Resumo
Este estudo teve por objetivo compreender o uso da tecnossocialidade no quotidiano de usuários da Estratégia Saúde da Família em tempos da pandemia de COVID-19 para o cuidado e promoção da saúde. Trata-se de estudo de casos múltiplos holístico-qualitativo, fundamentado na Sociologia Compreensiva do Quotidiano, no qual participaram 61 usuários provenientes de três municípios brasileiros, sendo dois de Minas Gerais e um de Santa Catarina. As fontes de evidência foram a entrevista individual aberta e notas de campo. Para a análise dos dados utilizou-se a Análise de Conteúdo Temática. O uso das redes sociais virtuais e tecnologias em saúde para o cuidado, acompanhamento, prevenção de riscos e agravos, promoção da saúde e acesso às informações se faz presente no quotidiano de usuários. A importância das redes de apoio e solidariedade é ressaltada. A infodemia e a desinformação sobre a COVID-19 denotam um contexto de incerteza da veracidade das informações e a preocupação com a saúde mental. É imperativo um olhar atento sobre o uso das tecnologias e redes sociais para a promoção da saúde, viabilizando estratégias para potencializar seu uso e minimizar os prejuízos apontados.
Palavras-chave:
Tecnologia; Internet; Estratégia Saúde da Família; Rede social; Promoção da saúde
Introdução
A pós-modernidade transformou o modus operandi de viver, ser e agir, trazendo novas demandas. Formada sobre um paradoxo que relaciona o arcaico e o tecnológico, essa relação possibilita novas formas de conexão entre as tribos11 Maffesoli M. O tempo retorna: formas elementares da pós-modernidade. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2012.. Essa interação, mediada por tecnologias, pode ser definida por tecnossocialidade22 Maffesoli M. A ordem das coisas: Pensar a pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense; 2016.. Nesse sentido, o uso da tecnologia e das redes sociais configura um novo comportamento social, o qual se polariza em benefícios e malefícios. Neste contexto, a incorporação de tecnologias da informação e da comunicação (TIC) na saúde configura uma ferramenta capaz de potencializar a promoção, a assistência e o cuidado à saúde. As ferramentas tecnológicas possibilitam a proximidade do usuário com o profissional, a agilidade de procedimentos e o monitoramento da saúde à distância33 Santos AF, Fonseca Sobrinho D, Araújo LL, Procópio CSD, Lopes ÉAS, Lima AMLD, Reis CMR, Abreu DMX, Jorge AO, Matta-Machado AT. Incorporação de tecnologias de informação e comunicação e qualidade na Atenção Básica em Saúde no Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(5):e00172815..
As plataformas on-line progressivamente se tornam um local em que é possível um estabelecimento de comunicação de assuntos relacionados à saúde. Tal fato contribui cada vez mais para que os usuários passem de passivos para agentes ativos no cuidado e promoção da saúde. Com vistas a maior integração promovida pelo uso de dispositivos móveis, a comunicação referente às informações em saúde pode ser uma forma de eliminar lacunas relacionadas à desinformação44 Nittas V, Lun P, Ehrler F, Puhan MA, Mutsch M. Electronic patient-generated health data to facilitate disease prevention and health promotion: Scoping review. J Med Internet Res 2019; 21(10):e13320..
Embora as mídias sociais facilitem a circulação e a comunicação de informações sobre saúde, o crescimento das tecnologias e redes sociais durante a pandemia de COVID-19 trouxe outra realidade: a infodemia e a circulação de fake news. A infodemia se caracteriza pelo excesso de informações que dificulta o acesso a fontes confiáveis de conhecimento. A agilidade na circulação de informações e o alto alcance de notícias idôneas podem impactar positivamente a promoção e recuperação da saúde e a prevenção de riscos e agravos, porém essa mesma agilidade e alcance veloz são munições para a propagação de fake news e desinformação, as quais foram e são um grande desafio para a continuidade do cuidado acerca da COVID-19 e de outras doenças55 Garcia LP, Duarte E. Infodemia: excesso de quantidade em detrimento da qualidade das informações sobre a COVID-19. Epidemiol Serv Saude 2020; 29(4):e2020186..
Diante do exposto, torna-se relevante a compreensão da tecnossocialidade no quotidiano de pessoas e famílias. Justifica-se que este estudo se aproxima da indicação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável ao abordar o uso de tecnologias e redes sociais virtuais para a promoção da saúde e bem-estar de usuários e suas famílias. Corrobora com a precisão de acesso igualitário à internet e suas ferramentas para contemplar a universalidade do uso de tecnologias de informação e comunicação com vistas a assegurar uma vida saudável a todos66 Organização das Nações Unidas (ONU). Objetivos de desenvolvimento sustentável [Internet]. 2022 [acessado 2022 abr 2]. Disponível em: https://odsbrasil.gov.br/.
https://odsbrasil.gov.br... .
Destarte, questiona-se: quais as implicações do uso das redes sociais virtuais e de tecnologias em saúde na produção do autocuidado de usuários da Estratégia Saúde da Família (ESF) e suas famílias? Quais as estratégias de boa comunicação e prevenção de circulação de fake news, em adoção pelos usuários da ESF?
Este estudo objetivou compreender o uso da tecnossocialidade no quotidiano de usuários da ESF e suas famílias, em tempos da pandemia de COVID-19, para o cuidado e promoção da saúde.
Metodologia
Teve como delineamento o estudo de casos múltiplos holístico-qualitativo77 Yin RK. Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. Porto Alegre: Bookman editora; 2015., fundamentado no referencial teórico da Sociologia Compreensiva do Quotidiano88 Maffesoli M. O Conhecimento Comum - Introdução à Sociologia Compreensiva. Porto Alegre: SULINA; 2010..
O estudo de casos múltiplos holístico-qualitativo se caracteriza por ser uma investigação empírica contemporânea, em profundidade e significativa sobre um objeto do cotidiano. É desenvolvido a partir da proposta de pesquisa, suas implicações, as proposições teóricas, a coleta e análise dos dados e a discussão77 Yin RK. Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. Porto Alegre: Bookman editora; 2015..
O referencial teórico que fundamentou este estudo foi a Sociologia Compreensiva do Quotidiano, para a análise do fenômeno tecnossocialidade, dosando equilíbrio entre razão e emoção, ou seja, uma razão sensível88 Maffesoli M. O Conhecimento Comum - Introdução à Sociologia Compreensiva. Porto Alegre: SULINA; 2010..
O cenário da pesquisa englobou três municípios brasileiros, um do estado de Santa Catarina (SC) e dois do estado de Minas Gerais (MG), correspondendo, respectivamente, aos casos 1, 2 e 3. Foram abordadas 116 pessoas, 37 não responderam ao(s) contato(s) de abordagem remota e 18 se recusaram a participar desta pesquisa. Destarte, os participantes desta pesquisa foram 61, destes 53 eram usuários da ESF e oito de um Centro de Referência à Saúde do Idoso, segundo os critérios de inclusão: ter 18 anos ou mais e responderem por si; e de exclusão: pessoa com condição que a impossibilitava a verbalização.
As fontes de evidência foram a entrevista aberta individual, com roteiro semiestruturado composto por questões para caracterização dos participantes e 13 questões de aprofundamento do objeto de pesquisa; além de notas de campo usadas para registro de informações sobre a coleta de dados, metodológicas e teóricas. A coleta de dados foi realizada entre abril e outubro de 2021.
A captação dos entrevistados do caso 1 e 2 ocorreu de maneira remota, devido à necessidade de medidas preventivas perante a classificação de onda vermelha e roxa da pandemia de COVID-19. O contato inicial se deu com o responsável das equipes da ESF, para indicação e abordagem inicial do usuário e convite para participar desta pesquisa, utilizando meios eletrônicos, como e-mail ou WhatsApp. Foram realizadas até cinco tentativas para contatar o usuário, pois muitos deles não respondiam no primeiro contato. O TCLE foi enviado por meio da plataforma Google Forms, com local apropriado para o convidado manifestar seu aceite e colocar seus dados. Todas as entrevistas foram gravadas pela plataforma Google Meet, após consentimento do usuário. Nos casos 1 e 2, utilizou-se a técnica de amostragem de snowball, que utiliza redes de referência, em que as pessoas participantes são solicitadas a indicarem outras pessoas. Tais indicações são feitas até que seja alcançada a saturação dos dados99 Baldin N, Munhoz EMB. Educação ambiental comunitária: uma experiência com a técnica de pesquisa snowball (bola de neve). Rev Eletr Mestr Edu Ambient 2011; 27:46-60..
A coleta de dados do caso 3 ocorreu presencialmente. As unidades de ESF foram estipuladas por meio de sorteio aleatório. Foi respeitada a ordem deste sorteio até a saturação dos dados, chegando ao total de seis unidades da ESF e oito equipes, às quais os usuários participantes deste estudo são cadastrados e acompanhados. Os participantes foram os que estavam presentes no dia da coleta de dados nas unidades da ESF, respeitando-se os critérios de inclusão e exclusão. A entrevista foi realizada em sala reservada, respeitando, rigorosamente, as medidas de controle e disseminação do SARS-CoV-2, sendo audiogravada após autorização do participante. Antes do início da entrevista, o TCLE, elaborado em duas vias, foi lido para o participante, além de ser concedido tempo hábil para que o convidado pudesse manifestar sua vontade livre e esclarecida de participar da pesquisa, formalizada pela assinatura nas duas vias.
Salienta-se que, para assegurar o anonimato do participante, foi adotado codinome alfanumérico (E1, E2, E3, etc.). A descrição das características da população estudada encontra-se na Figura 1.
Caracterização dos participantes da pesquisa dos casos múltiplos: um município de SC e dois de MG, 2021.
A análise dos dados foi delineada por critério semântico fundamentada na técnica de Análise de Conteúdo Temática1010 Bardin L. Análise de conteúdo. 1ª ed. Lisboa: Edições 70; 2011., respeitando-se à técnica analítica da síntese cruzada dos casos. Como resultado da análise, originaram-se três categorias temáticas, este artigo discute a categoria “Redes sociais virtuais e tecnologias em saúde no quotidiano de usuários e famílias: cuidado e promoção da saúde”.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de São João del-Rei, Parecer 4.538.343. Observou-se a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, e a Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016. Foram consideradas no desenvolvimento da pesquisa as recomendações do Consolidated criteria for Reporting Qualitative research (COREQ).
Resultados
Os resultados, apresentados em duas subcategorias, denotam possibilidades do uso das redes sociais virtuais e de tecnologias em saúde para o cuidado e promoção da saúde no cotidiano de usuários e famílias acompanhadas pelas equipes da ESF, em diferentes cenários, apesar da infodemia e desinformação sobre a COVID-19.
Redes sociais virtuais e tecnologias em saúde no cuidado e promoção da saúde
No quotidiano, mesmo os usuários dizendo não saber sobre promoção da saúde, as noções são reveladas na voz do usuário:
Ter uma boa alimentação, fazer exercícios físicos, tomar água, se manter um pouco afastado das redes sociais, ajuda bastante (E26).
Entendo que promover minha saúde é ter uma qualidade de vida, é poder cuidar do meu corpo, da pele, poder ter lazer, ter momento para ler um livro, assistir um filme, conversar com os amigos e com a família, fazer passeios ainda que numa pracinha [...], mas ter o mínimo de qualidade de vida: aquela que você trabalha, mas você também se diverte (E51).
É um meio da gente melhorar a qualidade da saúde, de acordo com coisas simples do dia a dia (E19).
Quando foi questionada a compreensão sobre a promoção da saúde, a maioria dos participantes respondia “Promoção da saúde? Eu não sei o que responder”. Contudo, após os esclarecimentos e outra forma de questionar “o que você entende sobre promoção da saúde e o que você faz para promover a saúde?”, a maior parte dos entrevistados respondia ressaltando o que fazia para promover a saúde, ressaltando quase sempre a alimentação, atividade física e o lazer.
Os usuários entrevistados abordam sobre o uso de redes sociais virtuais para o cuidado, prevenção de riscos e agravos e promoção da saúde:
Eu uso o WhatsApp do meu postinho, então as colegas me mandam mensagens, sabe? [...] eu, aqui no bairro, ajudo muitas pessoas e as meninas aqui do posto já sabem, então elas já colocam no grupo “Vai vacinar 43 anos”, [...] aí eu já fui compartilhando para as pessoas que eu conheço [...]. O secretário de saúde, ele sempre tá postando os vídeos, ou o prefeito, sempre posta no Instagram sobre a saúde, isso é importante a gente ficar sabendo, sempre tá bem informada com a saúde daqui, com essas informações, pelo Facebook e pelo WhatsApp (E18).
Uma consulta online como aconteceu na COVID, a agente de saúde nos manteve totalmente amparado sem vir aqui em casa hora nenhuma, entendeu? A gente sente-se amparado como se ela tivesse vindo aqui. Ela me ligava quando eu estava de COVID. Ela perguntava de cada pessoa, como estava naquele dia, se teve algum sintoma, se melhorou, se teve alguma alteração nos sintomas. No outro dia que ela ligava, anotava se a gente teve febre ou alguma coisa. [...] Então, a tecnologia hoje em dia te ajuda para você melhorar seu bem-estar, sua alimentação, às vezes, tem receita que você aprende a fazer pela internet, entendeu? Que não é cara e fácil de fazer, você procura acha e faz! (E11).
O uso das redes sociais se mostrou muito presente no quotidiano de pessoas e famílias. Alguns participantes usavam-na para ajudar na divulgação de informações da unidade de saúde. A equipe de saúde, por sua vez, utilizou-a para acompanhamento de pacientes diagnosticados com COVID-19, conforme informações de usuários que tiveram a doença ou os seus familiares.
Emergem nos resultados a utilização das tecnologias para o cuidado, o acompanhamento e a promoção da saúde no quotidiano de usuários:
Quando eu engravidei e até hoje eu uso o BabyCenter para acompanhar o desenvolvimento do meu filho de 8 meses. Tudo relacionado ao peso, altura, desenvolvimento de criança, o que eles vão fazer nessa idade, os meses que eles estão, se o mês que ele está já está compatível com o que está escrito, vamos supor, comendo papinha a partir dos seis meses. É um auxílio! Lógico que eu não vou muito pelo [aplicativo], geralmente, quando eu trago na puericultura, eu olho o que eles falam e depois checo com o aplicativo. [Sobre o aplicativo de gravidez] sintomas, sobre as contrações de treinamento, os sintomas incomuns na gravidez, sabe? Coisas de alto risco, diabetes, pressão, o que pode acontecer na gestação no mês que eu estou, o que eu posso esperar, dúvidas (E33).
Eu utilizei aquela telemedicina da COVID para fazer consulta online da minha irmã. [...] a gente precisou duas vezes, foi atendimento remoto. [...] foi fantástico! Foi muito bacana, a gente achou que não ia dar certo, mas era o que tinha e não tinha condições de pagar particular e na UPA estava todo mundo com medo de ir. Então vamos para a telemedicina mesmo, mas as duas vezes a médica foi muito atenciosa, perguntou dos sintomas, a gente aproximava a câmera, abria a boca e ela olhava a garganta. Muito bacana, ela fez alguns testes, então foi muito interessante (E51).
Promover a saúde por meio do uso de aplicativos torna-se realidade no cotidiano das participantes em período gestacional. A telemedicina foi reconhecida como uma facilidade de grande potencial para consulta e acompanhamento de casos de COVID-19 e de pessoas em condições crônicas.
O uso das tecnologias em saúde, para marcação de exames e acesso aos resultados, torna-se ação frequente na voz das(os) usuárias(os):
Pela UPA, eu já recebi o link com uma senha que eu poderia acessar o laboratório e verificar o resultado. [...] uma médica do posto me mandou resultado de um eletrocardiograma, o laudo pelo WhatsApp. [...] só conheço a telemedicina ou TeleCovid, e o sistema de laboratórios que toda vez que a gente faz um exame eles dão uma numeração, uma senha para poder acessar o resultado (E51).
Sempre que eu vou fazer a consulta, a moça do posto imprime para mim os exames (E56).
As tecnologias em saúde também são usadas para o acesso de usuários da ESF aos medicamentos:
Eles só olham no computador se tem [os medicamentos prescritos] e, se tiver, eles batem o carimbo e escrevem atrás da receita (E30).
Eles têm que pesquisar no computador, para ver se tem o remédio e eles fazem alguma coisa lá para confirmar que entregaram o remédio para gente (E56).
Os participantes deste estudo falam sobre o uso do WhatsApp para cuidado e atenção à saúde:
Eles têm o grupo [de WhatsApp] da ESF [...] eles avisam sobre consultas, sobre vacinação e, no privado, a agente de saúde avisa a gente para tá passando lá e pegar o papel do agendamento (E39).
Eu uso praticamente mais o WhatsApp, eu já usei quando eu e meu esposo pegamos a COVID, aí a gente agendou para fazer o teste. Agora nesses últimos meses eu estou usando bastante o WhatsApp para comunicar com o postinho da minha cidade, porque estava precisando da ajuda da enfermeira para tá fazendo o curativo e pegar material (E1).
Os usuários falam sobre o impacto das redes sociais virtuais para acesso à informação e o cuidado à saúde:
Eu tenho pesquisado muito, visto muitas entrevistas e muita coisa. Um exemplo, mesmo com a idade que eu estou [idosa], eu não tinha a consciência de tomar muita água e eu tenho achado que orienta muito a gente. Então, para mim, para a saúde, principalmente do meu marido com diabetes, traz muita informação importante. A gente sabe que têm as coisas que são enganosas, mas que têm coisas saudáveis que ajudam a gente (E30).
Eu sempre estou nas redes sociais, vira e mexe tem uma dica e outra de saúde que a gente acaba pegando, lendo, reforçando algo que você já sabia, algum conhecimento, eu uso quando têm dicas de plantas medicinais que ajudam em um determinado problema [...] acho isso muito bacana, quando tem essas informações, porque me lembra que eu tenho que continuar a ter aquele cuidado, me relembra se eu tiver descuidada, se eu souber, eu me atento e, se não souber, eu passo a fazer. Já que a Saúde da Família é para aproximar-se da comunidade, a comunidade gosta disso, que você dê uma dica que beber água é importante, quantos litros de água que o idoso deve beber, que isso e assim evita o Alzheimer, como você tratar... sabe?! Isso faz todo a diferença para a gente, que não tem dinheiro para ficar pagando tratamento (E51).
Ressalta-se, pelos relatos, a importância das redes de apoio e solidariedade no contexto da pandemia:
A gente toma cuidado, nem tudo que vê a gente acredita [...] então, de certa forma, a gente tem um conhecimento, está por dentro das coisas, é alertado [...] é cuidado, na verdade, pelas pessoas da nossa organização [organização religiosa]. Então, ali, sou bem apoiada, as pessoas se preocupam bastante, então, de uma certa forma, me sinto mais protegida (E3).
Infodemia e desinformação sobre a COVID-19 e o cuidado com a saúde mental
O cuidado no compartilhamento de notícias nas redes sociais aparece como uma preocupação na voz dos entrevistados:
Eu procuro não me impactar já de primeira, porque hoje a maioria das notícias que tem nas redes sociais, tu vais ver não é nada do que está falando. E não compartilhar também, se eu não tenho certeza de algo, eu não vou passar para a frente (E1).
As fake news, eu presto muita atenção e penso assim: será que isso é verdade? Eu não compartilho não, quando eu estou na dúvida. Ultimamente, eu não tenho compartilhado mais nada justamente por isso, porque tem coisa que é assim tão precisa, que você pensa: não, isso é verdade! Mas vai saber se é, não é? [...] então, na dúvida, eu não compartilho e acabo que me dou bem, porque vejo que, depois, realmente era mentira aquilo, então, se eu tivesse compartilhado, eu estaria ajudando a fortalecer aquela mentira (E30).
Mediante o contexto de elevada demanda de notícias recebidas no dia a dia, surge a incerteza da veracidade das informações que circulam:
Olha, tem ajudado em alguma coisa as redes sociais, não é? Na verdade, tanto para o bem como para o mal, porque também nas redes sociais têm muita fake news. A gente consegue ver muita coisa, mas até que ponto que é verdade, a gente não consegue saber (E3).
Diante das numerosas informações disponíveis na internet, os usuários abordam sobre a circulação de informações sobre a COVID-19 e o cuidado com a saúde mental:
As redes sociais têm benefício, mas também tem os malefícios, não é? Que no caso é muita notícia ruim, é uma realidade. Mas se a pessoa ficar ali focada, morreu, tanto aquilo ali vai mexendo com a mente da pessoa de uma tal forma que a pessoa vai entrando em depressão, vai ficando doente mentalmente, aí quando vê, não tem mais jeito. Quando vês, tu já tá no fundo do poço, já tá muito doente, o teu psicológico vai afetando, você tem que usar com limite, usar a internet um certo tempo, se tá repetitivas as notícias, você sai dali e vai fazer outra coisa (E2).
Discussão
Perante os resultados apresentados, pode-se inferir o grande impacto do uso de tecnologias em saúde e redes sociais virtuais para a promoção da saúde, prevenção de riscos e agravos, cuidado e acompanhamento da saúde, acesso às informações, como também a importância das redes de apoio no quotidiano. Ademais, o uso dessas tecnologias e redes sociais interfere, ainda, sobre a infodemia e desinformação sobre a COVID-19 e o cuidado com a saúde mental.
Destarte, compreender a visão de usuários sobre a promoção da saúde neste estudo, apesar da complexidade dos determinantes sociais da saúde e de seu entendimento, mostrou-se importante, ao evidenciar que as noções de promoção da saúde singulares refletem, principalmente, o estímulo às boas práticas alimentares e rotina de atividades físicas.
A promoção da saúde consiste em uma rede ampla de estratégias e ações, as quais englobam recursos públicos, privados, individuais e coletivos, a fim de melhorar a qualidade e condição de vida dos indivíduos1111 Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Promoção da saúde e qualidade de vida: Uma perspectiva histórica ao longo dos últimos 40 anos (1980-2020). Cien Saude Colet 2020; 25(12):4723-4735.. Embora a temática seja desafiadora, as noções dos usuários se integram à Política Nacional de Promoção da Saúde, que, dentre os temas prioritários para promover a saúde, destaca a importância de ações voltadas para alimentação adequada e prática de atividade física, estimulando sua incorporação na vida da população, além de ofertar o que é possível e acessível para a subjetividade de cada indivíduo, de modo que sejam consideradas questões socioeconômicas, inclusivas e que garantam direitos humanos a todos1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. Anexo I da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de setembro de 2017 [Internet]. Brasília: MS, 2018 [acessado 2022 abr 2]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_promocao_saude.pdf..
Além do escopo de ações a ser desenvolvido no cotidiano dos serviços de saúde, face a face com o usuário, a tecnologia e as redes sociais virtuais são importantes ferramentas para ampliar o acesso de usuários às informações, escolha de estilo de vida mais saudável que influencie comportamentos para promoção e recuperação da saúde, prevenção de riscos e agravos. Essas ferramentas ganharam ainda mais destaque durante a pandemia de COVID-19, visto que o isolamento social proporcionou maior contato com as tecnologias e até a obrigatoriedade do uso para acessar inúmeros serviços que passaram a ser prestados remotamente. Nesse cenário, tecnologias e, especialmente, aplicativos, são potenciais mecanismos de produção de conhecimento e deselitização do acesso ao conhecimento científico1313 Pereira LM, Leite PL, Torres FAF, Bezerra AM, Vieira CMA, Machado LDS, Silva MRF. Tecnologias educacionais para a promoção da saúde de adolescentes: evidências da literatura. Rev Enferm UFPE online. 2021; 15(1):e247457..
O aplicativo WhatsApp é uma tecnologia que, para além do entretenimento e comunicação, tornou-se aliado de destaque para promover a saúde. Esse aplicativo possibilita interação com unidades de saúde, marcação de consultas, entrega de resultados de exame e desenvolvimento de grupos de educação em saúde/apoio. Portanto, o WhatsApp é uma ferramenta que permite o controle da saúde, medidas de emergências e disseminação de informações, proporcionando grande impacto no comportamento dos usuários e famílias em um curto espaço de tempo1414 Stringhini MLF, Chagas JS, Reis MJM, Brito PRT, Souza DS. Whatsapp como ferramenta de promoção da saúde com diabetes: relato de experiência. Rev UFG 2019; 19:1-15.. Estes achados foram corroborados por este estudo.
Diante do contexto pandêmico, foi necessária a criação de novos modos de produzir saúde e possibilitar atendimento pelos profissionais de saúde. Mediante a alta taxa de transmissão do vírus SARS-CoV-2, a maioria dos países adotou bloqueios rígidos, que levou a comprometimentos no contato físico e na comunicação1515 Fagherazzi G, Goetzinger C, Rashid MA, Aguayo GA, Huiart L. Digital Health Strategies to Fight COVID-19 Worldwide: Challenges, Recommendations, and a Call for Papers. J Med Internet Res 2020; 22(6):e.19284.. O uso das tecnologias surge como um auxiliar ao sistema de saúde, destacando-se o uso da telemedicina/telessaúde, em suas mais diferentes formas: consultas on-line; telemonitoramento; sensores, usados como rastreadores que permitem que os usuários evitem lugares com maior risco de contaminação; e os Chatbots, oferecendo recomendações. Ademais, a telemedicina dispõe de outras vantagens, tais como a conveniência, a acessibilidade de informação referente à saúde e o custo reduzido1616 Vidal-Alaball J, Acosta-Roja R, Pastor Hernández N, Sanchez Luque U, Morrison D, Narejos Pérez S, Perez-Llano J, Salvador Vèrges A, López Seguí F. Telemedicine in the face of the COVID-19 pandemic. Aten Primaria 2020; 52(6):418-422..
Os benefícios apontados pelo uso da telessaúde são significativos, sendo associados à redução do tempo de diagnóstico e início do tratamento. O uso permite o acompanhamento contínuo do paciente, sem a necessidade de ser feito completamente presencial, auxiliando no gerenciamento de recursos médicos e acesso à informação em tempo real. Um exemplo do uso das tecnologias em saúde para apoiar o sistema de saúde ocorreu na região espanhola da Catalunha, com implantação de um sistema de acompanhamento na Atenção Primária à Saúde, para monitorar os sintomas de pacientes por meio de ligações. Caso fosse detectado agravamento do quadro, os pacientes eram (re)admitidos no hospital. Com a utilização desta intervenção, foi possível oferecer um cuidado contínuo e longitudinal. Concomitantemente, a prescrição médica foi destinada ao prontuário eletrônico do usuário para o sistema eletrônico das farmácias, e os medicamentos foram ofertados ao paciente1616 Vidal-Alaball J, Acosta-Roja R, Pastor Hernández N, Sanchez Luque U, Morrison D, Narejos Pérez S, Perez-Llano J, Salvador Vèrges A, López Seguí F. Telemedicine in the face of the COVID-19 pandemic. Aten Primaria 2020; 52(6):418-422..
O impacto na saúde, em pouco tempo, é um dos benefícios do uso das tecnologias em geral, e a ferramenta que configura essa rapidez foram as consultas on-line/telessaúde na pandemia de COVID-19, fato apontado neste estudo. Apesar de a telessaúde ainda ser um grande desafio para a realidade brasileira, essa ferramenta proporciona encurtamento da distância geográfica entre paciente e profissional da saúde. Deve garantir a segurança de dados gerados de forma on-line, a fim de amparar o cuidado à saúde com eficácia, mesmo fisicamente distantes1717 Catapan SC, Calvo MCM. Teleconsulta: uma revisão integrativa da interação médico- paciente mediada pela tecnologia. Rev Bras Educ Med 2020; 44(1):e003..
Nesse sentido, outras ferramentas tecnológicas são desenvolvidas com essa mesma finalidade, como é o caso do Sistema de Cadastramento e Acompanhamento de Hipertensos e Diabéticos (HiperDia). O HiperDia realiza o acompanhamento e monitoramento de usuários em condições de hipertensão arterial e/ou diabetes, permitindo aos profissionais de saúde melhoria na assistência prestada, aumento da adesão ao tratamento e acompanhamento de pacientes nas ações de prevenção secundária/terciária e contra da(s) doença(s)1818 Teixeira LM, Oliveira AG, Rosa DMA, Simão IP, Souza GO, Sousa JKA, Souza LC, Anjos RB, Sousa RF, Ferreira VL, Monteiro YC, Lima IOF. Utilização de recurso tecnológico para estratificação de risco cardiovascular em usuários do programa hiperdia: relato de experiência. Rev Eletr Acerv Saude 2019; 27(27):1-6..
Ao ser declarada a importância das redes de apoio e solidariedade em tempos da pandemia de COVID-19, neste estudo, identifica-se que cada vez mais valores pós-modernos vão surgindo, valores esses de base, troca, partilha, culturais e espirituais, que foram menosprezados na modernidade1919 Maffesoli M. Pensar o (im)pensável: Instituto Ciência e Fé e PUCPRESS debatem a pandemia [Internet]. 2020 [acessado 2021 dez 16]. Disponível em: http://doi.org/10.7213/pensarimpensavel.001.
http://doi.org/10.7213/pensarimpensavel.... .
Um estudo observou uma relação positiva entre o uso de internet e uma melhoria na qualidade da dieta, especialmente, se a usuária da internet fosse a principal responsável por preparar as refeições da família, o que corrobora com os achados deste estudo2020 Ma E, Jin X. Does Internet Use Connect Us to a Healthy Diet? Evidence from Rural China. Nutrients 2022; 14:2630..
Diante o exposto, fica evidente a potência da tecnologia para a saúde e o acesso à informação. As redes sociais virtuais e os aplicativos são utilizados como mecanismos para obter informações sobre estratégias que melhorem o bem-estar e qualidade de vida. Entretanto, a polaridade do uso das tecnologias e redes sociais é notável. A associação de tecnologia e saúde não é somente benéfica, os malefícios desse uso são evidenciados diante a quantidade excessiva de informações circulantes, a incerteza sobre essas informações e seu impacto na saúde mental. Esses aspectos foram potencializados durante a pandemia de COVID-19, visto que a infodemia globalizada gerou mais incerteza, aumentou a circulação das famosas fake news e distanciou a população de acessar conteúdos fidedignos. Nesse contexto, a tecnologia pode contribuir para o enfraquecimento da ciência e da medicina2121 Zanatta ET, Wanderley GPM, Branco IK, Pereira D, Kato LH, Maluf EMCP. Fake news: the impact of the internet on population health. Rev Assoc Med Bras 2021; 67(7):926-930..
Maffesoli11 Maffesoli M. O tempo retorna: formas elementares da pós-modernidade. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2012. traz que:
O contrato social moderno se fundamenta no encerramento do indivíduo na fortaleza de seu espírito. Convém ficar atento à epidemia emocional. As redes de Internet dão testemunho disso. Seja nos sites comunitários, nas listas de divulgação, nos blogs de discussão e no Twitter, pode-se dizer que gorjeia uma língua dos pássaros em que a razão não está ausente, é claro, mas em que a emoção desempenha um papel primordial. Pode-se bater papo infinitamente por meio de mensagens cuja brevidade condensa o essencial: a partilha de emoções comuns. Pois são estas que são capazes de emocionar e, portanto, de estimular, em sua totalidade, a ação do homem. Eis a lição inicial que dá a ambiência (atmosfera, clima): estamos presos, em um bloco único, em uma constelação ambiental que faz de cada um o que ele é, e da qual é muito difícil se desvencilhar11 Maffesoli M. O tempo retorna: formas elementares da pós-modernidade. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2012.(p.39).
A disseminação das fake news é um potencial agravante para a saúde mental dos indivíduos, principalmente durante a pandemia de COVID-19. A infodemia é resultado negativo da globalidade e rapidez de acesso, permitidos pelo uso de internet. Além de contribuir para comportamentos de risco baseado em inverdades2222 Giordani RCF, Donasolo JPG; Ames VDB, Giordani RL. A ciência entre a infodemia e outras narrativas da pós-verdade: desafios em tempos de pandemia. Cien Saude Colet 2021; 26(7):2863-2872., ela afeta diretamente a qualidade mental dos usuários e famílias que, além da instabilidade e isolamento social, são bombardeados com notícias sensacionalistas, as quais inferem maior impacto mental2323 Faro A, Bahiano MA, Nakano TC, Reis C, Silva BFP, Vitti LS. COVID-19 e saúde mental: a emergência do cuidado. Estud Psico 2020; 37:e200074..
Considerações finais
A associação entre tecnologia e saúde no cotidiano de usuários é um grande desafio da pós-modernidade, tornando-se cada vez mais presente no contexto da Atenção Primária. Seu impacto na saúde e na qualidade de vida de usuários pode ser evidenciado, neste estudo, em benefícios e malefícios: se, por um lado, a tecnologia favorece o acesso a alguns recursos de saúde, como medicamentos, marcação de exames, acompanhamento de doenças crônicas e teleconsultas, por outro lado, a tecnologia elitiza conhecimento, favorece a propagação de fake news, prejudica a socialização dos indivíduos e incita uma utopia virtual que adoece as pessoas. Essa dualidade permite importantes reflexões e evidencia o momento transicional que a sociedade se encontra entre valores modernos e pós-modernos.
É inegável os benefícios que a contribuição tecnológica integra na saúde, visto que, a partir dela, pode-se otimizar procedimentos e consultas; há facilidade de acesso aos conteúdos que previnam riscos, promovam e recuperam a saúde; as ferramentas de redes sociais virtuais possibilitam encurtar distâncias físicas, potencializam atendimentos, facilitam acesso a informações e acompanhamentos à distância, denotados neste estudo. Ou seja, a tecnologia se tornou uma ferramenta que corrobora com a qualidade e continuidade da assistência à saúde.
Entretanto, ao mesmo tempo que essa facilidade de acesso às tecnologias e redes sociais virtuais promove aspectos positivos, gera incerteza e insegurança no quotidiano de seus usuários, como a infodemia, muito evidenciada em tempos da pandemia de COVID-19, ratificada neste trabalho. A avalanche de notícias permite que inverdades circulem rapidamente, socializando inverdades e contribuindo para um adoecimento mental de usuários.
A limitação desta pesquisa se deve à amostragem ser intencional de usuários da ESF, representando um subgrupo da coletividade. Todavia, em casos múltiplos holístico-qualitativo, a amostragem intencional pode ser representativa em grupos com características semelhantes.
A compreensão da tecnossocialidade no quotidiano de usuários da ESF contribui para a área da saúde e da enfermagem, ao apontar que o uso da tecnossocialidade é estratégico para ações de cuidado e promoção da saúde.
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Financiamento
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), edital 001/2020.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
31 Jul 2023 - Data do Fascículo
Ago 2023
Histórico
- Recebido
15 Mar 2022 - Aceito
28 Mar 2023 - Publicado
12 Abr 2023