https://www.rio.rj.gov.br/web/smac/hortas-cariocas
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. O PHC tem como objetivo principal incentivar a prática da agricultura sustentável e orgânica dentro do município. O programa propicia a oferta de gêneros alimentícios de alta qualidade a um custo acessível à população carente que vive no entorno das hortas. Para além das hortas urbanas inseridas em comunidades carentes, o PHC atende hortas em escolas municipais da cidade do Rio de Janeiro. Essas hortas são espaços de aprendizagem com enfoque na educação ambiental, alimentar e de ciências naturais.

No entanto, essa modalidade de produção atinge apenas uma pequena parcela do seu potencial1111 Codyre M, Fraser EDG, Landman K. How does your garden grow? An empirical evaluation of the costs and potential of urban gardening. Urban Forestry & Urban Greening 2015; 14(1):72-79.. Existe a necessidade de estudos mais avançados, sobretudo a respeito dos impactos positivos e negativos causados pela agricultura urbana1212 Mok HF, Williamson VG, Grove JR, Burry K, Barker SF, Hamilton AJ. Strawberry fields forever? Urban agriculture in developed countries: a review. Agronomy Sustain Develop 2014; 34:21-43.. É preciso uma avaliação sistemática sobre a contribuição da agricultura urbana na segurança alimentar1313 Poulsen MN, McNab PR, Clayton ML, Neff RA. A systematic review of urban agriculture and food security impacts in low-income countries. Food Policy 2015; 55:131-146.. Em uma revisão da literatura, foi verificada a necessidade de estudos complementares que tenham como objetivo abordar as lacunas de conhecimento em torno de resultados da agricultura urbana, principalmente relacionados à insegurança alimentar, à pobreza e à desigualdade1414 Rao N, Patil S, Singh C, Roy P, Pryor C, Poonah P, Genes M. Cultivating sustainable and healthy cities: A systematic literature review of the outcomes of urban and peri-urban agriculture. Sustainable Cities and Society 2022; 85:104063..

Assim sendo, a relevância desse trabalho está sobretudo em apontar a importância da agricultura urbana como mecanismo promotor de segurança alimentar, nutricional e da saúde em comunidades carentes. Além de auxiliar na indicação de elementos que podem ser aprimorados, melhorando a prática e a difusão da agricultura em meio urbano.

Portanto, este estudo pode contribuir para compreender os impactos e o desempenho produtivo da prática da agricultura urbana na cidade do Rio de Janeiro, e teve como objetivo analisar e relacionar os aspectos da produção com efeitos na saúde ambiental e coletiva da população envolvida.

Material e métodos

O presente estudo foi desenvolvido em duas etapas. A primeira consistiu em uma abordagem, com o emprego do método exploratório descritivo1515 Fonseca RCV. Metodologia do trabalho científico. Curitiba: IESDE; 2012., para analisar qualitativamente os impactos econômicos, ambientais e sociais, e para compreender e caracterizar o PHC. Essa análise foi realizada por meio de visitas de campo ocorridas no período de julho de 2018 a dezembro de 2019, atendendo à metodologia da pesquisa descritiva, baseada na observação direta extensiva, com coleta de dados fotográficos. Essa etapa contribuiu para o entendimento do processo produtivo do programa, da adesão dos participantes, passando pelo treinamento, pelo preparo das áreas, ao plantio, colheita e consumo, em todo o conjunto das hortas do PHC. Na Figura 1, as localizações dessas 40 hrtas foram assinaladas e numeradas, além dos Pontos de Apoio CAPO e PRJ. Esses dois pontos serviram de apoio operacional e logístico ao PHC.

Figura 1
Localização das hortas e dos Pontos de Apoio do PHC, distribuídos nas cinco Áreas de Planejamento (AP), dentro do município do Rio de Janeiro.

A segunda etapa consistiu em uma abordagem que utilizou análise envoltória de dados - DEA (da sigla em inglês, data envelopment analysis)1616 Charnes A, Cooper WW, Rhodes E. Measuring the efficiency of decision-making units. European J Operational Res 1978; 2(3):429-444., para uma análise quantitativa de desempenho produtivo. Os dados utilizados foram coletados em janeiro de 2020, extraídos dos relatórios mensais produzidos pelo coordenador e gerente de agroecologia e produção orgânica da Prefeitura do Rio de Janeiro e correspondem ao período de 2007 a 2019. O software SIAD - Sistema Integrado de Apoio à Decisão, versão 3.01717 Angulo-Meza L, Biondi Neto L, Mello JCCBS, Gomes EG. ISYDS - Integrated System for Decision Support (SIAD - Sistema Integrado de Apoio a Decisão): a software package for data envelopment analysis model. Pesq Operacional 2005; 25(3):493-503., foi utilizado para calcular os índices de eficiência para a análise de desempenho pretendida.

Essa metodologia foi escolhida por possibilitar incorporar os dados quantitativos disponibilizados, em escalas diferentes, sem necessidade de transformações, gerando índices que facilitaram a análise da atividade agrícola objetivada neste estudo1818 Emrouznejad A, Yang GL. A survey and analysis of the first 40 years of scholarly literature in DEA: 1978-2016. Socio-Economic Planning Sciences 2017; 61:4-8.. Com base na observação dos dados disponibilizados, definiu-se a utilização do modelo CCR, assim denominado devido às iniciais de seus autores, Charnes, Cooper e Rhodes, em 1978, que supõe retornos constantes de escala, em que o aumento dos recursos acarreta aumento proporcional dos produtos. A orientação do modelo foi para outputs. Dessa maneira, a mensuração da eficiência de uma unidade produtiva é feita pela comparação entre o que foi produzido com o que poderia ter sido produzido1616 Charnes A, Cooper WW, Rhodes E. Measuring the efficiency of decision-making units. European J Operational Res 1978; 2(3):429-444.,1919 Gomes EG, Mello JCCBS, Biondi Neto L. Avaliação de eficiência por análise envoltória de dados: conceitos, aplicações à agricultura e integração com Sistemas de Informação Geográfica. Rio de Janeiro: Embrapa; 2003..

A partir da definição de eficiência proposta por Farrell2020 Farrell MJ. The measurement of productive efficiency. J Royal Statistical Soc 1957; 120(3):253-290., como a máxima razão entre uma soma ponderada dos produtos e uma soma ponderada dos recursos, a DEA usa esse conceito para fazer uma análise comparativa entre as eficiências de um conjunto de unidades produtivas, ou unidades tomadoras de decisão, denominadas DMU, do inglês decision maker units). Funcionando como uma ferramenta para medida de eficiência, essa abordagem é capaz de incorporar diversos recursos e produtos para o cálculo de índices de eficiência produtiva, permitindo a avaliação de desempenho pretendida, ao longo dos anos.

Na avaliação de desempenho do PHC efetuada neste estudo, cada ano analisado, entre 2007 e 2019, foi considerado uma DMU. As variáveis de entrada (inputs) são correspondentes aos insumos ou recursos utilizados, e as de saída (outputs), aos produtos gerados no PHC. Estas foram selecionadas a partir das variáveis que melhor representassem o caráter da análise pretendida. Portanto, considerou-se como inputs o número de facilitadores e o valor investido no PHC por ano. E como output, a produção anual de alimentos do programa, em quilos. Desse modo, abrangeu-se o processo produtivo por inteiro.

O número de facilitadores de cada DMU foi definido pela média do número de técnicos em cada mês, no ano observado. O investimento foi definido pela soma mensal, em reais, durante cada ano. Para tanto, foram considerados os valores mensais das ajudas de custo dadas aos hortelões, os materiais de estrutura das hortas, como sombrite e tijolos para os canteiros, além de outros insumos, como as sementes. Essas variáveis refletem os recursos empregados, tanto na capacitação das pessoas como no espaço, envolvidos pelo PHC.

A produção anual correspondeu à soma da quantidade, em quilos, de itens agrícolas (alface, cenoura, tomate, espinafre, manjericão, maxixe, berinjela, batata doce...) produzidos em todos os meses de cada ano observado. Essa variável refletiu o resultado da interação das pessoas com o espaço, alvos do PHC.

A Tabela 1 apresenta as variáveis empregadas e os índices de eficiência revelados pelo modelo DEA-CCR orientado a outputs aplicado para cada DMU.

Tabela 1
Variáveis e eficiências reveladas pelo modelo DEA-CCR aplicado.

Resultados e discussão

A combinação das duas abordagens empregadas possibilitou uma maior abrangência deste estudo, permitindo analisar os dados coletados de forma qualitativa e quantitativa. Desse modo, pôde-se incorporar as muitas dimensões abrangidas pelo programa em questão.

Análise qualitativa do PHC

O método exploratório descritivo possibilitou uma avaliação qualitativa dos impactos econômicos, sociais e ambientais gerados pelo programa. Nas visitas realizadas, observou-se que as hortas do PHC estão localizadas em terrenos que eram ociosos nas comunidades. Foi relatado que esses locais eram utilizados pelo poder paralelo, para venda de mercadorias ilícitas, em regiões onde o poder público não atuava, não contempladas no Plano Diretor da cidade. Com a implantação das hortas, houve uma melhoria no aspecto e na paisagem, impulsionando a ocupação e valorização das áreas vizinhas às hortas (Figura 2). A intervenção causada pela ação dos integrantes da comunidade ressignificou e revitalizou o espaço, gerando uma mudança não só no local, mas no grupo agente99 Yamamoto T, Moreira CMA. Hortas urbanas como intervenções temporárias: uma breve reflexão. Mosaico 2019; 10(16):73-86..

Figura 2
Revitalização e melhoria do aspecto no espaço ocupado com o PHC.

Verificou-se que o Programa Hortas Cariocas (PHC) é um programa multifuncional, que utiliza o sistema de produção orgânica, sem o uso de agroquímicos. Os hortelões foram capacitados para utilizar práticas agroecológicas no manejo do solo, de pragas e doenças, promovendo a sustentabilidade em diferentes dimensões (Figura 3). Essa prática pode ser constatada nas áreas de produção do PHC, onde os canteiros são cultivados dentro de uma diversidade de espécies. As interações provenientes dessa disposição podem propiciar melhores condições e, consequentemente, maior produção ao longo dos meses do ano. Essa diversidade produtiva pode fortalecer tanto a eficiência como a sustentabilidade da atividade agrícola2121 Oliveira E, Aquino AM, Assis RL, Souza LA, Silva FC. Histórico, atualidades e desempenho produtivo da agricultura fluminense. Hist Ambiental Latinoam Caribeña 2021; 11(1):306-328..

Figura 3
Vista de canteiros cultivados.

Constatou-se que os hortelões que participavam do PHC, além de receber capacitação agrícola e acesso aos alimentos produzidos, ganhavam um auxílio financeiro da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro (Figura 4). Tal fato corrobora estudo que observa que uma das principais motivações da agricultura urbana é a subsistência, seguida do benefício financeiro1313 Poulsen MN, McNab PR, Clayton ML, Neff RA. A systematic review of urban agriculture and food security impacts in low-income countries. Food Policy 2015; 55:131-146..

Figura 4
Canteiros em fase produtiva.

A fim de aumentar os rendimentos, além do subsídio dado pela prefeitura ao PHC, os hortelões comercializam parte da produção em feiras locais ou nas próprias hortas (Figura 5). No entanto, a comercialização só é permitida nas hortas localizadas em comunidades, as hortas das escolas do município têm sua produção total doada para a merenda e a comunidade escolar. Nesse cenário, muitas hortas conquistam a emancipação, não dependendo mais dos recursos públicos. A agricultura urbana é uma estratégia de incremento da renda das famílias beneficiadas, possibilitando a alocação de recursos em outros bens1313 Poulsen MN, McNab PR, Clayton ML, Neff RA. A systematic review of urban agriculture and food security impacts in low-income countries. Food Policy 2015; 55:131-146.. Dessa maneira, os indivíduos que antes eram desempregados e dependentes da iniciativa governamental passam a ser cidadãos economicamente ativos, contribuindo para a dinâmica econômica urbana.

Figura 5
Ponto de comercialização de parte da produção das hortas.

O plantio de espécies nativas fomentado pelo PHC, bem como a rotação de culturas, respeitando a sazonalidade de cada cultivar, impulsionou a biodiversidade, provocando mudanças no microclima e na evapotranspiração local. Nesse sentido, hortas, jardins e espaços cobertos por vegetação, de forma geral, podem atuar como mitigador de enchentes. Em um ambiente natural, a água pluvial penetra o solo e abastece o aquífero abaixo dele. Desse modo, a presença de cobertura vegetal é desejável, principalmente ao se analisar a degradação das bacias hidrográficas, uma vez que afetam diretamente a qualidade e a quantidade de água disponível2222 Demanboro AC, Fabiano B, Longo RM, Bettine SC. Cenários Sustentáveis para a Macrometrópole Paulista. Soc Natureza 2019; 31:1-25..

Em ambientes urbanizados, a impermeabilização do solo ocasiona o empoçamento ou escoamento irregular da água, gerando grandes problemas. Em Nova York, um estudo avaliou o impacto dos jardins e hortas comunitárias e estimou que são retidos nos solos cerca de 45 milhões de litros de água pluvial que escoariam2323 Gittleman M, Farmer CJQ, Kremer P, Mcphearson T. Estimating stormwater runoff for community gardens in New York City. Urban Ecosyst 2017; 20:129-139. e que poderiam causar enchentes e deslizamentos.

Nas áreas visitadas do PHC, por meio da compostagem dos resíduos orgânicos que seriam indiscriminadamente descartados e pelo uso de pneus e garrafas pet na formação dos canteiros das hortas, percebeu-se a redução da produção de resíduos e o uso consciente dos recursos. Dessa forma, os ambientes das hortas propiciaram diferentes interações do homem com a natureza, promovendo cuidado com o meio ambiente e atenção à forma de consumo. Em muitas comunidades de hortas do PHC existiam moradores que nunca tiveram a oportunidade de plantar uma muda ou colher uma fruta do pé. A partir do programa, muitas pessoas conseguiram ter acesso a esse tipo de experiência. Muitos são os autores que relacionam a agricultura urbana como importante estratégia pedagógica de aprendizado fundamentado no contato direto com o alimento e a natureza2424 Coelho DEP, Bógus CM. Vivências de plantar e comer: a horta escolar como prática educativa, sob a perspectiva dos educadores. Saude Soc 2016; 25(3):761-771..

A implantação de áreas verdes, como parques e jardins, propicia um ambiente com aspecto mais agradável à população do entorno. A presença de elementos naturais, como árvores, plantas e fontes de água, são paisagens que agradam mais às pessoas, quando comparadas ao ambiente urbano2525 Kelia Leite S, Anélia Renk A, Kissmann C, Vendruscolo G. Preferência visual da paisagem por agricultores do Sul do Brasil. Soc Natureza 2020; 32:752-765.. Com isso, o PHC propiciou a criação de ambientes naturais e favoreceu também a recreação nesses espaços, estimulando a atividade física, colaborando para o bem-estar físico e emocional da população diretamente afetada (Figura 6). Estudos relatam que a agricultura em meio urbano afeta de maneira direta a população local, por ser um ambiente esteticamente agradável e favorável para atividades recreativas e culturais, além de produzir alimentos2626 Oda K, Rupprecht CDD, Tsuchiya K, McGreevy S. Urban agriculture as a sustainability transition strategy for shrinking cities? Land use change trajectory as an obstacle in Kyoto City, Japan. Sustainability 2018; 10(4):1048..

Figura 6
Alteração da paisagem para uso recreativo e promoção do bem-estar.

O desenvolvimento desses espaços fez surgir uma nova área de interesse: a educação nutricional da agricultura2727 Piscopo S. Urban agriculture: an alternative 'classroom' for nutrition education. J Nutr Educ Behavior 2016; 48(6):359.. Podendo ser esta uma importante estratégia pedagógica para o aprendizado fundamentado no contato direto com o alimento e a natureza. As hortas, como ambiente de educação, produziram estreitamento das pessoas com o alimento e a natureza, além de propiciar o aprendizado horizontal e a troca de experiências2424 Coelho DEP, Bógus CM. Vivências de plantar e comer: a horta escolar como prática educativa, sob a perspectiva dos educadores. Saude Soc 2016; 25(3):761-771..

Devido aos subsídios concedidos pela Prefeitura e ao auxílio técnico oferecido por profissionais especializados, o PHC conseguiu produzir alimentos orgânicos a um preço acessível dentro das comunidades. Com isso, foi possível ofertar maior variedade de alimentos para esses consumidores, podendo melhorar a qualidade e, consequentemente, a expectativa de vida deles. Adultos participantes das hortas comunitárias consomem 1,4 mais vezes frutas e legumes, quando comparados a outros indivíduos que não praticam a mesma atividade1111 Codyre M, Fraser EDG, Landman K. How does your garden grow? An empirical evaluation of the costs and potential of urban gardening. Urban Forestry & Urban Greening 2015; 14(1):72-79..

Com as ações do PHC, percebeu-se que a eliminação dos intermediários entre o produtor e o consumidor final permitiu baratear o produto, tornando-o mais acessível. A mudança de hábitos de consumo na comunidade, sobretudo com a substituição de alimentos produzidos de forma convencional por orgânicos, vem estimulando esse mercado de produtos de alto valor agregado. Assim, o que é produzido é vendido por um valor acessível à comunidade, em valores abaixo do praticado no mercado. Portanto, a agricultura urbana, por produzir alimentos, favorece a segurança alimentar, melhorando a dieta da população local, e também pode atuar como ferramenta socioeconômica na redução das despesas da população local com alimentação1313 Poulsen MN, McNab PR, Clayton ML, Neff RA. A systematic review of urban agriculture and food security impacts in low-income countries. Food Policy 2015; 55:131-146.. Esse programa fornece alimentos à população vulnerável, além de ser potencial fonte de renda, podendo promover melhorias no ambiente urbano2828 Stewart R, Korth M, Langer L, Rafferty S, Silva NR, Rooyen CV. What are the impacts of urban agriculture programs on food security in low and middle-income countries? Environmental Evidence J 2013; 2:7..

Com relação à produção, a agricultura urbana pode ser 15 vezes mais produtiva do que fazendas rurais, uma vez que as cultivares de ciclo curto empregadas podem produzir em média 20 kg por metro quadrado de alimento por ano77 Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Comité de Agricultura - agricultura urbana [Internet]. 2017. Disponível em: http://www.fao.org/urban-agriculture/es/
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. Atualmente, de acordo com os dados dos relatórios do programa, o PHC produz em média dez toneladas de alimentos por mês em todas as 40 hortas ativas do programa.

A promoção da saúde também passa por estratégias de desenvolvimento de sistemas alimentares urbanos2929 Audate PP, Fernandez MA, Cloutier G, Lebel A. Impacts of urban agriculture on the determinants of health: scoping review protocol. JMIR 2018; 7(3):e89., uma vez que possibilita alimentação saudável a parte da população que não teria acesso. Em uma cidade como o Rio de Janeiro, em que há grande desigualdade social, é importante a presença de programas como o PHC, que tem como objetivo atender à população em vulnerabilidade nutricional, além de ser um mecanismo de geração de renda em comunidades carentes do município. O incentivo a hortas urbanas e periurbanas tem como objetivo a redução de pobreza e a garantia da segurança alimentar3030 Branco MC, Alcântara FA. Hortas urbanas e periurbanas: o que nos diz a literatura brasileira? Horticultura Brasileira 2011; 29(3):421-428..

O desempenho produtivo do PHC

O resultado da análise quantitativa de avaliação de desempenho do PHC no período de 2007 a 2019 mostrou que o desempenho médio dos 13 anos analisados foi de 60,04%. A eficiência produtiva (EP) analisada corresponde ao índice de eficiência padrão, em porcentagem, revelado pelo modelo DEA aplicado (Tabela 1). Pôde-se observar picos de eficiência produtiva nos anos de 2012 e 2016 (Figura 7).

Figura 7
Comportamento da eficiência produtiva (EP), do número de canteiros (NC/10) e do número de hortelões (NH) ao longo dos anos.

As demais variáveis quantitativas dos dados registrados ao longo dos anos no PHC e externas ao modelo DEA aplicado foram consideradas como produtos de etapas intermediárias. Estes serviram para explicar o comportamento dos índices gerados, pois de uma forma ou de outra, podem ter influenciado na eficiência do PHC (Tabela 2). Dessa maneira, foi possível acompanhar e entender o desempenho produtivo do PHC ao longo da série temporal observada.

Tabela 2
Variáveis externas ao modelo DEA, produtos intermediários das DMUs.

Na Tabela 2, as variações do número de hortelões e de canteiros se destacam para o entendimento do comportamento do desempenho produtivo das hortas, por expressarem o carácter social e ambiental do programa, refletindo o número de pessoas envolvidas diretamente (hortelões) e a área ocupada (número de canteiros) no processo produtivo do PHC ao longo do tempo. O mesmo destaque foi observado em estudo sobre a produção da agricultura urbana em Guelph, no Canadá, ao constatar que para aumentar a produção seria necessário investir mais na capacitação dos produtores e na ampliação das terras agricultáveis1111 Codyre M, Fraser EDG, Landman K. How does your garden grow? An empirical evaluation of the costs and potential of urban gardening. Urban Forestry & Urban Greening 2015; 14(1):72-79.. Também foi destacado que a falta de equipamentos, políticas públicas e mão de obra especializada são os principais entraves para o desenvolvimento da agricultura urbana orgânica3131 Maas L, Malvestiti R, Gontijo LA. O reflexo da ausência de políticas de incentivo à agricultura urbana orgânica: um estudo de caso em duas cidades no Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(8):e00134319.. Dentro desse entendimento, o PHC conta com o estímulo da Prefeitura do Rio de Janeiro, que colabora com recursos financeiros e físicos, como sementes, terra adubada e material para o desenvolvimento das hortas, além da capacitação dos hortelões.

Entre os anos de 2007 e 2012, houve um crescente aumento de eficiência (Tabela 1 e Figura 7), possivelmente pelo aumento do número de canteiros, porém não acompanhado pelo aporte no número de hortelões (Tabela 2). Isso acarretou uma redução de desempenho produtivo nos anos seguintes (2013 e 1014). Ou seja, a redução da produção nesses anos pode ser atribuída à menor proporção do crescimento da entrada de novos hortelões em relação ao crescimento do número de canteiros. Foi verificado que a área de estudo não é necessariamente proporcional ao potencial produtivo, pois os canteiros adicionados poderiam estar em processo de plantio ou de preparo pós-colheita3232 Csortan G, Ward J, Roetman P. Productivity, resource efficiency and financial savings: an investigation of the current capabilities and potential of South Australian home food gardens. PLoS One 2020; 15(4):e0230232.. A abertura de novas frentes de trabalho influencia diretamente os investimentos mensais, uma vez que se torna necessário a compra de blocos, insumos para os novos canteiros e aumento do número de hortelões.

A partir de 2014, com a inclusão de novos facilitadores no programa, iniciou-se um novo ciclo de ascensão de desempenho (Tabelas 1, 2 e Figura 7).

São notados dois picos de eficiência produtiva, nos anos de 2012 e de 2016. Pode-se explicar este comportamento pelo fato de que as expansões de área (canteiros) e de participantes (hortelões), além do aumento de recursos (insumos), motivados pelos resultados apresentados nesses anos de pico, tenham provocado uma redução nos índices de eficiência dos anos subsequentes. Com a continuidade do treinamento dos novos participantes e do preparo das novas áreas, que com o tempo passam a produzir, esses índices voltam a subir até um novo patamar (Figura 7). Essas expansões provocam ciclos, em que, devido às novas áreas e à entrada de novos participantes, precisa-se de um tempo para iniciar os plantios, entrar em produção e apresentar resultados que atinjam a eficiência produtiva.

Em uma decisão técnica, presume-se que o momento ideal para emancipar as hortas seria quando se atinge uma fase de pico de eficiência. No entanto, para a continuidade do processo, os novos entrantes (hortelões) poderiam ficar sem a convivência com as áreas em franca produção e sem o contato com os participantes já treinados, iniciando o processo do zero. Essa percepção pode ter sido considerada em 2016 pelo gestor do projeto, já que não se repetiu o aumento das emancipações ocorrido após o pico de desempenho ocorrido em 2012 (Tabela 2). Dessa forma, pode-se explicar o melhor resultado de 2016, no mesmo intervalo de tempo de dois anos, na curva de desempenho produtivo do PHC (Figura 7). Ou seja, a expertise dos hortelões remanescentes em contato com os novos pode ter contribuído para o resultado.

O número de itens produzidos apresentou pouca variação, apesar da diversidade de itens produzidos entre as hortas e ao longo do ano. A diversificação, respeitando-se a sazonalidade das cultivares, está diretamente associada ao aumento de produtividade das hortas3232 Csortan G, Ward J, Roetman P. Productivity, resource efficiency and financial savings: an investigation of the current capabilities and potential of South Australian home food gardens. PLoS One 2020; 15(4):e0230232., uma vez que pode reduzir a necessidade de suplementação de nutrientes e a quantidade de canteiros ociosos.

Considerações finais

Na cidade do Rio de Janeiro, com traços culturais extremamente urbanos, percebeu-se que o Programa Hortas Cariocas mostrou expressivos impactos positivos, como melhorias na segurança alimentar e nutricional, na educação ambiental e na qualidade de vida. Dessa forma, constatou-se que o PHC contribui para promover a saúde ambiental e coletiva das comunidades envolvidas.

Quanto ao desempenho produtivo do programa, verificou-se que as maiores expansões das áreas cultivadas acompanharam as reduções dos índices de eficiência observados, nos períodos de 2013, 2014 e 2018, 2019. Esse comportamento pode ser atribuído ao período necessário para estabilização e concretização dos ciclos das culturas vegetais e a consequente fase produtiva e de colheitas nas hortas, até o consumo desses produtos. Portanto, pode-se concluir que a variação do desempenho produtivo do PHC ao longo dos anos foi inerente ao objetivo socioambiental do programa, que se efetivou por meio da propagação e expansão da área cultivada e do aumento do número de pessoas envolvidas, com suas consequentes melhorias e benefícios identificados neste estudo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    Jul 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2022
  • Aceito
    04 Nov 2022
  • Publicado
    06 Nov 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br