Resumo
Este trabalho aborda os desafios contemporâneos do setor de saneamento básico brasileiro. As características de rentabilidade e dinamismo setorial puseram os serviços estatais de A & E no foco da agenda das reformas estruturais sob o argumento de que os governos não dispõem de recursos necessários para universalizar a cobertura. A agenda da reforma dos serviços de A & E advoga a concessão a empresas privadas da comercialização do abastecimento de água e do tratamento do esgotamento sanitário. Em convergência com esta agenda de reforma estrutural, a aprovação em 15 de julho de 2020 da Lei 14.026 alterou em profundidade o marco legal do saneamento, adotando integralmente a pauta da desestatização do setor. O novo marco regulatório veta o contrato de programa, torna obrigatória a licitação para contratação do serviço de saneamento, estabelece diretrizes nacionais para que estados e municípios acessem recursos federais e institui o regime de regulação nacional por meio da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. O modelo cooperativo praticado no Sistema Único de Saúde (SUS) pode servir como referência para a construção de um pacto social no setor.
Palavras-chave:
Saneamento Básico; Serviços de Água e Esgoto; Empresas Estatais; Privatização; Regionalização
Introdução
Este texto apresenta os desafios contemporâneos do setor de saneamento básico brasileiro. A política governamental objeto deste texto contempla: i) o abastecimento de água potável - constituído pela disponibilização e manutenção de infraestruturas e instalações necessárias ao abastecimento público de água potável, desde a captação até as ligações prediais e seus instrumentos de medição; e ii) o esgotamento sanitário - formado pela disponibilização e manutenção de infraestruturas e instalações necessárias à coleta, ao transporte, ao tratamento e à disposição final dos esgotos sanitários11 Brasil. Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico. Diário Oficial União; 2020..
Na análise de Spiller e Savedoof22 Spiller P, Savedoof W. Government Opportunism and the Provision of Water. In: Spiller P, Savedoof W, editors. Spilled Water: Provisional Commitment of the Provision of Water Services. Washington, D.C.; Inter-American Development Bank; 1999. a América Latina é marcada pelo atraso na capacidade da provisão água e esgoto (A & E). Os autores o atribuem às condutas oportunistas dos governos, que levariam as organizações de saneamento básico, públicas ou privadas, à ineficiência operacional, à prestação de serviços de má qualidade, à precificação das tarifas abaixo do custo de produção, além do uso para a corrupção22 Spiller P, Savedoof W. Government Opportunism and the Provision of Water. In: Spiller P, Savedoof W, editors. Spilled Water: Provisional Commitment of the Provision of Water Services. Washington, D.C.; Inter-American Development Bank; 1999..
No Brasil, a investigação do arranjo institucional do setor de A & E tem ressaltado aspectos da dinâmica nacional que permitem relativizar essas conclusões. Primeiramente, a literatura nacional chama a atenção para o efeito da dependência de trajetória sobre a evolução do setor de A & E. A noção de dependência de trajetória aponta para a influência das decisões do passado na política pública. Uma política pública, ao iniciar uma trajetória de mudança, pode ser obstaculizada pelo arranjo institucional estabelecido33 Pierson P. Politics in Time. History, Institutions, and Social Analysis. New Jersey: Princeton; 2004.. Esta perspectiva teórica destaca a dominância das Companhias Estaduais de saneamento (CESBs), criadas pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Planasa) na década de 1970 e controladas pelos governos regionais44 Manicucci T, D'Albuquerque R. Política de saneamento vis-à-vis à política de saúde: encontros, desencontros e seus efeitos. In: Heller L, organizador. Saneamento como política pública: um olhar a partir dos desafios do SUS. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz; 2018. p. 9-52.. O Planasa suprimiu a titularidade municipal ao centralizar os serviços de A & E em companhias sob o controle do Executivo estadual55 Costa NR. Políticas Públicas, Justiça e Inovação. Saúde e Saneamento na Agenda Social. São Paulo: Editora Hucitec; 1998..
A segunda abordagem sobre o arranjo institucional do setor ressalta que a provisão de saneamento básico tem evoluído no país associada à busca de ganhos financeiros. As lideranças da federação têm optado ao longo das últimas três décadas pela ampliação da base arrecadatória de Estados e Municípios por meio da comercialização de serviços de saneamento básico66 Saiani CCS, Toneto Junior R. Evolução do acesso a serviços de saneamento básico no Brasil (1970 a 2004). Econ Soc 2010; 19(38):79-106.. A busca por novas receitas explica as decisões dos investimentos dos governos e o privilegiamento da oferta de serviços para as áreas urbanas77 Heller L, Rezende SC, Cordeiro BS, Britto AL. Políticas públicas de saneamento básico no Brasil: tensões entre o legado conservador e o avanço progressista. In: Menicucci TMG, Gontijo JGL, organizadores, Gestão e políticas públicas no cenário contemporâneo - tendências nacionais e internacionais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2016. p. 299-321.. Em razão desse viés mercantil, argumenta-se que somente uma política ativa de investimento do Executivo federal orientada à universalização poderia superar o sério déficit de acesso aos serviços de saneamento básico88 Brasil. Ministério das Cidades. PLANSAB - Plano Nacional de Saneamento Básico. Brasília: Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental; 2013..
A terceira linha explicativa associa o déficit de cobertura ao arranjo institucional estatal do setor e defende a ampliação do investimento privado. A baixa capacidade financeira das companhias estaduais e municipais em função das tarifas irrealistas e da ineficiência operacional limitaria o investimento em A & E no Brasil99 Azevedo PF, Toneto JRR, SaianI CCS. Diagnóstico e Propostas para o Setor de Saneamento. In: Giambiagi FF, Almeida Jr. MF, organizadores. Retomada do Crescimento. Rio de Janeiro: Elsevier; 2017. p. 313-327..
A literatura brasileira acerta ao identificar a resiliência institucional do arranjo herdado do Planasa. A teoria econômica não convencional utiliza o conceito de especificidade de ativo para explicar a resiliência dos investimentos em infraestrutura, que não podem ser realocados para outros usos ou substituídos por mecanismo de concorrência1010 Riordan MH, Williamson OE. Asset Specificity, and Economic Organization. Int J Indust Org 1985; 3(1):365-378..
É fato que a modelagem criada pelo Planasa não foi problematizada mesmo durante o processo de pactuação da Constituição Federal de 1988 (CF1988), deixando as CESBs em posição confortável e adiando a definição da titularidade e da participação dos agentes privados1111 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out.. Turolla1212 Turolla FA. Política de Saneamento Básico: Avanços Recentes e Opções Futuras de Políticas Públicas. Brasília: IPEA; 2002. assinala que a CF1988 atribui competências para atuação em saneamento dos três níveis de governo, mas, desde então as iniciativas de mudança no arcabouço legal do saneamento foram parcimoniosas: dezenove anos após a CF1988 a Lei 11.445, de 2007, estabeleceu as diretrizes nacionais para o saneamento básico, pautando o debate sobre titularidade1212 Turolla FA. Política de Saneamento Básico: Avanços Recentes e Opções Futuras de Políticas Públicas. Brasília: IPEA; 2002.. A nova jurisprudência aumentou os custos transacionais para a permanência da hegemonia regional das CESBs ao definir o município como titular do serviço de saneamento básico, podendo delegar a organização, regulação, fiscalização e prestação dos serviços a terceiros1313 Brasil. Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico; cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico. Diário Oficial da União; 2007..
Ainda assim, a Lei 11.445/2007 favoreceu os interesses estaduais ao incluir a figura do contrato de programa como opção para a renovação dos contratos de concessão dos municípios com as CESBs1414 Britto AL. Estudo Proposições para Acelerar o Avanço da Política de Saneamento no Brasil: Tendências Atuais e Visão dos Agentes do Setor. In: Heller L, organizador. Saneamento como política pública: um olhar a partir dos desafios do SUS. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz; 2018. p. 53-102.. O Decreto 7.217/2010, que regulamentou a Lei 11.445/2007, ratificou a prestação regionalizada de serviços de saneamento básico e o contrato de programa, mas foi omisso em relação ao contencioso da titularidade1515 Brasil. Decreto nº 7217, de 21 de junho de 2010. Regulamenta a Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico, e dá outras providências. Diário Oficial da União; 2010..
No contexto de criação da nova Lei do Saneamento Básico de 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) promoveu até 2016 um salto para frente na universalização do acesso deixando à margem o conflito federativo e secundarizando a atuação de agentes privados1616 Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Impactos de investimentos em água e esgoto sobre indicadores de saúde. Relatorio Avaliação Efetividade 2021; 3(7):1-54.. Cabe destacar que os incentivos institucionais da segunda metade da década de 2000 e os investimentos do PAC trouxeram de fato os governos municipais para o centro da política pública de saneamento por meio da acelerada criação de serviços locais1717 Kresch EP. The Buck Stops Where? Federalism, Uncertainty, and Investment in the Brazilian Water and Sanitation Sector. New York: Center on Global Economic Governance; 2017..
Os governos subnacionais buscaram a geração de novas receitas por meio dos investimentos em A & E, promovendo o retorno financeiro e a prestação de serviços por autarquias ou unidade da administração direta1818 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 25º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Regional; 2021.. O setor de A & E brasileiro tornou-se estruturalmente rentável. Por exemplo, em 2020 a receita operacional total (de 72,4 bilhões de reais em 2020) superou a despesa total (65,4 bilhões de reais) com a provisão dos serviços das companhias regionais (estaduais), locais (municipais) e microrregionais1818 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 25º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Regional; 2021.. O padrão de funcionamento superavitário dos serviços de A & E ajuda a explicar a intensa disputa pela ampliação da atuação dos agentes privados nos últimos anos por mudança legal da posição de mercado das CESBs e prestadores locais.
As características de rentabilidade e dinamismo setorial puseram os serviços estatais de A & E no foco da agenda das reformas estruturais sob o argumento de que os governos não dispõem de recursos necessários para universalizar a cobertura. A agenda da reforma dos serviços de A & E advoga a concessão a empresas privadas da comercialização do abastecimento de água e do tratamento do esgotamento sanitário. Nessa advocacia, é comum a descrição de um cenário de precariedade do saneamento básico com mazela nacional, salvo nas situações em que há a atuação da empresa privada1919 Instituto Trata Brasil. Desafios para Disponibilidade Hídrica e Avanço da Eficiência do Saneamento Básico no Brasil [Internet]. [acessado 2022 jun 20]. Disponível em: https://tratabrasil.org.br/pt/.
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A advocacia da ampliação do papel dos agentes privados defende a parceria público/privado; a regulação federal; os consórcios entre os pequenos municípios e, principalmente, o fim dos contratos de programa99 Azevedo PF, Toneto JRR, SaianI CCS. Diagnóstico e Propostas para o Setor de Saneamento. In: Giambiagi FF, Almeida Jr. MF, organizadores. Retomada do Crescimento. Rio de Janeiro: Elsevier; 2017. p. 313-327.,2020 Vandor P, Emiliano E. Como Destravar a Expansão do Setor de Saneamento. Jornal Valor Econômico, Seção B:1; 2018..
O novo marco legal do Saneamento no Brasil
Em convergência com esta agenda de reforma estrutural, a aprovação em 15 de julho de 2020 da Lei 14.026 alterou em profundidade o marco legal do saneamento, adotando integralmente a pauta da desestatização do setor. O novo marco regulatório veta o contrato de programa, torna obrigatória a licitação para contratação do serviço de saneamento, incentiva a regionalização sem a presença das CESBs, estabelece diretrizes nacionais para que estados e municípios acessem recursos federais e institui o regime de regulação nacional por meio da Agência Nacional de Águas (ANA), renomeada Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico11 Brasil. Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico. Diário Oficial União; 2020..
Com o veto aos contratos de programa, o novo marco estabelece que a delegação de serviços de saneamento básico deve ser por licitação. Os contratos de programa facilitaram a renovação dos contratos CESBs e municípios. Por essa modalidade, as Prefeituras puderam assinar acordos de cooperação e as CESBs mantiveram os serviços de saneamento prestados aos municípios sem necessidade de licitação. Com o novo marco, isso não é mais possível. As CESBs devem disputar licitação com empresas privadas ou públicas se quiserem manter os serviços nos municípios2121 Hirata T. O Futuro de Estatais de Saneamento pode ser definido neste mês. Jornal Valor Econômico 2022; Seção B:2.,2222 Supremo Tribunal Federal. ADI 6492 [Internet]. 2022 [acessado 2022 maio 18]. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur464818/.
https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/... .
Os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% (noventa e nove por cento) da população com água potável e de 90% (noventa por cento) da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, assim como metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento. A Lei 14.026/2020 estabelece também a data de 31 de março de 2022 como data limite para inclusão de metas de universalização nos contratos em vigor11 Brasil. Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico. Diário Oficial União; 2020..
O Decreto do Executivo Federal 10.710 de 2021 estabelece também a metodologia de comprovação da capacidade econômico-financeira das operadoras de serviços de abastecimento de água potável e/ou de esgotamento para cumprir as metas de universalização do novo marco legal do saneamento2323 Brasil. Decreto nº 10.710 de 31, de maio de 2021. Regulamenta o art. 10-B da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, para estabelecer a metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário. Diário Oficial da União; 2021.. A necessidade de rápida resposta às demandas do Decreto 10.710 gerou muita incerteza sobre o futuro das CEBS e a possibilidade da troca das companhias estaduais de A & E por agentes privados nos municípios mais rentáveis2424 Hirata T. Paraíba Usa Brecha na Lei de Saneamento e Abre Disputa. Jornal Valor Econômico 2022; Seção B:3..
Constatou-se, contudo, que as CESBs foram bem-sucedidas em renovar contratos e assinar aditivos contratuais em municípios superavitários, como a maioria das capitais, estendendo as posições nos mercados relevantes. Por outro lado, o novo marco do setor fracassou na formatação de novos contratos de concessão com a participação de investidores privados em cidades pequenas e pouco rentáveis pela estratégia da regionalização2525 Ritter D. Nova Lei Expulsa as Estatais, e 20% das cidades terão que leiloar saneamento. Jornal Valor Econômico 2022; Seção A:2..
Nesse cenário conflitivo, chama a atenção a pouca relevância dada à pactuação federativa na implantação do novo regime para o saneamento. Na bem-sucedida construção do Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, a pactuação por meio de negociações, coalizões e induções Ministério da Saúde foi crucial. Cabe assinalar que, no início da redemocratização, parcela dos recursos do setor saúde controlada pelo governo central foi transferida para a execução direta dos Estados e Municípios em troca da aceitação de uma agenda padronizada de políticas e programas prioritários. O financiamento setorial ficou organizado em torno de um engenhoso sistema de transferências condicionadas de recursos criadas na década de 19902626 Costa NR. A resiliência das grandes cidades brasileiras e a pandemia da Covid-19. Saude Debate 2021; 45(n. esp. 2):10-20..
Conclusões
O processo de implantação do novo marco regulatório do saneamento não foi encerrado. A agenda de desestatização no setor tem sido potencializada pela situação de dependência fiscal dos Estados em Regime de Recuperação Fiscal (RRF) de 2017, como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Goiás. O RRF prevê a alienação total ou parcial de participação societária de empresas públicas ou sociedades de economia mista, ou a concessão de serviços e ativos, ou a liquidação ou extinção dessas empresas, para quitação de passivos com os recursos arrecadados2727 Brasil. Secretaria do Tesouro Nacional. Regime de Recuperação Fiscal [Internet]. [acessado 2022 jun 17]. Disponível em: https://www.tesourotransparente.gov.br/temas/estados-e-municipios/regime-de-recuperacao-fiscal-rrf#:~:text=O%20Regime%20de%20Recupera%C3%A7%C3%A3o%20Fiscal%20(RRF)%20foi%20institu%C3%ADdo%20em%202017,habilitados%20a%20aderir%20ao%20RRF.
https://www.tesourotransparente.gov.br/t... . A adesão ao RFF possibilitou, por exemplo, que o leilão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) fosse realizado no final de abril de 2021 e apresentado como a joia da coroa de uma série de possíveis de concessões de serviços de A & E2828 Ferreira, JG, Gomes, MFB, Dantas, MWA. Desafios e controvérsias do novo marco legal do saneamento básico no Brasil. Braz J Develop 2021; 7(7):65449-65468..
O esforço das CESBs para manter a posição de dominância nas cidades rentáveis e a baixa propensão das empresas privadas para investir em municípios de pequeno porte tornaram as metas previstas no novo marco do saneamento para 31 de dezembro 2033 desafiadoras: atendimento de 99% da população com água potável e de 90% com coleta e tratamento de esgotos. A universalização da provisão de água da região Norte será de exigência extrema (apenas 68,9 da região era coberta em 2020) e talvez inexequível para a provisão de coleta e tratamento de esgotos (13,1% da população da região tinham serviços de coleta e tratamento de esgoto em 2020)1818 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 25º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Regional; 2021..
Abrucio e Samuels assinalam que o aumento de poder dos governadores foi um dos fatos mais relevantes na redemocratização brasileira. Os governadores resistiram em ceder os escassos espaços de decisão que consolidaram durante a transição democrática e nem o Executivo Federal teve condição de impor a sua vontade nas áreas de políticas públicas de titularidade regional2929 Abrucio FL. Samuels D. A Nova Política dos Governadores. Novos Estud CEBRAP 1987; 40(41):137-165.. O caso da resiliência institucional das CESBs na área do saneamento é exemplar.
Ainda assim, cabe lembrar que o Brasil é uma federação com pretensões de simetria na qual os 5,6 mil municípios e os 26 Estados têm as mesmas responsabilidades institucionais, com exceção da função judiciária que é exclusiva dos Estados e União3030 Abrucio FL, Grin E, Ianni CI. Brazilian Federalism in the Pandemic. In: Peters BG, Grin E, Abrucio FL, editors. American Federal Systems and COVID-19. Responses to a Complex Intergovernmental Problem. United Kingdom: Emerald Publishing Limited; 2021. p. 63-88.. Neste arranjo federativo, as três instâncias de governo permaneceram disputando a titularidade na área de A & E por força das competências superpostas e concorrentes.
Ao longo da consolidação democrática, a acirrada disputa entre estadualistas e municipalistas dificultou o consenso sobre a titularidade. O exercício generalizado do veto político impediu a construção de novos mecanismos de cooperação federativa, preservando o poder dos governos estaduais e subsumindo o debate sobre a universalização da cobertura.
As iniciativas legais para a mudança nesse arranjo como, por exemplo, a Lei 11.445/2007, apenas aumentaram os custos transacionais para a permanência da hegemonia regional das CESBs ao definir o município como titular do serviço de saneamento básico. Ao mesmo tempo, o ambiente legislativo das décadas de 2000 e 2010 - governos Lula e Dilma - foi também bastante favorável à hegemonia estadual pela introdução do “contrato de programa” como regra de contratação por vários titulares municipais da prestação de serviços por um mesmo prestador regional.
A conjuntura dos governos Lula e Dilma registra a extraordinária expansão da prestação de A & E por entidades dependentes do executivo municipal e estadual visando ampliar as receitas governamentais. Nesse processo, Brito1414 Britto AL. Estudo Proposições para Acelerar o Avanço da Política de Saneamento no Brasil: Tendências Atuais e Visão dos Agentes do Setor. In: Heller L, organizador. Saneamento como política pública: um olhar a partir dos desafios do SUS. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz; 2018. p. 53-102. identifica a submissão do setor de saneamento à lógica mercantil, com o governo federal atuando de forma exclusivamente normativa.
É importante reconhecer, entretanto, que a capacidade de gerar retornos financeiros diferencia os serviços nacionais da condição de ineficiência, prestação de má qualidade e tarifação abaixo do custo de produção observada na América Latina por Spiller e Savedoof22 Spiller P, Savedoof W. Government Opportunism and the Provision of Water. In: Spiller P, Savedoof W, editors. Spilled Water: Provisional Commitment of the Provision of Water Services. Washington, D.C.; Inter-American Development Bank; 1999. no setor de A & E. Pode-se afirmar, então, que o setor de A & E brasileiro tornou-se estruturalmente rentável, mesmo que operando com tarifas relativamente baixas sobre o consumo das famílias de média e alta renda.
O padrão de rentabilidade e o potencial de aumento das tarifas puseram os serviços de A & E no foco da agenda de desestatização sob o argumento de que os entes públicos não dispõem de capacidade de investimento para universalizar a cobertura. Nesse sentido, constata-se que a coalização de advocacia pela concessão a empresas privadas da comercialização do abastecimento de água e do tratamento do esgotamento sanitário obteve uma vitória institucional extraordinária com a Lei 14.026/2020. Em função do novo marco do setor, que impõe a regulação federal, a condicionalidade para acessar recurso da União e o fim do contrato de programa, os custos transacionais de permanência das CESBs e dos serviços próprios dos municípios com maior capacidade fiscal aumentaram exponencialmente.
O cenário atual renova o desafio assinalado por Turolla1212 Turolla FA. Política de Saneamento Básico: Avanços Recentes e Opções Futuras de Políticas Públicas. Brasília: IPEA; 2002. para o legado da década de 1990: as iniciativas de política pública do Executivo federal dos governos Lula e Dilma promoveram o aumento da cobertura dos serviços sem, no entanto, produzir alterações estruturais que permitissem um salto na universalização.
O estabelecimento do marco regulatório nacional em 2020 pelo governo Bolsonaro, ratificado pelo STF, não formulou uma política nacional de saneamento que contemple a cooperação entre os municípios e os governos estaduais. O modelo cooperativo praticado no SUS2929 Abrucio FL. Samuels D. A Nova Política dos Governadores. Novos Estud CEBRAP 1987; 40(41):137-165. poderia servir como referência para a construção de um pacto social no setor.
Sem levar adiante a agenda da cooperação, o desafio da universalização dos serviços de saneamento permanecerá insolúvel. Nesse sentido, seguindo a proposta de Turolla1212 Turolla FA. Política de Saneamento Básico: Avanços Recentes e Opções Futuras de Políticas Públicas. Brasília: IPEA; 2002., a pactuação federativa no setor de saneamento pode orientar a criação de fundo público para a universalização por área de concessão. Os agentes privados não mostram disposição de investir nos pequenos municípios rurais e as empresas líderes estatais têm atualmente como prioridade a manutenção das posições no mercado relevante. Nesse contexto, a utilização de recursos públicos deve privilegiar as áreas e regiões que não atingirão as metas de universalização propostas para 2033.
Referências
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- 2Spiller P, Savedoof W. Government Opportunism and the Provision of Water. In: Spiller P, Savedoof W, editors. Spilled Water: Provisional Commitment of the Provision of Water Services. Washington, D.C.; Inter-American Development Bank; 1999.
- 3Pierson P. Politics in Time. History, Institutions, and Social Analysis. New Jersey: Princeton; 2004.
- 4Manicucci T, D'Albuquerque R. Política de saneamento vis-à-vis à política de saúde: encontros, desencontros e seus efeitos. In: Heller L, organizador. Saneamento como política pública: um olhar a partir dos desafios do SUS. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz; 2018. p. 9-52.
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- 6Saiani CCS, Toneto Junior R. Evolução do acesso a serviços de saneamento básico no Brasil (1970 a 2004). Econ Soc 2010; 19(38):79-106.
- 7Heller L, Rezende SC, Cordeiro BS, Britto AL. Políticas públicas de saneamento básico no Brasil: tensões entre o legado conservador e o avanço progressista. In: Menicucci TMG, Gontijo JGL, organizadores, Gestão e políticas públicas no cenário contemporâneo - tendências nacionais e internacionais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2016. p. 299-321.
- 8Brasil. Ministério das Cidades. PLANSAB - Plano Nacional de Saneamento Básico. Brasília: Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental; 2013.
- 9Azevedo PF, Toneto JRR, SaianI CCS. Diagnóstico e Propostas para o Setor de Saneamento. In: Giambiagi FF, Almeida Jr. MF, organizadores. Retomada do Crescimento. Rio de Janeiro: Elsevier; 2017. p. 313-327.
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- 13Brasil. Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico; cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico. Diário Oficial da União; 2007.
- 14Britto AL. Estudo Proposições para Acelerar o Avanço da Política de Saneamento no Brasil: Tendências Atuais e Visão dos Agentes do Setor. In: Heller L, organizador. Saneamento como política pública: um olhar a partir dos desafios do SUS. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz; 2018. p. 53-102.
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» https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur464818 - 23Brasil. Decreto nº 10.710 de 31, de maio de 2021. Regulamenta o art. 10-B da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, para estabelecer a metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário. Diário Oficial da União; 2021.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
04 Set 2023 - Data do Fascículo
Set 2023
Histórico
- Recebido
20 Dez 2022 - Aceito
27 Jan 2023 - Publicado
29 Jan 2023