Resumo
Estudo de casos múltiplos com objetivo de analisar a rede de apoio social de jovens mães de filhos diagnosticados com sífilis congênita. Realizado em um município do estado do Ceará com seis participantes. As informações foram coletadas mediante entrevista semiestruturada e analisadas por meio da técnica analítica da síntese cruzada dos casos. A rede social das jovens foi constituída por familiares, pessoas externas à família, equipamentos sociais do território e serviços de saúde. Constataram-se vínculos heterogêneos e o apoio social foi essencial após o diagnóstico de sífilis, no período gestacional e puerperal. A transmissão vertical da sífilis é permeada por subjetividades que podem ser identificadas a partir da compreensão do contexto que envolve redes sociais, relações interpessoais e apoio social das mães e de seus filhos.
Palavras-chave:
Mães Adolescentes; Sífilis; Sífilis congênita; Apoio Social
Introdução
A adolescência é definida como uma fase situada no período entre 10 e 19 anos, e o limite etário de 15 e 24 anos é conceituado como juventude. O conjunto de adolescentes e jovens, na faixa compreendida entre 10 e 24 anos recebe a denominação de “população jovem” ou “pessoas jovens”11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Área Técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem. Brasília: MS; 2010.. É uma época marcada por profundas transformações e considerada como um período da vida de maior incidência para as infecções sexualmente transmissíveis (IST)22 Genz N, Meincke SMK, Carret MLV, Corrêa ACL, Alves CN. Doenças sexualmente transmissíveis: conhecimento e comportamento sexual de adolescentes. Texto Contexto Enferm 2017; 26(2):e5100015.. A sífilis é uma IST, sistêmica, curável e exclusiva do ser humano que está cada vez mais prevalente entre os jovens. Essa doença também pode ser transmitida verticalmente durante a gestação, resultando na sífilis congênita (SC)33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Prevenção da Transmissão Vertical do HIV, Sífilis e Hepatites. Brasília: MS; 2019.,44 Ceará. Coordenadoria de Promoção e Proteção à Saúde. Núcleo de Vigilância Epidemiológica. Boletim Epidemiológico - Sífilis. Fortaleza: Secretaria da Saúde do Estado do Ceará; 2022..
A sífilis congênita consiste em um grave problema de saúde pública e, apesar dos esforços para prevenção, tem-se observado a elevação expressiva da sua taxa de incidência ao longo dos anos. No Ceará detectou-se um aumento progressivo desse indicador, que foi de 6,0 casos/1.000 nascidos vivos, em 2010 para 12,9 casos/1.000 nascidos vivos, em 202144 Ceará. Coordenadoria de Promoção e Proteção à Saúde. Núcleo de Vigilância Epidemiológica. Boletim Epidemiológico - Sífilis. Fortaleza: Secretaria da Saúde do Estado do Ceará; 2022..
A transmissão vertical da sífilis afeta tanto a mãe e o filho quanto todo o núcleo familiar, gerando sentimentos de preocupação e angústia, mas principalmente de culpa e responsabilização. O impacto na vida da mulher torna-se evidente, visto que, o diagnóstico de sífilis envolve reações emocionais, conflitos familiares, danos à integridade moral e exclusão social55 Souza MHT, Beck EQ. Compreendendo a sífilis congênita a partir do olhar materno. Rev Enferm UFSM 2019; 9:e56.,66 Silva JN, Cabral JF, Nascimento VF, Lucietto GC, Oliveira CBC, Silva RA. Impactos do diagnóstico da infecção sexualmente transmissível na vida da mulher. Enferm Foco 2018; 9(2):23-27..
Neste contexto, destaca-se a rede de apoio social definida como um arranjo complexo que envolve grupos humanos, sistemas e organizações que estão, intencionalmente, articulados entre si como uma forma de potencializar as iniciativas dos atores sociais, promovendo o seu desenvolvimento e a capacidade de proteção da saúde da população77 Costa RF, Zeitoune RCG, Queiroz MVO, Gómez GCI, Ruiz GMJ. Redes de apoio ao adolescente no contexto do cuidado à saúde: interface entre saúde, família e educação. Rev Esc Enferm USP 2015; 49(5):741-747.. É um recurso importante para o cuidado à saúde, uma vez que, as conexões interpessoais presentes no contexto social dos jovens influenciam comportamentos, difundem valores, habilidades e conhecimentos que podem subsidiar o protagonismo juvenil para promoção da sua saúde77 Costa RF, Zeitoune RCG, Queiroz MVO, Gómez GCI, Ruiz GMJ. Redes de apoio ao adolescente no contexto do cuidado à saúde: interface entre saúde, família e educação. Rev Esc Enferm USP 2015; 49(5):741-747..
A rede de apoio social mostra-se especialmente importante em diversos períodos do desenvolvimento juvenil, o que tem exigido novas formas de envolvimento que garantam o seu papel social, como fornecedora de apoio ao longo da vida. Compreender a dinâmica da rede de apoio social dos jovens contribui para o conhecimento dos processos de socialização que cada contexto possibilita aos seus membros88 Nunes TGR, Pontes FAR, Silva I. Juventude e apoio social: um olhar sobre as redes sociais de estudantes paraenses. Praxis Educ 2019;15:e20135341-21..
Entende-se que as jovens mães com IST vivenciam uma realidade complexa, envolvendo vulnerabilidades que permeiam seu contexto social99 Moura SLO, Silva MAM, Moreira ACA, Freitas CASL, Pinheiro AKB. Percepção de mulheres quanto à sua vulnerabilidade às Infecções Sexualmente Transmíssiveis. Esc Anna Nery 2021; 25(1): e20190325.. O diagnóstico de sífilis congênita do filho se insere nesse contexto, o que torna necessário investigar o apoio recebido pela adolescente para o enfrentamento dessa realidade. Além disso, vale destacar que a sífilis congênita trata-se de um agravo de difícil controle, portanto, o estudo pode ainda sinalizar perspectivas importantes a serem abordadas na assistência às mães adolescentes.
A questão que norteou este estudo foi “Como está estruturada a rede de apoio social de jovens mães de filhos diagnosticados com sífilis congênita?”. Assim, o objetivo foi analisar a rede de apoio social de jovens mães de filhos diagnosticados com sífilis congênita.
Metodologia
Pesquisa qualitativa que teve como método o estudo de casos múltiplos1010 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2015. de caráter descritivo, o qual permitiu amplo e detalhado conhecimento das realidades estudadas, sob a perspectiva das unidades pesquisadas. Realizada no período de agosto de 2018 a dezembro de 2019, em um município do estado do Ceará, que possui um Sistema de Saúde composto por uma rede de atenção à saúde com serviços em diferentes níveis de complexidade.
Participaram do estudo seis jovens na faixa etária entre 20 e 25 anos, identificadas por meio das fichas de notificação/investigação de sífilis congênita, mediante levantamento realizado na Coordenadoria Regional de Saúde (CRES) do município no qual ocorreu o estudo. A seleção das participantes teve como critérios de inclusão estar na faixa etária entre 10 e 24 anos, considerada população jovem11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Área Técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem. Brasília: MS; 2010., no momento do diagnóstico de sífilis/SC e ter filho notificado como caso de SC nos anos de 2017 e 2018.
Conforme as informações colhidas nas Fichas de Notificação/Investigação da Sífilis Congênita identificou-se que 12 jovens estavam dentro do intervalo etário de interesse desta pesquisa (jovens na faixa etária entre 10 e 24 anos no momento do diagnóstico de SC dos seus filhos). Contactaram-se os gerentes das equipes de referência de cada unidade de saúde a fim de localizar as jovens em seus territórios, para então, definir o momento de encontro com as participantes. Desse quantitativo, quatro não aceitaram participar do estudo, uma não foi encontrada no endereço registrado na ficha de notificação e outra residia em um distrito do município, o que inviabilizou a sua localização e a realização da entrevista.
As informações foram coletadas por meio da entrevista individual semiestruturada, uma das mais importantes fontes de informações para um estudo de caso1010 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2015.. Cinco entrevistas aconteceram nos domicílios das depoentes e uma ocorreu nas dependências da Unidade Básica de Saúde (UBS), em horários convenientes e previamente determinados, tiveram duração média de 30 minutos, gravadas em áudio, mediante autorização das participantes, realizadas e transcritas na íntegra pela pesquisadora.
O Modelo Calgary de Avaliação Familiar (MCAF) orientou o tipo de dados a serem coletados, bem como a organização destes. O MCAF é constituído por três categorias principais: estrutural, de desenvolvimento e funcional. Nesse estudo, analisaram-se apenas os tópicos referentes à categoria estrutural, constituída pela estrutura interna, abordando-se a composição familiar e a ordem de nascimento, e a estrutura externa que incluiu as informações sobre a família extensa e sistemas mais amplos1111 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 5ª ed. São Paulo: Roca; 2012..
Dessa forma, obtiveram-se dados para caracterização das jovens (idade, situação conjugal, escolaridade, renda, ocupação, números de filhos, idade da primeira gestação), elementos da rede de apoio social (membros da família, amigos, serviços da comunidade) e aspectos dos relacionamentos interpessoais envolvidos na vivência de adoecimento pela sífilis e SC.
O MCAF propõe ainda o uso do ecomapa, instrumento que tem como finalidade retratar as relações entre os membros da estrutura interna e externa e dos sistemas mais amplos1010 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2015.. O círculo central é denominado de “família ou casa” e os círculos externos representam pessoas, órgãos ou instituições. São desenhadas linhas entre a família e os círculos externos que indicam a natureza dos vínculos. As linhas retas indicam fortes relações, as pontilhadas são vínculos tênues e as cortadas indicam relações estressantes1111 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 5ª ed. São Paulo: Roca; 2012.. Para elaboração gráfica dessa ferramenta utilizou-se como recurso o GenoPro®1212 GENOPRO(r). Versão 3.0.1.5: GenoPro(r) [Internet]. 2019 [acessado 2021 jan 13]. Disponível em: https://www. genopro.com/.
https://www. genopro.com... e o programa Microsoft Power Point 2010.
As participantes representaram as pessoas índices e, para representação da rede de apoio social e de suas particularidades foram elaborados ecomapas de cada caso, utilizando-os como fonte de evidências para o estudo da estrutura familiar e das relações. Ressalta-se que o delineamento inicial dos ecomapas ocorreu durante as entrevistas e, aperfeiçoados após a transcrição dos depoimentos, por meio da sistematização das informações coletadas.
A análise das evidências se deu por meio da técnica analítica da síntese cruzada dos casos1010 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2015., que se aplica aos estudos de casos múltiplos. Essa técnica traduz pelo exame, categorização e recombinação de dados com o objetivo de direcionar uma descoberta, e como estratégia adotou-se a descrição dos casos.
Ademais, por meio de questões norteadoras buscou-se compreender as atitudes da jovem frente a essa situação, o impacto na sua rede social, assim como foi possível identificar os recursos e as fontes de apoio utilizados para o enfrentamento do problema. A intenção foi apreender informações acerca de um contexto específico da vida das participantes (período que compreendeu a gestação, o diagnóstico de sífilis materna e SC, parto e puerpério), visto que, a rede de apoio social é dinâmica e sofre alterações ao longo do tempo.
Para apoiar a análise individual das informações qualitativas obtidas empregou-se ainda o método de análise de conteúdo de Bardin, com enfoque na técnica de análise temática1313 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016., cuja finalidade foi o aprofundamento em questões mais subjetivas que surgiram dos discursos das participantes.
A partir da análise do conteúdo das entrevistas emergiram categorias temáticas denominadas: “Organização da rede de apoio social à jovem mãe no contexto da sífilis/sífilis congênita”, “O apoio social à jovem mãe, de onde vem?”, e “As relações interpessoais que tecem a rede de apoio social da jovem mãe”. Posteriormente, realizou-se a síntese cruzada dos casos, para comparar os dados, observando se apresentavam características que se replicavam ou contrastavam entre si.
O estudo se deu de acordo com a Resolução nº 466/2012 do Ministério da Saúde. O projeto ao qual esta pesquisa está vinculada foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) com parecer de nº 3.377.307. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e, com a finalidade de manter o anonimato e a confidencialidade das jovens, utilizou-se a letra J, acrescida de número arábico, para representar cada participante.
Resultados
Caracterização das participantes
As participantes se encontravam na faixa etária entre 20 e 25 anos (no momento da entrevista). Quanto à situação conjugal, havia duas solteiras e quatro em união estável. Em relação à escolaridade, duas possuíam o ensino médio completo, três tinham o ensino fundamental completo e uma não havia completado o ensino fundamental. Duas participantes tinham ocupação remunerada, a renda familiar variou de menos de um salário a três salários mínimos, quatro jovens eram de religião católica, uma evangélica e outra que se considerava cristã. Em três casos a gravidez não foi planejada, a idade da primeira gestação foi entre 14 e 23 anos e, quanto à prole, o número variou de um a três filhos. O diagnóstico de sífilis materna e sífilis congênita ocorreu quando estavam com idade entre 17 e 23 anos.
Representação dos casos
A seguir estão representados os ecomapas dos casos individuais, que expressam as características mais relevantes da rede de apoio social das jovens, incluindo a família interna, família extensa, os sistemas mais amplos e os relacionamentos emocionais e interpessoais de cada contexto.
A estrutura familiar interna apresentou-se de forma diversificada. Encontraram-se cenários com composição distintas. Família composta pelo casal e filhos (J1, J3 e J4), mãe e filhos (J2) e pelo casal e filhos com outros membros da família de origem, como a sogra e cunhada (J5) e a mãe, filhos e os avós (J6).
Os componentes elencados pelas jovens, como constituintes da sua rede de apoio social, foram determinados a partir das conexões estabelecidas entre os membros da família interna, com a família extensa e os sistemas mais amplos e consistiram em familiares (companheiros, filhos, mães, avós, irmãs, tios, primas), pessoas externas à família, como amigas e os serviços que prestaram assistência à jovem e ao seu filho durante a gestação. Há também componentes relacionados ao adoecimento por sífilis, representados por enfermeiras e agentes comunitários de saúde (ACS), bem como, outras instituições comunitárias (igrejas, instituições de ensino e sociais) e outros sistemas (vizinhança, trabalho etc.), demonstrados nas Figuras 1, 2 e 3.
As narrativas das participantes retratam como está configurada a rede de apoio social à jovem mãe no contexto da sífilis/sífilis congênita para além do aspecto estrutural, permitindo compreendê-la a partir das relações estabelecidas, assim como, a interação das jovens com os elementos constituintes desta rede.
Organização da rede de apoio social à jovem mãe no contexto da sífilis/sífilis congênita
Na rede de apoio social das mães identificou-se contato relevante com os membros da estrutura interna. Contudo, quando questionada se a convivência é maior com os membros da família interna evidenciou-se situação, na qual, a jovem expressa o sentimento de não pertencer ao contexto familiar atual. Esses achados são constatados a seguir:
É [...] eu passo o dia em casa. Aí ele sai pra trabalhar, quando ele tá sem trabalhar ele fica dentro de casa [...] (J1).
Por que eles não são da minha família [...] Eu não tenho família aqui (J3).
Quanto à organização externa, em relação à família extensa, percebeu-se o convívio próximo com alguns membros (genitora, irmãs, tio), assim como condições que revelam distanciamento:
[...] é só com a minha mãe mesmo [relação família extensa] (J1).
[...] as minha irmãs [vínculo afetivo] (J2).
[...] é mais afastado [o pai] (J3).
Falo, às vezes quando ele tá desocupado [com o pai] (J6).
No tocante aos sistemas mais amplos, constatou-se um cenário, no qual a rede de apoio social era restrita, mas, em sua maioria, as jovens reconheceram várias instituições comunitárias e pessoas fora do contexto estrutural interno e da família extensa, pertencentes a esta rede. Esse achado pode ser evidenciado tanto nos ecomapas, quanto nos discursos das participantes:
Eu vou só no posto (J1).
E a gente virou amiga e agora ela virou madrinha da minha filha (J2).
Todo mundo aqui me conhece [vizinhança] (J3).
A única que vem aqui é a ACS (J5).
Às vezes eu vou pra Igreja; é [pra missa] (J4).
E o apoio social à jovem mãe, de onde vem?
O apoio social revelou-se um aspecto fundamental na vivência das jovens com circunstâncias complexas durante o processo de gestar, parir, da infecção por sífilis e da transmissão vertical da doença. Nesse sentido, as mães relataram suporte proveniente de pessoas dos sistemas mais amplos, da família extensa, dos serviços de saúde e companheiro:
Ela [amiga] foi me ajudar dentro de casa (J2).
Eu recebi ajuda da minha patroa que trabalhava antes dela nascer. Ela me deu berço, me deu um bocado de coisinha (J3).
Não, apoio mesmo foi só do pessoal da família. É aí ficava me dando conselho, que ele iria ficar curado, que isso acontece [...] (J2).
Ajuda ela [a tia]. Ah, quando eu tô aperreada ela me dá um trocado (J4).
Aí a minha vó já sabia porque a minha mãe teve também. Aí ela disse que eu ficasse calma que não era nada (J6).
Quem me ajudou foi só a enfermeira mesmo. Ela que cuidava do meu pré-natal (J1).
Disse que não ia [companheiro para realizar o tratamento para sífilis], a enfermeira veio falar com ele aqui (J5).
Aí ele fez normal, de boa [tratamento para sífilis] (J2).
Era ele que fazia as coisas, meu marido. Que ele tava parado, na época, aí ele fazia tudo (J3).
Fragilidades de apoio social também foram apontadas pelas participantes, uma vez que em algumas situações elas sentiram-se desamparadas:
Porque a maioria das irmãs tudo tem filho, aí num ia deixar pra ir cuidar de mim [durante o puerpério] (J2).
Quando eu disse a ele [ex-namorado] que tava grávida, ele queria que eu botasse meu filho pra fora (J1).
Depois que eu tive essa menina, elas vieram saber, porque meu padrasto veio aqui saber como é que eu tava, mas num teve não [apoio da família]. Só eu e Deus mesmo (J3).
Não. Ele [companheiro] não quis fazer [tratamento para sífilis] (J6).
As relações interpessoais que tecem a rede de apoio social da jovem mãe
A partir da interação entre as pessoas constituintes da rede de apoio social das jovens deste estudo, desvelou-se a natureza e peculiaridades dos vínculos estabelecidos. Foi possível identificar o significado desses relacionamentos e como interferiram no contexto vivenciado por estas mães. Nesta perspectiva, as participantes sinalizaram como se davam as relações da família interna com família extensa, com o companheiro, entre membros da família interna e com os sistemas mais amplos. Família interna:
É tudo normal. Só tem um que é intrigado [relação com os irmãos] (J1).
Minhas coisas não conto muito para ela não [mãe] (J1).
Em relação à família extensa, destaca-se:
É boa. Cada um nos seus cantos [...] (J2).
Atribulada. Teve momentos felizes. Sempre foi assim mais com discussões (J2).
É forte. Com ele é [companheiro] (J3).
Porque assim ele sai aí não é de confiar nele direto não (J1).
Elas nunca pisaram nem aqui em casa [profissionais do posto] (J5).
Eu vou lá [unidade de saúde] só quando os meninos estão doentes mesmo (J6).
Eu senti raiva também do posto [após o diagnóstico de SC] (J3).
Discussão
A família é definida como uma comunidade cujo objetivo é a realização pessoal dos seus elementos, configurando-se como o primeiro grupo da rede de apoio social com o qual o indivíduo interage. É uma unidade dinâmica de relações afetivas, sociais e cognitivas imersas nas condições materiais, históricas e culturais de um dado grupo social1414 Barroso PO, Pedroso JS, Cruz EJS. Redes de apoio social de famílias com crianças acolhidas institucionalmente: estudo de caso múltiplo. Pensando Fam 2018; 22(2):219-234..
A família interna se constitui dos membros que coabitam no mesmo domicílio, porém, Wright e Leahey11 ponderam “que a família é quem seus membros dizem que são”. Em relação à estrutura externa são elencadas duas subcategorias, a primeira se refere à família extensa que inclui a família de origem e a família de procriação, assim como a geração atual. A segunda é denominada sistemas mais amplos e constitui-se das instituições sociais e das pessoas com as quais as famílias mantêm contato significativo1111 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 5ª ed. São Paulo: Roca; 2012..
Nas relações familiares e nos sistemas mais amplos foram evidenciados, neste estudo, vínculos diversificados, e destacaram-se lacunas quanto aos relacionamentos interpessoais das jovens com os seus parceiros, que se caracterizaram por conexões conflituosas e de desconfiança, após a descoberta da IST/sífilis (J1, J2). Essa repercussão negativa é apontada na literatura como fundamento para a hipótese de que houve uma traição e, portanto, há uma quebra de confiança entre o casal1515 Busnello GF, Hoff GA, Kolhs M, Frigo J, Zanotelli SS. Infecção pelo papiloma vírus: conhecimento das mulheres infectadas frente ao diagnóstico. Rev UNINGÁ Rev 2016; 25(3):25-30..
A revelação de uma IST para o parceiro nem sempre vai interferir na relação conjugal, e, em muitos casos, a compreensão desta condição colabora para a percepção das parcerias quanto à necessidade de cuidado1515 Busnello GF, Hoff GA, Kolhs M, Frigo J, Zanotelli SS. Infecção pelo papiloma vírus: conhecimento das mulheres infectadas frente ao diagnóstico. Rev UNINGÁ Rev 2016; 25(3):25-30.. Neste aspecto, há uma conformidade com esta investigação, posto que, duas jovens mantiveram suas relações de forma harmônica (J3 e J5) e outras (J1 e J2), apesar do impacto negativo, compartilharam o diagnóstico com os parceiros e, estes, também realizaram o tratamento.
Outra fragilidade explicitada diz respeito à dificuldade em se estabelecer o diálogo e dividir com as pessoas próximas os acontecimentos vivenciados. J1 não tem o hábito de conversar com a mãe sobre determinados assuntos, ao passo que J5 não se sentia confortável em partilhar com os membros da família do companheiro a situação de adoecimento por uma IST/sífilis. O exposto pode ser interpretado como medo da reação dos familiares. Essa preocupação em enfrentar rótulos e de não serem aceitas são motivos relatados para a omissão de muitas mulheres quanto a essa condição em seu meio social1616 Fernandes MA, Bezerra MM, Moura FMJSP, Alencar NES, Lima FFF, Castro AED. Infecções sexualmente transmissíveis e as vivências de mulheres em situação de reclusão. Rev Enferm UERJ 2016; 24(6):e27774..
Destacaram-se os relacionamentos distantes das jovens com os membros da família extensa, como também de proximidade e união. Wright e Leahey1111 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 5ª ed. São Paulo: Roca; 2012. sublinham que os vínculos existentes entre seus componentes nem sempre são percebidos, porém são forças muito influentes na estrutura familiar e independem de distâncias geográficas.
Identificou-se a existência de uma rede restrita de sistemas amplos (J1), contudo, em sua maioria, esta se apresentou com um vasto número de instituições comunitárias e pessoas externas à família (J2, J3, J4, J5 e J6). Sobressaíram-se relações próximas/fortes, de harmonia, muito fortes, cortadas e distantes/fracas.
Dentre eles, foi significativa a relação de proximidade com a enfermeira que acompanhou o pré-natal (J1, J6). Na consulta de enfermagem é realizado o acolhimento da jovem e, este momento, deve ultrapassar o caráter biologicista de técnicas e procedimentos, com o objetivo de criar laços e estabelecer uma relação de confiança com a gestante e sua família. Isso contribui para o diálogo, e quando há o diagnóstico de sífilis, para as orientações quanto ao tratamento, captação dos parceiros e realização de exames de seguimento com vistas à prevenção da sífilis congênita1717 Nunes JT, Marinho ACV, Davim RMB, Silva GGO, Felix RS, Martino MMF. Sífilis na gestação: perspectivas e condutas do enfermeiro. Rev Enferm UFPE 2017; 11(12):4875-4884..
A relação com as unidades de saúde foi classificada como distante/fraca. Observou-se um raro contato com a UBS, e a procura aconteceu principalmente em caso de doença na família. Esse relacionamento limitado também foi evidenciado em um estudo, no qual as gestantes adolescentes demonstraram relações enfraquecidas com as unidades de saúde e falta de interesse em frequentar esses locais e formar vínculo1818 Lago PN, Sousa AAS, Rodrigues DPR, Siva MRF, Mesquita NS. A atenção primária em saúde como fonte de apoio social a gestantes adolescentes. Enferm Bras 2019; 18(1):75-84.,1919 Pillay S, Tooke LJ. Symptomatic congenital syphilis in a tertiary neonatal unit in Cape Town, South Africa: High morbidity and mortality in a preventable disease. S Afr Med J 2019; 109(9):652-658..
Entretanto, apesar da fragilidade no elo com as UBS, elas se configuraram como referência para as jovens no cuidado em saúde durante a gestação, puerpério e acompanhamento da sífilis gestacional e sífilis congênita, bem como o seguimento após o tratamento dessas enfermidades.
O apoio social foi e, neste estudo, ocorreu durante o período gestacional, no parto, puerpério e após o diagnóstico de sífilis, se traduzindo em amparo no acompanhamento pré-natal, no tratamento da sífilis, na realização de tarefas domésticas e no cuidado com os filhos. Ressalta-se que também se constataram fragilidades na rede, ao passo que, foi relatada a falta de apoio.
Durante a gestação os companheiros apoiaram no acompanhamento do pré-natal e na realização de exames quando solicitados. Em outros estudos o papel do parceiro como participante ativo da rede de apoio emergiu como figura de extrema importância ao interagir de forma positiva com a gestação2020 Matos GC, Soares MC, Escobal APL, Quadro PP, Rodrigues JB. Rede de apoio familiar à gravidez e ao parto na adolescência: uma abordagem moscoviciana. J Nurs Health 2019; 9(1):e199106..
Os parceiros foram importantes em outros momentos relacionados à maternidade. Neste sentido, entende-se que a função paterna se estende aos cuidados com os filhos, como preparar a alimentação, trocar fraldas, banhar etc., e foi revelada no depoimento das jovens. Constata-se a participação efetiva dos pais na assistência aos filhos recém-nascidos. Reforça-se que, em muitos cenários, o companheiro é a única ou a principal referência da puérpera em seu convívio domiciliar2121 Silva EM, Marcolino E, Ganassin GS, Santos AL, Marcon SS. Participação do companheiro nos cuidados do binômio mãe e filho: percepção de puérperas. J Res Fundam Care 2016; 8(1):3991-4003..
Dentre as relações de apoio subsidiadas por outras mulheres, as jovens indicaram, como elementos, as amigas, a enfermeira e a ACS da unidade de saúde. Fato também relatado na literatura que verificaram que as representações da rede social de apoio das adolescentes grávidas consistiram notadamente de caráter feminino, incluindo neste campo familiares e pessoas externas2222 Demori CC, Soares MC, Cremonese L, Barreto NB. De mulheres para mulheres: rede social de apoio às adolescentes grávidas. Rev Enferm UFSM 2018; 8(2):247-262..
Em estudo realizado com adolescentes, a unidade de saúde representada pelos profissionais, se constituiu em local de suporte social1818 Lago PN, Sousa AAS, Rodrigues DPR, Siva MRF, Mesquita NS. A atenção primária em saúde como fonte de apoio social a gestantes adolescentes. Enferm Bras 2019; 18(1):75-84.. No entanto, também revelaram que o apoio prestado pelo serviço de saúde se restringiu ao cuidado biomédico, não havendo o aprofundamento de questões sociais e psicológicas, tão essenciais no processo da maternidade1818 Lago PN, Sousa AAS, Rodrigues DPR, Siva MRF, Mesquita NS. A atenção primária em saúde como fonte de apoio social a gestantes adolescentes. Enferm Bras 2019; 18(1):75-84..
A rede social foi fundamental como amparo às jovens após a descoberta da sífilis. Os familiares ofereceram suporte emocional procurando tranquilizar a mulher no momento do diagnóstico e na busca por informações acerca da doença. A amiga de uma das partícipes a orientou para o entendimento do que é a sífilis, os companheiros realizaram tratamento e os profissionais de saúde prestaram a assistência conforme os protocolos estabelecidos.
O apoio dos familiares neste momento pode significar para as mulheres como um fator de superação da difícil experiência de ter uma IST. Elas reconhecem que necessitam desse suporte para partilhar não somente o resultado de um exame, mas como uma forma de amenizar as suas angústias e dúvidas frente a situação, compreensão de sentimentos e na adesão ao tratamento e acompanhamento2323 Silva VST. Os (Des)caminhos da sífilis congênita no município de Botucatu, São Paulo [dissertação]. Botucatu: Universidade Estadual Paulista; 2016..
Vale ressaltar que a diversificação nos casos estudados também esteve relacionada à qualidade das relações e de apoio no âmbito das redes das jovens mães. Desta forma, a falta de apoio da rede social também esteve presente nas falas de algumas jovens, e foram justificadas pela não aceitação da gestação pela figura paterna, a distância geográfica da família de origem e, o fato de seus integrantes já terem suas responsabilidades de trabalho, de cuidados domésticos e com as suas próprias famílias, o que dificultou em demandar tempo para oferecer a ajuda necessária.
A gravidez prematura pode conduzir ao desamparo social, como o abandono da família e do companheiro. Uma investigação com adolescentes constatou a fragilidade na rede de apoio familiar que resultou em representações de gestar e parir embasadas na solidão, na insegurança e no medo de vivenciar o processo2121 Silva EM, Marcolino E, Ganassin GS, Santos AL, Marcon SS. Participação do companheiro nos cuidados do binômio mãe e filho: percepção de puérperas. J Res Fundam Care 2016; 8(1):3991-4003..
Nesse aspecto, salienta-se que existe a probabilidade de um indivíduo participar de uma rede social e não receber apoio social ou achar que não recebe, visto que, este está associado às interações que são percebidas como positivas, ou seja, representam aspectos qualitativos das relações, portanto, de caráter subjetivo. Deste modo, faz-se necessária a percepção dos indivíduos quanto aos recursos que estão disponibilizados na rede2424 Nunes TGR, Pontes FAR, Silva I. Juventude e apoio social: um olhar sobre as redes sociais de estudantes paraenses. Praxis Educ 2019; 15:e20135341-21..
Considerações finais
As redes sociais mostraram-se diversificadas e de modo geral caracterizaram-se como amplas e o apoio social foi satisfatório. As relações interpessoais foram heterogêneas e as mais significativas para as jovens consistiram naquelas que representaram situações de forte vínculo afetivo e de apoio, bem como as que revelaram conflitos e falta de suporte.
Com os sistemas mais amplos, sobressaíram-se relacionamentos normais, próximos, de harmonia, cortados, distantes e indiferentes. Destaca-se o vínculo fragilizado com as unidades de saúde, o apoio social e emocional à jovem após o diagnóstico de sífilis e o impacto desta doença na rede social, principalmente no que diz respeito aos relacionamentos conjugais. Além disso, contatou-se o papel limitado de algumas famílias quanto ao suporte dispensado ao binômio mãe-filho que pode contribuir para o medo e insegurança no processo de maternidade e nas situações de doença.
As limitações deste estudo concentram-se no fato de ter sido abordado apenas um integrante do núcleo familiar, impossibilitando a percepção dessa rede e de suas relações sob outro ponto de vista. A escuta dos outros elementos que a compõem seria importante para o aprofundamento das relações sociais estabelecidas, os recursos existentes para o enfrentamento dos problemas e os suportes comunitários disponíveis.
Considera-se que a transmissão vertical da sífilis é permeada por singularidades que podem ser identificadas a partir da compreensão do contexto que envolve redes sociais, relações interpessoais e apoio social das mães e de seus filhos. Estes resultados podem subsidiar estratégias que busquem o controle da sífilis congênita e reforçam a necessidade da realização de mais investigações que considerem essas subjetividades.
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Financiamento
A pesquisa foi financiada pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico aprovado no Edital 03/2018 - Produtividade em Pesquisa, Estímulo à Interiorização e à Inovação Tecnológica (BPI).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
31 Jul 2023 - Data do Fascículo
Ago 2023
Histórico
- Recebido
29 Out 2022 - Aceito
28 Mar 2023 - Publicado
26 Abr 2023